Você está na página 1de 30
Problemas de género Feminismo e subversio da identidade Judith Butler Ccomvaicit © Routledge, Chapman & Hal, In, 1990 Bigao cm lingua porauguesepubilcods mediante acordo cum Rowtiedge, Inex ‘TULO onGNAL MINGLE: Gone houbla— Femininn and the Subnet of Tentity cape: Evelyne Gronaeh ‘oseTo cRAnCo: Evalyn Grinch ¢Joso de Souza Leite ‘PRenanacAo DE ORIGHAISE REVISAO TECNICA: Vera Rivero yroRAGAO ELETRONICA: Imagern Virtual ‘CIPDRASIL CATALOGAGIONA FONTS |ONALDOS EDITORES DE LIVROS, fy. ls «reproducio, armazenamento ot transmissio de partes deste livro, através de quaasquet mies, sen previa atorizagio por escrito. Direits desa edicto adguiridos POHTORA CNTLEZACAG BRASH ERA Unselo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVICOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 -20921-380 Rio de Janciro, RJ Te 385-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL: Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ, 20822-970, Impresso no Brasil 2003 Sumario 2. AORDEN COMPULSORIA DO SEXOISENENDIDESO 24 3, GENERO: As RUNAS CHCLLARES DO DESATE CONTENMFOXANEO 26 4. TEORZANDOOBINARO, CUNTARDE ALM 33 5. DENTIDADE, SEXO EA METAFIICADASUSSTANCIA 37 (6 UNGUAGEM, PODER EESTAAIEGINS DEDISIOUWENTO 49 coringwoz Proibicdo, psicanilise ¢ a produgio da matriz heterosexual 61 1, AFERMUTA CRITCADO ESTRUTURALSNO 68 2. LACAN, FIVIREEAS ESIRATEGAS DANASCAKADA 74 2. FREUDEAMELANCOUADOGENERO 91 4. ACOMPLEXIDADE DO GENEROE OS UMITESDAIDENTINCACAO 102 5. REFORMULANDO A PROBIAOCONO PODER 109 ono 3 ‘Atos corporais subversives 119 {.ACORPO-POUNCA DEIVUAKRSTEVA 121 2 FOUCAUL, MERCULNEEAPOUITCA DADESCONTNUIDADESOWAL 149 5 MONIQUE WIIG DESITEGRACAD CORFORALESEIOFIGO 162 A, INSCRGDES CORONA SUBVESOES FEORUATVAS 85 5 covcuwsio Da par6dia a politica noms 215 woke 233 SUMARIO. 203 Prefacio is contemporaineos sobre os significadas do con- ceito de género levam repetidamente a uma certa sensagio de proble- ‘ma, como se sua indeterminagio pudesse culminar finalmente num fracasso do feminismo. Mas “problema” talvez nio precise ter uma valéncia tio negativa. No discurso vigente em minha infancia, criar problema era precisamente 0 que nio se devia fazer, pois isso traria problemas para nds. A rebeldia e sua repressio pareciam ser apreen- didas nos mesmos termos, fendmeno que den lugar z meu primeiro discernimento critico da mana sutil do poder: a lei dominante amea- ava com problemas, ameagava até nos colocar em apuros, para evitar {que tivéssemos problemas. Assim, conclui que problemas sio inevits- veis € nossa incumbéncia € descobrir a methor maneira de crié-los, a ‘melhor maneira de t€-1os. Com o passar do tempo, outras ambighida- des alcangaram 0 cenArio critico. Observei que os problemas algumas ‘vezes exprimiam, de maneira enfemistica, algum misterioso problema fundamental, geralmente relacionado ao pretenso mistério do femini- no, Li Beauvoir, que explicava que ser mulher nos termos de uma ‘cultura masculinista é ser uma fonte de mistério e de incognoscibili- ‘dade para os homens, 0 que pareceu confirmar-se de algam modo ‘quando li Sartre, para quem todo desejo, problematicamente presu- mido como heterossexual ¢ masculino, era definido como problema. Para esse sujeito masculino do desejo, o problema tomou-se escindalo ‘com a intrusio repentina, a intervengio nao antecipada, de um “ob- jeto” feminino que retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a mirada, e contestava o lugar e a autoridade da posicSo masculina. A ependéncia radical do sujeito masculino diante do “Outro” feminino 7 PREFACIO. expés repentinamente o cariter ilus6rio de sua autonomia. Contudo, ssa reviravolta dialética do poder nao péde reter minha atencio — embora outras 0 tenham feito, seguramente. O poder parecia ser mais do que uma permuta entre sujeitos ou uma relacio de inversio cons tante entre um sujertoe um Or rerdade,o poder parecia operar na propria prodagio dessa es jinaria em que se pensa 0 con- ceito de género, Perguntei-me entao: que configuragio de poder cons- 116i 0 sujeito e © Outro, essa relacio binéria entre “homens” e “mu- heres”, ¢ a estabilidade interna desses termos? Que restrigio estaria ‘operando aqui? Seriam esses termos ndo-problemiticos apenas na me- dida em que se conformam a uma matriz heterosexual para a concei- tuagio do género e do deseo? O que acontece ao sujeito ea estabili- dade das categorias de género quando © regime cpistemolégico da presungio da heterossexualidade € desmascarado, explicitando-se como produtor ¢ reificador dessas categorias ostensivamente onto- l6gicas? Mas como questionar um sistema epistemoldgico/ontolégico? ria? Considere o fardo dos “problemas de mulher”, essa configuragéo hist6rica de uma ndisposigio feminina sem nome, que mal disfarga a nogio de que ser mulher € uma indispougao natural. Por mais séria que seja a medicilizagio dos corpos das mulheres, 0 termo também é risivel, erir de categorias sérias € indispensével para o feminismo. Sem didvida, o feminismo continua a exigir formas propnas de seriedade. Female Trouble € também o titulo do filme de John Waters estrelado por Divine, também herdi/heroina de Hairspray — Eramos todos jo- vens, cuja personificagio de mulheres sugere implicitamente que 0 género é uma espécie de imitacao persistente, que passa como real. A performance dela/dele desestabiliza as prOprias distingdes entre natu- ral e artificial, profundidade e superficie, interno € externo — por meio das quais operam quase sempre os discursos sobre genero, Seria odrag uma imitagéo de género, ou dramatizaria os gestos mediante os quais 0 género se estabelece? Ser mulher constituiria um PROBLEMAS DE GENERO “fato natural” ou uma performance cultural, ou seria a “naturalidade” que produzem 0 corpo no interior das cat delas? Contudo, as praticas de género di ‘nos limites das cul- ‘turas gay e lésbica tematizam freqiientemente “onatural” em contex- tos de parddia que destacam a construgio performativa de um sexo original e verdadeiro. Que outras categorias fundacionais da identida- de —idennidade bindria de sexo, genero € corpo — podem ser apre- sentadas como produgdes a criar 0 efeito do natural, original ¢ inevi- tavel? Explicar as categorias fundacionais de sexo, género ¢ desejo como ‘efeitos de uma formacio especifica de poder supde uma forma de inves- ‘tigacio critica, 2 qual Foucault, reformulando Nietzsche, chamou de “gencalogia”. A crinca gencaldgica tecusa-se a buscar as origens do ge- nero, a verdade intima do desejo feminino, uma identidade sexual ge- ‘nuina ow auténtica que a repressio impede de ver; em vez disso, ela investiga as apostas politicas, designando como origemt e causa catego- rias de identidade que, na verdade, st0 efeitos de mstitaigoes, praticas e discursos cujos pontos de onigem sio miluplos difusos. A tarefa dessa investigagio é centrarse —e descentrar-se — nessas instituigSes defins- doras: 0 falocentnismo ¢ a heterossexualidade compulsoria, ‘A genealogia toma como foco o género e a andlise relacional por cle sugerida precisamente porque o “feminino” jd ndo pareve mais uma nocio estavel, sendo seu significado tao problemético e erritico quanto *, € porque ambos os termos ganham seu significado pro- blemitico apenas como termos relacionais. Além disso, ja nio esti claro ‘que a teoria ferinisca tenha que tentar resolver as questOes da identidade ppriméria para dar continuidade &tarefa politica. Em vez disso, devemos nos perguntar que possibilidades politicas sto consequéncia de uma critica radical das categorias de sdentidade? Que formas novas de polf- tica surgem quando a noclo de identidade como base comum jé nao restringe odiscurso sobre politicas feministas? Eaté que ponto.o esforco para localizar uma identidade comum como fundamento para uma po- PREFACIO lirica fermmsta impede uma mnvestigneso radical sobre as construgées ¢ as normas politicas da propria sdentidadle? O presente texto se divide em tés capitulos, que empreendem uma genealogia critica das categorias de géncroem campos discursivos muito distintos. O capitulo 1, “Suextos do sexo/género/desejo", reconsidera © status da “mulher” como sijerto do femimsmo ¢ a distingio de se- xo/género. A heterossexualidade compulsétia € 0 falocentrismo sio compreendidos como regimes de poderldiscurso com maneiras freqien- temente divergentes de responder as quest6es centrat género: como a linguagem constrét as categorias de sex resiste A representagio no Ambito da linguagem? A linguagem € com- preendida como faloctntrica (a pergunta de Lucy Ingaray)? Seria “o feminno” 0 nico sexo representado numa hnguagem que funde o fe- minino € 0 sexual (a afirmagio de Monique Wittig)? Onde ¢ como con vergem heterossexualidade compulsériae falocentrismo? Onde esto os pontos de rupura entre eles? Como a linguagem produz a construcdo ficticia de “sexo” que sustenta esses virios regimes de poder? No ambito de uma lingua da heterossexualidade presi, que tipos de continui- dades se presume que existam entre sexo, género e deseyo? Seriam esses termos distintos e separados? Que tipos de priticas culturass produzem uma descontnuidade e uma dissondincia subyersivas entre sexo, género ‘€ desejo, ¢ questionam suas supostas relacoes? O capitulo 2, “Proibigao, psicandlise e a producéo da matriz hete- rossexual”, oferece uma leitura seletiva do estruturalismo, relatos psica- naliticos ¢ feminwstas do tabu do incesto como mecanismo que tenta impor identidades de género distintas e internamente coerentes no am bito de uma estrutura heterossexual. Em alguns ciscursos psicanaliicos, aquestio da homossexuahdade invanavelmente associada a formas de imintehgibihdade cultural ¢, no caso do lesbranismo, a dessexualizaga0 do corpo feminino. Por outro lado, usa-se a teoria psicanalitica para explicar “identidades” de género complexas por meio de andlses da sdennidade, da identificacio e do disfarce ou mascarada, como em Joan Riviere e outros textos pstcanalitcos. Uma vez submetido o tabu do 10 PROBLEMAS DE GENERO incesto A crica de Foucault da hipétese repressiva, em “A hist6ria da sexualidade”, revelov-sc que essa estratura proibitira ou jurfdica tanto instala a heterossexualidade compulséria no interior de uma economa sexual masculinista como possibilta um questionamento dessa econo- ‘mua, Seria psicanzlise uma investiga¢ao antifundamentalista a afirmar ‘0 upo de complexidade sexual que descegula eficentemente cédigos _ sexuuus rigidos ¢ hierérquicos, ou preservaria ela um conjanto de supo- ‘sicdes no confessadas sobre os fundamentos da identidade, o qual fun- cciona em favor dessas hierarquias? O Gltimo capitulo, “Atos corporais subyersivos”, inicia-se com uma consideragio critica sobre a construgae do corpo maternoem Julia Kris- ‘teva, para mostrar as normas implfrtas que governam a inteligibilidade ‘cultural do sexo ¢ da sexualidade em seu trabalho. Embora Foucault se ‘empenhasse em apresentar uma crfnca de Kristeva, um exame mais de- ‘do de alguns dos prdpmos trabalhos de Foucault revelauma indiferenca -problematica em relacio a diferenca sexual. Contudo, sua critica da “categoria de sexo prové uma visio das praticas reguladoras de algumas ficgdes médicas contemporineas, concebidas para designar um sexo unf- voco, Tanto a teona como a ficcio de Monique Wittig propdem uma “desintegragio” de corpos culturalmente constitufdos, sugenindo que a propria morfologia seria conseqiéncra de um sistema conceitual hege~ ‘ménico. A parte final do capftulo, “InscrigOes corporais, subverses per- _formativas”, considera que a fronteira e a superficie dos corpos sao po- litcamente construfdas, mspurando-se no trabalho de Mary Douglas e ‘de Julia Knsteva. Como estratégia para descaracteriza e dar novo sig- -nificado as categorias corporais, descrevo e proponho uma série de pri “ticas parodisticas baseadas numa teorta performativa de atos de género “que rompem as categorias de corpo, sexo, género e sexvalidade, ocasio~ nando sua re-significagéo subversivae sua proliferagao além da estrutura binna. Parece que cada texto possi mais fontes do que pode reconstrair em seus propnos termos. Trata-se de fontes que definem c informa a lin PREFACIO guagem do texto, de modoa exigir uma exegese abrangente do proprio texto para ser compreendido —, é claro, nio haveria garantias de que tal exegese pudesse acabar um dia. Embora eu tenha iniciado este pre- facio com uma histéria de infancia, trata-se de uma fabula icredutivel 40s fatos, Certamente, a proposta aqui é, de maneira geral, cbservar 0 modo como as fabulas de género estabelecem ¢ fazem circular sua de- nominagio errénea de fatosnaturais. E daramente impossfvel recuperar as origens destes ensaios, localizar os varios momentos que viebilizaram este texto. Os textos esto reunidos para facilitar uma convergéncia Politica das perspectivas feministas, gays e lésbicas sobte o género com 4 da teoria pos-estruturalista. A filosofia € o mecanisino disciplinar pre- dominante a mobilizar presentemente esta autora-st ca afirmar essas posigSes nos limites criticos da vida disciplinar. A ques- tho nao é permanecer marginal, mas participar de todas as redes dezonas ‘marginais geradas a