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CAPITULO I
- Tem mesmo que ser colocada à venda? - Harriet Brookes perguntou de novo
ao contador do pai.
- Esse foi o conselho que dei a seu pai. Como pode ver, a firma vai muito
mal. É melhor vender para alguém que possa recuperá-la.
Seu pai nunca tinha se preocupado com dinheiro ou com qualquer outra
coisa. Na verdade, há dois anos, vendera a casa que tinham a alguns
quilómetros da fábrica. Quando ia para lá, hospedava-se em um hotel
próximo, e pronto. Sempre preferiu seu apartamento em Londres, e, depois
que Harriet se tornou independente e alugou o próprio apartamento, ele
decidiu se transferir definitivamente.
O pai costumava sacar um salário generoso e lhe dava uma mesada razoável;
jamais falava de problemas. Ela não tinha ideia de que a firma da família
ia tão mal, até meia hora atrás, quando o sr. Snelson trouxera os livros
da contabilidade e lhe explicara os números.
- Sinto muito, sinto muitíssimo, mesmo - disse o contador, parecendo
arrependido, como se fosse o responsável por aquela situação. Não era,
mas também não queria colocar a culpa em Henry Brookes.
- Não tivemos sorte; em negócios, as coisas evoluem muito rápido.
- Talvez ele devesse dizer também que Henry não levara o trabalho muito a
sério, que não tinha qualquer talento para negócios.
Henry talvez tivesse que colocar ele mesmo a fábrica à venda, em no
máximo seis meses, se não morresse de um ataque cardíaco a bordo de um
iate, quando cruzava o Mediterrâneo. Se ainda fosse vivo, não ficaria mal
de vida: seu atual "caso" era uma viúva muito rica, proprietária de poços
de petróleo no Texas. Além disso, não seria difícil arranjar um bom
emprego, com alguma das boas amizades que possuía. Para Harriet, também
não haveria maiores problemas. Bonita como era, provavelmente casaria com
algum milionário. Já tinha ficado noiva duas vezes. A notícia de que não
herdaria um próspero negócio do pai não a prejudicaria.
De qualquer maneira, Cedric Snelson teve o cuidado de lhe contar as
novidades com tato.
- Não sabia de nada. . . Papai não falava de negócios e eu nunca fui
muito interessada, mesmo.
A verdade é que o pai também nunca tinha sido. Quando ele herdou a
fábrica, ela prosperava como nunca. E ele se limitou a deixar as coisas
como estavam. Continuou sacando seu salário e frequentando gabinetes, mas
nunca foi empresário de verdade. Era muito simpático, dessas pessoas de
quem seria impossível alguém não gostar, elegante e charmoso. Formava um
par bem atraente com a filha. Harriet era ainda mais bonita do que a mãe
tinha sido.
Já fazia algum tempo que ela não aparecia por aqueles lados; a última vez
foi quando Henry vendeu a casa. Desta vez, sua vinda foi muito triste: na
véspera, o pai tinha sido sepultado no jazigo da família e, desde então,
estava hospedada na casa de Snelson.
Era modelo profissional. A esposa de Cedric Snelson sempre mostrava ao
marido as revistas de moda em que ela aparecia, e Henry invariavelmente
lhes contava quando estava para aparecer em alguma revista ou na
televisão. Cedric tinha orgulho do patrão e de sua filha. Depois que
Harriet deixou o colégio interno, pai e filha passaram muito tempo juntos
e frequentavam a intensa vida social da noite londrina.
Muita gente foi ao enterro. A pequena igreja ficou lotada, todos chocados
com a morte prematura de Henry Brookes. Harriet ficou de pé entre os
Snelson, vestida com um casaco de veludo preto abotoado
até o pescoço e um chapéu de abas largas, também preto. Não usava
maquilagem, mas seu rosto, sombreado pelo chapéu, estava impecável, e
seus cabelos brilhavam sobre
os ombros. Os que não a viam há algum tempo não conseguiam tirar os olhos
de cima dela, e os que a conheciam bem acharam Harriet mais bonita do que
nunca.
Quase todas as mulheres a invejavam, mas naquela tarde todos pareciam ter
pena dela, entendendo sua dor.
- Sei o quanto vocês eram ligados... - Foi algo que ela escutou muitas
vezes, abaixando a cabeça e fazendo força para evitar as lágrimas.
Deveria voltar para Londres ainda naquela tarde, com alguns amigos que
tinham vindo para o enterro, mas foi persuadida pelos Snelson a ficar um
pouco mais. Cedric achou que ela devia tomar conhecimento da situação
financeira da firma antes de partir; além do que, uns dias no campo lhe
fariam bem.
Harriet só chorou na hora em que soube da morte do pai. Chorou por quase
uma hora, mas depois se acalmou, fazendo tudo o que tinha que fazer antes
do último adeus. Durante o enterro, conseguiu se controlar a muito custo.
Foi para a cama cedo, e a mulher de Cedric lhe levou uma xícara com leite
quente. Ida Snelson tinha passado todo o dia chorando e assoando o nariz.
Gostava bastante de Henry Brookes, mas tinha ressentimentos em relação à
vida folgada que levava. Achava que ele não devia estar naquele iate, e
sim em seu escritório, tentando resolver a situação da empresa. Ida tinha
idade suficiente para ser mãe de Harriet, e lembrava perfeitamente da
garota gorda que andava de bicicleta o dia inteiro. Cuidou muitas vezes
de Harriet depois que sua mãe morreu, porém, desde então, a menina
gorducha se transformara em uma mulher atraente e sofisticada, o que
tornava a aproximação muito mais difícil.
Ida permaneceu de pé e embaraçada, ao lado da cama.
- Tente dormir um pouco - aconselhou, desejando ter dito algo mais
reconfortante. - O tempo é o melhor remédio para certas dores.
Logo que Ida saiu e fechou a porta, Harriet se levantou, pegou o leite
que estava na mesinha-de-cabeceira e o jogou fora. Odiava leite quente
desde o dia em que a obrigaram a toma-lo, quando ainda era uma criança de
quem ninguém gostava.
A sra. Snelson estava errada a respeito de o tempo ser o melhor
remédio. Havia coisas que ainda doíam, mesmo depois de tantos anos. As
lembranças estavam à flor da pele, naquela noite, e não eram boas.
Harriet temia dormir porque
tinha quase certeza de que ia acabar tendo pesadelos. E, neles, seria
criança novamente.
Sua infância tinha sido difícil. A mãe se envergonhava dela, de sua falta
de jeito, de seus cabelos espetados e sua expressão teimosa.
- Você não pode fazer nada com ela? - o pai perguntava.
- Fazer o quê? Como quer que eu transforme chumbo grosso em puro ouro?
Entre eles, brigavam muito. Tanto um como outro viviam tendo casos fora
do casamento e nem se preocupavam em esconder isso. O pior era quando
falavam em separação, pois ninguém queria ficar com a filha.
- A porta está aberta, você pode sair na hora que quiser! E pode levar
Harriet junto! - lembrava-se de ter ouvido a mãe gritar mil vezes.
Quando fez cinco anos, foi mandada para o colégio interno. Não era uma
garota popular. As professoras a consideravam inteligente, bastante
inteligente, mas solitária. Tranquila a maior parte do tempo, só se
enervava quando alguém se punha em seu caminho. Aí, seus olhos brilhavam
de ódio. Mas, no geral, era uma criança amável.
A mãe morreu quando ela passou para o ginásio. Tinha se internado para
fazer o que parecia ser uma operação sem gravidade, mas o caso era mais
complicado do que parecia e acabou sendo fatal. Nem saiu do hospital.
Depois do enterro, seu pai a mandou de volta para a escola. A tristeza
dele era sincera e, a despeito de ser um mulherengo, amava de verdade a
linda esposa, à sua maneira, e não via nada dela na filha gorda e
desajeitada. Estava muito ocupado com os próprios sentimentos para se
preocupar com Harriet. Quando ela começou a ser convidada para passar as
férias na casa das colegas, foi um alívio para ele.
Durante o ano, Henry raramente pensava nela. De vez em quando se
preocupava em saber o que a filha faria quando completasse dezoito anos e
terminasse o curso colegial. E só Por não ver muito Harriet, ele não se
deu conta do quanto ela estava mudando. Começou a fazer mais amizades e,
toda vez que se olhava no espelho, percebia que uma
espécie de milagre acontecia. Suas pernas cresciam, ficando mais fortes e
esbeltas. Sua cintura afinavá
e os seios se tornavam firmes. Estava ficando alta e a gordura
adolescente ia sumindo aos poucos. Os olhos ficaram ainda mais brilhantes
e a boca revelou-se forte
e bonita. Sua pele era clara e lisa, e os cabelos, antes secos e sem
vida, tomaram jeito. Até a cor ficou mais forte e vibrante: um castanho-
escuro que caía muito
bem com seu tipo. Costumava usá-los presos para trás, mas um dia decidiu
que ficavam melhor soltos. Algumas professoras tentaram convencê-la a
voltar ao velho estilo, mas se recusou.
- Gosto assim. - E daí em diante tomou ainda mais cuidado com eles.
Lavava a cabeça três vezes por semana, escovava, fazia massagens de óleo.
-
Por volta dos quinze anos, Harriet passou a ser considerada a garota mais
bonita da escola. Não era popular, nunca chegou a ser, mas tinha pelo
menos se tornado acessível e não sofria mais os antigos acessos de raiva.
Sentia-se cheia de energia e vitalidade e não se importava com o que os
outros poderiam dizer. Durante os primeiros anos de colégio, levou uma
vida solitária, mas, nos últimos dois anos, estava cheia de admiradoras
entre as colegas.
Era muito melhor passar as férias escolares na casa de amigas do que com
os pais. Contudo, nenhuma delas jamais a convidara, quando era uma garota
tímida e desajeitada. Sua amizade era superficial; Harriet não confiava
nelas de verdade, nunca lhes contaria um segredo importante. O que
aconteceu a ela foi como ganhar na loteria. Quem tinha dinheiro podia
fazer o que quisesse, e o mesmo acontecia com a beleza. Não era por ela
que as pessoas se interessavam, mas por aquela aparência deslumbrante.
Sempre se lembraria de seus pais gritando um para o outro: ".. .e pode
levar Harriet junto!"
Agora, não tinha mais nem pai nem mãe, e as pessoas que no enterro lhe
disseram "sei o quanto eram ligados" não sabiam de nada. Harriet e o pai
nunca tinham sido íntimos de verdade. Ela o amava, apesar de tudo, mas a
relação deles era muito menos do que uma filha precisava de um pai.
Num fim de ano, tinha sido praticamente expulsa do colégio. Não chegou a
acontecer nenhum escândalo, mas, antes de voltar para casa naquele Natal,
recebeu um ultimato da diretora, a sra. Lupton. Devia pensar seriamente
sobre o futuro, porque sua conduta não estava sendo adequada para uma
aluna do São Bartolomeu. .
