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SILACC 2010 – Simpósio Ibero Americano Cidade e Cultura: novas

espacialidades e territorialidades urbanas

Título: Ouroboros: a cidade em Marshall Berman

Sessão temática: ST02 - Tensões, Relações e Liminaridades na Cidade Contemporânea

Resumo:

O presente artigo pretende empreender uma leitura espacial, urbana e arquitetônica, do livro Tudo
que sólido desmancha no ar de Marshall Berman, originalmente lançado no ano de 1982 e
publicado no Brasil em 1986. Para além de uma leitura inovadora e controvertida do Manifesto do
Partido Comunista entendemos que Berman acolhe o dinamismo inato da economia e
conseqüentemente da cultura moderna no cerne do cotidiano urbano de maneira a colocar-nos no
centro de um torvelinho que aniquila tudo que cria – ambientes físicos, instituições sociais, idéias
metafísicas, visões artísticas, valores morais – para infindavelmente criar o mundo de outra forma.
Essa modernidade irremediavelmente atrelada à vida urbana só faz-se compreensível frente à
utilização da própria cidade como instrumento de argumentação. Sua argumentação tem lastros
que pretendemos salientar para apresentar nossa leitura de seu trabalho, são estes, a cidade
material e a vida urbana, associadas a elementos arquétipos e por vezes mitológicos. Nosso
objetivo é buscar na metáfora da Ouroboros um paralelo possível ao processo de destruição e
renovação repetidamente assinalado no texto e enfaticamente ressaltado pela dialética
modernização/modernismo. Assim, pensamos que associar a cidade ao arquétipo da Ouroboros,
a serpente que devora a própria cauda e se alimenta de sua própria autodestruição, pode lançar
alguma luz sobre nossa situação urbana histórica e contemporânea.

Palavras-chave: Ouroboros; Marshall Berman; modernidade; modernização.


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Fonte: Berman (1983)
                                                            
1
Também traduzida
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O livro examina o Manifesto do Partido Comunista de forma eletrizante e perturbadora. Segundo
Berman (1986) o texto de 1848 está impregnado de uma percepção de modernidade que
ultrapassa as linhas de Marx2 e adentra o universo da sua intuição. A mecânica de criação e
destruição impetrada pelo capitalismo burguês adquire autonomia voraz e contorno profético,
dotada da capacidade de desestabilizar qualquer coisa, assombra a permanência de qualquer
forma social, seja ela capitalista ou comunista3. O objetivo declarado de Berman (1986, p.14-15) é
compreender melhor a modernidade contemporânea explorando e mapeando cinco séculos do
turbilhão moderno alimentado em várias fontes, desde as descobertas científicas aos avanços
tecnológicos, a transformação de nossa imagem e do nosso lugar no mundo somada à
industrialização da produção que modifica a sociedade e suas relações, criando e destruindo seus
ambientes sociais, espirituais e finalmente seus espaços físicos. Sua argumentação tem lastros
que pretendemos salientar para apresentar nossa leitura de seu trabalho, são estes, a cidade
material e a vida urbana, associadas a elementos arquétipos, por vezes mitológicos, todos
devidamente alinhavados a um conjunto literário heterogêneo; clássicos e contemporâneos,
romancistas e acadêmicos, filósofos e políticos, poetas e jornalistas4. Neste sentido, o Manifesto
como um arquétipo da modernidade contemporânea enuncia não apenas uma verdade, mas
também lutas e tensões interiores5.

O Manifesto declara Berman (1986, p.100), “contra as intenções do seu criador e provavelmente
sem que ele se desse conta disso” reconstrói sua crítica imanente na própria visão da revolução e
sua resolução, assim novas contradições se insinuam no véu tecido por essa mesma visão.
Segundo Ridenti (1998), Berman aponta no texto de Marx, oculto sob o enredo da luta de classes,
um segundo enredo, menos explícito, mais profundo e atual, a tensão entre a visão “sólida” e a
visão “diluidora” da vida moderna. “O Manifesto mostra a emergência de um mercado mundial que

                                                            
2
“A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por
conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo
de produção constituía, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. Essa
subversão continua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta
de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais
antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas, as relações que as
substituem tornam-se antiquadas antes mesmo de ossificar-se. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o
que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições
de existência e suas relações recíprocas. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade
todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte” (MARX;
ENGELS, 1848, grifo nosso).
3
Ainda que os trabalhadores de fato construam um bem-sucedido movimento comunista e ainda que esse movimento
gere uma bem-sucedida revolução, de que maneira, em meio às vagas impetuosas da vida moderna, poderão eles
erguer uma sólida sociedade comunista? O que poderá impedir que as forças sociais que derretem o capitalismo
derretam igualmente o comunismo? (BERMAN, 1986, p. 101). 
4
Além de Marx temos Goethe, Nietzsche, Baudelaire, Dostoievski, James Joyce, Jane Jacobs, citando apenas os que
de alguma cativaram nossa atenção.
5
Nas palavras do próprio Berman (1986, p. 88) o Manifesto “expressa algumas das mais profundas percepções da
cultura modernista e, ao mesmo tempo, dramatiza algumas de suas mais profundas contradições internas”.
Compreendê-lo como arquétipo de um século inteiro de manifestos e movimentos modernistas que o sucederam
significa adentrar um campo de tensões onde “os homens” são agentes e pacientes do processo diluidor que
desmancha no ar tudo o que é sólido.
cresce e se solidifica, ao mesmo tempo em que absorve e destrói os mercados locais e regionais
com os quais entra em contato”. O capital concentrado em poucas mãos arruína artesãos,
camponeses e pequenos proprietários, o capitalismo dilui rapidamente formações sociais sólidas,
constituídas ao longo dos séculos, e em seu lugar surge "uma construção móvel que se agita e
muda de forma sob os pés dos atores".

