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A cena de teatro na Outra cena em Hamlet e a estrutura de ficção de verdade

Sandra Dias

Freud situou o drama de Hamlet no mesmo solo da tragédia de Édipo-Rei, girando


em torno do desejo parricida e amor incestuoso pela mãe. Ele destaca também que além da
distância temporal entre esses duas criações da poesia trágica há uma diferença em relação
como o material é tratado nessas duas épocas da civilização decorrente do avanço do
recalque na vida emocional da espécie humana. Em Édipo a fantasia é posta a descoberto e
realizada como num sonho enquanto que em Hamlet ela é recalcada, e como na neurose, só
sabemos dela através de suas conseqüências inibidoras ”(Freud, 1900, 280). Opondo-se a
Goethe para quem Hamlet é o tipo de homem cujo poder de ação é paralisado pelo
desenvolvimento excessivo de seu intelecto, Freud afirma” que Hamlet está longe de ser
representado como uma pessoa incapaz de adotar qualquer ação “(1900, 281), o que há é
uma inibição em cumprir a tarefa imposta pelo fantasma do pai”. Hamlet é capaz de
qualquer coisa menos se vingar do homem que eliminou o seu pai e ocupou o lugar deste
com sua mãe (Freud, 1900, 281) porque este lhe mostra seus desejos recalcados. Assim
interpreta a inibição do herói a partir da problemática da culpabilidade e a auto-
recriminação, seus escrúpulos de consciência indicariam que ele não é melhor que o
pecador que deve punir. (Freud, 1900, 281). É o remorso que paralisa seu braço e o impede
de levar a cabo a vingança, porque o tio realizou seu desejo.
Hamlet era filho do rei da Dinamarca. A peça começa com o encontro dos amigos:
Horácio Diz: “Eu vim para assistir aos funerais do seu pai” ao que Hamlet responde “Ou
seja, veio para os esponsais da minha mãe” (Shakespeare, 1997, 19). Dois fatos seguidos no
tempo, que indicam uma antecipação, um demasiado cedo: a morte misteriosa do rei e o
casamento da mãe. “Economia, Horácio! Os assados do velório puderam ser servidos como
frios na mesa nupcial. Preferia ter encontrado no céu meu pior inimigo do que ter visto esse
dia!” (Shakespeare, 1997, 19)
Após essa abertura, o drama prossegue até o próximo ponto em que se dá um novo
encontro: o ghost do pai, aparece à noite ao filho: “Sou o espírito de teu pai” (Shakespeare,
1997, 30). “Vinga esse desnaturado, infame assassinato” (Shakespeare, 1997, 31). O rei
revela que a versão mentirosa de que dormia no jardim quando foi picado por uma serpente
encobre a serpente que lhe tirou a vida e que agora usa a coroa. Trata-se de um fratricídio,
realizado por meio de um veneno inoculado no ouvido do pai, ato pelo qual o rei perde ao
mesmo tempo, a coroa, a rainha e a vida.
Toda a peça gira em torno das hesitações de Hamlet em cumprir o mandato do rei:
“Se você algum dia amou seu pai ... vinga esse infame assassino” ao que o herói responde
que “Mais rápido do que um pensamento de amor” (Shakespeare, 1997, 31), voará para a
vingança. Mas ao contrário do prometido ele dilata o tempo: “Fico aqui como uma
marafona. Desafogando minha alma com palavras, Me satisfazendo com insultos ...”
(Shakespeare, 1997, 60). Levando o mesmo nome do pai, Hamlet é herdeiro legítimo e
adota essa posição ao assumir o pedido paterno como uma promessa a ser cumprida, um
desejo seu, mas se detem numa paralisação mantendo o desejo suspenso.
Lacan, no seminário VI “O desejo e sua interpretação”, retoma a interpretação
freudiana de que o motivo da paralisação da ação do herói se deve ao desejo, para avançar