Engraçado. Tudo porque havia posado para algumas fotos em uma
revista de moda para adolescentes. Nenhuma garota da escola perderia uma
chance dessas. Numa tarde de domingo, tomava sorvete numa lanchonete com
sua colega Paula, quando um sujeito se aproximou, se apresentando como
fotógrafo, e perguntou se já posara alguma vez. Disse que sua revista
precisava de um rosto novo para a campanha de lançamento de uma coleção
de roupas para jovens. Paula deu uma olhada suspeita na carteira
profissional, mas Harriet disse:
- Vai ser divertido. . .
Antes de ele ir embora, Paula ainda cochichou:
- E o que vai fazer, se eles quiserem. . . bem. . . você sabe: se
quiserem que tire a roupa?
- Não há problema, tenho corpo para isso - respondeu, com um sorriso.
Não tinha a menor intenção de ficar nua, mas foi engraçado ver a cara de
Paula. Provavelmente, iria correndo contar tudo às outras, na escola. E
foi o que realmente fez. Toda a escola esperou o dia do lançamento da
revista. Quando ela finalmente apareceu nas bancas, Harriet foi chamada à
sala da diretora. As fotos estavam excelentes, ela era muito fotogênica.
Aparecia vestida dos pés à cabeça, com roupas jovens que toda adolescente
compraria dali a pouco tempo. Contudo, alguma coisa não agradou à sra.
Lupton, que fechou a revista em sua mesa e disse:
- Espero que esse tipo de atitude não se repita.
O editor da revista tinha convidado Harriet para posar mais algumas
vezes, e ela pretendia aceitar. Achara a experiência muito interessante,
se divertiu no meio de todo aquele equipamento, tanta roupa bonita, gente
exótica do. mundo da moda, fotógrafos bonitos. Além do que, havia sido
bem paga.
- Eu estava pensando seriamente em seguir carreira, sra. Lupton. Ou isto,
ou casar com um milionário.
- Não seja impertinente! Preste atenção a esta advertência: se isso se
repetir, você terá que deixar o colégio. vou mandar uma carta a seu pai,
pondo-o a par dos
acontecimentos.
Duas semanas depois, as aulas se interromperam para as festas de Natal e,
dessa vez, ela resolveu ir para a casa de seu pai. Tinha sido convidada
para viajar com outras garotas, mas decidiu ver o pai e conversar a
respeito das fotos. Ia lhe pedir permissão para deixar a escola, já que
não pretendia mesmo seguir carreira universitária.
Fazia mais de um ano que não via o pai. Sabia que ele levava uma vida
social muito agitada, tanto que nunca lhe ocorria passar um tempo com a
filha. Quando Harriet
chegou, não havia ninguém em casa. O apartamento era espaçoso e
confortável, de muito bom gosto. Mas não era um apartamento familiar,
aconchegante: nunca houvera muito espaço para ela ali. Seu quarto
continuava como antes. A casa não tinha mudado, seu pai não tinha mudado,
mas ela, oh, como mudara! Ao escutar o barulho do carro entrando na
garagem, desceu a escada e foi até a sala. Estava sentada em uma
poltrona, quando o pai entrou, recebendo-a jovialmente:
- Oi, minha querida! Pensei que já estivesse dormindo. . . Desculpe por
não estar em casa quando você chegou. Reunião de negócios, você me
entende... - Só então notou como Harriet havia crescido.
- Meu Deus, você está uma moça! E linda, hein?
Ela sorriu e foi direto ao assunto:
- O senhor recebeu a carta da sra. Lupton? - Agora era a melhor hora para
falar a respeito de deixar o colégio. Sempre que se reencontravam depois
de uma longa separação, ele era o pai mais fantástico do mundo.
- Sim, acho que sim - respondeu, indo até o bar e se servindo de uma dose
de uísque. - Ela me pediu para entrar em contato com a escola. Mas, como
tenho andado muito ocupado, até agora não pude nem mesmo telefonar. Qual
é o problema? Quais são seus planos para quando deixar a escola? Decidiu
ir mesmo para a universidade?
Ele não tinha nem se preocupado com a carta da diretora; pensava que a
sra. Lupton queria conversar sobre seu futuro académico.
- Acho que ela está querendo me expulsar - Harriet disse, sentindo um
gostinho de vitória na boca, ao ver a cara assustada do pai.
- O que você disse? Como é que pode, Harriet? Você sempre foi uma garota
quieta e educada. O que aconteceu para a diretora querer expulsá-la do
colégio?
- Eu tirei fotos para uma revista.
- Que tipo de revista?
- Já lhe mostro. - Foi correndo até o quarto e voltou. - Está aqui.
- Ah, graças a Deus!
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Que tipo de idiota ele pensava que ela era? Que tiraria fotos para
qualquer tipo de revista? Abriu numa página com uma enorme foto colorida
dela e o seguinte título: "New Wave: divertida, moderna, uma delícia de
moda".
- Esta é você? - ele perguntou, incrédulo.
- Não me reconhece?
- Mas... as fotos estão ótimas! - Era o primeiro elogio que ele lhe fazia
em toda sua vida.
- A sra. Lupton não acha. Me advertiu de que posar para revistas de moda
não era bem o que se esperava de uma aluna do São Bartolomeu. Para falar
a verdade, pai, eu também não estava muito interessada em continuar
estudando lá. Já que gostei da experiência, quero seguir a carreira de
modelo.
- Você ainda tem muito tempo para decidir o que fazer da vida. Mas, se
não quer mesmo continuar estudando, se não pretende entrar para uma
faculdade, não vejo por que não poderia abandonar a escola agora mesmo.
vou passar o Natal em Londres e você vai comigo. Precisamos comprar umas
roupas bonitas. . .
Daquele dia em diante, seu relacionamento com o pai mudou radicalmente.
Passou a ser a deslumbrante jovem que ele apresentava aos amigos como
"minha filha Harriet". Ele, que sempre tinha sido económico com ela,
comprou-lhe roupas caras e sofisticadas, sapatos, bolsas, tudo o que
quisesse. Todos a admiravam e ela conhecia o poder que tinha. com um
pouco de sorte, esse encanto podia durar toda a vida. Porém, em seus
pesadelos, ainda era a criança gorda e desajeitada, rejeitada pelo mundo.
Apesar de todos os defeitos do pai, porém, Harriet sabia com certeza que
ia sentir falta dele. Lembrou-se do encontro com Nigel Joliffe, no
enterro. Não via Nigel há cinco anos; foi no último verão antes de ir
para Londres se profissionalizar definitivamente como modelo.
Recordava-se de cada detalhe daquele verão: Henry não se cansava de levá-
la a festas, jantares, viagens. Todos os solteiros queriam namorá-la, e
até alguns casados também tentavam. Conheceu Nigel numa festa na casa
dele.
Nigel já tinha visto Harriet duas vezes e estava doido para se encontrar
com ela. Aproveitou que o pai era amigo de Henry e os convidou.
Harriet se lembrava de todos os detalhes, inclusive do vestido que usava
naquela noite.
Nigel era bem bonito e tinha vinte anos. Ele não a largou um segundo; nem
naquela noite nem no resto do verão. Harriet não queria, mas ele insistiu
para ficarem noivos antes que ela fosse para Londres. O que aconteceu foi
que, em Londres, ela se apaixonou por outro e acabou o noivado com Nigel
por carta. E nunca mais o viu, até aquela manhã, na capela do cemitério.
- Ainda mora em Tudor House, Nigel? - Harriet adorava a casa dele, uma
mansão em estilo elisabetano.
- Ainda. Você vai ficar por mais alguns dias?
- vou. - Lhe telefono, então. Está com os Snelson, não é?
- Estou. Telefone mesmo.
Por que será que ele ainda não casou?, pensou Harriet. Achou que ia ser
interessante rever Nigel e a enorme mansão.
De noite, sozinha - agora, definitivamente sozinha, porque Henry, mal ou
bem, tinha sido um apoio e um bom companheiro nos últimos anos -, ela
pensava mais uma vez nessa sua companheira de infância: a solidão. Estava
sempre cercada de pessoas, mulheres, homens, admiradores. Vivia recebendo
propostas e convites; mesmo assim, se sentia só. A única coisa que
precisava fazer, quando desejava alguma coisa, era sorrir, e logo algum
homem estava assinando um cheque, tomando providências, resolvendo
problemas.
Os homens se apaixonavam facilmente por ela, que, por mais que quisesse,
jamais conseguia se envolver. Depois de algum tempo, começava a perder o
interesse e logo encontrava milhões de defeitos no namorado, até que o
relacionamento ficava insuportável e terminava. Seu atual caso já tinha
atingido esse estágio. Quando voltasse para Londres, teria uma boa
desculpa para deixar de ver Anthony; a partir de agora, precisaria passar
bastante tempo ali, pois a fábrica era sua responsabilidade.
Adormecera fazendo planos, e foi um choque descobrir, no dia seguinte,
que a fábrica estava à beira da falência. Depois do almoço, a sra.
Snelson trouxe o café e então ela se sentou com o sr. Snelson para
verificar a papelada. Os livros de contabilidade não significavam muito
para Harriet, mas os gráficos das vendas, com suas linhas bem baixas,
eram claríssimos.
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- Eu não sabia. . . - disse ela. - Na verdade, jamais me interessei pelos
negócios de papai.
E agora era muito tarde para começar a se interessar. Se houvesse alguma
possibilidade, procuraria aprender e se lançaria aos negócios com todo
entusiasmo. Não apenas para ganhar dinheiro, mas também porque a vida que
estava levando tinha começado a não fazer sentido; adorava ter a
oportunidade de agarrar alguma coisa nova e que exigisse sacrifícios.
Acontece que fazia mais de dez anos que entrara pela última vez na
fábrica. Aquelas máquinas todas sempre foram um completo mistério para
ela. Não entendia nada de negócios. Se os técnicos dissessem que a firma
não tinha futuro, o jeito seria aceitar isso.
- Mas não há a mínima chance de levar o trabalho adiante? perguntou, com
alguma esperança.
- Nenhuma - disse Snelson. - Gostaria de estar anunciando a você que seu
pai deixou um próspero negócio. Como isto não aconteceu, pelo menos fico
feliz em saber que vai bem em sua profissão. Sempre a vemos em revistas e
na televisão.
Nem sempre, pensou Harriet. Ê preciso ter muita ambição para triunfar
nessa carreira. Ser modelo, para ela, era mais um hobby do que uma
profissão. Se quisesse realmente vencer, teria que trabalhar mais e mais
duro.
- Sou sócia de uma pequena galeria de arte também. - Sorriu.
- Não vou morrer de fome, garanto!