partir de outros centros disciplinares, as quais, jun- tas, constituam um deslocamento miiltiplo dessas autoridades. A com- plexidade do conceito de género exige um conjunto interdisciplinar € p6s-disciplinar de discursos, com vistas a resistir & domesticacdo acadé- mica dos estudos sobre 0 género ou dos estudos sobre as mulheres, ede radicalizar a nogio de critica feminista, Escrever estes textos foi possivel gracas a numerosas formas de apoio institucional e individual. © Americain Council of Learned Socie- ties forneceu uma bolsa para o outono de 1987 (Recent Recipient of the Ph.D. Fellowship) e a School of Social Science do Institute for Advanced Study, em Princeton, proporcionou bolsa, alojamento e discussbes esti- mulantes a0 longo do ano académico de 1987-1988. A George Washing ton University Faculty Research Grant também apoio minha pesquisa durante 05 verdes de 1987 e 1988, Joan W. Scott foi uma critica inesti- miivel ¢ incisiva ao longo das varias etapas deste trabalho. Seu compro- Inisso ¢ sua disposicao de repensar criticamente os pressupostos da po- Witica feminista me desafiaram ¢ inspiraram. O “Gender Seminar”, rea- Neado no Institute for Advanced Study sob a direco de Joan ajudou-me evclarecer ¢ a claborar meus pontos de vista, em virtude das divisdes PROBLEMAS DE GENERO ificativas ¢ instigantes em nosso pensamento coletivo. Conseqiien- ‘temente, agradego a Lila Abu-Lughod, Yasmine Ergas, Donna Haraway, Evelyn Fox Keller, Dorinne Kondo, Rayna Rapp, Carroll Smith-Rosem- “berg € Louise Tilly. Meus alunos no semindrio “Género, identidade izado na Wesleyan University e em Yale, em 1985 e 1986 pectivamente, foram indispensaveis por sua disposigio de imaginar clos com géneros alternativos. Também apreciei muito a variedade respostas criticas que recebi do Princeton Women's Studies Collo- _quium, do Humanities Center da Johns Hopkins University, da Univer “sity of Notre Dame, da University of Kansas, da Amherst College e da Yale University School of Medicine, quando da apresentacio de partes do presente trabalho. Meus agradecimentos igualmente a Linda Singer, jo radicalismo persistente foi inestimével, a Sandra Bartky, por seu Iho e suas oportunas palavras de estfmulo, a Linda Nicholson, por u conselho editorial e critico, ea Linda Anderson, por suas agudas in- igdes politicas. E também agradeco as seguintes pessoas, amigos © co- Jeram forma a meu pensamento € 0 apoiaram: Eloise Moore Inés Azar, Peter Caws, Nancy F. Cott, Kathy Natanson, Lois Na- fanson, Maurice Natanson, Stacy Pies, Josh Shapiro, Margaret Soltan, fobert V. Stone, Richard Vann e Eszti Votaw. Agradecoa Sandra Schmidt or seu excelente trabalho de ajuda na preparagio do manuscrito, ¢ a Gilbert porsua assisténcia. Também agradego a Maureen MacGro- h, por encorajar este projeto e outros com humor, paciéncia e exce- Hente orientacio editorial. Como sempre, ageadecoa Wendy Owen por sua imaginagao impla- ivel, sua critica agucada e pela provocacio de seu trabalho. ‘cavituor — Sujeitos do sexo/género/desejo ‘A gente no nasce mulher, torna-se mulher, —Simone de Beauvoir Estritamente falando, nao se pode dizer que existam “mulheres”. Julie Kristeva Mulher mio tem sexo. Loe: Irigaray ‘Amanifestacio da sexualidade... estabeleceu essa nocio de sexo. —Michel Foucault ‘A categoria do sexo ¢ a categoria politica que funda a sociedade heterosexual. Monique Wittig 1. "MULHERES" COMO SUIEITO DO FEMINISMO- [Em sua esséncia, a teoria feminista tem presumido que existe uma iden- deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu proprio discurso, mas consitui 0 sujeito mesmo em nome de quem a repre- "7 SUJEITOS DO SEKO/GENERO/DESEIO sentagio politica ¢ almejada. Mas poltica e epresentacto sto termos nesentacdo serve como termo operacional no seio de um processo politico que busca estender visibilidade e legiti- midade as mulheres como snjeitos p por outro lado, a repre- sentagio é a fungao normativa de um: gem que revelaria ou dis- toreeria o que ¢ tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres. Para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representé-las completa ou adequadamente pareceu necessiio, a fim de promover a visibilidade politica das mulheres. Isso parecia obviamente importante, considerando a condigao cultural difusa na qual a vida das mulheres era mal representada ou simplesmente nao representada. Recentemente, essa concepcio dominante da relacio entre teoria feminista e politica pessou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. © préprio sujeito das mulheres nao€ mais compreen- dido em termos estaveis ou permanentes. E significativa a quantidade de material ensafstico que nao 6 questiona a viabilidade do “sujeito” como candidat: imo A representagao, ou mesmo 4 libertacio, como indica que é muito pequena, afinal, a concordAncia quanto a0' que cons- titui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres. Os dominios da “representagao” politica c lingitistica estabeleceram « priori o critério segundo 0 qual os préprios sujcitos sio formados, com o resultado de a Tepresentacao s0 se estender ao que pode ser reconhecide como sujeito. Em outras palavras, as qualificacoes do ser sujeito tem que ser atendidas para que a representacio possa ser expandida. Foucault observa que os sistemas juridicos de poder produzem os sujeitos que subseqiientemente passam a representa.' As nogées juridi- cas de poder parezem regular a vida politica em termos puramente ne- gativos — isto é, por meio de limitacdo, proibicao, regulamentagio, controle e mesmo “proteco” dos individaos relacionados aquela estru- tura politica, mediante uma acio contingente e retrativel de excolha. m virtude de a elasestarem con estruturas sio formados, definidos ¢ reproduzidos de acordo com as exigencias delas, Se esta andlise € correta, a formagao juridica da linguagem e ds politica que representa as mulheres como “o sujeito” do PROBLEMAS DE GENEKD feminismo € em si mesma uma formagio discursiva¢ efeito de uma dada versao da politica representacional. E assim, o sujeito feminista se revela discursivamente constitufdo —, pelo proprio sistema politico que su- postameate deveria facilitar sua emancipacio, o que se tomaria politi camente problematico, se fosse possivel demonsirar que esse sistema produza sujeitos com tracos de género determinados em conformidade ‘com um eixo diferencial de dominasao, ou os produza presumivelmente ‘masculinos. Em tais casos, um apelo acritico a esse sistema em nome da emansipagio das mulheres” estariaineloravelmente fadado ao fracas ” € uma questo crucial para ¢ particularmente produzidos por via de priticas de exclusiio que nao “aparecem”, uma ver estabelecida a estrutura juridica da politica. Em outras palavras, a cconstrucio politica do sujeito procede vinculada a certos objetivos de iiticas sio efetivamente que toma as estruraras “produz” inevitavel- legitimagio ¢ de exclusio, e essas opera cultas ¢ naturalizadas por uma anélise p juridicas como seu fundamento. O poder mente oque alcga meramente representar; conseqiicntemente, a politica tem de se preocupar com essa funco dual do poder: juridica e produtiva. produz e depois oculta a nogdo de “sujeito perante a Com efeito, lei”, de modo natural que legitima, subseqiientemente, a prépriahegemonia regulado- ra da lei, Nao basta inquirir como as mulheres podem se fazer sentar mais plenamente na linguagem ¢ na politica, A critica fe também deve compreender como a categoria das do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estraturas de po- det por intermédio das quais busca-se a emancipagio. Certamente, a questio das mulheres como sujeito do feminismo suscita a possibilidade de nao haver um sujeito que se situe “perant lei, & espera de representagio na lei ou pela lei. Talver 0 sujeito, bem como a evocacao de um “antes” temporal, sejam constituidos pela lei como fundamento ficticio de sua propria jcacio de legitimidade. A hipétese prevatecente da integridade ontologica do sujeito perante a lei pode ser vista coma o vestigio contemporaineo da hipdtese do estado Suseltos D2 SEKO/GENERO!DESEIO natural, esa fabuls funda que € constitutiva clas estrituras jurdicas do liberalismo cléssico. A sivocacio performativa de wm “antes” ndo hhist6rico torna-se a premise basica a garantir uma ontdogia pré-ocial de pessoas que consentem ivremente em ser governads, comstittindo assim a legitimidade do cortrato social CContudo, além das ficxSes “fandacionistas” que sucentaam a ogo de sujeito, hd 0 problema prlitico que o ferninisno encntra. na stpost- Gio de que o tecmo mulher denote uma identi dade canunn, Aoinvés de um significante estivel asomandar 0 consentimento Aquelasaquem pretende descrever e repreenta, mulheres — mesmo 19 pluural — tor- now-se um termo problemitico, um ponto de contests0, umacausa de ansiedade. Como suger: 0 titulo de Denise Riley, At I That Name? [Sou eu este nome?"], traa-se de uma pergunta geradt pella posibili- Gade mesma dos miltiplossignificados do none.’ Se Jgué-m “6 uma mulher, isso certamente nz € tudo o que esse alguémé; 0 terno ndio logra ser exaustivo, no PTAUE 08 tages precefinids de geno da “pessoa” transcendam a paafernalia especifica ele seu fnervo, mss por- que o genero nem sempre corstituia de manera coventee ou onsit- tente nos diferentes contests histéricos, e poreyue o gherc esubelece intersegGes com modalida€s Facias, classstas, Enicassextaais eregio- ais de identidades discurs¥amente constituidass, Resula qime se ornou impossivel separar a nocic de “género” das interseg6e pollitica'e eul- turais em que invariavelmnte cla € produzida we mantia. ‘A presuncio politica fe ter de haver uma base miveersal ara 0 feminismo, a ser encontraia numa identidade sapostmen-te exstente ‘em diferentes culturas, admpanha freqiienternente 1idétia deque a opressio das mulheres posti urna forma singe lar, dis-rmfwel n:estra- ‘ura universal ou hegem6ica da dominacio patriarcadu mmasolina. A ogo de um patriaccadotniversal tem sido zammplamate Critieda em anos recentes, por seu frase em explicar os wmecaninor da oessio de genero nos contextos wlturais concretos ewn que /a esmciste-Exata- mente ondle esses varios cftextos foram cons-altados/or eessas corias, ‘6 foram para encontrt “exemplos” ou “ilmustracés” dee umprinci- hy ‘pressupostolesde o ponto de paurtida. Ba foormate teo- PROSLEMAS DE GENERO rizagdo feminista foi criticada por seus esforgos de colonizar e se apro- priar de culturas nao ocidentais, instrumentalizando-as para confirmar nogées marcadamente ocidentais de opressio, e também por tender a constmuir um “Terceiro Mundo” ou mesmo um “Oriente” em que a opressao de géncro é sutilmente explicada como sintomtica de um bar- barismo intrfnseco e nfo ocidental. A urgéncia do feminismo no seatido de conferir um status universal ao patriarcado, com vistas a fortalecer aparéacia de representatividade das reivindicagées do feminismo, mo- tivou ocasionalmente um atalho na diregéo de uma universalidade cate~ rica ou ficrfcia da estrutura de dominacio, tida como responsivel pela produgéo da experiéncia comum de subjugacio das mulheres. Embora afirmar a existéncia de wm patriarcado universal nfo tenha mais a credibilidade ostentada no passado, a nogao de uma concepgio sgenericamente compartilhada das “mulheres”, corolério dessa perspec- tiva, tem se mostrado muito mais dilfeil de superar. £ verdade, houve muitos debates: existiriam tragos comuns entre as “mulheres”, preexis- fentes a sua opressio, ou estariam as “mulheres” ligadas em virtude somente de sua opressio? Fi uma especificidade das culturas das ma Iheres, independente de sua subordinacio pelas culturas masculinistas ide ea integridade das priticas culeurais ot lingtivticas das mulheres por oposigio e, por- tanto, nos termos de alguma outra formagio cultural dominante? Existe uma regiao do “especificamente feminino”, diferenciada do maseulino como tal e reconhecivel em sua diferenga por uma universalidade indis- iéa das “mulheres”? A nogao bindria 1056 a estrutura exclusivaem que essa hegeménicas? Caracterizam-se sempre a especi de” do feminino é maisuma veztot cixos de relagdes de poder, os quais tanto constituem a “identidade” ‘como tornam equivoca a nogao singular de identidade.* £ minha sugestio que as supostas universalidade e unidade do su- jeito do feminismo sio de faro minadas pelas restrigdes do discurso representacionalem que funcionam. Com efeito,a insistéacia prematura 2 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO PROBLE MA: DE GENERO estivel do feminismo, compreendido como uma categoria ir uma politica repre-sentcional capaz de renovar o fe plas recusas a aceitar essa ph termos. Por outro lado é tempo de empreender un: categoria, Esses d 1m as conseqiiéncias coetci- jertar a teoia feminista da necessidade de co tivas e reguladoras dessa construgio, mesmo quando a construcao é invariavelmente contestada pelas elaborada com propésitos emancipatérios. Nao ha diivida, a fragmen- 0 invariavel- io paradloxal ao feminismo— Sera que as pratticasexcludentes que baseiam a teoria fe- por parte de “mulheres” que o feminismo afirma representar —sugerem nogio das “malhers” como sujeito solapam, paradoxal- ites necessirios da politica da identidade. A sugestio de que 0 4 : pees feministas le ampliar suas reivindicagbes de le proprio conste6i gera a conseqiiéncia irdnica de que os feministas cortem 0 risco de fracassar, justamente em fungao de sua Bes mulheres commo.aeituccerenteeervével uma reguiagso recusa a levar em conta os poderes constitutivos de suas prprias reivin- jo inconsciente das relages de género? E nio seria essa reific dicagdes representacionais. Fazer apelos & categoria das mulheres, em r nome de propésitos meramente “estratégicos”, ndo resolve nada, pois ‘as estratégias sempre tém significados que extrapolam os propésitos a {que se destinam, Nesse caso, a prépria exclusto pode restringir como das mulheres 86 al.cang estabilidade ¢ coeréncia no contexto heterossexual?