Nas bases de uma modernidade impregnada de seus contrários, Berman enxerga uma lógica que
acolhe o dinamismo inato da economia e conseqüentemente da cultura moderna no cerne do
cotidiano urbano de maneira a colocar-nos em meio a um torvelinho que aniquila tudo que cria –
ambientes físicos, instituições sociais, idéias metafísicas, visões artísticas, valores morais – para
infindavelmente criar o mundo de outra forma. Essa modernidade irremediavelmente atrelada à
vida urbana só faz-se compreensível frente à utilização da própria cidade como instrumento de
argumentação. Cidade como ente capaz de abarcar o movimento cíclico de modernização e
modernismo num universo temporal que compreende três fases desde o início do século XVI até o
período contemporâneo. É preciso, no entanto, esclarecer a dialética modernização/modernismo
trabalhada em Tudo que é sólido desmancha no ar, trata-se menos da exploração de conceitos
previamente definidos e mais da elaboração de um artifício para ressaltar a dicotomia intrínseca
dessa modernidade delineada por Marx como um todo coerente. Na leitura de Berman (1986,
p.16) Marx participa da segunda fase do desenvolvimento moderno, a tomada de consciência
efetiva da modernidade abalizada pelas grandes revoluções do final século XVIII. Talvez as
massas e as grandes aglomerações não sejam, de fato, modernas, mas a sua conscientização o
é, esse público partilha o sentimento de viver em uma era revolucionária e, ao mesmo tempo,
ainda se lembra de um viver, material e espiritual, em um mundo que não chega a ser moderno
por inteiro. É desse paradoxo que emerge a idéia de modernismo e modernização. Modernização
seria a movimentação da política e dos meios econômicos e modernismo sua contrapartida
cultural no espectro das artes e das sensibilidades. Para o autor novaiorquino, Marx
unanimemente associado ao primeiro processo, prenuncia intuitivamente a dinâmica do segundo.
Berman (1984, p.115; 1986, p.327) enfatiza, “ser moderno” é experimentar um turbilhão na vida
pessoal e social, encontrar-se em processos perpétuos de desintegração e renovação,
atribulações e angústias, ambigüidade e contradição: estar em um universo em que tudo que é
sólido desmancha no ar. Ser um modernista significa de alguma forma sentir-se em casa neste
turbilhão, achar conforto e compreender o mundo onde a modernização se concretiza, e esforçar-
se para torná-la sua. O modernismo visa dar aos homens e mulheres modernos poder para agir
no mundo que os transforma, torná-los produtos, mas também senhores da modernização.
Anderson versus Berman e os reflexos no cenário da redemocratização brasileira

Tudo que é sólido desmancha no ar foi pivô de um debate cujos protagonistas foram o próprio
Berman e o historiador marxista Perry Anderson, fundamentado em seu artigo Modernidade e
Revolução. Publicados pela New Left Review conjuntamente em 1984, a resposta de Berman
indica para os “sinais da rua”, The signs in the street: a response to Perry Anderson.

A crítica de Anderson aponta seis equívocos no texto de Berman, segundo Ridenti (1998) podem
ser resumidos da seguinte maneira:

1) Haveria um equívoco interpretativo de Berman sobre a concepção do tempo histórico em Marx.


Para Anderson, este não seria a mera sucessão cronológica do velho e do novo, posição em parte
assumida por Berman, ao ver a modernização como um processo linear de desenvolvimento que
traria consigo a renovação constante das fontes da arte modernista;
2) O livro arrefece as lutas de classe, aliena a participação social e compartimenta economia,
psicologia e cultura do modernismo;
3) Haveria um equívoco na análise do modernismo sem nenhum princípio interno de variação,
reproduzindo-se interminavelmente;
4) No interior do modernismo, Berman não estabeleceria distinções entre as variadas tendências
estéticas;
5) Ao encarar o capitalismo como uma revolução permanente, Berman desvalorizaria o termo
revolução, analisado por Anderson como um processo pontual de ruptura com as estruturas, e
não permanente;
6) Anderson critica a leitura de Berman da noção de modernidade em Marx, vista como processo
subjetivo de autodesenvolvimento ilimitado.

Anderson (1984, p. 113, tradução nossa) conclui seu artigo da seguinte maneira:

Se questionarmos como uma revolução (entendida como ruptura pontual e irrevogável na ordem
do capital) relaciona-se com o modernismo (entendido como o fluxo de futilidades temporais),
certamente teríamos seu fim como resposta. Pois uma cultura socialista genuína seria aquela que
não busca a instabilidade do novo, definido apenas como o que vem depois, rapidamente
condenado a deteriorar-se e tornar-se velho. Mas, preferencialmente aquela que multiplica o
diverso numa variedade práticas e estilos simultâneos até então inexistentes: uma diversidade
fundada em pluralidades e complexidades que autorizam o livre viver em uma comunidade de
iguais, não mais dividida por classes, raças ou gênero. Sob esse aspecto, os eixos da vida
estética seriam horizontais e não verticais. O calendário não mais seria tirano ou organizador da
consciência artística. A vocação de uma revolução socialista, nesse sentido, não seria a de
prolongar e tão pouco realizar a modernidade, mas sim a de aboli-la.
A resposta de Berman (1984, p.116-123, tradução nossa) é crucial, pois ressalta nossa
interpretação de que o livro estabelece um vínculo indissociável entre essa modernidade diluidora
e a cidade e seus espaços. Ao enfatizar que ler O Capital não é suficiente se não soubermos
também entender os sinais da rua, Berman atenta para o distanciamento entre intelectuais e os
movimentos da vida cotidiana. “Se não conseguirmos reconhecer as pessoas, como elas vêem,
sentem e experimentam o mundo, nunca seremos capazes de ajudá-las a se reconhecerem e
mudarem esse mundo”. Seu argumento é que o modernismo ainda tem poder criativo de
transformação visto que acontece simultaneamente nas ruas e nas almas. Inspirado no Heroísmo
da vida moderna de Baudelaire afirma que todos os séculos tiveram sua beleza, inevitavelmente
temos a nossa. “Essa é a ordem das coisas...A vida na cidade tem sua poética. Esse maravilhoso
invólucro que nos emerge e que não vemos... Precisamos abrir os olhos e reconhecer nosso
heroísmo”.