- Claro que não. Ninguém precisa se preocupar com você, Harriet. De
qualquer maneira, não ia tocar os negócios. . . ou ia?
- Se houvesse alguma possibilidade, eu com certeza tentaria respondeu,
surpreendendo-o. - Procuraria aprender o máximo e ver se tenho jeito para
ser uma mulher de negócios.
- Não seria uma boa ideia. Mesmo que descobrisse uma grande vocação,
ainda é inexperiente. Se tudoestivesse indo bem, eu mesmo a incentivaria;
mas, assim, não há a menor possibilidade de dar certo.
- Acha possível vender a fábrica? Quer dizer, se os negócios vão tão mal,
quem vai querer se arriscar?
- Já recebemos algumas propostas. - O sr. Snelson se animou.
- Uma, de uma firma holandesa, e a outra, de alguém daqui.
- Quem?
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- O sr. Gaul, Jotham Gaul.
- Oh. . . - Harriet se afundou na poltrona. - Ele!
- Você o conhece?
- Não muito bem.
Mas ela sabia muitas coisas sobre Jotham Gaul. Também, pudera... Era o
nome mais conhecido das redondezas, um homem de negócios importante, que
vivia inaugurando novas fábricas. Nos últimos cinco anos, tinha lido nos
jornais bastante a respeito dele. Também se encontraram algumas vezes.
Rapidamente, sempre por acaso, e todo encontro confirmava sua primeira
impressão de antipatia.
- A oferta do sr. Gaul é a melhor - o sr. Snelson informou.
- Quanto melhor?
- Há o problema da indenização. Somos responsáveis por mais de uma
centena de empregados. Alguns deles trabalham conosco há mais de vinte
anos. O que quer dizer
que terão direito a uma vultosa indenização, a não ser que possamos lhes
dar garantias. A companhia holandesa está interessada na fábrica, mas não
muito nos trabalhadores. Já Gaul concorda em manter o contrato com eles.
- Ah, Gaul não, Snelson!
- Posso perguntar por que não está querendo vender para ele? Afinal, tem
uma grande reputação no mundo dos negócios.
- Tenho certeza disso - Harriet disse, secamente. - E, se precisamos
vender, é óbvio que aceitaremos a melhor oferta. Contudo, gostaria de
pensar um pouco mais no assunto.
- É claro. Além disso, temos que levar em consideração também que essas
propostas foram feitas antes de a fábrica ser realmente colocada à venda.
Logo que a venda
se tornar oficial, poderemos receber outras ofertas.
- Espero que sim.
Ela foi até o jardim e o sr. Snelson foi conversar com a esposa.
- Gostaria que Henry a tivesse prevenido. Ela não queria vender, queria
tentar manter os negócios.
Ida Snelson olhou, pela janela da cozinha, para a figura alta e elegante
que passeava pelo jardim.
- Uma nova aventura? - perguntou, e seu marido concordou.
- Justamente o que eu pensava. Harriet está ainda menos acostumada com o
trabalho duro do que o pai. Acho que vai seguir o mesmo caminho dele.
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No entanto, naquele mesmo momento, ela estava decidindo que o tempo das
festas havia acabado e já era hora de começar a trabalhar seriamente.
Aproximou-se do relógio de sol e leu uma das inscrições que havia numa
das pontas: "É mais tarde do que você pensa". Sorriu, meio sem graça.
Voltou para casa, decidida a concordar com o sr. Snelson: a fábrica devia
mesmo ser posta à venda.
"Podemos receber outras ofertas", ele havia dito. Mas, quando Jotham Gaul
queria alguma coisa, conseguia. Ela gostaria de ter o prazer de
contrariá-lo, pelo menos umavez, mas não estava certa de que isso seria
possível.
Havia sido apresentada a ele numa reunião na casa de Nigel, naquele verão
de cinco anos atrás.
- Venha, vou apresentá-la a Jotham Gaul. - Que nome grotesco! De onde ele
vem?
- Yorkshire. - Quem respondeu foi um homem que estava de pé atrás de
Nigel. Parecia um estivador, tinha ombros imensos, era grande e
desajeitado. Naquela noite,
foi o único que não sorriu ao ser apresentado a ela. Cumprimentou-a com
um olhar frio e distante, igual aos que recebia quando ainda era uma
criança feia e tímida.
Seu primeiro impulso foi sair de perto dele, mas teve que ficar, enquanto
Nigel explicava que era um amigo especial da família e um homem que
merecia toda a atenção deles.
- Toda a nossa atenção? Fascinante!
- Oh, sim, eu sou - ele respondeu com uma ponta de ironia. E você, por
acaso não é a adolescente que todas sonham ser?
Este era o título da reportagem que haviam feito com ela e que Henry se
encarregara de mostrar a todo mundo. Sentia-se como uma celebridade, mas
aquele homem não parecia nada impressionado. De qualquer jeito, não
estava interessada nele. Inventou uma desculpa qualquer e se afastou.
Deu uma volta pela sala, admirando aquela casa maravilhosa. Nigel então a
levou para a sala de jantar. Em um dos cantos, havia uma grande lareira
de pedra e ela disse:
- Esta casa é linda! Adoraria morar num lugar como este. Jotham Gaul, que
também estava por ali, brincou:
- Cuidado, Nigel. Acho que ela está planejando casar com você! Todos em
volta riram e Nigel respondeu que ficaria maravilhado
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se isso acontecesse. Harriet não gostou da brincadeira, mas não deixaria
nenhum Jotham Gaul estragar sua noite.
Se fosse ele o comprador da fábrica, pensou, preferia que o negócio fosse
feito por intermédio dos advogados. Não queria se encontrar com ele, a
não ser que fosse absolutamente necessário. Aquele homem sempre a deixava
furiosa. Que sujeito irritante!, pensava, cada vez que o via.
Harriet ainda estava no jardim, perdida em seus pensamentos, quando
Snelson avisou que havia um telefonema para ela.
- Alo, Harriet? Aqui é Nigel. Como está?
- Um pouco melhor, mas recebi a notícia de que a fábrica está à beira da
falência. Você sabia?
- É, já tinha ouvido alguns boatos.
- Isso me deixou um pouco abatida. Eu tinha começado a fazer planos para
ficar aqui.
- Talvez possa ficar, mesmo sem a fábrica.
- Não, acho que não...
- Bem, depois conversaremos sobre isso. Posso dar uma passada por aí?
- Sim, claro.
Harriet sorria, ao desligar o telefone.
Quando ele chegou, convidou-a para irem até sua casa.
- Você é a mulher mais bonita que conheço. Parece que fica cada vez mais
linda.
Nigel era a pessoa de quem precisava naquele momento, pensou Harriet.
Alguém simpático com quem conversar e que a fizesse esquecer da morte de
seu pai e de todo o resto.
Estava ansiosa para rever a mansão Tudor. Tinha estado em casas fabulosas
ao redor de todo o mundo, mas, se pudesse escolher uma, escolheria a de
Nigel. Não conseguia explicar por que gostava tanto dela.
Fazia um dia agradável e a casa estava aquecida. Não havia ninguém no
hall de entrada, nem na pequena saleta onde ficava o telefone.
- Apaixonei-me por esta casa na primeira vez que a vi. E continuo
apaixonada.
Nigel sorriu.
- Você se lembra da vez que Jotham sugeriu que casasse comigo para obtê-
la?
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Antes que pudesse responder, ele a pegou pelas mãos e levou-a até a sala
de estar.
- Quero lhe apresentar um velho amigo.
Jotham Gaul levantou-se da poltrona em que estava sentado e caminhou em
direção a eles.
- Sinto muito pelo que aconteceu a seu pai. Fico feliz por você estar
suportando tão bem.
Ela agradeceu friamente. Que sujeito desagradável! Será que nunca ia
ficar livre dele?
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CAPITULO II
Todas as vezes que se havia encontrado com Jotham Gaul, Harriet fugira
dele. Nos últimos cinco anos, conseguira escapar por duas vezes. Numa,
caminhando pela Regente
Street, tinha entrado em uma loja, antes que ele a alcançasse; e na
outra, num restaurante em Cheltenham. praticamente afundara na cadeira,
de costas para ele.
Nigel sorria para os dois, perguntando:
- Quanto tempo faz desde a última vez que estivemos juntos? Ela parece
ainda mais bonita do que naquela época, não é?
Jotham sorriu sem responder, mas Harriet não perdoou:
- Você ganhou peso, não foi?
Homens com o físico de Jotham têm muita facilidade para engordar, mas, na
verdade, ele parecia apenas mais musculoso.
- E você continua parecendo faminta.
- Seus cabelos também estão grisalhos - ela contra-atacou. Ele tinha os
cabelos curtos e despenteados como os de um moleque.
Já devia ter nascido com essas feições rudes; devia ter sido uma
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criança feia. Era apenas um ou dois anos mais velho do que Nigel, mas as
rugas já apareciam. Tinha uma expressão gozadora e forte, uma expressão
que a fazia sentir arrepios. Jotham se vestia de maneira espalhafatosa.
Agora, usava um casaco azul com uma malha verdeesmeralda. Harriet não se
surpreenderia se ele estivesse com uma calça turquesa, em vez de cinza.
Às vezes, tinha vontade de perguntar se ele não tinha um mínimo de senso
para cores.
- O que você está fazendo aqui? - ela perguntou.
- Eles me deixaram usar alguns quartos.
- Quanta gentileza!
- Jotham faz parte da família - Nigel disse, caminhando até o bar.
Preparou um drinque para ela sem perguntar nada, entregando-lhe um copo
de Martini doce com limão. - Ainda me lembro de seus gostos.
Ela tomou um gole e sorriu. Tinha dezessete anos quando namorara Nigel.
Seus gostos haviam mudado, mas era mais fácil fingir que continuavam os
mesmos e até seria bom voltar um pouco no tempo. Os últimos anos não
tinham sido tão maravilhosos assim.
- Você ainda é fazendeiro? - Nigel já havia lhe dito isso, mas ela
simplesmente gostava de ouvir. Havia algo de permanente na vida das
pessoas daquele lugar.
- Sim, ainda sou fazendeiro. - Sentou-se ao lado dela no sofá e Jotham
acomodou-se numa grande poltrona cor de laranja que resultava numa
combinação chocante com as cores de sua roupa. Será que ele não percebia
essas coisas?
Harriet gostaria que ele fosse embora, mas Nigel parecia achar -que
faziam um trio perfeito:
- Jotham é quem ganha o dinheiro.
- Sim, todos nós sabemos que ele é um capitão de indústrias disse ela,
friamente.
- E você é uma modelo famosa.
- Não tão famosa assim. - Não admitia isso muitas vezes, mas não se
importava de dizer a Nigel.
Contudo, foi Jotham quem perguntou, malicioso:
- Por que não? com suas vantagens naturais?
- Acontece que me desinteresso logo das coisas.