® Se a ncao essvel de género dé mostras de servir como premissa bsica da politica femtinista, talvez um ‘gnificado inintencional, mas que tem conseqiiéncias. Por sua ‘ipo de politica feminista sja conformagio as exigéncias da politica representacional de que o femi- Ws reificacdes do género € a nismo articule um sujeito estavel, 0 feminismo abre assim a guarda a que tome a construcdo arigvel da identidade como um pré- acusages de deturpagio cabal da representacio. , sentio como um objetivo politico. Obviamente, a tarefa politica nao é recusar a politica representa ional — como se pucéssemos fazé-lo. As estruturas juridicas da lingua ‘gem e da politica constituem 0 campo contemporaneo do poder; con- logia feminista da caregona das mulheres, Ao longo do esforco seqlentemente, nio hé posiglo fora desse campo, mas somente uma stionar a nogao de “mulhess” como sujito do ferinismo, ain- sgencalogia critica de suas préprias préticas de legitimagéo. Assim, 0 pon POkacio nao problematizada desscategeria pode obstar’ possbilidade to de partida critico € 0 presente histérico, como definiu Marx, Ea tarefa nismo como politica repreentacional. Qual o sentido de esten- 6 justamente formulas, no interior des estrutura constitada, uma cri- ? i ose dé mediantéuexclusio tica ds categorias de identidade que as estruturas juridicas contempora- reas engendram, naturalizam ¢ imobilizam. Tiss do sujeico? Que retagoes © dominagao e exclusto se afirmam “Talvea existayna presente conjuntara poltico-cultural, pefodoque —_{iafencionalmente quando a reresentacio se torma o jinico foco da alguns chamariam de “pés-eminista’, uma oportunidade de refleir a politica? A identidade do sujeito eminista nao deve sero fundamento partir de uma perspectva feminista sobre aexigénciade se construirum da politica feminsta, pois a formgao do sujeito ocorre no 10. Parece necessirio repensar radicalmente as cons uum campo de poder sistemaricarente encoberto pela afirmacé de identidade na pratica politica feminista, de modo 22 23 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/D nha realmente a fazer sentido para o feminismo quando 0 sujelto “mu- Theres” nao for presumido em parte alguma. = 2. AORDEM COMPULSORIA DO SEXO/GENERO/DESEIO. Emberaa unidade indiscutida da nogio de “amulheres" te invocada para construir uma solidariedade da identidade, uma divisto seint-oduz no sujeito feminista por meio da distingao entre sexo e genero. ‘Conczbida originalmente para questionar a formulagio de que a biologia €o destino, a distingio entre sexo e Enero atende a tese de que, por mais que ¢ sexo pareca intratavel em termos biolégicos, o género é cultural- ment: construido: conseqiientemente, nao é nem o resultado causal do sexo,nem tampouco tio aparentementefixo quanto 0 sexo, Assim, auni- dade do suieito jé € potencialmente contestada pela distingéo que abre espago ao género como interpretacao miltipla do sexo.” Se 0 género s80 08 significados culturais assumidos pelo corpo se uado, nfo se pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela mancira, Levada a seu limite légico, a distingio sexo/género sugere uma descontinuidade radical entre corps sexuados e géneros culturalmente consituidos. Supondo por um momento aestabilidade do sexo bindrio, nio decorre daf que a consirugio de “homens” aplique-se exclusivamen- tea corpos masculinos, ou que o termo “mulheres” interprete somente ‘corpys femininos, Além disso, mesmo que 0s sexos paregam nao pro- blematicamente binirios em sua morfologia ¢ constituigio (a0 que sera quesionado), nao ha razdo para supor que os géneros também devam permanecer em ntimero de dois.’ A hip6tese de um sistema binirio dos xgéneros encerra implicitamente a crenca numa relacao mimética entre género e sexo, na qual o género reflete o sexo ou € por cle restrito. Quando o status construido do género € teorizado como radicalmente indexendente dosexo, 0 proprio género se torna um artificio flutuante, coma conseqiéncia de que homem e masculino podem, com igual fa- PROBLEMAS DE GENERO cilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, € reH- Iher e feminino, tanto uum corpo masculino como um feminino. Essa cisio radical do sujeito tomado em seu género levanta outro -conjunto de problemas. Podemos referir-nos « um “dado” sexo ou um “dado” género, sem primeiro investigar como sto dados 0 sexo ou _género e por que meios? Eo que ¢, afinal? 0 “sexo”? £ ele naval, _anatémico, cromoss6mico ou hormonal, e como deve a critica femirista avaliar os discursos cientificos que alegam estabelecer tais “fatos" para nés?? Teria o sexo uma hist6ria?” Possuiria cada sexo uma historia Ou hist6rias diferentes? Haveria uma histéria de como se estabeleceu a dua- idade do sexo, uma genealogia capaz de expor as opgées bindrias como . construcdo variavel? Seriam os fatos ostensivamente naturais do 10 produzidos discursivamente por virios discursos cientificos a ser- ico de outros interesses politicos e sociais? Se o caréter imutivel do o é contestavel, talvez.o préprio construto chamado “sexo” seje tao Ituralmente constraido quanto o género; a rigor, talver.o sexo sempre enha sido 0 género, de tal forma que a distingo entre sexo e gexero revela-se absolutamente nenhuma."" Se 0 sexo é, ele prdprio, uma categoria tomada em sen genero, no fax sentido definit 0 género como a interpretacio cultural do sexo. O yEnero nao deve ser meramente concebido como a inscricio cultural de icado niin sexo previamente dado {uma concep@io juridica); tem de oar também 0 aparato mesmo de produgio mediante o qual ospré- jos sexos so estabelecidos. Resulta daf que o gerero niio est para a ~ gultura como o sexo para anatureza; ele também € omeio discursve/cul- _ tural pelo qual ‘a natureza sexuac wral” € produzidoe “ estabclecido como “pré-discursive”, anterior A cultura, uma supe rente neutra sobre a qual age a cultura. Essa concepgio do “exo” 10 radicalmente ndo-constrafdo ser4 novamente objeto de nossointe- esse na discussio sobre Lévi-Strauss ¢ o struturalismo, no capitulo 2. Na juntura atval, jé esti claro que colocar a dualidade do sexo num do- pré-discursivo é uma das manciras pelas quais a etabilidade interna ea estrucura bindria do sexo sio cficazmente asseguradss. Essa produgio sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito de apa- 25 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO ratode construcio cultural que designamos por género. Assim, como dever a nogio de género ser reformulada, para abranger as relagGes de poder que produzem o efeito de um sexo prédi a propria operacio da producio discursiva? sivo e ocultam, desse modo, 3. GENERO: AS RUINAS CIRCULARES DO DEBATE CONTEMPORANEO: Haver “um” género que as pessoas prossuent, conforme se diz, ou € 0 ‘género um atributo essencial do que se diz.que a pessoa é, como a pergunta “Qual 60 seu género?” Quando teéricas femi que o género é uma interpretacio cultural do sexo, ou que construido culturalmente, qual é 0 modo ou mecanismo dessa consteu- cdo? Se o género € construido, poderia sé-lo diferentemente, ou sua caracteristica de construgio implica alguma forma de determinismo s0- cial que exclui a possibilidade de ayéncia ou transformacio? Porventura a nogio de “construgéo” sugere que certas leis geram diferencas de g- nero em conformidade com eixos universais da diferenca sexual? Como e onde ocorre aconstrucdo do género? Que juizo podemos fazer de uma construgdo que nao pode presumir um construtor humano anterior a ela mesma? Em algamas explicagoes, aidéia de que o género é construt- do sugere um certo determinismo de significados do género, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos com preendidos como fecipientes passivos de uma lei cultural inexordvel. Quando a “cultura” relevante que “constr6i” 0 génera é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressa0 de que o género € tdo determinado e tio fixo quanto na formulacio de que a biologia € o destino, Nesse caso, no a biologia, mas a cultura se torna o destino. Por outro lado, Simone de Beauvoir sugere, em O segundo sexo, que “a gente nao nasce mulher, torna-se mulher", Para Beauvoir, genero € “consteuido”, mas hi um agente implicado em sua formulagio, um cogito que de algum modo assume ou se apropria desse género, poden- PROBLEMAS DE GENERO ‘em principio, assumir algum outro. £0 género to variavel e volitivo unto parece sugerir a explicagao de Beauvoir? Pode, nesse caso, a 40 de “construcio” reduzir-se auuma forma de escolha? Beauvoir diz smente que a gente “se toma” mulher, mas sempre sob uma com {io cultural fazé-Lo. E tal compalso claramente nio ve do “sexo”. lao ha nada em sua explicagdo que garanta que o “ser” que se torna ulher seja necessariamente fémea. Se, como afirma ela, “o compo éuma cio", nao hé como recorrer a um corpo que jf nio tenha sido “sempre interpretado por meio de signifieados culturais; conseqtente- ‘mente, o sexo no poderia qualificar-se como uma facticidade anatomica _prédiscursiva. Sem dlivids, seré sempre apresertado, por definisto, ‘como tendo sido ginero desde 0 comeco.!* é icado de construcdo parece bascar-se tna polaridade filos6fica convencional entre livre-arbitrio e determinis- ‘mo. Em conseqtiéncia, seria razodvel suspeitar que algumas restrigoes lingiifsticas comuns ao pensamento tanto formam como limitam 09 ter- mos do debate. Nos limites desses termos, “o corpo” aparece como um meio passivo ‘como o instrumento pelo qual uma vontade de apropriagio ou interpre~ tacio determina o significado cultural por si mesma. Em ambos oscasos, O corpo € representado como um mero instrumenio ou meio como qual ‘um conjunto de significados culturais 6 apenas externamente relaciona~ do. Mas 0 “corpo” € em si mesmo uma construgio, assim como 0 éa imitiade de “‘corpos” que constitu o dominio dos sujeitos com marcas de género. Nio se pode dizer que os corpos tenham uma existencia significivel anterior & marca do seu géneros e emerge emtio a questio: ‘em que medida pade o corpo vir a existir na(s) marca(s) do género e por meio delas? Como conceber novamente 0 corpo, nio mais como um ‘meio ou instrumento passivo i espera da capacidade vivificadora de uma vontade caracteristicamente imaterial?! Se 0 género ou 0 sexo sao fixos ou livres; € que, como se iré sugerir, busca estabelecer certos ‘vaguardar certos dogmas do kumanismo como um pressuposto de qual- ‘quer anilise do género, O locus de intratabilidade, tanto na nocao de 27 SUJEITOS DO SExO/GENERO/DESELO “sexo” como na de “género”, bem como no préprio significado da nogio de “construcio”, fornece indicagées sobre as possibilidades aulturais que podem e nio podem ser mobilizadas por meio de quaisquer andlises pos- teriores. Os limites da anélise discursiva do género pressupdem e definem por antecipacdo as possbilidades das configuracées imagindveis e realiza- veis do género na cultura, Isso nao quer dizer que toda e qualquer possi- bilidade de género sea facultads, masque as ronteirasanaliticas sugerem ¢s limites de uma experiéncia discursivamente condicionada. Tas limites se estabelecem sempre nos termos de um discurso cultural hegemdnico, baseado em estrururas bindrias que se apresentam como a linguagem da racionalidade universal. Assim, a coersio é introduzida naquilo que a lin- ‘guagem constitui como dominio imaginavel do géneso. Embora os cientistas sociais se refiram 20 género como um “fator” ou “dimensio” da andlise, ele também € aplicado a pessoas reais como uma iarca” de diferenca biol6gica, lingifstica e/ou cultural. Nestes tltimos 480s, 0 género pode ser compreendido como um significado assumido ‘Por um corpo (ja) diferenciado sexualmentes contudo, mesmo assim esse significado $6 existe erm relacdo a outro significado oposto. Algumas te6ricas feministas afirmam ser 0 género “uma relac0”, alias um con~ junto de relagSes, € nao um atributo individual. Outras, na senda de Beauvoir, argumentam que somente o género feminino é marcado, que a pessoa universal ¢ 0 género masculino se fundem em um $6 genero, definindo com isso, as mulheres nos termos do sexo delese enaliecendo ‘08 homens como portadores de uma pessoalidade universal que trans- cende 0 corpo. ‘Num movimento que complica ainda mais adiscussio, Luce Irigaray argumenta que as mulheres constituem um paradoxo, ¢e nfo uma con- tradigio, no seio do préprio discurso da identidade. As mulheres si0.0 “sexo” que nao é “uno”. Numa linguagem difusamente masculinista, ‘uma linguagem faloctntrics, as mulheres constituem o irrepresomtével. Em outras palavras, as mulheres representam 0 sexo que nio pode ser pensado, uma auséncia e opacidade lingifsticas. Numa lingnagem que PROBLEMAS DE GENERO usa na significacio unfvoca, o sexo feminino constitui aquilo que se pode restringir nem designar. Nesse sentido, as mulheres so 0 0 que nao é “uno”, mas miikiplo."