No espectro político a discussão sobre o texto na década de 1980 encontrou peculiaridades no


cenário brasileiro marcado pelo processo de redemocratização que naturalmente lançaram em
evidência a controvertida interpretação do Manifesto Comunista. A perspectiva libertária que
antecipa o desenvolvimento individual como pré-requisito da liberdade coletiva parece pautar a
leitura de Francisco Foot Hardman, um dos responsáveis pela tradução de Tudo que é sólido
desmancha no ar. Trata-se de uma reação à militância marxista-leninista do período de 1960-1970
que sustentava a ética do sacrifício da individualidade em nome do coletivo. A virada no
pensamento dos anos de 1980 impulsionou as esquerdas a buscarem como Berman expressou
“entrar em sintonia com os sinais da rua”. Na contrapartida da celebração desse “eu moderno”
estaria a crítica de que o resgate da individualidade poderia degenerar em individualismo
narcisista, uma máscara para o triunfo da concepção liberal do indivíduo (RIDENTI, 1998).

Seria possível uma leitura urbana e arquitetônica?

Apresentamos algumas considerações sobre Tudo que é sólido desmancha no ar e seu contexto
de interpretações de debates no cenário internacional e no ajuste das esquerdas brasileiras.
Contudo, propomos outro viés como objetivo que é, na condição de arquitetos, examinar as
implicações, e a potencialização inclusive, dessa perspectiva inquieta de Berman no espaço
contemporâneo, e de forma particular no espaço urbano e seu continuo processo de
transformações. Frente ao exposto assentamos nossos questionamentos:

Seria possível enxergar as transformações urbanas contemporâneas como um processo cíclico de


criação e destruição como intuído por Berman?

Que utilidade teria esta chave de leitura para o pensar a cidade contemporânea? E
conseqüentemente qual seria seu proveito para pensar cidades no Brasil?
O que, nós, arquitetos e urbanistas poderíamos extrair dessa macro-perspectiva que ilumina esse
processo dinâmico de construção e destruição que engolfa movimento de capital, modernização,
cultura e urbanização?

Quais seriam as nossas possibilidades de ação?

Avaliando a viabilidade da metáfora

Antes de avaliarmos a pertinência ou não dessas questões pensamos que vale a pena aprofundar
alguns significados implícitos à metáfora da Ouroboros. Inicialmente temos na própria serpente
um conteúdo mítico significativo, o fascínio e o terror que as víboras despertam ultrapassam os
sentidos biológicos da autopreservação e sua associação a componentes culturais e psicológicos
não pode ser menosprezada. Pelo lado das tradições temos que as rotas migratórias humanas
tiveram papel importante na transformação e na difusão dos cultos e dos mitos associados à
fauna em geral. Porém, a esfera da cultura não resolve sozinha essa equação já que a veneração
ambivalente pelos ofídios avança para além dos indo-europeus, árabes e asiáticos e atingem
grupos tão isolados quanto os povos pré-colombianos, as civilizações do mundo antigo, as tribos
celtas pré-cristãs e os nativos e aborígenes da América e da Austrália. O legado dessa reverência
é comprovado por um acervo variado de desenhos, inscrições, afrescos, estátuas, artefatos
metálicos, vasos e placas cerâmicas que ressaltam o vigor, a resistência aos ferimentos e
porquanto à morte, a ferocidade, e por fim, o poder de recuperação desses répteis que animam
nossos mundos consciente e inconsciente. Como primeira referência à Ouroboros, temos que o
canibalismo não é usualmente descrito na literatura, contudo, a imagem da cobra que devora a
própria cauda é uma representação artística comum em várias culturas apartadas geográfica e
temporalmente (MUNDKUR, 1983).

Em 4500 a.C. na China neolítica uma das primeiras representações conhecidas da Ouroboros
sugere um dragão6, já sem asas e pernas, pintado de forma a destacar a complementaridade de
suas partes claras e escuras. A figura indica a noção de periodicidade cíclica tal como dia e noite
ou as fases claras e escuras do calendário lunar. Esse conceito fica explícito no vaso de bronze
do período 1122-1011 a.C. da região Chou que divide a serpente/dragão em 14 partes que
correspondem exatamente à fase iluminada do mês lunar e simbolicamente sugere a aproximação
do minguante, um anúncio a extinção final. Na Índia7 a representação da Ouroboros está ligada
aos ciclos cósmicos respectivamente, o declínio, avasarpini, e a regeneração, utsarpini. Tempos
em que a esperança pela ordem do mundo sucede de forma cíclica períodos em que aniquilação
mostra-se iminente. No Egito, usada também como talismã, é símbolo das profundezas,
                                                            
6
Ouroboros também é representada na forma de um dragão, especialmente na China onde são cultuados como
serpentes místicas (MUNDKUR, 1983, p. 105).
7
Em alguns cultos tântricos, mas principalmente no janaismo que entende os ciclos cósmicos marcados por períodos
complementares de ascensão e declínio.
personificado por Apopis, imagem do perigo e do mal, cuja maldição versa, “...você está destruído.
Com a cauda em sua boca, consumir-se-á” (MUNDKUR, 1983,p.75-77).