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na questão da relação do sujeito com o Outro. Hamlet, o filho dedicado à vingança do pai
morto apresenta uma estrutura que põe em jogo, “a própria dimensão subjetividade
humana” (Lacan, lição 15, 18/03/1959), tornando-se assim um personagem emblemático de
um sujeito desejante, da emergência da dimensão trágica da estrutura do desejo
inconsciente. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, é essencialmente tragédia do
desejo “(Lacan, lição 14, 11/03/1959)”.
O que distingue Hamlet como paradigma do herói moderno em contraste com o
herói-trágico Lacan da antiguidade, Édipo, é a sua posição frente ao saber: ele conhecia o
assassino de seu pai, revelação que expõe algo de fundamental na articulação inconsciente.
Enquanto Édipo não sabia de seu desejo parricida nem de seu wunsch incestuoso; ele faz
sem pensar, sem saber (Lacan , lição 16, 08/04/1958); contudo Hamlet sabe, porque se o pai
sabia, ele também o sabe e isto tem efeitos na subjetividade, ele sabe e não age.
No ato II, cena 1, Ofélia, mulher por quem Hamlet estava apaixonado e era
correspondido, relata ao pai, Polônio, o encontro que tivera com o amado: “...Hamlet me
surgiu. Com o gibão todo aberto, Sem o chapéu na cabeça, os cabelos desfeitos. As meias
sujas, sem ligas, caídas pelos tornozelos. Branco como a camisa que vestia. Os joelhos
batendo um contra o outro, E o olhar apavorado De quem foi solto do inferno.Pra vir contar
cá em cima os horrores que viu” (Shakespeare, 1997, 40). Esta descrevia os efeitos da
aparição do pai morto e da revelação da verdade. Efeitos que desorganizam não só Hamlet,
provocam a desordem do mundo como também afetam a relação entre eles: “Me pegou
pelo pulso e me apertou com força. Depois se afastou à distância de um braço E, com a
outra mão na fronte, Ficou olhando meu rosto com intensidade, Como se quisesse gravá-
lo. ... E aí me soltou. Com a cabeça virada para trás Foi andando pra frente como um cego,
Atravessando a porta sem olhar, Os olhos fixos em mim, até o fim” (Shakespeare, 1997,
40). È a imagem um homem em delírio de amor, interpreta Polônio. O ponto sobre o qual
todos na corte concordam: a metamorfose de Hamlet . É um homem aflito e enlouquecido
(Shakespeare, 1997, 44). Qual seria a causa de sua loucura? Qual seria a causa de sua
aflição? O amor por Ofélia, a morte do pai e o apressado matrimônio?
Mas a causa da perturbação do príncipe encontra-se no que ele chama de “o meu
destino”. Destino que se articula com um saber, o que Horácio designa com “algo de podre
no reino da Dinamarca” , e que Hamlet indica como um saber que o amigo ignora “Há
mais coisas no céu e na terra, Horácio, Do que sonha a tua filosofia” (Shakespeare,
1997,36). Um saber: a revelação do fratricídio e a cumplicidade da esposa, o incesto e a
traição e uma demanda: a demanda paterna: “Não desejo pena, só teu ouvido atento Ao que
vou revelar”... “E também para me vingar, depois de ouvir” (Shakespeare, 1997,30). O bom
filho, perde todo o interesse nos assuntos do mundo, preocupado em levar a cabo o
juramento, mas sem conseguir realizá-lo. Porque o encontro com a verdade revelada,
esse saber não é suficiente para que Hamlet faça o que é esperado na sua condição de filho
que ama o pai, um homem idealizado como rei e como pai, tão cruelmente ultrajado.
Lacan adianta não se trata nem covardia nem de razão. E porque Hamlet não pode
obedecer ao mandato paterno, porque ele não age? Ele rejeita a tese freudiana do braço
paralisado pela culpa, pois matar o tio, o homem que realizou os desejos edipianos, serviria
para ele encontrar aí “a ocasião de estancar sua própria culpabilidade, encontrando fora dele
o verdadeiro culpado“ (lição 15, 18/03/1958). O deve ser considerado aí, “aquilo com o
qual Hamlet se bate é o desejo, o desejo não por sua mãe, mas o desejo de sua mãe”. O
verdadeiro ponto pivô é aquele do encontro com sua mãe, após a play scene (Lacan, lição
15, 18/03/1959).