* Em oposigio a Beauvoir, para quem as mulheres séo designadas como o Outro, Irigaray argumenta i tanto 0 sujeito como 0 Outro sio os esteios de uma economia sig- ificante falocéntrica e fechada, que atinge seu objetivo totalizante por ia da completa exclusio do feminino. Para Beauvoir, as mulheres so 0 negativo dos homens, a falta em confronto com a qual a identidade ‘masculina se diferencia; para Irigaray, essa dialética particular constitui ‘um sistema que exclui uma economia significante inteiramente diferen- _ te, Nao s6 as mulheres sao falsamente representadas na perspectiva sar- “triana do sujeito-significador e do Outro-significado, como a falsidade da significacio salienta a inadequagao de toda a estrutura da repre~ sentagio. Assim, 0 sexo que nao € uno propicia um ponto de partida Pars coca das repretentagées ocideraishegemonicas da meafisica “da substincia que estrutura a propria nogdo de (O que € a metafisica da substincia, ¢ como ela informa o pensamen- to sobre as categorias de sexu? Eun prising hagas, as comcepyoes “istas do sujeito tendem a presumir uma pessoa substantiva, portadora "de varios atributos essenciais € nao essenciais. A posicio feminista hu- “manista compreenderia o género como um atributo da pessoa, caracte- _tizada essencialmente como uma substéncia ou um “inticleo” de gincro _preestabelecido, denominado pessoa, denotar uma capacidade universal iberagio moral ou lingaagem. Como ponto de par- ‘cial do género, entretanto, a concepcio universal -constitufdos, em contextos especificiveis. Este ponto de vista relacional _ou contextual sugere que que a pessoa “é” —e a rigor, o queo género “6” —refere-se sempre as relacdes construfdas em que ela é determi- ‘ser substantivo, mas um ponto relative de convergéncia entre con- tos especificos de relagdes, cultural e hist SUJEITOS Do SEXO/GENERO/DESEJO de auséncialingiistica, a impossibilidade de uma substancia gramatical- mente denotada e, conseqtientemente, 0 ponto de vista que expbe essa substancia como uma iusio permanente e fundante de w cculinista. Essa auséncia nfo é marcada como tal na economia significante ‘masculinista — afirmagéo que se contrapbe ao argumento de Beauvoir (ede Wi de que o sexo feminino é marcado, ao passo que o mascu- lino nao o é. Para Irigaray, @ sexo feminino nao é uma “falta” ou um “Outro” que define o sujeito negativa e imanentemente em sua mascu- linidade, Ao contratio, o sexo feminino se farta As prOprias exigencias da representacao, pois la nao € nem 0 “Outro” nem “falta”, categorias que permanecem relativas no sujeita sartriano, imanentes a esse esque- ma falocéntrico. Assim, para Irigaray, o feminino jamais poderia ser a marca de um sujeito, como sugetiria Beauvoir. Além disso, 0 feminino no poderia ser teorizado em termos de uma relaco determinada entre ‘© masculine € o feminino em qualquer discurso dado, pois a nogZo de discurso nao é relevante aqui. Mesmo tomados em sua variedade, os discarsos constituem modalidades da linguagem falocéntrica. O sexo feminino €, portanto, tambéin 0 sujeito que nao é uno. A relacao entre masculino e feminino nfo pode ser representada numa economia signi- ficante em que © masculing ¢onstitus 0 irculo fechado do significante e do significado, Paradoxalnente, Beauvoir prefigurou essa impos lidade em O segundo sexo, 20 argumentar que os homens nfo podiam resolver a questo das mulheres porque, nesse caso, estariam agindo como jutzes ¢ como partes interessadas."® [As distingdes existentes entre as posigSes acima mencionadas estio Jonge de ser nftidas, podendo cada uma delas ser compreendida como 4 problematizacio da localizacao e do significado do sujeito” e do “gé- nero” no contexto de uma aisimetria de género socialmente institufda, As possibilidades interpretativas do conccito de género nao se exaurem absolutamente nas alternativas acima sugeridas. A circularidade proble- mética da investigacio femirista sobre o género é sublinhada pela pre- senga, por um lado, de posigées que pressupdem ser o género uma ca- racterfstica secundatia das pessoas, e por outro, de posigoes que argumentam ser a prépria mgio de pesioa, posicionada na linguagem 20 PROBLEMAS DE GENERO 0 “sujeito”, uma construcéo masculinista ¢ uma prerrogativa que tio agudas sobre o significado do género 06 de fato 0 termo a ser discutido, ouse aconstrucio discursiva 0 € mais fundamental, ou talver a nogio de mulheres ou mulher Wu de homens ou bomem) estabelecem a necessidade de repensar ra- lente as categorias da identidade nocontexto das relagdes de uma tria radical do género. Para Beauvoir, 0 “sujeito”, na analitica existencial da misoginia, é masculino, fundido com o universal, diferenciando-se de um feminine que est fora das normas universalizantes que cons- a condicao de pessoa, inexoravelmente “particular”, corporifica- ye condenado & imanéncia. Embora veja-se freqiientemente em jr uma defensora do direito de as mulheres se tomarem de fato: stenciais, ¢ portanto, de serem incluidas nos termos de uma univer- dade abstrata, sua posicio também implica uma erftica fundamental ia descorporificacio do suieito epistemoléxico masculino abstra- #9 Esse sujeito é abstrato namedidaem que repudia sua corporificagio mente marcada e em que, além disso, projeta essa corporificacio lana esfera feminina, renomeando efetivamente 10 como feminino. Essa associagio do corpo com o feminino fun- ppor relagdes migicas de reciprocidade, mediante as quais 0 sexo jo torna-se restritoa seu corpo, e ocorpo masculino, plenamente egado, toma-se, paradoxalmente, 0 instrumento incorp6reo de wma liberdade ostensivamente radical. A andlise de Beauvoir levanta impli- mente a questo: inte que ato de negacio e renegacio posa 0 no cémo uma universalidade descorporificada e € 0 feminino truido como uma corporalidade renegada? A dialética do senhor {do escravo, aqui plenamente reformulada nos termos no reciprocos da imetria do género, prefigura o que Irigaray descrevia mais tardecomo, ‘economia significante masculina, a qual inclui tanto 0 sujeito exis- “tencial como 0 seu Outro, Beauvoir propOe que o corpo feminino deve ser a situagao eo ins- nento da liberdade da mulher, ¢ nio uma esséncia definidora e limi- a4 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO tadora.” A teoria da corporificacdo que impregna a andlise de Beauvoir claramente limitada pela reproducao acritica da distingao cartesiana entre liberdade ¢ corpo. Apesar de meus proprios esforgos anteriores de argumentar 0 contrario, fica claro que Beauvoir mantém 0 dualismo mente/corpo, mesmo quando jpropde uma sintese desses termos.2" A preservagio dessa distingio pode ser lida como sintomtica do proprio falocentrismo que Beauvoir subestima, Na tradigao filos6fica que se ini- cia em Plato € continua em Descartes, Husserl e Sartre, a distingéo ontolégica entre corpo e alma (consciéncia, mente) sustenta, invariavel- mente, relagoes de subordinacao e hierarquia politicas e psiquicas. A mente ndo 36 subjuga 0 corpé fugir completamente & corporificacio. As associagdes culturais. entre mente € masculinidade, por um Jado, e corpo ¢ feminilidade, por outro, ‘io bem documentadas nos carnpas da filosofia e do feminismo.2? Re- ‘sulta que qualquer reprodugao acritica da distin¢o corpojmente deve ser repensada em termos da hiearquia de género que essa distingao tem convencionalmente produzido, mantido e racionalizado, A construgio discursiva “clo corpo”, e sua separagio do estado de “liberdade”, em Beauvoir, no consegue marcar no eixo do género a pr6- ing corpo/mente que deveria esclarecer a persisténcia da assi- metriadosgéneros. Oficialmente, Beauvoir assevera que o corpo feminino € marcado no interior do discurso mascalinista, pelo qual o corpo mascu- lino, em sua fusio com o universal, permanece nio marcado. Irigaray sugere claramente que tanto 0 rarcador camo o marcado sio mantidos no interior dé um modo masculinista de significagio, no qual 0 corpo feminino é como que “separada” do dominio do signficavel. Em termos pés-hegelianos, ela seria “anulada”, mas nio preservada, Na leitura de Irigaray, a afirmacio de Beauvoir de que mulher “é sexo” inverte-se para significar que ela nao € 0 sexo que é designada a ser, mas, antes, € ainda — encore (e en corps)* — © x0 masculino, paradeado A maneira da aleridade. Para Irigaray, esse modo falocéntrico de significar 0 sexo femi- * Resatase0 jp de plas cits nck i xg ene ence (anda (no corpo), homdfnas em francs. (N. cla Rev. Tée.) iii PROBLEMAS DE GENERO no reproduz perpetuamente as fantasias de seu pr6prio desejo auto-en~ ndecedor. Ao invés de um gesto lingUistico autolimitativo que garanta jdade ou adiferenca das mulheres, ofalocentrismo oferece um nome ra eclipsar o feminino e tomar seu lugar. TEORZANDO O BINARO, O UNITARIO E ALEM eanvoire Irigaray diferem claramente sobre as estruturas fundamentals ¢ reproduzem a assimetria do genero; Beauvoir volta-se para a reci- focidade malograda de uma dalética assimétrica, 20 passo que Irigaray ‘tca a elaboracao monolbgica de uma economia i sta. Embora Irigaray ample claramente 0 espectro ‘critica feminista pela exposicao das estruturas logicas, ontoldgicas ¢ jgnificante masculinista, o poder de nilize 6 minado. peecisamente por seu alcance globalizante. Seré identificar a economia masculinista monolitica e também mo- ca que atravessa todaa colegio de contextos culturais ¢ histricos que ocorre a diferenca sexual? Sera o fracasso em reconbecer as sragbes culturais especificas da propria opressio do género uma es- e de imperialismo epistemolégico, imperialismo esse que ni se ate~ ‘pela elaboracdo pura simples das diferenczs culturais como“exem- ‘do mesmfssimo falocentrismo? O esforgo de incluir “Outras” ‘como ampliagoes diversificadas de um falocentrismo global cial um ato de apropriagio que corre o risco de repetir 0 gesto engrandecedor do falocentrismo, colonizando sob 9 signo do mex 0 diferencas que, de outro modo, poderiam questionar esse zante. A critica feminista rem de explorar as afirmagées rotlizantes da ‘omia significante masculinista, mas também deve permancer au “tostitica em relacio aos gestos totalizantes do feminismo. O esforgo de identificar o inimigo como singular em sua forma é um discurs0 werd que mimetiza acicamente a exratgia d opreson em et 33 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO de oferecer um conjunto diferente de termos. O fato dea tética poder funcionar igualmente em contextos feministas c antifeministas sugere que o gesto colonizador nao € primaria ou irredutivelmente masculi- nista. Ele pode operar para levar a cabo outras relag6es de subordina- gio hetero-sexista, racial e de classe, para citar apenas algumas. Claro que arrolar as variedades de opressio, como comecei a fazer, supe sua coexisténcia descontinua e seqiencial ao longo de um eixo hori- zontal que nao descreve suas convergéncias no campo social. Um mo- delo vertical seria igualmente insuficiente; as opressGesnao podem ser sumariamente, classificadas, relacionadas causalmente, ¢ distribufdas entre planos pretensimente correspondentes 20 que é “original” € a0 que é “derivado”.2 Certamente, o campo de poder em parte estrutu- rado pelo gesto imperializante de apropriacio dialética excede e abrange 0 cixo da diferenca sexual, oferecendo um mapa de interse- ées diferenciais que no podem ser sumariamente hierarquizadas, nem nos termos do falocentrismo, nem nos de qualquer outro candi- igio de “‘condigao primaria da opressio”. Em vez de tética va das economias significantes masculinistas, a apropriagéo e a supressio dialéticas do Outro so uma titica entre muitas, centralmen- te empregada, é fato, mas ndo exclusivamente a servigo da expansto € da racionalizagio do dominio masculinista. Os debates feministas contemporéneos sobre 0 essencialismo col cam de outra maneira a questio da universalidade da identidade fes nina ¢ da opressio masculina. As alegagdes universalistas sfo beseadas em um ponto de vista epistemol6gico comum ou compartilhado, com- preendido como consciéncia articulada, ou como estruturas comparti- Ihadas de opressdo, ou como estruturas ostensivamente transculeurais da feminilidade, maternidade, sexualidade e/on da écriture feminine. A discusséo que abre este capitulo argumenta que esse gesto globalizante gerou um certo niimero de eriticas da parte das mulheres que afirmam ser a categoria das “mulheres” normativa ¢ exchidente, invocada en- quanto as dimensdes nao marcadas do privilégio de classe € de raga permanecem intactas, Em outras palavras, ainsisténcia sobrea coeréncia unidade da categoria das mulheres re} PROBLEMAS DE GENERO das intersecdes culturais, sociais e politicas em que € construido 