Ouroboros chinês da região de Chou Susa capital do Elão, próxima ao Tigre, 3500 a.C.
Fonte: Mundkur (1983, p.39) Fonte: Mundkur (1983, p.86)

Segundo O dicionário dos símbolos de Chevalier e Gheerbrant (1986, p.791-792) trata-se de um


signo que encerra ao mesmo tempo as idéias de movimento, continuidade, auto-fecundação e
consciência do perpétuo retorno. A forma circular da imagem amplia as possibilidades de
interpretação, a união dos mundos terreno e celeste, representados respectivamente pela
serpente e pelo círculo, porquanto a expressão de princípios opostos. Partindo dessa breve
descrição temos na Ouroboros uma fantasia, um mito que evoca aspectos culturais, biológicos e
psicolólgicos. Na associação entre esses aspectos Neumann (1968, p.209) empresta da biologia a
idéia de centroversão8, “a tendência inata da totalidade a estabelecer a unidade das suas partes e
de coordenar as suas diferenças em sistemas unificados”.

Expostos alguns aspectos simbólicos da Ouroboros questionamos sobre a possível licença para
aproximá-la ao texto de Berman. Em um balanço de perdas e ganhos, temos que se por um lado o
símbolo facilita a compreensão, por outro, estetiza o argumento, em meio à fruição narcísica seu
potencial crítico perde parte de seu lastro. Lembramos que as restrições a Tudo que é sólido
desmancha no ar apegam-se em parte, segundo Ridenti (1998), à “tênue fronteira, às vezes difícil
de medir e estabelecer, entre a individualidade libertária e o individualismo narcisista”.

                                                            
8
  No campo da psicologia significa um movimento de equilíbrio que atua no amadurecimento do ego e na ampliação da
consciência. È um movimento que procura estabelecer harmonia entre a experiência da totalidade e o processo de
individualização. Segundo Neumann (1968), esse processo constitui-se por duas fases opostas que conduzem ao
mesmo fim, daí a constatação de um “ciclo urobórico”.
Essa chave interpretativa, à revelia do próprio Berman, poderia indicar que frente à inviabilidade
das esperanças revolucionárias, o melhor seria fruir a perene reposição das contradições da
modernidade, ao invés de encará-las e enfrentá-las. Cientes das possibilidades e dificuldades
aceitamos os riscos dessa empreitada e nos rendemos às afinidades entre mito e texto, evidentes
demais para desistirmos da exploração de possíveis paralelos. Pensamos que o próprio Berman
(1986, p.29) avaliza nosso atrevimento ao associar ao modernismo a figura da serpente: “Se a
serpente modernista pudesse ser expelida do éden moderno, espaço, tempo e cosmo poderiam
reordenar-se. Aí então, presume-se, uma idade de ouro tecnopastoral surgiria, e homens e
mulheres poderiam aninhar-se apaziguados, para todo o sempre9”.

Ainda explorando as afinidades que Berman (1986, p.37-102) estabelece entre figuras míticas,
seus destinos e a modernidade que ele deseja lançar luz temos em Fausto a figura do herói
moderno. Movido pelo desejo de desenvolvimento, ao satisfazer sua ambição o faz a um altíssimo
custo para o ser humano, a radical transformação de todo o mundo físico, moral e social em que
vive. “Este é o sentido da relação de Fausto com o diabo: os poderes humanos só podem se
desenvolver através daquilo que Marx chama de ‘os poderes ocultos’, negras e aterradoras
energias, que podem irromper com força tremenda, para além do controle humano”. Tanto Fausto
quanto o Frankenstein de Mary Shelley personificam os resultados horripilantes da expansão
racional do poderes humanos, a autonomização do moderno sistema social que torna o feiticeiro
obsoleto.

A burguesia de Marx se move dentro dessa trágica órbita. Ele situa o oculto em um amplo
contexto mundial e mostra como, através de um milhão de fábricas e usinas, bancos e
escritórios, os poderes sombrios operam em plena luz do dia e as forças sociais são impelidas
em direções ameaçadoras pelos insaciáveis imperativos de mercado, que nem o mais
poderoso burguês seria capaz de controlar. A visão de Marx traz o abismo para perto de casa
(BERMAN, 1986, p.98-99).

Ouroboros: modernização e urbanização

Essa interpretação é a própria personificação da Ouroboros, o aparente estado de ordem burguês


é na verdade um turbilhão em movimento incessante. Assim, tudo que a sociedade burguesa
constrói é construído para ser posto abaixo:

                                                            
9
Essa colocação de Berman tem o objetivo pontuar a crítica da década de 1960, que conjeturava ruas livres de
perturbação e uma cultura moderna confinada às salas de aula, às bibliotecas da universidade e aos museus de arte
moderna.
“Tudo o que é sólido” — das roupas sobre nossos corpos aos teares e fábricas que as tecem,
aos homens e mulheres que operam as máquinas, às casas e aos bairros onde vivem os
trabalhadores, às firmas e corporações que os exploram, às vilas e cidades, regiões inteiras e
até mesmo as nações que as envolvem — tudo isso é feito para ser desfeito amanhã,
despedaçado ou esfarrapado, pulverizado ou dissolvido, a fim de que possa ser reciclado ou
substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante, sempre adiante, talvez
para sempre, sob formas cada vez mais lucrativas (BERMAN, 1986, p.96).

Em sua investida pela trajetória da modernização Berman extrai sentido de cenas modernas
arquetípicas colhidas na literatura modernista dos séculos XIX e XX. Esses textos são amarrados
por um denominador comum, trata-se de episódios que são necessariamente urbanos. A cidade
tem papel decisivo nos dramas espirituais narrados, as contradições da moderna vida urbana
ressoam na vida interior do homem na rua. Nessa relação conflituosa entre sujeito e espaço
acontecem transformações. A modernidade cristaliza-se na alma para em seguida inquietar-se, e
como uma semente, brota impelida a gerar novas transformações. O sujeito modifica o espaço, o
espaço transforma o homem que transformado novamente atuará sobre o espaço.

Na prosa poética, porém não menos cortante, de Baudelaire os bulevares de Haussmann unem,
dividem e sangram ao expor a população pobre aos olhos burgueses faustosos dos cafés. É na
rua, no encontro com o outro, que as feridas modernas expostas aguardam uma cicatrização
incerta.