- Ah, sei. . . Será que foi por isso que não casou?
20
.- Pode ser. E você? Por que não casou?
Já tinha notado que sempre que se encontrava com ele, qualquer que fosse
a situação, ele sempre conseguia atrapalhá-la. No dia em que o encontrou
no restaurante, não conseguiu apreciar uma garfada da comida, só de saber
que ele estava tão perto. A primeira vez que o encontrou, logo depois de
romper o noivado com Nigel, estava assistindo às corridas de cavalos em
Stratford com um jovem jóquei. Jotham Gaul a cumprimentou efusivamente,
embora ela pudesse apostar que ele sabia que seu noivado havia terminado.
Isso a deixou nervosa, assim como a seu acompanhante, que estava num
péssimo dia. Tinha acabado de rasgar o bilhete de uma aposta perdida,
quando Jotham chegou. Percebendo o bilhete rasgado no chão, ele balançou
a cabeça e comentou:
- com esses olhos, você devia estar entre os vencedores.
- Não, obrigada - disse ela, achando que aquilo era um elogio, até ele
completar:
- Olhos gananciosos.
Então, deu-lhe uma dica para a próxima corrida e foi embora, acompanhado
de uma jovem muito elegante. Claro que ela não apostou no cavalo que
Jotham indicou, e claro que ele venceu; . .
- Nunca fico muito em um só lugar - Jotham falou, respondendo por que não
havia casado.
- Triste. Todas essas andanças pelo mundo devem atrapalhar sua vida
amorosa.
- De jeito nenhum. - - Olhou-a como se ela não estivesse entendendo nada.
- Andanças pelo mundo atrapalham casamentos, mas são altamente
estimulantes para a vida amorosa. com certeza, você também já deve ter
descoberto isso.
Ele devia ser atraente para algumas mulheres, pensou Harriet. Dinheiro e
poder atraem a maioria. Até a ela. Mas não Jotham Gaul. Podia ser o homem
mais rico e poderoso do mundo, que continuaria fugindo dele. Olhou- para
Nigel e perguntou:
- E você, por que não casou?
- Fiquei esperando por você - ele disse, brincalhão.
Harriet sabia que não estava falando sério, mas acharia agradável se
ainda tivesse uma queda por ela. A maioria dos homens tinha, e ela estava
completamente livre, no momento. Não seria assim tão
21
mau se envolver com Nígel. Sorriu, demonstrando malícia e promessa, com
uma expressão que sempre tinha efeito devastador nos corações masculinos.
- A propósito - Jotham disse -, como vai aquele escultor que trabalhava
muito em bronze? Vi uma foto sua na galeria dele.
Anthoriy tinha feito uma exposição na pequena galeria que Harriet ajudara
a financiar. Era um artista novo e promissor, e eles haviam saído juntos
regularmente, nos últimos meses.
- Acho que está bem.
- Vocês ainda são bons amigos, não são?
Não havia segredos sobre os romances de Harriet, mas o caso com Anthony
estava terminado.
- Não tenho mais nada com ele - disse, tentando ser o mais fria possível.
O que havia feito romper definitivamente fora ele não ter ido ao enterro
de seu pai.
Mas antes disso ela já estava procurando desculpas para não vê-lo mais,
achando-o aborrecido e possessivo demais. Assim que soube da morte de
Henry, Anthony se ofereceu para acompanhá-la ao enterro, mas ela botou na
cabeça que ele estava sendo meramente formal e recusou. Disse que se
hospedaria na casa dos Snelson e que não ficaria à vontade se ele
estivesse junto. Anthony então prometeu esperar em Londres. Se ela
precisasse, ele iria imediatamente. Por causa disso, ficou furiosa. Achou
que ele deveria saber que ela estava precisando de todo apoio. Se a
abandonava na hora de dar o último adeus ao pai, o que não faria em
outras horas?
- Vai ficar por aqui? - Jotham perguntou, e Nigel olhou-a ansiosamente,
esperando por sua resposta.
- Ficaria, se a fábrica estivesse indo bem. Não fazia ideia de que os
negócios estavam tão mal. Há muito tempo que não venho por aqui.
- Claro. Para pegar o dinheiro, não precisava vir aqui.
- Como é que sabe se eu pegava ou não pegava dinheiro?
- Conheci alguns de seus namorados.
- O que está querendo dizer?
- Que você é uma pessoa ambiciosa.
- Ei, o que... - Nigel gaguejou, tentando defendê-la, mas ela sorriu,
irónica.
22
- Olha só quem está falando! O dinheiro é meu e faço com ele o que bem
entender. Se eu mexer em seu dinheiro, daí você pode. . .
- Tente mexer em meu dinheiro, para ver o que lhe acontece!
- Meu Deus! - Os olhos de Harriet brilhavam de raiva. - Mas você é mesmo
um fanfarrão!
- Você ainda não viu nada.
- O que está acontecendo, afinal? - Nigel perguntou, sem entender coisa
alguma.
- Não sei. Mas não gosto de seu amigo; aliás, jamais gostei.
- Isso é alguma brincadeira? Vocês nem ao menos se conhecem, não é? Quero
dizer. . . - Nigel olhou para Jotham, que sorria ironicamente.
- Nos encontramos por acaso algumas vezes, durante estes anos
- disse ele. - com certeza, eu já lhe contei isso.
- Sim. Mas. . .
- Bem, foram encontros casuais e rápidos - Jotham completou.
- Mas, para mim, foram mais que suficientes - Harriet disse. Tanto ela
quanto Jotham se levantaram. - Adeus, foi um prazer encontrá-lo, como
sempre.
- Você está indo. ..
- Embora? Não, Nigel. Ele é quem está indo.
- Tenho mesmo um trabalho a fazer - Jotham disse. Tomou o último gole de
seu uísque e encarou Harriet: - Sabe que fiz uma oferta pela sua fábrica?
- O ST. Snelson me contou.
- E então?
- Está achando que vou vendê-la a você? Prefiro botar fogo nela!
- Não, não vai fazer isso. Nem vai conseguir uma oferta melhor.
Depois que ele saiu da sala, ela se queixou com Nigel:
- O que você vê nesse homem? Como pode suportá-lo? É um imbecil, um
grosso, um cretino. . .
- Mas todo mundo gosta de Jotham.
- Está brincando!
23
- Bem, quase todo mundo. Ele pode ser prepotente, mas é um num milhão.
- Ah, é? - Há muito tempo ela não se sentia tão nervosa assim. Parecia
que tinha voltado a ser uma criança rejeitada e problemática. Disse,
tentando parecer calma: - Bem, eu não o suporto. Toda vez que o encontro,
tenho a impressão de que faz de tudo para me fazer parecer uma idiota.
- Sinto muito. - Ela não entendeu por que Nigel pedia desculpas, se não
tinha nada a ver com ele. - Só não posso entender o porquê; quando quer,
ele é um dos homens mais gentis que conheço. Não é nenhum bobo, nem
suporta os tolos.
- Ah, então é isso. - Harriet mordeu os lábios.
- O quê? - Nigel ficou embaraçado ao perceber o que havia dito e tentou
consertar: - Oh, não quis dizer que você era uma tola. . . Não, meu Deus,
sabe que eu não quis dizer isto. É que Jotham. . .
Ela agora estava sorrindo, desculpando-o:
- Está tudo bem. Ele me acha uma tola, e eu o acho um cretino. vou ficar
bem longe dele, e é melhor que também fique longe de mim.
Nigel estava derretido por aqueles olhos brilhantes, os cabelos castanho-
acobreados e a vitalidade de Harriet. Ela representava um desafio e uma
tentação. Sua mãe não ficara nada contente por ele a ter reencontrado
justamente agora, mas ele não havia resistido: quando a vira no dia
anterior, sua antiga paixão reacendera.
Quando namoraram, em todos os lugares a que iam, as pessoas se viravam
para admirá-la. Quase todos os amigos o invejavam. Quando ela partiu para
viver em Londres, sentiu que já não estava interessada nele, mas insistiu
para que ficassem noivos. Claro, isso não adiantou. Logo ela parou de
responder a suas cartas e passou a se recusar a falar com ele até pelo
telefone. Sofreu muito, ficou magoadíssimo, mas não se surpreendeu. Mais
ou menos, esperava por isso. Mas, ao saber que ela havia ficado noiva em
Londres, teve ímpetos de ir e estrangular os dois. com o passar do tempo
e a sucessão de namoros de Harriet - as colunas sociais viviam falando
dela -, Nigel perdeu completamente a raiva. Ao encontrá-la no enterro,
não estava preparado para o impacto de revê-la. Achou-a ainda mais bela
que aos dezessete anos e se sentiu como um adolescente, em vez de um
24
homem de trinta. Sua vida até agora tinha sido tranquila a o futuro
prometia o mesmo: moderação, prosperidade, bons amigos. Mas não havia
muita excitação. Quem trazia um pouco de novidade era Jotham Gaul. Nigel
o considerava seu melhor amigo. Sentia admiração por ele e o invejava.
Não seria humano se não sentisse inveja de um homem rico, atraente e
inteligente de quem todos gostavam. Nigel ficou feliz por Harriet não
gostar de Jotham. As coisas não seriam fáceis, com um rival como ele.
- O que vai fazer com a fábrica?
- Vendê-la. Que mais posso fazer?
Ele não tinha sugestões. Ela teria que vender e partiria novamente.
- Você vai voltar para Londres?
- Creio que sim.
Se fosse outra pessoa, ele poderia sugerir que arranjasse um trabalho por
ali e ficasse, mas Harriet era especial demais para um trabalho qualquer.
O máximo que
podia esperar era que mantivessem contato e se encontrassem algumas
vezes.
- Você virá aqui outras vezes?
- Não será assim tão fácil. - Ela sorriu, franzindo a testa. Não tenho
carro. Perdi minha licença dois meses atrás: excesso de velocidade.
- Posso vê-la, se for a Londres? - Ele se sentou no sofá, puxando-a para
perto. - Agora que nos encontramos novamente, por favor, Harriet, não
suma da minha vida outra vez.
Ela poderia ter prometido isso e tê-lo beijado, porque ele merecia um
beijo. Mas, nesse momento, a mãe de Nigel abriu a porta e entrou na sala.
Era uma mulher magra e sem vida. Harriet lembrava-se dela sempre vestida
com cores escuras e de expressão preocupada. Nesse dia, obviamente, a
preocupação de Sílvia Joliffe era Harriet Brookes. Na opinião dela, a
moça não tinha a menor condição de se tornar uma boa esposa.
Quando Harriet sumiu, depois daquele verão, Sílvia Joliffe rezou duas
preces: uma, em agradecimento por ela ter partido, e a outra, para que
nunca mais voltasse. A segunda foi atendida pela metade: Harriet ficou
longe um longo tempo, é verdade, mas voltou, e ainda solteira.