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Temos então na peça: o encontro de Hamlet com Horácio, o encontro de Hamlet
com o espectro do pai morto, o encontro com Ofélia e o encontro com a mãe, entre estes
dois últimos, a play scene - o teatro no teatro. Lacan destaca aí algo de novo e de misterioso
na peça de Shakespeare, a significação do objeto feminino (Lacan, lição 14, 11/03/1959) e a
função do cena na cena.
Lacan aponta que na revelação pelo pai da verdade sobre sua morte foi levantado
algo como um véu: “O pai sabia, e pelo fato de que ele sabia, Hamlet também sabe”
(Lacan, lição 13,04/03/1959). Ele tem a resposta. O que quer dizer que o Outro tem a
resposta. Lacan diz que isto implica em que na relação do sujeito com o Outro, a resposta
deve ser articulada em dois níveis: no nível do discurso e no nível além do discurso, da
questão do sujeito. Enquanto que no primeiro se coloca a questão do significado do Outro,
s(A), no segundo se coloca o significante do Outro barrado, ali onde ele acede ao sentido.
A revelação do fantasma incita a função do pai como garantia da ordem, mas o
adiamento põe o pai em causa. Porque? Qual o sentido que Hamlet apreende da verdade
revelada pelo pai? O sentido da traição absoluta, do amor mais puro desse rei por sua
mulher, “aquele que ia até afastar as rajadas de vento sobre seu rosto”, revela que a verdade
de Hamlet é uma verdade sem esperança, nenhuma possibilidade de redenção ou elevação.
O encontro com o espectro do pai revela uma verdade que aponta uma falta no Outro, não
há garantia no Outro, não há Outro do Outro, há uma falta na ordem significante.
O drama de Hamlet difere do drama de Édipo porque enquanto neste o crime se dá
na geração do herói, na tragédia hamletiana, o crime se produziu na geração precedente. O
pai é a vítima, que dormindo é surpreendido na flor de seus pecados, “um golpe vem
derrubá-lo, partindo de um ponto de onde ele não o espera, verdadeira intrusão do real”
(Lacan,lição 19, 29/04/1959). Na forma normal do Édipo, o pai é a encarnação do Outro,
aquele que é autor da lei e ao mesmo tempo aquele que não pode garanti-la, que sofre a
barra e que como pai real é um pai castrado e que pode transmitir uma dívida-herança ao
filho. Ora, o pai de Hamlet, pelo crime entrou no domínio do inferno, isto é: de uma dívida
inexpiável. Esse é o sentido mais terrível e angustiante da revelação paterna, o pai não pode
mais responder por isso.
O pai sabe que está morto, se o Outro sabe o sujeito não se realiza como faltante,
pois esse Outro não está marcado pela falta, o que faz com que o real retorne inarticulado
ao simbólico, indicando a marca do não acesso à castração.Hamlet no encontro com o
“ghost”, não encontra o significante do Outro barrado que lhe permitiria aceder a
significação do Desejo do Outro e a falta no campo significante. Esse pai ideal não da as
proibições da Lei que poderiam fazer subsistir seu desejo, incapaz de transmissão da
castração na linha sucessória, barra a articulação do desejo na geração seguinte. A ausência
de rituais funerários e a série de mortes na tragédia – nove mostram uma insistência
repetitiva que visa inscrever no simbólico o que se perdeu no real que se sucedem a partir
do encontro com o pai.
A peça é articulada desse modo como “um drama do desejo na relação com o desejo
do Outro, e como ela é dominada por este Outro que é aqui o desejo” da mãe, isto é do
sujeito primordial da demanda (Lacan, lição 17, 15/04/1959). Trata-se do desejo do Outro,
o desejo da mãe que se apresenta como um desejo que, entre um objeto eminente, (o objeto
idealizado, exaltado que é seu pai) e este objeto depreciado, desprezível (que é Cláudio, o
irmão criminoso e adúltero) não escolhe (Lacan, lição 17, 15/04/1959). Lacan põe acento
aqui na relação do desejo do sujeito ao desejo do Outro como a dimensão permanente e
responsável pelo drama de Hamlet.