As transformações físicas e sociais que haviam tirado os pobres do alcance da visão, agora os
trazem de volta diretamente à vista de cada um. Pondo abaixo as velhas e miseráveis
habitações medievais, Haussmann, de maneira involuntária, rompeu a crosta do mundo até
então hermeticamente selado da tradicional pobreza urbana. Os bulevares, abrindo formidáveis
buracos nos bairros pobres, permitiram aos pobres caminhar através desses mesmos buracos,
afastando-se de suas vizinhas arruinadas, para descobrir, pela primeira vez em suas vidas,
como era o resto da cidade e como era a outra espécie de vida que aí existia. E, à medida que
vêem, eles também são vistos: visão e epifania fluem nos dois sentidos [...] A manifestação
das divisões de classe na cidade moderna implica divisões interiores no indivíduo moderno
(BERMAN, 1986, p.147-148).

A intensidade da narrativa leva-nos a questionar:

O que é de fato essa modernidade? A que mundo ela pertence?

Qual o seu papel nos lugares onde a modernização estava estagnada?


Berman (1986, p.168-214) mostra-nos que sob a perspectiva de Marx trata-se de uma
“propriedade comum da humanidade”. Longe de Paris, em São Petersburgo do século XIX os
conflitos também sagram, contudo, os significados dessa modernidade foram lá mais complexos,
paradoxais e indefinidos. Sobre estes, debruçar-se-á toda uma geração de escritores russos,
entre tantos, Puchkin, Gogol, Dostoievski, Chernyshevski. Seu amalgama é o homem na rua,
mesmo que esta sistematicamente o expulse, em suas tintas marca-se em definitivo as
contradições do espaço público sem vida pública. Mas o ciclo de transformações é inequívoco. Na
década de 1830 a cidade-fantasma moderna e arquetípica encontra vida no Projeto Nevski10, a
rua radial das vitrinas transforma o espaço urbano real num mágico cenário de sonhos. O
significado que emerge de todas as histórias é que um certo egoísmo é necessário, ninguém pode
participar da vida pública enganosa e distorcida, porém autêntica, da Nevski. A partir de 1860, a
prosa transforma-se novamente, tanto em Dostoievski, O homem do subterrâneo, quanto em
Chernyshevski, O homem novo, para além dos seus conflitos morais e metafísicos subsiste
objetivos comuns. A rua torna-se o local onde se luta por direitos, a Nevski das vitrinas fere e
simultaneamente oferece a possibilidade de cicatrização, quando os cidadãos aprendem a afirmar
suas próprias abstrações e intenções.

Este é o corte que Berman (1986) deseja enfatizar entre os séculos XIX e XX. A massa urbana a
que Baudelaire pertence sabe organizar-se e mobilizar-se na luta por seus direitos. Os russos que
não têm a mesma tradição precisam inventá-la ex-nihilo. Mas a luta existe, esta umbilicalmente
entranhada em ambas as tradições culturais constituídas na modernidade. O século XX segundo
o autor nova-iorquino é parcial e contraditório. Parcial porque inversamente à produção cultural
oitocentista que admirou e lutou contra as forças modernizadoras, o século XX, ou celebra
acrítico, ou entrega-se definitivamente ao abismo das energias avassaladoras da Ouroboros. A
grande contradição está nas ruas, o locus, por excelência, de embate com o outro. A figura que
personifica essa ambigüidade é Le Corbusier que lamenta a rua perdida da infância para em
seguida destruí-la por completo. O pedestre errante de Baudelaire ganha novos poderes e
transforma-se no homem do carro. A rodovia e as pistas de velocidade são os instrumentos de
ligação objetiva e a circulação fortuita que trouxe coesão espacial à cidade do século XIX começa

                                                            
10
O Projeto Nevski foi, de muitas formas, um espaço urbano caracteristicamente moderno. Em primeiro lugar, a retidão,
a largura, o comprimento e a boa pavimentação fizeram dele o meio ideal para a locomoção de pessoas e coisas, uma
artéria perfeita para os modos emergentes de tráfego rápido e pesado. Como os bulevares que Haussmann abriu por
toda Paris na década de 1860, ele serviu como ponto de convergência de forças humanas e material recentemente
acumulado: macadame e asfalto, luz a gás e luz elétrica, a ferrovia, bondes elétricos e automóveis, cinema e
demonstração de massa. Mas, porque foi tão bem planejada e projetada, a Nevski entrou em ação uma geração antes
de suas correlatas parisienses e funcionou bem mais suavemente, sem devastar vidas ou as vizinhanças antigas. Em
segundo lugar, a Nevski serviu como vitrina das maravilhas da nova economia de consumo que a moderna produção
em massa começava por tornar acessíveis: mobília e prataria, tecidos e vestuário, botas e livros, tudo era
agradavelmente exibido pela multidão de lojas da rua. E, ao lado das mercadorias estrangeiras — mobília e modas
francesas, tecidos e selas ingleses, louça e relógios alemães —, exibiam-se estilos, homens e mulheres estrangeiros,
toda a fascinação proibida do mundo exterior (BERMAN, 1986, p.186).  
a perder significado. No Bronx da infância de Berman, o Haussmann novecentista encarnado na
figura de Robert Moses sangra a cidade na construção da Via Expressa Cross-Bronx.

Com demasiada freqüência, o preço da modernidade crescente e em constante avanço é a


destruição não apenas das instituições e ambientes “tradicionais” e “pré-modernos”, mas
também — e aqui está a verdadeira tragédia — de tudo o que há de mais vital e belo no próprio
mundo moderno. Aqui no Bronx, graças a Robert Moses, a modernidade do bulevar urbano era
condenada como obsoleta e feita em pedaços pela modernidade da rodovia interestadual. Sic
transit! Ser moderno revelava-se muito mais problemático, e mais arriscado, do que eu jamais
pensara (BERMAN, 1986, p.279).