25
Obviamente, tinha ficado chocada com a notícia da morte de Henry Brookes
e com pena de Harriet, mas não queria que Nigel se envolvesse com ela de
novo. Pressentia que o faria sofrer. Mas, na mesma tarde do enterro,
ouviu Nigel desmarcar um encontro com a namorada. Depois, ele ficou
falando de Harriet por horas, imaginando quais seriam seus planos.
Pronto: bastou botar os olhos nela para virar a cabeça, pensou Sílvia, e
começou a se preocupar novamente.
Nigel tinha avisado que Harriet iria lá e ela não costumava interromper
os encontros do filho com os amigos. Mas não resistiu. Entrou na sala,
tentando parecer simpática, mas não conseguiu disfarçar o nervosismo,
quando encontrou os dois de mãos dadas e a ponto de se beijarem.
- Olá, Harriet. Que bom vê-la novamente. - Sentiu um peso no coração: já
tinha visto sua beleza nas fotos das revistas e nos comerciais da tevê e
havia reparado
em Harriet no enterro, vestida de preto e muito pálida. Mas agora ela
parecia ainda mais atraente, com o rosto ligeiramente corado e os lábios
vermelhos e tentadores.
Seus olhos eram capazes de hipnotizar qualquer homem, e Sílvia sentiu que
o filho tinha caído na armadilha. - Ficamos muito tristes com a morte de
seu pai.
Eu também fiquei, Harriet pensou. Ele tinha muitas falhas, mas eu o
amava, mais do que ele me amava.
- Obrigada - disse, satisfeita por Nigel continuar segurando suas mãos;
precisava de apoio, nesse momento.
- Vai ficar muito tempo por aqui? - Sílvia sabia que ainda havia os
negócios da fábrica para resolver, mas desejou de todo coração que a
estada fosse curta. Não havia muita coisa de interesse para uma garota
como Harriet Brookes, naquelas redondezas. A não ser Nigel, talvez. Oh,
meu Deus, não Nigel!
- Só alguns dias - Harriet disse.
Nigel sugeriu, ansioso: - Por que não fica conosco? Não vai ser muito
divertido, para você, ficar com os Snelson. Não que seja divertimento o
que procuro em uma hora como esta, claro, mas
você gosta de nossa casa e há muito espaço aqui. Não é, mamãe?
- Harriet não pode simplesmente sair da casa dos Snelson. A mansão Tudor
não tem as mesmas comodidades de uma casa
moderna.
26
Há anos que os quartos não são usados. Claro que você é bemvinda,
Harriet, e adoraríamos poder hospedá-la, mas. . .
Harriet mal a ouviu: nunca escutava as coisas que não queria. Já sabia
que a mãe de Nigel a trataria com frieza, mas nem ligava. Não ia perder,
por nenhuma cara feia do mundo, a oportunidade de passar uns dias na
mansão Tudor, e respondeu:
- Oh, sim, eu adoraria! - Nigel exultou, embora soubesse que aquilo tinha
muito mais a ver com a casa do que com ele.
- Quando você quer vir? - Sílvia perguntou, friamente. Nigel respondeu:
- Imediatamente. vou levá-la para que pegue suas coisas.
- Calma, meu filho. Não sei o que os Snelson vão pensar. Só espero que
não se sintam ofendidos.
- Tenho certeza de que não se sentirão - Harriet disse, e se levantou,
junto com Nigel.
- Acho melhor então escolher um quarto para você - falou Sílvia, com uma
cara de mártir. - Não esqueça de ligar para Annie, Nigel. Você não lhe
disse, ontem à noite, que telefonaria para ela hoje?
O filho a encarou, furioso. Então, a mãe ficara ouvindo sua conversa ao
telefone na noite passada?
- Não há pressa, mamãe. Não se preocupe e, por favor, deixe que eu mesmo
cuido desses assuntos, está bem? - E acompanhou Harriet para fora da
sala.
Harriet estava achando aquilo divertido. A namorada de Nigel não a
preocupava; poucas garotas podiam ofuscá-la. Mas, quando entraram no
carro, perguntou quem era Annie, porque sabia que ele esperava essa
pergunta.
- Uma garota. - Ele disse, ligando o motor.
- E eu não sou? Ela é importante?
- Minha mãe não gostaria que ela fosse. - Nigel não contou que até a
véspera pensava em pedir Annie em casamento. Agora, não telefonaria para
ela, porque não tinha nada a lhe dizer. Harriet era seu único assunto.
Desde a hora em que Harriet apareceu com Nigel para apanhar suas coisas,
a sra. Snelson ficou lembrando o quanto o rapaz tinha
27
estado apaixonado pela moça, alguns anos atrás. Certamente, a paixão
voltaria, se ela ficasse hospedada na mansão Tudor. A sra. Snelson sentiu
pena de Annie Hughes, que, em beleza, não chegava aos pés de Harriet, mas
era uma ótima garota.
- Pode me levar até a fábrica? - Harriet perguntou, ao voltarem ao carro.
- Você é a chefe - Nigel respondeu, sorrindo.
- Não por muito tempo.
- Não estava me referindo à fábrica, mas a mim. Peça o que quiser, e eu
farei.
Harriet sorriu, jogando a cabeça para trás.
Ele sentiu o perfume gostoso dos cabelos dela e ficou cada vez mais
atraído. Ela sabia o efeito que estava causando. A maior parte daquilo
era deliberado, o jogar dos cabelos, o sorrir, o olhar doce, pequenos
truques.
- Você é perfeita. Meu Deus, como é bonita!
E era por isso que Nigel e outros homens queriam lhe dar tudo o que
desejasse. Jotham tinha dito quê ela era uma gananciosa. Será que estava
se referindo a isso? Não é possível, pensou; ele não sabe o bastante de
mim para dizer tal coisa.
- Deve fazer mais de dez anos que não vou à fábrica. Agora que está para
ser vendida, quero vê-la. Que loucura!
A fábrica ficava nos arredores da cidade, e ela adorou rever aquela
paisagem familiar. Porém, a partir de certo trecho, encontrou muita coisa
mudada. Quando passaram pelo hotel onde seu pai costumava ficar,
comentou:
- Ele dizia que aqui o serviam muito bem. Gostava de ficar em hotéis.
- E você, também gosta?
- Não muito. Nos últimos dias, comecei a pensar em ter uma casa de
verdade. Acho que preciso sair daquele apartamento, encontrar meu lugar.
- Que tipo de coisa está procurando?
- Não sei. Acho que só vou saber quando encontrar.
Ao chegarem à fábrica, era a hora da saída. Trabalhadores e carros
passavam lentamente pelo portão. Antes de Nigel estacionar, ela decidiu
não entrar. Se entrasse, o que poderia fazer? Conversar com
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homens que nào conhecia sobre a venda da fábrica? Alguns funcionários
tinham conversado com ela no enterro, mas não sobre o trabalho.
- Não tem realmente nenhum sentido eu entrar na fábrica, não é? Ligarei
para o sr. Snelson amanhã.
- Você vai aceitar a oferta de Joth?
- Se não conseguir nenhuma melhor. . .
- Não vai conseguir, e sabe disso.
Nigel falou com tanta segurança, que ela teve que perguntar:
- Como sabe?
- Porque ele sempre consegue o que quer.
- E ele diz que eu que sou ambiciosa. Gostaria de poder recusar sua
oferta! Faça-me um favor, Nigel: não fale nesse homem novamente. Olhe,
aquele era o escritório de meu pai. - Apontou, quando chegaram junto do
prédio da administração.
A última vez que esteve ali foi um verão antes de sua mãe morrer.
Acontece que ele tinha tido um imprevisto e não a alcançou mais em casa,
quando ligou para desmarcar. Resultado: teve que almoçar com a secretária
dele. Suspirou, e Nigel disse, gentilmente:
- Sei como se sente. Vocês eram muito ligados, não é?
Era o que todos achavam, pensou Harriet, mas, se o pai a amasse
realmente, teria encontrado tempo para almoçar com ela naquele dia. Deram
uma volta, viram tudo e saíram.
- E agora, aonde quer ir? - perguntou Nigel.
- Que tal me fazer uma surpresa?
Ele gostaria de poder fazer isso, levá-la para algum lugar que superasse
todos os lugares a que ela já tivesse ido e deixá-la atónita com seu
charme. Mas não havia a menor chance de isso acontecer. Harriet vivia em
Londres há anos, já tinha viajado a Europa inteira, frequentava a noite.
Já que não ia conseguir ser original, decidiu levá-la a um lugar muito
agradável, inaugurado no ano anterior. A ideia vinha de Londres: um
casarão onde funcionavam uma casa de chá, um bar, um restaurante, um
salão para dançar música suave, ao som de um piano baixo e flauta, tipo
boate, e um salão de música jovem.
Nigel estava se dirigindo ao andar de cima, para a boate, pois estava
doido por uma atmosfera mais íntima, mas ela parou e disse:
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- Estou ouvindo Rolling Stones. De onde vem essa música?
- Do salão no primeiro andar. É uma discoteca. Você gostaria de ir lá? -
Ele preferia ficar numa mesa tranquila, conversar, olhar para ela, dançar
de rosto colado,
mas Harriet já estava descendo a escada.
Antes de entrarem no salão, foram ao bar da discoteca. Tomaram um gim-
tônica, conversando sobre os últimos anos. Ele não tinha muito a dizer,
ao contrário dela.
- Você tem uma vida maravilhosa, não é? - Nigel perguntou, com um olhar
de admiração e de desejo.
- Não tem sido ruim, e sempre acho que o melhor está por vir.
- Espero que sim. Quer dançar?
Ele até que era um bom dançarino, tinha estado ali com Annie não fazia
muito tempo, mas nunca dançara com uma garota como Harriet. Annie dançava
bem qualquer coisa, do agarradinho ao rock, mas não chamava nenhuma
atenção especial, como ele também não. Já Harriet parecia ser a única
dançarina na pista. Seus cabelos e seu corpo balançavam sensualmente. Era
impossível, para quem estivesse por perto, tirar os olhos dela.
As pessoas não a conheciam, mas já a haviam visto em fotos e anúncios, e
Nigel ouviu várias vezes sussurrarem: "Quem é essa?", "Você a conhece?",
"É uma atriz?"
Acabou deixando que ela dançasse sozinha. Esperou um pouco, afastado, e
depois levou-a de volta à mesa.
- Costuma dançar muito?
- Gosto bastante. Tenho dançado mais desde que perdi minha carteira.
- Que carteira? - Nigel tinha a impressão de que todos os olhos estavam
voltados para eles, e não sabia se sentia embaraço ou orgulho.
- Minha carteira de motorista. Quando eu ficava muito nervosa, costumava
pegar o carro e sair a toda por aí. Dançar ajuda; é uma outra forma de
relaxar, e mais saudável.