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O encontro com esse desejo, o desejo do Outro, que sai da boca do pai que pena no
limbo, é responsável pela grande desordem de Hamlet em sua postura, da desorganização
subjetiva, o qual Lacan situa como “o momento em que alguma coisa vacila no fantasma,
momento de uma experiência de despersonalização em que “os limites imaginários entre o
sujeito e o objeto se encontram a mudar, no sentido próprio do termo, na ordem daquilo que
se chama o fantástico” (lição 17, 15/04/1959). A tarefa de Hamlet é árdua, pois o que o
pobre homem tem a fazer é endireitar-se frente a algo que tem relação com sua posição
frente ao falo.A suspeita de Hamlet torna-se convicção. Neste ponto do seminário VI,
Lacan interpreta a rejeição, a depreciação, o desprezo lançado sobre Cláudio como
denegação de Hamlet, pois Cláudio encarna o Falo real. Mesmo após a morte do rei, o falo
está lá, e Hamlet só faz reprovar à mãe por ter-se preenchido com ele, mal seu pai é morto.
(lição 19, 29/04/1959). Lacan nos incita a traduzir a frase shakespeariana “O corpo está
com o rei, mas o rei não está com o corpo” (Shakespeare, 1997, 95) por “O falo está com o
rei, mas o rei não está com o falo”, indicando o lugar central que ocupa na trama o Falo.
(lição 19, 29/04/1959. Mas destaca que essa frase é seguida de outra “O rei é uma coisa,
uma coisa de nada”. Estamos aqui na questão do desejo do Outro, no desejo feminino, no
mistério que se encontra na peça, da intensa perturbação do herói e na impossibilidade de
assumir seu destino.(Lacan, lição 19, 29/04/1959). Momento em que ele enuncia a famosa
frase: Ser ou não ser (Shakespeare, 1997, 63) que seguindo essa lógica inconsciente pode-
se traduzir: ser ou não ser o falo do Outro”.
A questão fundamental desse herói passa assim pela pergunta “Quem era o pai para
a mãe, substituído de um dia para outro pelo irmão. No ato III, a cena de Hamlet com a
mãe em que ele demanda” ... não vá para a cama de meu tio.... Simula uma virtude, já que
não a possui.... Isto tornará mais fácil a próxima abstinência “(Shakespeare, 1997, 89),
momento em que o herói em nome da dignidade articula uma demanda ao Outro materno.
Mas ao mesmo tempo vê-se, a vacilação e consentimento ao desejo da mãe, diante desse
encontro com o Desejo do Outro. Hamlet não é um homem que não sabe o que quer, ele
sabe o que quer, vingar a morte do pai, o que o aprisiona é que ele sabe o desejo do Outro.
Ali onde o pai não pode responder numa herança simbólica , como ele leu o desejo da mãe
- o desejo do Outro”.
O espectro convoca Hamlet não apenas para vingar seu assassinato, mas também
para deter o escândalo da luxúria da rainha (Shakespeare, 1997, 33). Lacan ao situar essa
tragédia no grafo do desejo aponta que Hamlet só pode receber como mensagem, o que está
no andar inferior do grafo: o significado do Outro, um Outro sem barra e que se situa como
“Sou o que sou, uma verdadeira genital, eu não conheço o luto, quando um parte, o outro
chega” (Lacan,lição 15, 18/03/1959). Então não se trata só de traição, questão do gozo
fálico, mas de uma mulher que não pode reservar seu luto e que se entrega ao melhor
proponente fálico, o que faz com que esse desejo de falo seja lido pelo filho como algo da
ordem de uma voracidade, de um apetite insaciável, de uma glutonaria, ou seja: o gozo
fálico da mãe será retraduzido como o arrasador Gozo do Outro. Se seu pai não foi um
digno varão para a sua mãe, mas um repasto da sua voracidade, o que pode ser ele para uma
mulher. Por isso Ofélia é rejeitada, desprezada, humilhada e maltratada. Ao casar com o
cunhado, a mãe deserda o filho do trono que lhe cabia legitimamente. O falo simbolizável
na coroa, não se há de transmitir como emblema de pai a filho, Hamlet se torna o rival
potencial de Cláudio. O sentido da vida escapa ao varão, quando as funções relacionadas à
dignidade do falo não são respeitáveis, os brasões imaginários não podem cobrir o real,