Enquanto a cidade deixa de ser mero teatro para converter-se em produção, espetáculo
multimídia cuja audiência é o mundo inteiro, as pessoas enfeitiçadas não se dão contam que
podem estar no caminho das britadeiras, das cavadeiras mecânicas e dos bate-estacas. Aqui a
Ouroboros parece transcender seus sentidos para transformar-se no devorador Moloch de Allen
Ginsberg11.

Que esfinge de cimento e alumínio abriu seus crânios e devorou seus cérebros e imaginação?
Moloch prisão incompreensível! Moloch cárcere desumano de ossos cruzados e congresso de
mágoas! Moloch cujas construções são sentenças! (...)
Moloch cujos olhos são milhares de janelas cegas! Moloch cujos arranha-céus erguem-se nas
ruas como Jeovás infinitos! Moloch cujas fábricas sonham e se lamentam na névoa! Moloch
cujas chaminés e antenas coroam as cidades! (...)
Moloch! Moloch! Apartamentos de robôs! subúrbios invisíveis! tesouros de esqueletos! cegas
capitais! indústrias demoníacas! nações espectrais! manicômios invencíveis! líderes de granito!
Eles são esmagados ao alçar Moloch ao Paraíso! Calçamentos, árvores, rádios, toneladas!
içando a cidade ao Paraíso que existe e está em toda parte sobre nós! (...)
Moloch que cedo entrou em minh’alma! Moloch no qual sou uma consciência sem corpo!
Moloch que me aterrorizou, tirando-me de meu êxtase natural! Moloch que eu abandono!
Reviver em Moloch!
Luz que emana do céu! (BERMAN, 1986, p.293-294).

Queremos aqui cooptar a metáfora do Moloch para nossa argumentação, neste sentido,
pensamos que é importante atentar para as transformações em sua representação, essa
divindade semita associada ao câmbio das formas de produção que no início do século XX
assombravam as relações de trabalho é apresentada por Fritz Lang no filme Metropoles como um
devorador de homens. Avançando pelo século XX a simbologia ganha outra dimensão, o Moloch
de Ginsberg ilustrado por Lynd Kendal Ward é o devorador da cidade, seus habitantes são
tragados pelo fluxo, o apetite desse deus do fogo é colocado, assim, numa dimensão além.
                                                            
11
Poema Uivo publicado em 1956. Ginsberg busca na mítica semita o Moloch, um espírito dionisíaco que demanda
sacrifícios, uma metáfora para o capitalismo e para a civilização industrial.
Moloch de Frtiz Lang, Metropolis, 1927
Fonte: http://cultuar.blogspot.com/2008_12_01_archive.html

Moloch de Ginsberg
Publicação de 1978 pela Penmean Press acompanha
xilogravura do ilustrador Lynd Kendal Ward
Fonte: http://michaelmccurdy.com/moloch.htm

Nesta lógica a cidade, mais precisamente concretizada pelos elementos da narrativa de Berman –
a rua, a praça, o bulevar, o café, o monumento, o palácio de cristal, a rodovia, os edifícios
envidraçados – enfatiza o que entendemos como seu argumento crucial, se o espaço se dissolve
tudo o mais está em risco. Ou ainda, se o que temos como sólido se esvai, é alerta de que outros
aspectos menos palpáveis do cotidiano estão, há muito, corroídos, talvez aniquilados.
O pathos de todos os monumentos burgueses é que sua força e solidez material na verdade
não contam para nada e carecem de qualquer peso em si; é que eles se desmantelam como
frágeis caniços, sacrificados pelas próprias forças do capitalismo que celebram. Ainda as mais
belas e impressionantes construções burguesas e suas obras públicas são descartáveis,
capitalizadas para rápida depreciação e planejadas para se tornarem obsoletas; assim, estão
mais próximas, em sua função social, de tendas e acampamentos que das “pirâmides egípcias,
dos aquedutos romanos, das catedrais góticas (BERMAN, 1986, p.97).

Desde o horror de Engels em A situação da classe operária na Inglaterra até a “destruição


criativa” que Harvey (1992, p.25-28) resgata em Nietzsche para recriá-la sob a perspectiva da
urbanização, os mecanismos ganham escala e aperfeiçoam suas formas de operação. Se a
especulação imobiliária oitocentista erigiu casas operárias destinadas a tornarem-se obsoletas em
40 anos, se a obsolescência das construções burguesas não seguiu caminho diferente, a
destruição de nossa herança arquitetônica não é surpresa, ao contrário, surpreende o fato de que
alguma coisa chegou a ser preservada. Mesmo sobre o saldo de edifícios e áreas urbanas
resguardadas ou “revitalizadas”, independentemente do sistema econômico, é necessário
desconfiar, questionar a que valores tradicionais, a que lealdades interessavam a conservação da
substância do passado (BERMAN, 1986, p.98).

Seguindo de perto as fontes de Berman, encontramos novamente em Harvey (1992, p.26) os


rastros dessa força mística autoconsumidora:

A essência eterna e imutável da humanidade encontrava sua representação adequada na


figura mítica do Dionísio: Ser a um só tempo “destrutivamente criativo” (isto é, formar o mundo
temporal da individualização e do vir-a-ser, um processo destruidor da unidade) e
“criativamente destrutivo” (isto é, devorar o universo ilusório da individualização um processo
que envolve a reação da unidade). O único caminho para afirmação do eu era agir, manifestar
a vontade, no turbilhão da criação destrutiva e da destruição criativa, mesmo que o desfecho
esteja fadado à tragédia.