Seus cabelos estavam despenteados, sua respiração mais rápida, e ela
estava maravilhosa. Nigel desejava ter coragem de se
debruçar sobre a mesa e beijá-la.
- Estou em uma fase muito ruim - disse Harriet. Ele segurou suas mãos.
30
- Eu sei, eu sei.
Ela esperava que ele não viesse de novo com aquela conversa de como era
ligada ao pai. Nigel não sabia de nada. Ninguém sabia. Um homem se
aproximou da mesa e perguntou:
- Não nos conhecemos? - - Não - ela respondeu.
- Tenho certeza de que já a vi em algum lugar antes. - Ele era jovem e
bonito.
- Você já deve ter me visto, mas não nos conhecemos. - Virou as costas
friamente e continuou conversando com Nigel.
Nigel viu Harriet afastar, e ele próprio afastou, mais admiradores
naquela noite do que em todas as vezes em que saíra com Annie.
- Esse tipo de coisa acontece frequentemente?
- Desculpe. - Harriet abaixou um pouco a cabeça e corou. Em parte, era
culpada. Tinha dançado de modo muito provocante. Mas, mesmo que ficasse
sentada a noite toda, os homens olhariam e alguns tentariam se aproximar.
- Precisa de alguém para cuidar de você - Nigel falou. - Há alguém?
Aquele artista de quem Joth estava falando?
Ela fez não com a cabeça e ele mal pôde acreditar em sua sorte. Dessa
vez, teve coragem para beijá-la, e ela correspondeu plenamente.
Já era bem tarde quando voltaram à Mansão Tudor, mas algumas luzes ainda
estavam acesas. Estacionaram o carro e caminharam até a porta principal,
carregando as duas malas dela. Uma coruja piou e Harriet ficou com um
pouco de medo. Só se sentiu segura quando entraram na casa.
Estava feliz por passar a noite ali. Gostaria de caminhar pela
propriedade de manhã bem cedinho, sozinha. Sem ninguém, nem mesmo Nigel.
- Você acredita em reencarnação? - Diante do espanto de Nigel, continuou:
- Talvez eu já tenha vivido antes. Esta é a casa de meus sonhos. - Andou
pela sala como se estivesse flutuando, totalmente relaxada. - Juro, já
tive muitos sonhos sobre esta casa.
Nigel observou-a, sorrindo. Sabia que depois disso poderia abraçála, mas
então percebeu um papel encostado no telefone. Era um bilhete de sua mãe,
dizendo: "Annie ligou".
Harriet também viu.
31
- Recado de Annie?
- Sim.
- Está muito tarde para ligar para ela?
- Tarde demais - ele respondeu, embora frequentemente ligasse para Annie
mais tarde do que nessa hora. Não era a hora que o impedia. Ficara tarde
demais para ligar para Annie desde que vira Harriet novamente.
Harriet se aproximou, colocando os braços ao redor do pescoço dele e
acariciando seus cabelos. Era alta, só precisava levantar um pouco a
cabeça para olhá-lo nos olhos.
- Obrigada. Velhos amigos, velhas casas. Sabe, é como estar voltando ao
lar.
Nigel ia dizer algo sobre nunca mais se separarem, quando a porta se
abriu e sua mãe entrou na sala.
- Seu quarto está pronto, Harriet. Venha.
- Isto não é hotel - Nigel protestou. - Em que quarto você a colocou?
Mas Harriet o apaziguou:
- Eu gostaria de subir logo. Foi um dia cansativo.
Era verdade, estava mais do que com vontade de ir para a cama. Pegou uma
de suas malas e Nigel pegou a outra. Sílvia subiu na frente dos dois.
Ela não perguntou aonde eles tinham ido. Não disse nada, e caminharam
pelos longos corredores em silêncio, ouvindo apenas o som dos próprios
passos e o ranger do assoalho antigo. Por fim, Sílvia parou e abriu uma
porta.
- Por que este quarto? - Nigel perguntou. ,
- É mais arejado. - Entrou, acendeu o abajur ao lado da cama e ficou
esperando que o filho colocasse a mala no chão.
Harriet percebeu que ela não deixaria Nigel sozinho ali e disse:
- Bem, boa noite.
Já estava acostumada com mulheres que queriam proteger seus homens dela,
mas gostaria que Sílvia fosse menos desconfiada. Seria bom ficar amiga da
mãe de Nigel.
O quarto era realmente agradável. Todo pintado de branco, tinha cortinas
claras e sólida mobília de madeira escura. A noite estava quente, e a
cama, convidativa. Ela não brincava: essa era realmente a casa de seus
sonhos, desde aquela festa de réveillon.
32
Lembrou-se do pai e seus olhos se encheram de lágrimas.
Estava começando a tirar as roupas da mala, quando bateram à porta.
Nigel, ela pensou, e preciso ter tato. Mais um beijo de boanoite, um
pouco de carinho, uma promessa no olhar, e ele irá dormir contente.
Abriu a porta e seu sorriso desapareceu no mesmo instante em que viu
Jotham Gaul.
33
CAPITULO in
Jotham era a última pessoa que ela esperava encontrar na porta de seu
quarto, àquela hora da noite.
- A mãe de Nigel está preocupada com você - ele disse.
- E o que tem a ver com isso?
- Como Nigel disse, sou mesmo um membro da família.
- Uma espécie de irmão mais velho? E ele não é grande o suficiente para
cuidar de si mesmo?
- Parece que não, quando você está por perto.
- Então, ele gosta de mim. . . E por que não? O que há de errado comigo?
- Nada, à primeira vista. Mas eu não teria nenhum contato maior com você.
A não ser em legítima defesa.
- É bom que não tenha mesmo! - Harriet sentou-se na frente da penteadeira
e começou a limpar o rímel que havia manchado. Preferia morrer a deixá-lo
perceber que tinha chorado.
- Um rosto e um corpo como os seus significam dinheiro, não? Mas o que
vai fazer, quando sua beleza acabar?
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Ela sentiu como se tivesse levado um soco no estômago, mas conseguiu
dizer:
- Saia já daqui!
- Imagino que casará com um homem rico, antes que isso aconteça. Só não
ponha na cabeça a ideia de que esse homem pode ser Nigel.
Ela continuou virada para o espelho, tirando a maquilagem, até ele sair e
fechar a porta. Morria de raiva, principalmente por ter que admitir que
ele não estava totalmente errado. Passou lentamente os dedos pelo rosto.
Seria sempre bonita, mas não seria jovem para sempre. Sabia disso, mas
evitava pensar no assunto. Especialmente naquela noite, não estava com
cabeça para encarar esse fato.
Como sobreviveria, quando não pudesse mais virar a cabeça dos homens? E
não era mais uma herdeira. A fábrica não a sustentaria, e só poderia
posar enquanto fosse jovem. Tinha amigos e homens que diziam amá-la, mas
só ela sabia a solidão que sofria quando era feia e sem graça.
Certamente, o mesmo aconteceria quando estivesse velha.
Gostaria de saber onde Nigel estava agora. Depois das palavras de Jotham
Gaul, precisava desesperadamente de alguém que lhe desse segurança.
Abriu a porta do quarto e, na porta ao lado, estava Jotham, esperando por
ela.
- Procurando alguém? - ele perguntou.
- Estou procurando o banheiro.
- É no fim do corredor.
Ela passou depressa por ele. Agora entendia por que Nigel ficara surpreso
com o quarto que a mãe escolhera para ela: era ao lado do de Jotham. No
fundo, aquilo
era engraçado. Jotham estava de guarda para mante-la longe de Nigel. O
que faria, se ouvisse algo suspeito no quarto ao lado? Entraria ou
bateria com força na porta?
Ela riu, ao pensar nisso.
O banheiro era antiquado, mas muito bem conservado. A banheira, enorme,
de pezinhos, era de metal, com torneiras douradas em forma de cabeça de
leão. Numa prateleira havia uma porção de sais e óleos para banho.
Enquanto estivesse ali, aproveitaria todos esses confortos.
Tomou um longo e relaxante banho e se enrolou numa toalha branca.
Pretendia voltar silenciosamente para o quarto, mas, quando
35
passou pela porta de Jotham, não resistiu e bateu. Em menos de um
segundo, ele atendeu, esfregando os olhos.
A luz do quarto dele estava apagada e isso lhe agradou, porque ela queria
acordá-lo. Disse, animada:
- Achei que era melhor avisar que acabei meu banho e estou indo para a
cama. Você pode dormir, agora, a menos que esteja de guarda pela noite
toda.
- Já cumpri minha parte, já fiz tudo o que me pediram para fazer. -
Esfregou novamente os olhos e bocejou. - Eu não o deixaria vê-la com os
cabelos nesse estado.
Está horrorosa.
- E você se acha alguma maravilha? Seu rosto só deve ser bonito para sua
mãe. Seu único charme é o dinheiro.
- O dinheiro acaba, mas vou dar um jeito para que o meu não acabe.
Pretendo ser um velho muito rico e muito sexy. Durma bem.
Fechou a porta na cara dela.
Depois de entrar em seu quarto, Harriet jogou as roupas em cima de uma
madeira, deixou a toalha cair e observou-se cuidadosamente no espelho.
Queria ter certeza de que seu fantástico corpo não estava ficando gordo e
feio.
O que viu a tranquilizou. Não havia nada de errado com ela, a não ser a
testa franzida. Relaxou e entrou debaixo do cobertor na cama grande e
macia.
Não dormiu muito bem. Não se lembrava de ter tido nenhum pesadelo, mas,
quando acordou, estava toda espremida num canto da cama, curvada sobre si
mesma e com os punhos cerrados.
A mãe de Nigel estava debruçada sobre ela e perguntou:
- Aceita uma xícara de chá, Harriet?
- Obrigada. Não devia ter-se preocupado. Que horas são? - Levantou o
corpo, pegou a xícara e o pires e puxou o lençol sobre o busto.
- O café estará pronto na hora que você quiser - Sílvia disse, olhando
com desaprovação os ombros nus de Harriet, que se sentiu tentada a
perguntar: "E como a senhora pensa que Annie dorme? com blusa de gola
olímpica?"
O chá estava frio, devia ter sido feito há horas. Harriet não se apressou
em descer. Não queria tomar café e gostava de ficar naquele quarto.
Vestiu-se lentamente. Não que levasse muito tempo para decidir
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o que usar; não tinha trazido muitas roupas e todas eram de cores
discretas.
Vestiu uma saia justa de jean, com uma blusa de malha azul-céu e sapatos
de salto baixo. Para Sílvia, mesmo assim, ela parecia saída de uma foto
de revista de moda.
Mas o que fazia isso não era a roupa, mas o brilho dos cabelos, o andar
arrogante, o charme dos gestos. Sílvia olhou-a com uma desaprovação que
não tentou disfarçar. Se tivesse sorrido, Harriet sorriria também, e seu
sorriso seria autêntico e amigável.