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Hamlet cai da posição de objeto amável, quando a mãe não respeita o tempo do luto e lhe
pede que o ignore.
Um pai que clama por vingança e que denuncia que morreu na flor dos pecados, é
um pai em dívida com o significante. Esse pai, não é um pai que sustenta a estrutura do
desejo com a lei e que faz de seu pecado, sua herança. Antes, esse pai que não pagou pelo
crime de existir, transfere ao filho o peso dos pecados: “Maldita a sina. Que me fez nascer
um dia pra consertá-lo!” (Shakespeare, 1997,36).O pai ao invés de fazer-se o privador do
gozo da mãe se torna seu cúmplice: “Não contamina tua alma deixando teu espírito.
Engendrar coisa alguma contra tua mãe” (Shakespeare, 1997, 33, 88).Ao sancionar o crime
sem comprometer a mãe que é co-autora, nós encontramos um pai real que não é afetado
pela barra e que deixa o filho aprisionado a paixão pela imagem do pai morto, tentando
neutralizar o gozo da mãe imaginária, objeto primordial, mítico, inaccessível, que o
transforma em objeto de seu desejo. Ser ou não ser, eis a questão, questão do falo, ser ou
não ser o falo. O pai idealizado se sustenta de sua própria imagem ideal, mas não basta para
que o processo se inicie: o cumprimento da promessa de vingança e retomada do usurpado.
Resta ao filho barrar esse desejo voraz.

A verdade e a estrutura de ficção

É nesse momento que a play scene toma o seu lugar, ou seja, o teatro no teatro, a
cena na cena. Mas é a estrutura de ficção da verdade que se joga na cena do teatro,
momento em que Hamlet imagina surpreender Claudio e fazê-lo denunciar-se, ao lado da
esperança de que possa levar sua mãe ao arrependimento, resolvendo assim o conflito.
Lacan toma a verdade como estrutura de ficção, ficção não como ilusão, mas
equivalente ao simbólico. È na dimensão da linguagem, do simbólico, ou seja: na
articulação do discurso, que a verdade embora antinômica a ele, se estrutura como ficção.
A play scene, o teatro no teatro em que Hamlet usa uma troupe de atores, é um dos
principais momentos da peça. O uso do teatro para revelar um drama: a verdade revelada
pelo pai. A verdade aqui se revela à luz da pantomima, isto é: é o artifício da representação
que traz a luz à verdade indicando que a revelação do crime deve ser feita pelo simbólico,
pela palavra. A alethéia do primeiro tempo da trama se coloca como verdade disfarçada no
texto teatral.
A função do inconsciente, definida como discurso do Outro, cadeia que enlaça o
desejo do sujeito, se presentifica no discurso, proferido pelo ator que o encarna e lhe
empresta o corpo. A cena com os atores, chamada “A ratoeira”, a isca para agarrar a
consciência do rei, é uma cena de assassinato onde o sobrinho mata o rei. No seminário X
“A angústia” Lacan esclarece: “O que Hamlet faz representar sobre a cena (...) é ele mesmo
realizando o crime de que se trata” (lição 3, 28/11/1962). O real não atravessado pela
história, o crime da geração precedente e o pai real, precisam entrar na cena, substitui-se
um pai real por outro pai real.
A representação dos atores tem a função de levar o mundo à cena, isto é submetê-lo
às leis significantes, isto é entrar na dimensão da história. O que Lacan destaca aí é a
dimensão da fantasia, mostrando que em se tratando de sujeito falante, o mundo não é outra
coisa senão a estrutura da fantasia. Um mundo a ser construído como uma bricolagem, com
restos do visto e ouvido, Hamlet como um “bricoleur” configura uma cena a partir do que
dispõe, para sair da captura da cena. O personagem cujo desejo só pode animar-se para
realizar a vontade do ”ghost”, do espectro do pai, este personagem tenta dar corpo a algo, e