Definitivamente a “destruição-criativa” é essencial para compreensão da modernidade associada


ao espaço físico, trata-se do meio pelo qual o projeto moderno tornou-se exeqüível. Esse mesmo
processo, segundo Harvey (2008, p.37) faz com que a urbanização, em seu papel decisivo de
absorver os excedentes de capital, retire de um número crescente de pessoas qualquer direito à
cidade. O mérito de Berman foi associar ao Manifesto às experiências que brotam da vida
cotidiana, da urbanidade moderna que tenciona o seu lugar, que está na Inglaterra, em Paris, em
São Petersburgo, em Nova Iorque. Está lá e ao mesmo tempo aqui, no passado e hoje, do outro
lado do mundo, por todo o mundo. As ações modernizadoras no Brasil dos 1900 derrubaram
cidades e construíram outras, alargaram e retificaram ruas, criam bulevares. Construíram praças,
espaços públicos e fabricaram, aos moldes europeus vigentes, formas de vida pública para ocupá-
los. Para dar sentido a estes espaços, construíram identidades e recontaram a história. Contudo
as cidades modernizadas tornaram-se rapidamente obsoletas. A consciência do
subdesenvolvimento alimentou um desejo voraz pelo novo, potencializando aqui o efeito
destruidor-criador da Ouroboros. Segundo Berman (1986, p.169) a angústia do atraso e do
subdesenvolvimento, que transformou a Rússia do século XIX em arquétipo do emergente
Terceiro Mundo do século XX, viabilizou uma produção cultural combativa nos países latino-
americanos. Todavia, o reflexo espacial dessa produção cultural é paradoxal, o caso brasileiro
baliza todo um século enfeitiçado pela reprodução de modelos.

Em busca de respostas

Não seria de todo equivocado utilizar a metáfora da Ouroboros para intuir respostas possíveis. A
própria idéia de centroversão utilizada por Neumann (1968, p.218-221) parece indicar caminhos
plausíveis quando a coloca como fator de equilíbrio entre ego, consciência e força inconsciente.
Além de equilibrar, sua tarefa teria um caráter produtivo, faria parte da natureza do organismo não
apenas preservar a totalidade, mas também desenvolver-se, amadurecer fazendo o mundo
experimentado e experimentável. A centroversão teria, dessa forma, um duplo papel, primeiro
como processo formador do ego e conseqüentemente protetor do indivíduo e, segundo como
processo integrador, entre corpo e psique, entre indivíduo e seu meio social. Seguindo as
considerações de Neumann (1968, p.308-309), a revolução global que se abateu sobre o homem
moderno e em cujo centro borrascoso nos encontramos, levou à desorientação do indivíduo e do
todo, cuja repercussão experimentamos diariamente na vida coletiva e individual. Nesse sentido
opõe-se ao homem de grupo uma espécie de seu subtipo o “homem de massa”. O primeiro
amadurecido pela centroversão possui inteireza psíquica, na qual agem poderosas tendências
que seguem a direção da consciência, da individualização, da formação e desdobramento do
espírito que se concretizam em fortes energias construtivas, sintéticas e criativas manifestas na
sua cultura, na sua sociedade e na arte. Enquanto o homem de massa, emaranhado no
inconsciente do homem moderno é uma estrutura psíquica parcial que se opõe ao
desenvolvimento da consciência e ao mundo da cultura. O homem de massa é irracional,
emocional, anti-individual e destrutivo. O ego do homem moderno sucumbe então a um processo
reacionário de massificação e é vitimado pela sombra coletiva, pelo homem de massa que esta
dentro dele. Para o indivíduo a tarefa do herói12, da qual deveria ser o sucessor no
desenvolvimento da humanidade, torna-se demasiado difícil, os heróis reais capazes de tomar a si
a batalha por novos valores são, como é natural, raros.

                                                            
12
Neumann (1968, p.107-120) trabalha a figura do herói e suas trajetórias de emancipação possíveis em todo um
capítulo do livro, contudo, desejamos enfatizar aqui uma idéia comum. Herói é aquele que vence o medo, aquele que se
atreve a dar um passo à frente, ao contrário do homem comum que se apega ao conservadorismo do sistema existente.
Ainda que a centroversão não traga efetivamente nenhuma resposta imediata ela nos fornece um
elemento importante de ligação como o texto de Berman, a figura do herói. Ao evocar o
modernismo como instrumento da cultura que assimila e simultaneamente reage à modernização
massificadora o autor nova-iorquino faz alusões recorrentes à figura do herói. Tais heróis são
menos Fausto, Constantin Guy, Makar Devushkin, Lopukhov e Stephen Dedalus e mais, Goethe,
Baudelaire, Dostoievski, Chernyshevski, James Joyce e acima destes numa macro-percepção de
todo o argumento do livro o próprio Marx. Homens capazes de individualmente enfrentarem o
dragão, a serpente, a Ouroboros, e lançarem a esperança de outro mundo possível.

Os fomentadores e adeptos do mundo da via expressa o apresentavam como o único mundo


moderno possível: opor-se a eles e a suas obras era opor-se à própria modernidade, fugir à
história e ao progresso, tornar-se um ludita, um escapista, um ser temeroso da vida e da
aventura, da transformação e do crescimento. Essa estratégia pareceu eficaz porque, na
realidade, a vasta maioria dos homens e das mulheres modernos não pretende resistir à
modernidade: eles sentem a sua excitação e crêem na sua promessa, mesmo quando se vêem
em seu caminho. Antes que os Molochs do mundo moderno possam enfrentar a resistência
efetiva, será necessário desenvolver um vocabulário modernista de oposição (BERMAN, 1986,
p.296).

Mas resta ainda a pergunta urobórica, aquela que liga o fim ao começo e põe o começo no fim:

Seria possível, ainda, um herói?

Se nos diversos campos da produção cultural as portas para o embate e para o confronto não
estão de todo fechadas, haveria espaço para o pensamento heróico no planejamento urbano, área
como vimos muito mais sensível ao poder de circulação do capital?