Sílvia Joliffe estava sentada sozinha à mesa da cozinha, com um bule de
chá e os jornais do dia à sua frente. Essa era uma de suas horas quietas
e despreocupadas
no dia e ela normalmente a aproveitava muito. Costumava beber várias
xícaras de chá e ler os jornais. Mas Harriet deixou-a
intranquila.
Nigel tinha ficado esperando Harriet descer desde cedo. Como ela não
aparecia, pediu para levar-lhe uma xícara de chá. Ela não levaria nada,
se o filho não tivesse
insistido. Não sabia que o chá estava frio, claro, e Sílvia ficou
envergonhada da própria má educação. Também ficou irritada ao ver Nigel
ansioso, olhando constantemente para o relógio, como se não pudesse sair
sem dizer bom-dia a Harriet.
Quando não pôde esperar mais, ele pediu:
- Diga a Harriet que eu a encontro na hora do almoço. Mas Sílvia não deu
seu recado.
- A comida já está fria, depois de tanto tempo. É melhor eu cozinhar mais
para você. - Os dois ovos fritos que estavam no prato pareciam congelados
e realmente tiravam o apetite.
- Não precisa se incomodar, sra. Joliffe. Não como nada no café da manhã.
- Não tinha fome há dias. Simplesmente beliscava a comida que lhe serviam
e, se estivesse sozinha, era capaz de não comer nada.
Sílvia jogou a comida desperdiçada na lata do lixo, com uma cara péssima.
- Quer chá?
- Obrigada.
Tomaram chá, levando uma conversa forçada sobre o tempo ou as manchetes
do jornal. Não havia nenhuma sinceridade. Tudo soava como uma peça mal
encenada e os silêncios eram cada vez maiores.
37
Depois de um tempo, Sílvia perguntou:
- Quais são seus planos para hoje?
Harriet estava pensando que devia ligar para Snelson. Se Nigel estivesse
em casa, passaria o resto da manhã passeando com ele. Gostaria de umas
horas despreocupadas ao sol, antes de voltar ao desinteressante mundo dos
negócios.
- Onde está Nigel? Sílvia mordeu o lábio.
- Não sei. Acho que foi comprar uma máquina ou resolver um negócio
particular. Não diria a Harriet onde o filho tinha ido, nem que voltaria
para o almoço. - Jotham quer vê-la, antes de você sair.
- De novo? Ele estava esperando por mim ontem à noite. A senhora sabia,
não é?
- Ah, é? - Sílvia corou.
- Ora, vamos! - Harriet já estava cheia daquilo. - Claro que sabia. Ele
me disse para me manter afastada de Nigel, e quem mais, além da senhora,
ia pedir a ele que fizesse isso?
O rubor de Sílvia aumentou. Ela apertou com força a xícara de chá que
segurava.
- Eu não esperava que ele fosse tão direto.
- Jotham não foi direto, foi brutal. Conhecendo-o tão bem como o conhece,
deveria saber que ele não perde tempo com delicadezas. O recado era este:
"Não queremos você aqui. Caia fora". Não era?
Claro que era, mas ouvi-lo tão diretamente deixou Sílvia confusa. Tentou
consertar:
- Eu não esperava que. . . Bem, claro que conversei com ele, sempre conto
meus problemas a Joth, e estava preocupada. - Deu um suspiro. - Sim,
estava mesmo. Nigel não pode lhe dar o tipo de vida a que está
acostumada. Olhe para você! - Disse isso como se Harriet fosse um ser
exótico vindo de outro planeta. - Nunca vai poder ser a mulher de um
fazendeiro.
- Pelo amor de Deus! Só reencontrei um velho amigo. Pode esquecer aquele
namoro dos dezessete anos. Já foi há muito tempo. Faça de conta que
acabamos de nos conhecer.
Talvez até nos tornemos bons amigos, mas vai levar muito tempo para
aparecer a questão de casamento; se é que vai aparecer.
A mãe de Nigel não se tranquilizou. Continuava estalando os dedos.
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- Ele estava namorando uma moça tão boa. . . Seria terrível se a
abandonasse, porque ela é a esposa ideal para ele.
- E eu não? - Harriet perguntou, seca.
- Sabe que não. Você é. . . uma moça para casar com um milionário. Você
poderia casar com alguém como Joth.
Harriet começou a rir.
- Prefiro morrer a casar com ele!
Sílvia começou a chorar, e nessa mesma hora Jotham Gaul entrou na
cozinha. Usava uma camisa xadrez vermelha e preta, com calça e jaqueta
pretas, e parecia maior do que nunca.
Sílvia agora soluçava, mas ao mesmo tempo tentava sorrir. " - Desculpe.
Estou sendo tola.
- Está mesmo - Harriet disse.
Joth olhava para ela com uma expressão de ódio.
- Está tudo bem - ele disse, com doçura, para Sílvia. Harriet ficou com
raiva. com aquele "está tudo bem", ele queria dizer: "Não se preocupe com
Harriet Brookes, eu cuido dela".
A mãe de Nigel se animou e sorriu para Joth, como se ele fosse seu
segundo filho.
- Sou uma velha tola. Tenho que me apressar; a empregada chega a qualquer
momento. - Levantou-se e esbarrou na jarra de leite, derramando tudo na
toalha. - Oh, meu Deus! Já vi que hoje vai ser um dia daqueles.
- É, pelo menos o começo foi muito bom - Harriet disse, com ironia.
Jotham perguntou:
- Quer uma carona para algum lugar?
- Ainda não decidi aonde vou.
Para qualquer lugar que fosse, precisava de transporte. A menos que
protelasse todas as decisões para depois dar uma caminhada pela fazenda
Tudor.
- Bem, aqui não pode ficar. Sílvia não gosta de seu senso de humor.
Harriet nunca tinha sido mandada embora de uma casa antes e não era
hóspede de Jotham Gaul, e sim de Nigel. Por isso, tinha mais do que razão
para se sentir muito ofendida. Mas estava cansada demais para brigar.
Levantou-se e disse, calmamente:
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- Me dê cinco minutos para fazer as malas, e então pode me levar até a
estação. vou pegar um trem para Londres.
- Oh, não! - Sílvia protestou. - Não pode fazer isso. O que vou dizer a
Nigel?
- Pode dizer que pediu que eu fosse embora e que Jotham gentilmente me
levou até a estação. Diga-lhe para me ligar, algum dia. vou pegar as
coisas e já volto.
Nesse momento, uma mulher apareceu na janela da cozinha e a cumprimentou
sorrindo.
- Maisie! - Sílvia exclamou.
Era sua empregada que estava chegando e ela adorava uma fofoca. Se
descobrisse o que estava acontecendo ali, toda a cidade saberia no dia
seguinte.
- Vamos - Jotham disse. - Podemos ter uma conversinha enquanto você faz
as malas.
Oh, por que ela tinha que estar ali? Por que a mãe de Nigel não podia ser
mais amigável? Tudo que Harríet queria era ficar um pouco mais naquela
casa, com pessoas que deveriam ser velhos amigos.
- Antes de você começar a fazer suas malas - ele continuou-, é bom que
saiba que isso não é uma brincadeira. Sílvia chorando não é nada
engraçado.
Ao entrar na cozinha, Jotham devia ter visto Harriet rindo, enquanto
Sílvia chorava, interpretando isso mal.
- Eu não estava rindo dela. Estava rindo de algo que ela tinha me dito.
- Ela não achou engraçado.
- Sei que não, mas foi a coisa mais engraçada que já ouvi em anos.
Por um momento, pensou que ele ia agredi-la: deu um passo adiante e se
apoiou na parede, prensando-a entre seus braços.
- Sílvia quer que você saia da vida de Nigel.
- Isso eu já descobri.
- Ele se apaixonou perdidamente por você, da última vez. E você parou de
responder a suas cartas e nunca atendia seus telefonemas. Nigel ficou com
o coração em pedaços, por sua causa.
Harriet queria responder à altura, mas não seria tola a ponto de provocá-
lo mais.
- Bem, sinto muito, mas isso foi há muito tempo.
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- Suas lembranças mostram que você não mudou muito. - Ela se mantinha
tensa, grudada na parede para não ter que tocá-lo, e ele continuava
impassível. - Esta é a minha família e não quero vê-los machucados.
- Não pretendo machucar ninguém. Tudo o que queria era ficar um pouco
aqui, por que gostaria de ter um lar como esta casa. E você tem sorte de
ter uma família, mesmo que adotada. Eu não tenho ninguém, agora.
Um pouco da dureza desapareceu do rosto dele, que se afastou, deixando-a
livre.
- Não gosto de ver Sílvia aborrecida e acho que você não faz nenhum bem a
Nigel, mas peço desculpas se estou usando táticas meio violentas.
Ela continuou tensa, olhando para ele, como da primeira vez em que se
viram, na festa de réveillon. Jotham Gaul tinha um jeito de olhar que a
fazia se sentir uma tonta. Tentou encará-lo.
- Não que eu acredite que você se intimide com facilidade ele disse, mas
não sorriu, porque aquilo não era um elogio.
- Se você quiser, pode intimidar até King Kong. Posso ir agora? Gostaria
de ficar aqui por hoje. Tenho que falar com Snelson.
Sabia que ele não faria objeção. A sra. Joliffe tinha entrado em pânico
com a ideia de ter que dizer a Nigel que ela havia partido sem ao menos
se despedir. No dia seguinte, provavelmente seria melhor para ela.
Harriet também preferia: depois de falar com Snelson sobre negócios,
seria bom passar uma última tarde com Nigel. Ele merecia consideração,
especialmente porque esse seria o fim de sua relação.
- Está bem - Joth falou. - Eu levo você.
- Posso pegar um táxi. Você não tem que trabalhar?
- Isto é trabalho: eu quero sua fábrica. - Pelo menos, ninguém podia
acusá-lo de ser hipócrita.
- Eu gostaria muito de poder dizer que você não a terá.
No quarto, Harriet pegou um casaco leve e se olhou no espelho; sempre
fazia isso quando se sentia deprimida e geralmente levantava seu moral.
Começou a escovar os cabelos com força e depois vestiu o casaco, dando
mais uma olhada no espelho.
A mãe de Nigel tinha dito que ela era muito sofisticada para ser mulher
de um fazendeiro. Talvez fosse mesmo. Depois de Nigel, tinha
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ficado noiva do filho único de um casal, dono de uma cadeia de hotéis de
luxo. Isso aconteceu pouco depois de chegar a Londres. Além de muito
rico, o rapaz era bonito e gentil, mas logo ela lhe devolveu o anel de
noivado. Um ano e meio atrás, ficara noiva outra vez, de outro
milionário. Durou, entre as idas e vindas, uns seis meses.