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aquilo a que tem que dar corpo passa por sua imagem aqui verdadeiramente especular. Sua
imagem, não na situação, não no modo de realizar sua vingança, mas como modo de
assumir primeiro o crime que se tratará de vingar “(Lacan, lição 3, 28/11/1962)”.
O recurso ao teatro cumpre a função de um espelho em que Hamlet busca produzir a
imagem especular. Hamlet produz através do artifício da representação teatral, um duplo de
si, um duplo representado pelo i´(a). No momento da reprodução da cena, Lacan indica a
agitação que se apossa de Hamlet, a cena, a representação lhe devolve a imagem do
assassino, mas só a imagem não basta, por isso o assassino tem que ser o sobrinho que faz o
que Hamlet não faz: matar o tio. Toda identificação na ordem especular exclui a falta,
exclui a perda constitutiva do objeto, o sujeito não consegue a resposta sobre sua posição de
causa no desejo do Outro. Esta identificação, identificação como i´(a) não o liberta da
inibição há que se passar por outra identificação, que só se cumpre no final, com a morte de
Ofélia, aquela mais fundamental que se relaciona ao objeto como perdido. Porque o que é
central nesse drama é que o espectro do pai, o ghost, esta totalmente submetido ao desejo
da mãe, um homem consagrado a satisfazer plenamente as aspirações e que não consegue
responder a demanda da rainha de saciar seu desejo. O que horroriza Hamlet é o fracasso
do pai como causa do desejo da mãe.
Protegendo a mãe de sua própria raiva implora, revelando saber do poder materno: a
possibilidade sedutora dela: “Mãe pela graça divina, Não passa em tua alma esse enganoso
ungüento, De que não é o teu delito que fala, mas a minha demência” (Shakespeare, 1997,
89). Esse é o ponto em que a trágica anulação do desejo pela tirania da onipotência do
desejo materno, mantém sua ambivalência e reforça o conflito entre o desejo imperioso e
sua interdição. Lacan toma Hamlet como paradigma da relação do neurótico com o desejo,
destacando que o impasse com o desejo é de ordem estrutural, que ao interrogar-se sobre o
que quer fica paralisado entre o saber e o ato. A inibição como sintoma aponta que o que
quer o sujeito é manter o falo da mãe. Ele nega, recusa à castração ao Outro, pois não quer
perder sua dama, colocando-a na posição de falo idealizado, dúvida entre: Ser ou não ser...
o falo, remetendo a dialética e assunção da castração.Essa impossibilidade, decorrente da
ambigüidade do desejo e ambivalência conflitiva levam o herói à não realização do luto,
ficando preso na trama imaginária narcísica que paralisa sua ação e impede o deslocamento
do desejo. Estabelece-se uma confusão entre a realidade psíquica e a realidade material, e
um cenário imaginário que expressa o desejo em uma demanda impossível, que precisará
da passagem de uma nova ação psíquica, instauradora da alteridade.O neurótico acredita
que através da imagem chegará ao desejo, esse é o engano de Hamlet e de seu pai.A loucura
de Hamlet é efeito defeituoso de uma causa, não é a tragédia impulsionada pelo destino. O
drama de Hamlet é o drama do homem, o drama de que o objeto seja desdobrado entre
digno e indigno.
O rei é envenenado. As palavras do espectro são veneno.A rainha morre envenenada
quando o tio queria envenenar Hamlet. Morrem todos, no final dessa tragédia, contam-se
nove cadáveres. A peça termina com Hamlet dizendo a Horácio que leve sua palavra a
Fortimbrás: que ele fique com o reino. Ali onde esse varão não pode assumir seu lugar na
cadeia transgeracional, ele passa essa herança, como dom, a um filho que perdeu um pai; ao
custo do próprio sacrifício. Termino com a frase de Lacan “Levar a cabo a verdade de seu
desejo, embora seja o que há de mais vital na existência, implicará sempre um encontro
com a morte” (lição 13, 04/03/59).

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Bibliografia

Freud, Sigmund “A interpretação dos sonhos” (1900), in Obras psicológicas


completas da Standard Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1980, cap. V.
Lacan, Jacques “Seminário VII - O desejo e sua interpretação”, 1958-1959, inédito
“Seminário X – A Angustia”, 1962-1963, inédito
Shakespeare, William “Hamlet”. Porto Alegre:L&PM, 1997, tradução Millor Fernandes

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