0 fo concreto das “mulheres”. lgunsesforgos foram realizados para orraular politica de coalizéo ‘no pressuponham qual seria 0 contetido da nogio de “mulheres”. ‘propdem, em vez disso, um conjunto de encontros dialogicos me- pte o qual mulheres diferentemente posicionadas articulem identida~ ‘geparadas na estratura de uma coaliz4o emergente. B claro, nfo smos subestimar ovalor de uma politica de coalizao; porém,a forma da coalizao, de uma montagem emergente ¢ imprevisivel de po- es, nao pode ser antecipada. Apesar do impulso claramente demo- te que motiva a consirugio de coalizées,a te6ricaaliancista pode idamente reinserir-se como soberana do processo, a0 buscar ar ‘uma forma ideal para as estruturas da coalizao, vale dizer, aquela ‘garanta efetivamente a unidade do resultado. Esforgos correlatos ‘determinar qual é € qual ndo € a verdadeira forma do didlogo, uilo que constitui a posigdo do sujeito —e, o maisimportante, quando ‘nidade” foi ou nao alcancada —, podem impedir a dinimica de toformacao € autol ago da coalizio. Tnsistir a priori no objetivo de “unidade” da coalizao supde que a ‘olidariedade, qualquer que seja seu preco, & um pré-requisito da acio politica. Mas que espécie de politica exige esse tipo de busca prévia da tmnidade? Talvez as coaliz6es devam reconhecer suas contradigoes ¢agir deixando essas contradigdes intactas. Talvez o entendimento dialégico "também encerre em parte a aceitacéo de divergéncias, rupturas, dissen- s$6es ¢ fragmentacdes, como parcela do processo freqiientemente tortuo- 50 de democratizacao. A propria nocao de “dislogo” € culturalmente specifica ¢ historicamente delimitada, e mesmo que uma das partes esteja certa de quea conversacio esti ocorrendo, a outra pode estar certa de que nio. Em primeiro lugar, devemos questionar as relagoes de poder que condicionam limitam as possibilidades dialdgicas. De outro modo, modelo dial6gico corre orisco de degenerar num liberalismo que pres supe que os diversos agentes do discurso ocupam posigées de poder iguais de poder e falam apoiados nas mesmnas pressuposigbes sobreo que constitui “acordo” e “unidade”, que seriam certamente 05 objetivos a a5 suseitos DO SEXO/GENERO/DESEIO serem perseguidos. Seria crrado supor de antemao a existéncia de uma categoria de “mulheres” que apenas necessitasse ser preenchida com os varios componentes de raca, classe, idade, etnia e sexualidade para tor- nar-se completa. A hipétese de sua incompletude essen categoria servir permanentemente como espaco 1 permite & sponivel para os estados. A incompletude por definicio dessa categoria po- derd, assim, vir a servir como um ideal normativo, livee de qualquer Ea “unidade” necessiria para a agio politica efetiva? Nao serd preci- samente a insisténcia prematura no objetivo de unidade a causa da frag- ‘mentagio.cada vez maior emais acirrada dasfileiras? Certas formas aceitas de fragmentacdo podem faclitar a agio, ¢ isso exatamente porque a “uni- bito da identidade, exclaindo a possibil rompam as proprias fronteiras dos conceitos de i quem precisamente eferuar essa ruptura como um objetivo politico expli- ito? Sem a pressuposigio ou o objetivo da “unidade”, sempre institufdo no njvel conceitual, unidades provisérias podem emergir no contexto de ages concretas que tenham outras propostas que nio a articulacio da identidade. Sem a expectativa compulséria de que as acbes feministas de- vam instituie-se a partir de um acordo estivel e unitirio sobre a identidade, esas agdes bem poderdo desemcadear-se mais rapidamente e parecer mais adequadas ao grande niimero de “mulheres” para as quais 0 significado da categoria esti em permanemte debate, Essa abordagem antifundlacionista da politica de coaliz6es nio su- pée que a “identidade” sefa ma premissa, nem que a forma ou signifi- cado da assembléia coalizada possa ser conhecida antes de realizar-se na pritica, Considerando que a articulagio de uma identidade nos termos cculturais disponiveis instaura, uma definigéo que exclui previamente 0 surgimento de novos conceitos de identidade nas acoes politicamente engajadas e por meio delas, a tética fundacionista nao é capaz de vomar como objetivo normative a transformagdo ou expansio dos conceitos de identidade existentes. Além disso, quandoas identidades ou as estra~ 36 PROBLEMAS DE GENERO dialégicas consensuais pelas quais as identidades jé estabelecidas mmunicadas ndo constituem o tema ou objeto da politica, isso fica que as identidades podem ganhar vida e se dissolver, depen: das préticas concretas que as constituam. Certas priticas politicas tiem identidades em bases contingentes, de modo a atingir os ob- osem vista. A politica de coalizées nao exige uma categoria amplia- “mulheres” nem um ew interamente miltiplo a desvelar de chofre a complexidade. O género é uma complexidade cuja totalidade € permanentemente da, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura conside- ‘Uma coalizao aberta, portanto, afirmaria identidades alternativa- institufdas € abandonadas, segundo as propostas em curso; tra de uma assembléia que permita miltiplas convergéncias e di- icias, sem obedigncia a um felos normativo e definidor. “S.IDENTIDADE, SEXO EA METAHSICA DA SUBSTANCIA. jue pode entio significar “identidade”, ¢ 0 que alicerga a pressupo- go de que as identidades sao idénticas a si mesmas, persistentes 40 6 do tempo, unificadas ¢internamente coerentes? Maisimportante, 0 essas suposicGes impregnam o discurso sobre as “identidades de nero”? Seria errado supor que a discussio sobre a “identidade” deva ‘ser anterior 4 discussiio sobre a identidade de género, pela si igiveis a0 adquirir seu género em {ios papéis e fungbes pelos quais assume ficado 90% filoséfico, a nogio de “pes sido analiticamente elaborada com base na suposicio de que, qualquer ‘em que “esti”, a pessoa permanece dk nada a estrutura definidora da co is. No préprio dis SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO pessoa, seja esta a consciéncia, a capacidade de linguagem ou a delibe- racio moral. Embora nao esteja aqui em exame essa literatura, uma das premissas dessas indagacies € 0 foco de exploracio ¢ inversio criticas, Enquanto a indagacio filoséfica quase sempre centra a questio do que constitui a “identidade pessoal” nas caracteristicas internas da pessoa, naquilo que cstabcleccria sua continuidade ou auto-identidade no de- correr do tempo, a questio aqui seria: em que medida as préticas regu- Tadoras de formacio e divisio do género constituem a identidade, a coeréncia interna do sujeito,e, arigor, o status auto-identico da pessoa? Em que medida é a “identidade” um ideal normativo, ao invés de uma caracteristica descritiva da experiéncia? E como as priticas reguladoras que governam o género também governam as nog6es culturalmente in- teligiveis de identidade? Em outras palavras, a “coeréncia” € a “conti- nuidade” da “pessoa” no sio caracteristicas l6gicas ou analiticas da condicao de pessoa, mas,a0 contrério, normas de intelgibilidade social- ‘mente instituidas e mantidas. Em sendo a “identidade” assegurada por ‘conceitos éstabilizadores de sexo, género e sexualidade, a préprianogio de “pessoa” jonada pela emergencia cultural daqueles seres ‘cujo género ” ou “descontinuo”, os quais parecem ser pes soas, mas n&o se conformam as normas de género da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas sio definidas. Géneros “inteligiveis” sio aqueles que, em certo sentido, instituem € mantém relacdes de coeréncia e continuidade entre sexo, género, pré- tica sexual e desejo. Em outras palavras, os espectras de descontinuidade € incoeréncia, eles proprios 6 concebiveis em relacdo a normas existen- tes de continuidade e coeréncia, so constantemente proibides e produ- zidos peles préprias leis que buscam estabelecer linhas eausais ou ex- pressivas de ligacio entre o sexo biolégico, o género culturalmente constitufdo e a “expressio” ou “efeito” de ambos na manifestagio do desejo sexual por meio da prética sexual. ‘Anogio de que pode haver uma “verdade” do sexo, como Foucault a denomina ironicamente, ¢ produzida precisamente pelas priiticas re- guladoras que gcram identidades cocrentes por via de uma matriz de normas de género coerentes. A heterossexualizagio do desejo requer € PROBLEMAS DE GENERO i a produgio de oposi6es discriminadas e assimétricas entre "fe> 10” e“masculin”, em que estessiiocompreendidos como atributos ssivos de “macho” ¢ de “fémea". A matriz cultural por intermédio tual a idemtidade de género se torna inteligivel exige que certos tipos sdentidade” nao possamr “existir” — isto é, aquelasem que o género decorre do sexo e aquelas em que as priticas do desejo néo “decor~ YP nem do “sexo” nem do“género”. Nesse contexto, “decocrer” seria telagio politica de dircito institufdo pelas leis culturais que estabe- fe regulam a forma e 0 significado da sexualidade, Ora, do posto ‘vista desse campo, certos tipos de “identidade de género” parecem eras falhas do desenvolvimento ou impossibilidades l6gicas, preci- -m as normas da inteligibilidade cul- ttiral. Entretanto, sua persisténci iferacao criam oportunidades terticas de expor os limites € os objetivos regaladores desse campo de “nteligibilidade e, conseqiientemente, de disseminar, nos prOprios rer- ‘mos dessa matriz de inteligibilidade, matrizes rivais ¢ subversivas de desordem do género. Contudo, antes de: considerar essas priticas perturbadoras, parece cru- cial compreender a “matriz de inteligibilidade”. Bela singular? De que se ‘compte? Que alianca peculiar existe, presumivelmente, entre um sistema de hecerossexualidade compulsdria eas categorias discursivas que estabe- Tecem os conceitos de identidade do sexo? Se a “identidade” é um efeito de priticas discursivas, em que medida a identidade de género — enten- dida como uma telagao entre sexo, géncro, pritica sexual e desejo—seria Oefeito de uma prética reguladora que se pode identificar como heteros- sexualidade compuls6ria? Tal explicacéo no nos faria retomara maisuma ‘estratura totalizante em que a heterossexualidade compulséria tomaria neramente o lugar do falocentrismo como causa monolitica ia opressto de género? 'No espectro da teoria feminisa e pés-estruturalista francesas, com- preende-se que regincs muitos diferentes de poder produzem 08 com ‘ccitos de identidade sexual. Consideremos a. divergéncia que existe entre posigées como de Irigaray, que afirma 96 haver um sexo, o masculino, que claboraa simesmo na. através da produgao do “Outro”, ¢ posigoes jente porque nao se confor 39 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO ‘como a de Foncault, por exemplo, que presumem que a categoria do sexo, tanto masculino como feminino, € produto de uma economia re~ ‘guladora difusa da sexnalidade. Consideremos igualmente 0 argumento de Wittig de que a categoria do sexo €, sob as condigées de heterosse- xuslidade compuls6ria, sempre feminina (mantendo-se o masculino nao marcado e, conseqtientemente, sindnimo do universal). Ainda que pa- radoxalmente, Wittig concorda com Foucault ao afirmar que a prépria categoria do sexo desapareceria e a rigor se dissiparia no caso de uma raptura e deslocamento da hegemonia heterossexual. Os vitios modelos explicativos oferecidos aqui sugerem os caminhos muitos diferentes pelos quaisa categoria do sexo compreendida, depen- dendo de como se articula o campo do pader. £ possivel preservar acom- plexidade desses campos de poder e pensar suas capacidades produtivas 20 mesmo tempo? Por um lado, a teoria da diferenca sexual de Irigaray sugere que as mulheres jamais poderio ser compreendides segundo 0 mo- delo do “sujeito” nos sistemas representacionais convencionais da cultura cident, exaiamente potane constimem o fetiche da representagio e, por conseguinte, o irrepresentivel como tal, Segundo essa ontologia das substncias, as mulheres nunca podem “ser”, precisamente porque cons- titwem a relacio da diferenga, exclufdo pelo qual esse dominiose distingue. Asmulheres também sio uma “diferenca” que nao pode ser compreendica como simples negacio ou como 0 “Outro” do sujeito desde sempre mas- eulino. Como discutido anteriormente, elas nfo so nem o sujeit seu Outro, mas uma diferenca da economia da oposigSo bi ela mesma, para a elaboracéio monokégica do masculino. ‘A nnogio de que o sexo aparece na linguagem hegeménica como subs- t4ncia, ou, falando metafisicamente, como ser idéntico asi mesmo, é cen- tral para cada tuma dessas concepedes. Essa aparéncia se realiza mediante ‘um truque perfomativo da linguagem e/ou do discurso, que oculta 0 fato de que “ser” um sexo ou um género ¢ fundamentalmente imposstvel. Para Irigaray, a gramética jamais poderd ser um indice seguro das relagGes de enero, precisamente porque susterta o modelo substancial do género como sendo uma relacdo bindria entre dois termos positives € repre- sentiveis.25Na opinio de Irigaray, a gramética substantiva do género, que ao PRORLEMAS DE GENERO ye homens e mulheres assim como seus atributos de masculino ¢ femi- 10, € um exemplo de sistema binério a mascarar de fato 0 discurso ivoco e hegemOnico do masculino, 0 falocentrisma, silenciand 0 feri- 0 como lugar de uma mul ‘mitica substantiva do sexo imp “sexo8, bem como uma "sistema bindrio. A regulacio Para Wittig, a restrigao binaria que pesa sobre o sexo atende acs ob- jetivos reprodutivos de um sistema de heterossexualidade eompultGrias ela afirma, ocasionalmente, que a derrubada da heterossexualidade con pubsria ind inaugurar um verdadei grilhdes do sexo. Em outros context sgeneroe da identidade. Em mais otras passagens de seu texto, parece que “a lésbica” emerge como um terceiro género, prometendo transcender a restricgo binaria ao sexo, imposta pelosistema da heterossexualidadecom- pubsoria. Em sua defesa do “sujeito cognitivo”, Wittig parece milo entrar fem disputas metaffsicas com os modos hegeménicos de significaglo ou rrepresentagio; de fato, © sujeito, com seu atributo de autodeterminago, parece ser.a reabilitacio do dz escolha existencial, sob o nome de esbica: “o advento de sujet duais exige, em primeito lugag, que se destruam as categorias de sexo conheco que esté além dascategorias como invariavelmente masculino, segun: vitavelmente patriarcal, mas propoe em samente desfrutadas pelos homens. Assim, a sexo representaria a destruigio de um atributo, o sexo, 0 qual, por meio a SUJEITOS Co SEXO/GENERO/DESEIO dem gesto mis6gino de sinédoque, tomou o lugar da pessoa, do cogito autodeterminador. Em 56.05 homens sao “pessoas” € no existe outro género senio 0 Ogéner0 € 0 fndice in € usado aqui ico da oposicio politica entre os sexos. Enero singular porque sem dkivida nio ha dois géneros. Hi so- ‘ments um: 0 feminino, 10" no sendo um género, Pois 0 mas- calino nao €0 masculino, mas o geral.28 Conseqiientemente, Wittig clama pela destruigio do “sexo”, para que as mulheres possam asiumir o status de sujeito universal. Em busca dessa destruigio, as “mulheres” devem assumir um panto de vista tanto particular quanto universal? Como sujeito que pode realizar a univer salidade concreta por meio da liberdade, a lésbica de Wittig confirma, ao invés de contestar, as promessas normativas dos ideais humanistas cuja premissa €a metafisica da substancia. Nesse aspecto, Wittig se di- ferencia de Irigaray, nfo s6 nos termos das oposicdes hoje conhecidas centre essencialismo e materiaismo,%® mas naqueles da adesio a uma metafisica da substdncia que confirma 0 modelo normativo do huma- rnismo como o arcabouco do feminismo. Onde Wittig parece subscrever jeto radical de emancipacao Iésbica ¢ impor uma distingao entre lao faz por via da defesa de uma “pessoa” cujo sgénero é preestabelecido, caracterizada como liberdade, Esse seu movi- mento nio s6 confirma o siatus pré-social da liberdade humana, mas subscreve a metafisica da substancia, responsivel pela producio e natu- ralizacao da propria categoria de sexo. A metafisica da substincia € uma expressio associada a Nietesche na critica contempordinea do discurso filos6fico. Numcomentério sobre Nietzsche, Michel Haar argumenta que diversas ontologias filoséficas ccairam na armaditha das ilusbes do “Ser” e da “Substancia” que so pro- movidas pela crenca em que a formulagio gramatical de sujeito e pre- dicado reflete uma realidade ontol6gica anterior, de substancia e atribu- to, Esses construtos, argumenta Haar, constituem os meios filoséficos antificiais pelos quais.a simplicidade, a ordem e a identidade sao cficaz- PROBLEMAS DE GENERO jastitufdas. Em nenhum sentido, todavia, eles revelam ou repre- ‘ama ordem verdadeira das coisas. Para nossos propdsites, essa sietzschiana torna-se instrutiva quando aplicada as categorias fi- que governam uma parte aprecidvel do pensamento teérico € sobre a identidade de género, Segundo Haar, a critica 8 meta- ‘substincia implica uma critica da propria nogo de pessoa psi- ‘como coisa substantiva: di “Acestruigi da légica por intermédio de sua genealogia trazconsigo a rufna das categorias psicoldgicas fundamentadlas nessa logica. Todas as etegoriss pscogcas (eg0,indvidao, pessoa) derivam dailusfoda idemtidadesubstan- | Mas essa ilusio remonta basicamente a uma supersticio que engana nfo | 60 senso comum mas também os filésofos —a saber, a crenga na linguagem «mais precsamente, na verdade das categorias gramaticas. Foi a gratin (estrutura de sujeitoe predicado) ehapimnee conrade ee ae 9 aieito de “penso”, enguanto, na verdad, sio os pensamentos Ma : rie ‘onl afé ereeenil simmplesmente tau a vontade de - fer.a “causa” dos pensamentos de alguem, O sujeity, v eu individuo, edo apenas conceitos falss, visto que trasformam em substinciasfitcas uni dades que inicalmente 6 tém realidade Linguistica.” Wittig fornece uma critica alternativa ao mostrar que no é possivel significar as pessoas na linguagem sem a marca do genero. Ela apresenta tama anilise politica da gramatica do género em francés, Segundo i fo géneronio somente desgna as pessoas 28 “quaifica", por asim dies nas constitui umaepisteme conceitual mediante a qual ogénero binério universalizado. Embora a Iingua francesa atribua um género a todos 0 tips de substanios alem das pessoas, Wiig arguments que we fandlise tem conseatiéncias gualmente para oinglés. No principio de The “Mark of Gender "A marca do género”] (1984), ela esereves Segundo 0s graméticos, a marca do género afets os nani em termos de funcio que eles falam sobre isso, Se questionam seu significado, 4s veres brincam, chamando 0 género de “sex ficticio”... no que concerne 43 SUIEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO as categorias de pessea, ambas as Inguas [inglés francés] sio igualmente portadoras do genero. Ambas abrem caminho a um conceito ontolégico primitive que imp, na lingwagem, uma divisio dos seres em sexos... Como conceito ontolégico que lidacom anatureza do Ser, juntamente com toda umanévoade Outros conceitos primitivos pertencentes & mesma linha de pensamento, o género parece pertencer primariamente a filosofia2 Wittig nos diz. que “pertencer a filosofia” significa, para o género, pertencer “aquele corpode conceitos evidentes semos quas os fil6sofos acham que nao podem desenvolver uma linha sequer de raciocinio, € que sao dbvios para eles, pois existem na natureza antes de todo pensa. mento, de toda ordem social”. A opiniéo de Wittig 6 corroborada pelo discarso popalar sobre a identidade de género, que emprega acritica. mente a atribuicio inflexional de “ser” para géneros e “sexualidades”. Quando nao problematizadas, as afirmacdes “ser” mulher e “ser” hete- rossexual seriam sintomiéticas dessa metafisica das substincias do géne- 10. Tanto no caso de “homens” como no de “mulheres”, tal afirmagio tende a subordinara noviv de género aquela de identidade, e a levar 3 conclusao de que uma Pessoa um género e 06 em virtuce do seu sexo, de seu sentiment psiquico do eu, e das diferentes expresses desse eu peiquico, a mais notavel delas sendo a do desejo sexual. Em tal contexto pré-feminista, o génerO, ingenuamente (ao invés de criticamente) con- fundido com o sexo, serve como principio unificador do eu eorporifi ado e mantém essa unidade por sobre e contra um “sexo oposte”, cuja estrutura maatém, presumivelmente, uma cocréneia interna paralela ‘mas oposta entre sexo, género e desejo. O enunciado “sinto-me uma mulher”, proferido por uma mulher, on “Sinto-me um homem”, dito por um homem, sup6e que em nenhum dos casos essa afirmagao é ab- surdamente redundante- Embora possa parecer nao problemético ser de uma dada anatomia (apesar de termos de considerar adiante as muitas dificuldades dessa proposta), considcra-se a experiencia de uma dispo- siglo ps{quica ou identidade cultural de génerocomo uma realizagao ou conquista, Assim, “sinto-me uma mulher” é verdade na mesma medida em que ¢ presumida a evocagto de Aretha Franklin do Outro definidor: 44 PROBLEMAS DE GENERO me faz sentir uma mulher natural”. Essa conquista exige wma renciacdo em relacdo ao género oposto. Conseqiientementey Wit a € o seu género na medida em que nao € 0 outro géneto, form que pressupde e impoe a restrigio do género dentro desse par io. O género s6 pode denotar uma unidade de experiéncia, de sexo, ‘oe desejo, quando se entende que o sexo, em algum sentido, exige ym género — sendo o género uma designacio psiquica e/ou cultural do —e um desejo — sendo 0 desejo heterosexual e, portanto, diferen- do-se mediante uma relacio de oposicio a0 outro género que ele ja. A coeréncia ou a unidade internas de qualquer dos géneros, ho- jem ou mulher, exigem assim uma heterossexualidade estivel e oposi- ional exige e produz, a um s6 “tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo género que “consticuem o limite das possibilidades de género no interior do sistema “de género bindtio oposicional. Fssa concepcfo do génera nao s6 pres- ‘supde uma relagéo causal entre sexo, género e desejo, mas sugere igual- mente que o desejo reflete ou exprime o género, ¢ que o género reflete ‘ou exprime 0 desejo, Supse-se que a unidade metafisica dos tés seja vyerdadciramente conhecida e expressa num desejo diferenciador pelo géxero oposto — isto, numa forma de heteressex © “velho sonho da sim posto, reificado e racionalizado, seja como paradigma naturalista que estabelece uma continuidade causal entre sexo, género © descjo, seja como um paradigma expressivo auentico, no qual se diz que um eu verdadeiro ¢ simultanea ou sucessivamente revelado no sexo, no géaero e no desejo. Esse esbogo um tanto tosco nos da uma mdicacdo para compreen- dermos 2s razGes politicas da visio do genero como substincia. A insti- tuigéo de uma heterossexvalidade compulséria e naturalizada exige ¢ regula 0 género como uma relacio bindria em que o termo mascul diferencia-se do termo feminino, realizando'se essa ciferenciagio por meio das priticas do desejo heterosexual. O ato de diferenciar os dois ‘momentos opesicionais da estrutura bindria resulta numa consolidagio SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO de cada um de seus termos, da coeréncia interna respectiva phage terna respectiva do sexo, do O destocamento estratégico dessa relacao substncia em que clase bas: de fer ia da metafisica da homem, ocorra igualmente no inte- abraca implictamente essa explica. «fo. No capitulo final do primeiro volume de A histria da semuailace € em sua breve mas signficatvaintrodugio a Herculine Barbin, Bone the Recently Discovered Journals of a Nineteenth-Century Hermaphrox. dite [*Herculine Barbin, ou os ecém-descobertosdidrios de wm nor frodita do século XIX", Foucault sugere que a categoria de sens anterie a qualquer caracterizagio da diferersa tex, ela prope, coustrufda por via de wm modo de sexwaldade hstoricamente epectc 0. Ao postular 0 “sexo” como “causa” da expesigocia sexuais de conn portamento e do desejo a produgio titica da eategorizagaodercontinn ¢ binéria do sexo oculta 0s objetvosextratégicos do proprio apaate da Producto. A pesquisa geneayica de Foucault expose en “caus” 0 fendiva como um “feito”, como a prutuyao de xualidade que bisa regular oexperi¢ncis eal neon nse Flas distintas do sexo como fungOes fundacionais ¢ caueas, cones qualquer tratamento discursivo da sexualidade. . A introdugio de Foucault aos disios do hermafrodite Herculine Barbin sugere que acritca genealégica das categoria reificadas do sexo uma conseqiéncia inopinada de prticas sexunis que nao podem ne explicadas pelo diseurso médico-egal da heterosexualidade rernalon da, Hereuline nto é uma “identdade”, mas a impossbilidade sexta do uma identidade. Embora elementos. anatOmicos masculinos ¢ femininos se distribuam conjuntamente por sex corpo, dentro dele, ndo est af a verdadeira origem do escandalo. As convengbes lingifsticas que prod em eus com caractersticas de género inteligiveis encontram seu nga ém Hereulne, preissmente porque eal ccasiona wi convergénela € desorganizacio das regras que governam sexojgenero/descio. Here, line desdobra eredistibui os termos do sistema bind ibuigéo os rompe e os faz proiferar fora desse ‘mas essa mesma 46 PROBLEMAS DE GENERO ult, Herculine nao € categorizavel no genero binario como ta gertante convergéncia de heterossexualidade e homossexu: ‘sua pessoa s6 € ocasionada, mas nunca causada, por sua descon- idade anatémica. A apropriagio de Herculine por Foucault € davi- ‘mas sua anilise implica a interessante crenga em que a neidade sexual (paradoxalmente excluida por uma “hetero”-se- sma critica da metafisica da substi gomo esta informa as caracteristicas identitirias do sexo. Foucault na a experiéncia de Herculine como “um mundo de prazeres em sorrisos pairando a toa”.’” Sorrisos, felicidade, prazeres € desejos aqui representados como qualidades, sem a substancia permanente supostamente estZo ligados. Como atributos flutuantes, el 2 possibilidade de uma experiéncia de g’nero que nio pode ser ida pela gramética substancializante ¢ hierarquizante dos subs- tivos (res exiense) e adj ibmos, essenciais e acidentais). Pela jtura cursiva de Hercaline, Foucault propde uma ontologia dos atri- of acidentais que expe a postulagio da identidade como um prin- o culturalmente restrito de ordem e hierarquia, uma ficg4o regula- preender esse atributo como um trago feliz mas aci 1, também € possivel falar de um “homem” com um atributo femi- 79. Porém, se dispensarmos a prioridade de “‘homem” ¢ “mulher” ‘como substincias permanentes, nao sers mais possfvel subordinar tracos dissonantes do género como caracteristicas secundérias ou acidentais de ‘uma ontologia do género que permanece fundamentalmente intata. Se ‘A nogao de uma substancia permanente € uma construcio fi " duzida pela ordenacio compulséria de ateibutos em seqiiéncias de gé- ‘nero coerentes,entio ogénero como substancia, a vial ¢ mulher como substantivos, se vé questionado pelo jogo dissonante de atributos que nfo se conformam aos modelos seqiienciais ou causais de i lade. Desse modo, a aparéncia de uma substincia permanente on de wm SUJEITOS DO SEXIO/GENERO/OESESO eu com tragos de género, ao qual 0 psiquiatra Robert Stoller se refere ‘como 0 “nticleo do género”S8, & pr’oduzida pela regulacio dos atribatos segundo linhas de coeréncia cultusalmente esiabelecidas. E resulta que ademiincia dessa produgio ficticia é condicionada pela interacao desre- gulada de atributosque resister & sta assimilagio numa estrucura pronta de substantivos primdrios e adjetiviss subordinados, Claro que é sempre ossivel argumentar que os adjetivos dissonantes agem retroativamente, redefinindo as identidades substantivas que suposiamente modificam, € expandindo conseqllentemente as eategorias substantivas do género, incluir possibilidades que elas antes exclufam. Mas se essas subs- 1 nada mais sao do que coeréncias contingentemente criadas pela Jo de atributos, a prépria ontologia das substincias afigura-se io s6 um efeito artificial, mas essencialmente supér‘lua. ‘Nese sentido, 0 género nao € um substantivo, mas tampouco € um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo € performativamente produzido ¢ imposto pelas praticas reguladoras da coeréncia do género. Conseqiienternente, o género mostra ser performa- tivo no interior do discurso herdado da metafisica da substancia —isto é, constituinte da identidade que supostamente €, Nesse sentido, o género é sempre um feito, ainda que nao seja obra de um sujeito tido como pree- xxistente a obra. No desafio de repensar as categorias do género fora da ‘metafisica da substincia, é mister considerar a relevancia da afirmagio de Nicusche, em A genedlogia da moral, de que “nao hi ‘ser’ por trés do fazer, do realizar e do tornar-se; 0 fazedor? éuma mera ficgio acrescentada obra —a obra é tudo”? Numa aplicacio que o proprio Nietzsche nao teria antecipado on aprovado, nés afirmarfamos como corolério: néo ha identidade de género por tras das expresses do géneros essa identidade €performativamente constituida, pelas pr6prias “express6es” tidas como seus resultados, PROOLEMAS DE GENERO LINGUAGEM, PODER E ESTRATEGIAS DE DESLOCAMENTO inde parte da teotia e da literatura femninistas supde, todavia, @xite ia de um “fazedor” por tris da obra. Argumenta-se que sett ti snte nao pode haver acio.e, portanto, potencial para iniciar qualquer ‘transformacao das relagdes de dominagio no seio dasociedade. A teoria, inista radical de Wittig ocupa uma posicio ambigus no continu teorias sobre a questao do sujeito. Por um lado, Witti humano, 0 siduo, como locus metafisico da ago. Embora 0 Ah nismo de Wittig pressuponha darameniea existéncia de um agente por trés da obra, sua teoria delineia a constnucio performativa do género “nat priticas materiais da cultura, contestando a temporalidade das ex- pplicacSes que confundem “causa” e “resultado”. Numa frase que sagere Co espaco intertextual que liga Wittig a Foucault (e revela tragos da idéia " marxista de reificagéo nas teorias de ambos os pensadores), ela escreve: ‘Uma sbordagem feminista materialista mostra que aquilo que tomamos por cousa ou origem da opressio é na vercade a marca imposta pelo opressors ‘0 “mito da mulher”, somado a seus efeitos € manifestag6es materi conscigncia e nas corpos apropriados das mulheres, Assim, essa marca nfo preexiste & opresso.. 0 sexo € tomedo como um “dado imediato”, wm ‘Jado sensivel", como “caracteristicasfscas™ pertencentes a uma ordem natural. Maso que acreditamos ser uma percepcio fisicae direta é somente ‘uma construgio sofisticada ¢ mitica, uma “formagio imaginéria” 4° Por essa producio de “natureza” operar de acordo com os ditames da heterossexualidade compulséria, 0 surgimento do desejo homosse- xual transcende, na opiniio dela, as categorias do sexo: “se 0 desejo ‘pudesse ibertara si mesmo, nada teriaa ver com a marcacio preliminar pelos sexos.™#! Wittig refere-se ao “sexo” como uma marca que de algum modo aplicada pela heterossexualidade institucionalizada, marca esia que pode serapagada ou obscurecida por meio de praticas que efetivamente as SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO contestem essa instituicio. Sua opinifo, é claro, difere radicalmente da- 4quela de Irigaray. Esta dltima compreenderia a “marca” de género como parte da economia significante hegemonica do masculino, que opera mediante a auto-claboragio dos mecanismos especulares que virtual- mente determinaram 0 campo da ontologia na tradi¢io filoséfica oci- dental. Para Wittig, a linguagem & um instrumento ou ttensflio que ab- solutamente néo é mis6gino em suas estruturas, mas somente em suas aplicagbes."? Para Irigaray, a possibilidade de outra linguagem ou eco- icante 6 a nica chance de fugir da “marca” do género, que, para 0 feminino, nada mais é do que a obliteracio miségina do sexo inino. Enquanto Irigaray busca expor a relagao ostensivamente “bi- ” entre Os sexos como um ardil masculinista que exclui por com- pleto 0 feminino, Wittig argumenta que posiges como a de Irigaray reconsolidam a l6gica bindria existente entre 0 masculino ¢ o feminino, ¢ reatualizam uma idéia mitica do feminino. Inspirando-se claramente na critica de Beauvoir em O segundo sexo, Wirtig afirma que “néo ha ‘escrita feminina’”. ‘Witug acata claramente aidéia de um poder da linguagem de subor- dinar ¢ excluir as mulheres. Como “materialista”, contudo, ela considera alinguagem como uma “outra ordem de materialidade™, uma institui- ‘¢f0 que pode ser radicalmente transformada. A linguagem figuraria en- tte as priticas e instituigées concretas e contingeates mantidas pelas conseqientemente, enfraquecidas pelasagées co- letivas de selecionar individuos. A ficgio lingistica do “Sexo”, argumen- ta ela, € uma categoria produzida e disseminada pelo sistema da hete- rossexualidade compuls6ria, num esforco para restringir a produgio de ‘identidades em conformidade com 0 eixo do desejo heterosexual. Em. alguns de seus trabalhos, tanto a homossexualidade masculina como a feminina, assim como outras posig6es independentes do contrato hete- rossexual, facultam tanto a subversia como a proliferagao da categoria do sexo. Em The Lesbian Body [*O corpo lésbico”|, como em outros escritos, Wittig parece discordar contudo de uma sexvalidade genital- ‘mente organizada per se e evocar uma economia alternativa dos prazs- tes, a qual contestaria a construgao da subjetividade feminina, marcada PROBLEMAS DE GENERO Ja fun¢ao reprodutiva que supostamente distingue as |a proliferacio de prazeres fora da economia reprodut “forma especificamente feminina de difusio erotica, compreendi ntra-cstratégia em relacio 2 coustiugto reprodutiva da g Num certo sentido, para Wittig, O corpo lésbico pode ser entendido como uma leitura “invertida” dos Tiée ensaios sobre a teoria da sexuali- , de Freud, em que ele defende a superioridade da sexualidade ge- hital em termos do desenvolvimento, sobre a sexu fantil, mais ‘vel de Freud? Eem que medida a pr mmprometida com 0 mostelo de ni mantelar? Em outras palavras, se 0 modelo de uma sexualidade an- nital ¢ mais difusa serve como akernativa singular e de 0; ‘relacio hindria fadada a reproduzie-se interminavelmente? Que possibi- ‘Tidades existem de ruptura do préprio bindrio oposicional? perada. Sua teoria presume justamente 2 teoria psicanalitica do desen- yolvimento, nela plenamente “invertida”, que ela busca subverter. A Perversao polinérfica, que supostamente existiria antes da marca do ‘sexo, € valorizala como um telos da sexualidade humana.*” Uma res- posta psicanalitica feminista possivel caches de Wittig seria argu- ‘mentar que ela tinto subteoriza como suhestima significado ea funcio da linguagem em que ocorre “a marca do género”. Ela compreende essa /Pritica de marcacio como contingente, radicalmente varivel e mesmo dispensdvel. O status de proibigdo priméria, na teoria lacaniana, opera ‘mais eficazmene € menos contingentemente do que a nog! oo SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESESO ino é uma cons- esto e impde um des- locamento infinito do desejo heterossexualizante. O feminino nunca é it 19 pade ser o “atributo” de um nificagio da falta, significada isticas diferenciais que efe- feminino invés disso, o feminino € a tivamente eria a diferenca s pela individ dadoras da mie © portan a relazio de parentesco entre eles, é uma lei decretada “em nome do Pai”. Semethantemente, 1e protbe o desejo da menina tanto por sua mie como por seu pai exige que ela assum 0 emblema da maternidade e perpetue as regras de parentesco. Ambas as posigdes, masculina e feminina, si assim inst proibitivas que produzem géneros culturalmen mente mediante a producio de uma sexualidade inconsciente, que res- surge no dominio do io.t® A apropriacao feminista da diferenca sexual, escrita em oposicio a0 falocentrismo de Lacan (Irigaray) ou como sua reelaboracio critica, ten- ta teorizar 0 feminino, nao como uma expressio da metafisica da subs- tincia, mas como uma auséncia nso representivel, produzida pela ne- Bago (masculina) que estabelece a economia significante por via da exclusio. Como repudiadofexclutdo dentro do sistema, 0 feminino dade de critica © de ruptura com esse esquema conceitual hegemdnico. Os trabalhos de Jacqueline Rose'? e Jane Gal- lop® sublinham de diferentes maneiras o status construido da diferenca sexual, a nstabilidade inerente dessa construgao, ea linha de conseqiién- cias duais de uma proibicio que a um s6 tempo institui a identidade sexual e possibilita a dentincia das rénues bases de sua construgao. Em- bora Wittig ¢ outras feministas materialistas do contexto francés argu- 52 PROBLEMAS DE GENERO -mentem que a diferenca sexual é uma replicagio it reificado de polaridades sexuadas, suas reflexdes negligenciam imensio critica do inconsciente, 0 qual, como sede da sexnalidade re> -ealcada, ressurge no discurso do sujcito como a prépria impossibilidade de sua coeréncia. Como destaca Rose muito claramente, a construcio "de uma identidade sexual coerente, em conformidade com o eixo dis- juntivo do feminismo/masculino, esté fadada ao fracasso"; as rapturas dessa coeréncia por meio do ressurgimento inopinado do recaleado re- ‘elam nfo 6 que a “identidade” é construfda, mas que a proibicao que constréi a identidade ¢ ineficaz (a lei paterna no deve ser entendida ‘como uma vontade divina determinista, mas como um passo em falso ‘perpétuo a preparar o terreno para insurreigGes contra el: As diferencas entre as posig6es materialista e lacaniana (e p6s-laca- ‘niana) emergem na disputa normativa sobre se hd uma sexualidade res- gativel “antes” ou “fora” da lei, na modalidade do inconsciente, ou “depois” da lei, como sexualidade pés-genital. Paradoxalmente, 0 tropo normativo da perversio polimérfica é compreendido como caracteriza- dor de ambas as visdes de sexuslidade alternativa, Contudo, acordo sobre a maneira de delimitar essa “lei” ou conjunto de critica psicanaltiica dé conta da construgao do “sujeito” —e talvez tam- bém da ilusto da substéncia — oa matrix. das relago género. Em seu modo existencial-materialista, Wittig presume que 0 sujeito, a pessoa, tem uma integridade pré-social e anterior a seus tracos de género. Por outro lado, “a lei paterna”, em Lacan, assim como a primazia monolégica do falocentrismo em Irigaray, levam a marca de uma singularidade monotefstica talvez menos unitéria e culturalmente universal do que presumem as suposig6es estruturalistas.52 A disputa, porém, também parece gitar em tomo da articulagiio de lum tropo temporal de uma sexualidade subversiva, que floresce antes da imposigio da lei, ap6s sua derrubada on durante sua vi desafio constante a sua autoridade. Aqui parece sensato evocar nova- mente Foucault, que, a0 afirmar que sexualidade e poder sio coexten- sivos, refuta implicitamente a posulacao de uma sexualidade subversiva SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO mento, salientando que “o antes” e “o depois” da lei si0 modos de temp lade discursiva e performativamente instituidos, invocados nos termos de uma estrutura normativa que afirma que a subversio, a desestabilizacio ou o deslocamento exigem uma sexualidade que de al- gum modo escape das proibigoes hegemOnicas a pesarem sabre 0 sexo. Para Foucault, essas proibicoes sio invaridvel e inopinadamente produ tivas, no sentido de que *o sujeito” que supostamente é fundado ¢ pro- dazido nelas e por meio delas ndo tem acesso a uma sexualidade que esteja, em algum sentido, “fora”, “antes” ou “depois” do proprio poder. © poder, ao invés da lei, abrange tanto as fungdes ou relagoes diferen- ciais juridicas (proibitivas e regnladoras) como as