Esta não é uma pergunta para Berman, mesmo assim encontramos nele uma direção, a imagem
da dessacralização em Marx e Baudelaire como ponto nodal da modernidade. No Manifesto, o
drama da dessacralização é terrível e trágico, trata-se de uma angústia espiritual. Já em
Baudelaire o poeta moderno perde o halo no lodaçal, diz respeito ao declínio da crença na
santidade da arte, a queda do deus cultuado por artistas e homens comuns. O poema que versa
sobre “A Perda do halo” é irônico e aponta para um século em que os heróis serão caracterizados
como anti-heróis, cujos momentos de verdade mais solenes não serão descritos, mas
experimentados como shows circenses, como pastelão. O que nos interessa de maneira particular
é que não se trata de um ponto apenas espiritual, mas físico, um determinado ponto na paisagem
da cidade moderna.

Por vários motivos, o modernismo das cenas modernas primordiais de Baudelaire é


notavelmente fresco e contemporâneo. Por outro lado, sua rua e seu espírito parecem
constrangedoramente arcaicos. Não porque nosso tempo tenha resolvido os conflitos que
conferem vida e energia a Spleen de Paris — conflitos ideológicos e de classe, conflitos
emocionais entre pessoas íntimas, conflitos entre o indivíduo e as forças sociais, conflitos
espirituais dentro do indivíduo —, mas, antes, porque nosso tempo encontrou novos meios de
mascarar e mistificar conflitos. Uma das grandes diferenças entre os séculos XIX e XX é que o
nosso criou toda uma rede de novos halos para substituir aqueles de que o século de
Baudelaire e Marx se desfez. Em nenhuma parte esse desenvolvimento é mais claro do que no
âmbito do espaço urbano. Se tivermos em mente os mais recentes complexos espaciais
urbanos que pudermos imaginar — todos aqueles que foram implementados, digamos, desde o
fim da Segunda Grande Guerra, incluindo os novos bairros urbanos e as novas cidades —,
será difícil admitir que os encontros primordiais de Baudelaire possam ocorrer aí. Isso não
acontece por acaso: de fato, ao longo de quase todo o século, espaços urbanos têm sido
sistematicamente planejados e organizados para assegurar-nos de que confrontos e colisões
serão evitados. O signo distintivo do urbanismo oitocentista foi o bulevar, uma maneira de
reunir explosivas forças materiais e humanas; o traço marcante do urbanismo do século XX
tem sido a rodovia, uma forma de manter separadas essas mesmas forças. Deparamo-nos aqui
com uma estranha dialética, em que um tipo de modernismo ao mesmo tempo encontra
energia e se exaure a si mesmo, tentando aniquilar o outro, tudo em nome do modernismo
(BERMAN, 1986, p.158).

Todavia a perda do halo será sempre uma saída complexa, como vimos acima o século XX criou
toda uma rede de novos halos para substituir os do século XIX que ainda resistem e de alguma
forma persistem. Assim, para além dos halos religiosos, artísticos, científicos e morais temos
também os halos do espetáculo e da espetacularização, do desenvolvimento tecnológico, da fama
e do sucesso.

Outra resposta recorrente, Berman (1984) em Os sinais da rua: uma resposta a Perry Anderson,
seguindo a opção conceitual e metodológica que enxergamos em Tudo que é sólido desmancha
no ar defende uma leitura espacial da modernidade e reafirma a possibilidade de existir, cessão, e
resistir, atuação, dentro de contextos sociais, ambientes e espaços públicos destinados aos
homens do mundo moderno. As ruas seriam, assim, uma chave de leitura a descortinar
esperanças, o local onde encontrar significados, liberdade, beleza e solidariedade.

Na mesma linha de pensamento, Berman (1984, p.123, tradução nossa) não se rende ao
pessimismo:

Penso que seria mais produtivo, em lugar questionar se a modernidade ainda poderia gerar obras-
primas e revoluções, deveríamos perguntar se ela ainda pode gerar sentido e espaços de
significado, liberdade, dignidade, beleza, prazer e solidariedade. Só então poderíamos confrontar
a realidade confusa em que vivem os homens, mulheres e crianças modernos. O ar talvez não
seja tão puro, mas a atmosfera seria muito mais saudável [...] Quem sabe... é impossível saber
antecipadamente... podemos até encontrar algumas obras-primas ou revoluções pelo caminho.

Contudo, estas são as saídas de Berman. Resta ainda buscar outras respostas possíveis, na
sociedade, nas condescendências e nas resistências, nos acordos e nos conflitos. E por que não?
No espaço urbano, na arquitetura e no planejar e viabilizar um viver melhor nas cidades
contemporâneas. Qual seria, então, uma resposta possível para arquitetos e urbanistas?

REFERÊNCIAS

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1984. In http://www.newleftreview.org/?issue=140 (acesso em 15/02/2010).

BERMAN, M. All that is solid melts into air: the experience of modernity. New York: Simon
and Schuster, 1983.

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p.114-123, March-April 1984. In http://www.newleftreview.org/?issue=140 (acesso em
15/02/2010).

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras, 1986.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Diccionario de los símbolos. Barcelona: Herder, 1986.

HALL, J.A. Sonhos: símbolos religiosos do inconsciente. São Paulo: Loyola, 1993.

HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

HARVEY, D. The right to the city. In New Left Review 53, p.23-40, Sep-Oct 2008.

MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. 1848. In:


http://www.culturabrasil.pro.br/manifestocomunista.htm (acesso em 15/02/2010).

MUNDKUR, B. The cult of the serpent: an interdisciplinary survey of its manifestations and
origins. Albany: State University of New York Press, 1983.

NEUMANN, E. História da origem da consciência. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 1968.

RIDENTI, M. S. O sucesso no Brasil da leitura do Manifesto Comunista feita por Marshall


Berman. In REIS FILHO, D. A. (org.). O manifesto comunista 150 anos depois. Rio de Janeiro/
São Paulo: Contraponto/Perseu Abramo, 1998, p.187-207.

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