cionalmente generativas). Conseqiientemente, a sex das relagdes de poder nao é uma simples dupl culinista da identidade. As produgées se desviam de seus propésitos ori= ginais e mobilizam inadvertidamente possibilidades de “sujeitos” que niio apenas ultrapessam os limites da inteligibilidade cultural como efe- tivamente expandem as fronteiras do que é de fato culturalmente inte- ligivel. A norma feminista da sexualidade pés-genital tornou-se cbjeto de ‘uma critica significativa da parte das te6ricas feminiscas da sexualidade, algumas das quais buscaram uma apropriacao especificamente feminista c/ou lésbica de Foucault. Contudo, a nogao utépica de uma sexualidade livre dos construtos heterossexuais, uma sexualidade além do “sexo”, indo conseguiu reconhecer as maneiras como as relagées de poder con- tinuam construindo a sexualidade das mulheres, mesmo nos termos de uma homossexualidade ou lesbianismo “tberados”.'3 A mesma critica € feita contra a nogao de um prazer sexual especificamente feminino, icalmente diferenciado da sexualidade félica. Os esforcos ocasionais de Irigaray para deduzir uma sexualidade feminina especifica de uma anatomia feminina especifica foram, por algum tempo, 0 centro dos argumentosantiessencialistas. O retomoa biologia como base deuma sexualidade ou significagao especificas femininas parece desbancar a premissa feminista de que a biologia nao € 0 destino. Porém, quer a se- 54 PROBLEMAS DE GENERO ‘validade feminina se articule aqui num discurso da biologia por fen sramente estratégicas,’S quer seja de fato um de feminina como ada organizacio filica da sexualidade continua peo- ‘blemética. As mulheres que no reconhecem essa sextalidade como sua, ‘0u ndo compreendem sua sexualidade como parcialmente constriyda ‘aos termos da economia falica sio potencialmente descartadas por essa teoria, acusadas de “identificagéo com 0 masculino” ou de “obscuran- tismo”. Na verdade, o texto de Irigaray é freqiientemente obscuro sobre ‘A questao de saber se a sexualidade € culturalmente construida, ou st 56 ‘€culturalmente construida nos termos do falo. Em outras palavras, es- taria o prazer especificamente feminino “fora” da cultura, como sua ‘pré-histéria ou seu futuro utépico? Se assim for, de que serve essa nogio as negociagées das disputas contemporineas sobre a sexualidade em termos de sua construgio? (© movimento pré-sexualidade no ambito da teoria e da pratica fe- ministas tem efetivamente argumentado que a sexualidade sempre é construfda nos termos do discurso e do poder, sendo o poder em parte entendido em termos das convengSes culturais heterossexuais € filicas, Aemergéncia de uma sexualidade constrada (no determinada) ness termos, nos contextos lésbico, bissexual ¢ heterossexual, ndo consti, portanto, um sinal de identificacao masculina num sentido reducionista, ‘Nao se trata de nenhum projeto fracassado de criticar o falocentrismg ou a hegemonia heterossexual, como se etiticas politicas tivessem 0 po- der de desfazer efetivamente a construgio cultural da sexualidade das criticas feministas. Se a sexualidade é construfda culturalmente no inte- tior das relagées de poder existentes, entio a postulacdo de uma sexua- lade normativaque esteja “antes”, “fora” ou “além” do poder constieui i lade cultural e um sono politicamente impraticéyel, queadia atarefa concreta e contemporanea de repensaras possbilidides subversivas da sexualidade e da identidade nos préprios termos do po- der. Claro que essa tarefa critica supe que operar no interior da mati de poder nio € 0 mesmo que reproduzir acriticamente as relagbet de dominacdo. Ela oferece a possibilidade de uma repeticao da lei que x40 55 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO Fepresenta sua consolidaso, mas seu deslocamento. No lugar de uma sexualidade com “identidade masculina”, em que o masculino atua Como causa ¢ significado irredutivel dessa sexualidade, nés podemos desenvolver uma nogio de sexualidade construfda em termos das rela. S6es flices de poder, as quais reestruturariam ¢ redistribuiriam as pos- sibilidades desse falicismo por meio, precisamente, da operacéo subver. siva das “identificagoes” que so inevitéveis no campo de poder da Ssexualidade. Se, como diz Jacqueline Rose, as “identificagées” podem Ser denunciadas como fantasias, entdo deve ser possive representar uma identificasio que exiba sua estrutura fantéstica. Em nio havendo um reptidio radical de uma sexualidade culturalmente constuida, 0 que resta ¢ saber como reconhecer e “fazer” a constragéo em que invaria- velmente estamos, Haver4 formas de Tepeti¢ado que nao constituam sim- les imitacio, reproducio e, conseqtientemente, consolidacio da lei (a novo anacrOnica de “identificagéo masculina” que deve ser descartada dovocabulirio feminieta)? Que powibildades existem de configuragoes de género entre as varias matrizes emergentes —c is vezes. convergentes — da inteligibilidade culearal que rege a vida marcada pelo género? Nos te-mas da teoria sexual feminist, € claro que a presenca da dlinimica do poderna sexualidade nog, em nenhum sentido, a mesma coisa que aconsolidagio ou aumento puro ¢ simples de um regime de poder hererossexista ou falocéntrico. A “presenga” das assim cha. madas conrengdes heterossexnais nos contextos homossexuai como a proliferacio de discursos especificamente gays da diferenca sexual, como no caso de “butch” e “fermme™ como identidades hist6 ricas de eatilo sexual, nao pode ser explicada como a representacao. Quimérica de identidades originalmente heterossexuais. E tampouco elas podem ser compreendidas como a insisténcia Perniciosa de cons- trutos heterossexistas na sexualidade e na identidade gays. A repetigao de construtes heterossexuais nas culturas sexuais gay e hetero bem pode representar o lugar inevitavel da desnaturalizagao e mobilizagio bem 0s terns latch" © “Yom” degnan os paps mssculno «feinino evenualmente ‘ssumnidos nos rdacicnamentoslésbicos.(N. do.) PROBLEMAS DE GENERO categorias de género. A replicagio de construtos estruturas nao heterossexuais salienta o status cabal \ido do assim chamado ‘Assim, 0 gay: as, om ver di iva doorigi -discutida nas partes finais do capitulo 3 deste livro, revels quie 0 rls por meio da hipér- bole da dissonancia, da confusio interna e da proliferagio, os préprios construtos pelos quais os generos sio mobilizados? Observe-se no s6 que as ambigitidades e incoeréncias nas praticas +eterossexual, homossexuale bissexual —e entre elas — sic suprimidas e redescritas no interior da estructura rei assimétrico do masculino/feminino, mas que essas configurigdes cultu- rais de confusao do género operam como lugares de intervengio, de- miincia e deslocamento dessas reificagSes. Em outras palavras, a mnie de” do género é o efeito de uma pritica reguladora que busca unifor- mizar a identidade do género por via da heterossexualidade compuls6- Ha. A forga dessa pric é, mediante um apareho de prodscio exclu dente, restringir os significados relativos de “heterossexualid mossexualidade” ¢ “bissexualidade”, bem como 06 lugares subversivos de sua convergéncia e re-significacdo, O fato de os regimes de poder do heterossexismo do falocentrismo buscarem incrementar-st pela repe- tigdo constante de sua I6gica, sua metafisica e suas ontologiss naturali- zadas nio implica que a propria repeticao deva ser intertompida — como se isso fosse possivel. E se a repetigao estd fadada a persistir como. mecanismo da reproduto cultural das identidades, dat emerge a ques- to crucial: que tipo de repetiglo subversiva poderia questionar a pré- pria pratica reguladora da identidade? : Se ndo pode haver recurso a uma “pessoa”, um “sexo” ou uma “se- xualidade” que escape a matriz de poder e as relagées discarsivas que 37 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESESO efetivamente produzem e regulam a in idade desses conceitos Para nés, o que constituiria a possibilidade de inversio, subversio ou deslocamento efetivos nos termos de uma identidade construida? Que possbilidades existem em virtude do carater construido do sexo e do ‘género? Embora Foucault seja ambiguo sobre o carster preciso das “prd- ticas reguladoras” que produzem a categoria do sexo e Wittig pareca investir toda a responsabilidade da construgio na reproducio sexual e seu instrumento, a heterossexualidade compuls6ria, outros discursos ‘convergemno sentido de procuzir essa ficgho categérica, por razSes nem semgre claras ou coerentes entre si. As relagdes de poder que permeiam as ciéncias biol6gicas nio so facilmemte redutiveis, e a alianga médico- legal que emergiu na Europa do século XIX gerou ficcdes categéricas que 20 poderiam ser antecipadas. A prépria complexidade do mapa discrsivo que constr6i o género parece sustentar a promessa de uma convergéncia inopinada e generativa dessis estruturas discursivas ¢ re- aulacoras. Se as ficgbes reguladoras do sexo e do género sao, elas pré- prias lugares de significado multiplamente contestado, entio a prépria maltplicidade de sua construcao oferece a possibilidade de uma ruptura nfvoca. esse projeto nao propde desenhar uma ontologia do ‘2€ne10 em termos filoséficos tradicionais, pela qual o significado de ser +r out homem seja elucidado em termos fenomenolégicos. A pre- sungéo aqui é que o “ser” de um género é tem ofeito, objeto de uma in- que mapeia os parimetros pol trugio no modo da ontologia, Declarar que © géneto é construide nao 6 afirmar sua ilusio ou artificialidade, em que se compreende que esses termes residam no interior de um bindrio que contrapoe como opostos © “teil” © 0 “auténtico”. Como genealogia da ontologia do genero, a reseate investigagdio busca compreender a producto discursiva da plau- sibilicade dessa relagio bindria, ¢ sugerir que certas configuragées cul- turaisdo género assumem o lugar do “real”e consolidam eincrementam ‘sua hegemonia por meio de uma autonaturalizagao aptae bem-sucedida. Sea algo de certo na afirmacao de Beauvoir de que ninguém nasce € sim ‘orna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um se PROELEMAS DE GENERO ;, um construir de que nao se pede dizer com acerto que ou um fim, Como uma pratica discursiva continua, 0 term®) intervengoese re-significacdes. Mesmo quando ogénera| se em suas formas mais reificadas, a propria “cristali _prtica insistente e insidiosa, sustentada ¢ regulada por virios melas ais. Para Beaavoir, nunca se pode tomar-se mulher em definitivay 10 se houvesse um telos a governar o proceso de aculturacdo e con trucio. O género € a estlizacio repetica do corpo, um conjunto de atos ‘repetidos no interior de uma estrurura reguladora altamente rigida, a _qual se crisaliza no tempo para produzir a aparéncia de umasubstinca, ‘de uma classe natural de ser. A genealogia politica das ontologias do nero, em sendo bem-sucedida, desconstruiria a aparéncia substantiva ‘do género, desmembrando-a em seus atos constitativos, e explicarie € ocalizaria esses atos no interior das estruturas compuls6rias eriadhs pe- fas virias forcas que policiam a aparéncia social do género. Expor os “atos contingentes que criam a aparéncia de uma necessidade natural, ‘tentativa que tem feito parte da critica cultural pelo menos desde Marx, étareta que assume agoraa responsabilidade actescida de mustiar como a propria nocio de s vel por meio de sua aparén:ia de as & forca pelas varias reificacées do género constitutivas de suas ontologias contingentes. | © capitulo seguinte investiga alguns aspectos da abordagem psica- ‘nalitica estruturalista da diferenga sexual e da construcio da: sexuaidade relativamente a seu poder de contestar os regimes reguladores aqui #s- bogados, ¢ também a seu papel na reproducio acritica desses regimes. ‘A univocidade do sexo, a cozréncia interna do género e a estrutura bi- niria para 0 sexo € o géncro sio sempre consideradas como ficcées re- guladoras que consolidam e naturalizam regimes de poder convergentes de opressa0 masculinac heterossexista. © capitulo final consideraa pr6- pria nocao de “corpo”, nao como uma superiicie pronta A espera de significacao, mas como um conjunto de frontei vidos soa, politicamente significadas e mantidas. Mostraremos que 0 sexo, jé niio mais visto como uma “verdade” interior das predisposig6es ¢ da identi- dade, € uma significagao performativamente ordenada (¢ portanto x0 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO 6" puta e simplesmente), uma significacio que, liberta da interioridade e da superficie naturalizadas, pode ocasionat a proliferagao paredistica © 0 jogo subversivo dos significados do género. O texto continuard, entiio, como um esforco de refletir a possibilidade de subverter e deslo- ccar as nocées naturalizadas ¢ reificadas do género que dao suporte & hegemonia masculina ¢ ao poder hecerossexista, para eriar problemas de género néo por meio de estratégias que representem um além utépi- co, mas da mobilizacio, da confus4o subversiva e da proliferagao preci- samente daguelas eategorias constitutivas que buscam manter 0 género ‘em seu lugar, a posar como ilusdes fundadoras da identidade. 60 ULO2 Proibicao, psicanilise e a produgéo da matriz heterossexual

Você também pode gostar