Talvez não fosse do tipo casadouro. Tanto Sílvia quanto Jotham pareciam
estar seguros de que ela faria Nigel infeliz. Eles se lembravam da última
vez, quando ela partira, deixando Nigel. No começo, trocavam cartas e se
telefonavam dia e noite. Mas logo sua vida em Londres entrou num ritmo
tão louco, com tantos compromissos, desfiles, convites, homens ricos e
bonitos caídos por ela, que praticamente se esqueceu de Nigel.
Tinha certeza de que ele a esquecera também, até se encontrarem de novo,
dois dias atrás. Agora, estava se apaixonando por ela novamente e podia
encorajá-lo, porque seria agradável e reconfortante. Mas não queria que a
mãe dele tivesse uma crise nervosa e que Jotham Gaul decidisse atacá-la
como a uma inimiga. Esse preço era mais do que podia pagar.
Quando saiu do quarto, alguns minutos depois, não viu nem Jotham nem
Sílvia. Desceu a escada apreciando a casa. Por que não a deixavam ficar
ali só por alguns dias? Se realmente casasse com um milionário, ia lhe
pedir para comprar aquela casa. Riu, ao pensar neste sonho impossível.
. A porta da frente estava entreaberta, deixando passar um raio de sol.
Quando saiu, o dia estava tão claro, e o sol tão brilhante, que ficou
ofuscada. Teve que colocar a mão sobre os olhos para fazer sombra, e
então viu um carro se aproximando com Jotham na direção. Era um lindo
Porsche preto.
- Que bonito. . . - comentou, quando entrou no carro. Passou os longos
dedos pelo estofado macio.
- Não precisa me dizer, mas tenho certeza de que pode encontrar alguém
que compre um desses para você.
- Engraçado, você dizer isso. Eu estava justamente imaginando se
encontraria alguém para me comprar esta casa.
- Acho que não está à venda.
- Sendo assim, o único jeito de consegui-la é casar com Nigel.
- Você pode fazer Nigel de bobo, mas não tanto. Ele não vai casar com
você.
Claro que não. Se por acaso a pedisse em casamento, diria não. Nunca
tinha sonhado em casar com Nigel, mas não deixaria Jotham Gaul
descansado, declarando isso. Deu um sorriso antipático e ele gozou:
- Acho que você se superestima, boneca.
- Será? - perguntou, enquanto ele ligava o motor do carro. Imagino que
não me deixaria dirigir, não é?
- Você dirige bem?
- Muito bem. - Tinha experiência e adorava carros. Seu problema era
excesso de velocidade, mas seria muito cuidadosa, se ele a deixasse
dirigir.
- Vamos ver como dá a partida.
Trocaram de lugar e ela deu a partida com competência, saindo sem nenhum
solavanco, diminuindo a marcha na entrada da estrada, tudo com muita
suavidade.
Era um carro incrível de dirigir. Harriet adoraria apertar o acelerador.
Era frustrante ter que ficar se controlando. Mas estava numa estrada do
campo, e correr seria uma loucura. A máquina rosnava como um gato e ela
estava quase rosnando também.
- É fantástico!
- Que carro você tem?
- Nenhum, no momento. Eu tinha um Stag.
- Por que não tem mais? Vendeu?
Devia ter inventado algum problema mecânico ou dito que tinha se cansado
do modelo. Na verdade, não podia estar dirigindo carro nenhum, mas ali
era uma cidade pequena do interior e só dirigiria por alguns minutos.
Ninguém sabia de nada e era tão relaxante dirigir aquele carro. . . Era
como dançar.
Mas, ao virar numa curva, havia uma perdiz cruzando a estrada calmamente.
O caminho estava livre, e Harriet pôde desviar da ave sem maiores
problemas. Não havia perigo, ela controlava o carro, mas poderia ter sido
um pedestre, ou uma bicicleta, ou um carro na contramão. Se por acaso se
envolvesse em qualquer acidente, estaria em apuros.
Isso a fez reconhecer que corria um risco estúpido.
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Levou o carro até o acostamento e disse:
- É melhor você dirigir.
- Está se sentindo bem?
- Claro. - Surpreendeu-se ao perceber que tremia e se sentia um pouco
tonta.
- Passe para o banco de cá e fique quieta. - Ele abriu a porta para sair
e dar a volta. Estendeu a mão para ajudá-la, mas ela fingiu que não viu.
Não queria que a tocasse. Por fim, passou para o banco dos passageiros e
se acalmou. Mas ficou quase sem fôlego quando ele colocou a mão em sua
testa e pegou seu pulso. Fez um esforço para normalizar a respiração,
porque odiaria que Jotham achasse que a estava deixando perturbada. Ele a
olhava com espanto.
Harriet estava pálida e a ponto de desmaiar. Precisava comer algo. Para
evitar perguntas, disse:
- É melhor você guiar. Eu não devia estar dirigindo, não tenho licença.
- Sei. - Não parecia surpreso. - Por que não tem?
- Três multas por excesso de velocidade. Ele deu a partida.
- Você tem menos juízo do que uma criança mimada. Aliás, é uma criança
mimada.
- Eu sei, foi uma estupidez. Nunca tinha dirigido, depois que perdi a
licença. E nunca mais vou dirigir, até tê-la de volta.
- Em meu carro, não vai mesmo - ele resmungou, e ela corou porque sabia
que tinha sido irresponsável. O seguro não pagaria nada, se tivesse
acontecido um acidente.
- É que seu carro é tão bonito - tentou se desculpar. - E eu só queria. .
.
- E, quando você quer uma coisa, não importa mais nada.
Isso era mais ou menos a mesma coisa que Nigel havia dito sobre ele, mas
Jotham Gaul nunca fazia coisas tolas.
- Desculpe-me, eu não devia. . .
- Cale-se, boneca. Posso suportar ter que olhar para você, mas não
suporto ouvi-la. Você é muito burra.
Se ele dirigisse devagar, ela teria pulado do carro naquela mesma hora.
Tinha motivos para estar nervoso, ela havia sido uma irresponsável,
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mas não era burra. No entanto, tudo o que podia fazer naquela hora era
engolir a raiva.
Assim que diminuísse a velocidade, saltaria. Podia ir andando ou pegar
uma carona. E, quando encontrasse Snelson, diria que vendesse a fábrica
para qualquer pessoa, menos Jotham Gaul.
Harriet ficou olhando pela janela, porque não estava suportando olhar
para ele. Ao inferno, ele e seu carro! Mas, realmente, ela não devia ter
dirigido. Podia ter arranjado uma multa muito cara e até mesmo uma
prisão. Quando se acalmou um pouco, teve que admitir que tinha sido burra
e que saltar do carro só a faria parecer mais tola ainda.
Ficou quieta, e não falaram mais até Jotham estacionar bem em frente à
porta da fábrica. Um carro havia acabado de sair da vaga e Harriet
suspirou, desapontada. Gostaria de vê-lo ficar procurando uma vaga por
horas, dando voltas e voltas pela cidade, até se irritar.
- Aposto que isso sempre acontece com você - ela comentou.
- O quê?
- Isso. - Apontou para o carro. - Um lugar fácil para estacionar. Bem,
obrigada pela carona. Adeus.
- Também estou indo à fábrica. - Ele trancou sua porta e foi se
certificar de que a outra também estava trancada.
- Não vai junto comigo.
- Marquei um encontro com Snelson para nós dois.
Devia ter telefonado quando ela fora apanhar o casaco e pentear os
cabelos. Se tivesse forças, daria a ele uma boa resposta. Mas já que
tinha de vender a fábrica, era melhor acabar logo com isso.
Na entrada havia uma pesada porta de ferro, que Harriet tentou abrir e
não conseguiu. Jotham se debruçou sobre ela e a abriu com facilidade.
Sou muito fraca, ela pensou. Talvez, no fundo, eu não queira entrar e
conversar com Snelson sobre os negócios. Talvez não quisesse abrir a
porta. Jotham Gaul atrás de mim me deixa nervosa.
Entraram no escritório e quatro mulheres os olharam. Harriet estava
acostumada com olhares, que iam da admiração à inveja. Mas, dessa vez,
não olhavam para ela. Todas as mulheres estavam sorrindo para Jotham.
O sr. Snelson os cumprimentou calorosamente e os levou até sua
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sala, feliz de ver os dois juntos. Quanto mais rápido Jotham Gaul
comprasse a fábrica, melhor para todos, especialmente para Harriet. Por
isso, quando Jotham telefonara, meia hora atrás, ele havia desmarcado
todos os compromissos.
- Bem, presumo que esse encontro signifique que vocês já andaram
conversando - disse, depois que todos se sentaram.
- Bem, sim - Harriet respondeu. - Certamente estivemos conversando.
Tivemos oportunidades de conversar muito, desde que esbarramos um com o
outro; mas não de negócios. Não nos aprofundamos muito nesse tema, não é?
Só me lembro de ter dito que preferia botar fogo na fábrica a vendê-la a
ele.
Snelson olhou-a com espanto e Jotham disse:
- É muito arriscado, boneca. Isso dá cadeia.
Snelson achou que estavam brincando; afinal, Jotham ria. Então, ?
perguntou a Harriet:
- Decidiu vender?
- Sim.
- O sr. Gaul já lhe disse sua oferta?
- Não. Só falou que eu não conseguiria outra melhor. Snelson também
achava isso. Começou a explicar por que e Harriet
fez um grande esforço para ouvir. Ele falava em tom monótono, dando um
relatório impessoal de números e cifras. Às vezes, mencionava nomes que
ela conhecia, homens que ajudavam nos negócios, os sócios de seu pai, e
ela ficou imaginando se eles iriam realmente defender seus interesses, se
podia confiar neles. Sentia-se segura em relação a Snelson e, de qualquer
forma, não seria capaz de administrar a fábrica sozinha. Esse era outro
sonho impossível; não sabia nada sobre negócios.
- Quer continuar ouvindo os relatórios? - o contador perguntou.
- Não, obrigada.
- Estive no escritório de seu pai ontem - ele disse, abrindo um pacote. -
Trouxe isto para você. Ficava na mesa dele.
Entregou-lhe a moldura de prata com o retrato de sua mãe. O rosto na foto
aparecia emoldurado pela longa cabeleira. A boca era sensual; os olhos,
claros e diretos. Toda vez que a mãe a olhava, desviava rapidamente o
olhar, como se preferisse ver qualquer coisa mais bonita ou interessante.
Harriet quase esperava que a foto fizesse
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a mesma coisa agora; nunca tinha encarado a mãe por tanto tempo.
Estremeceu e disse:
- Não me lembro muito bem. Não tive muito contato com ela.
- Não contou que não tinha boas recordações da mãe. Como nenhum dos dois
homens falasse, pôs a fotografia em cima da mesa e comentou: - Não tenho
mais o que fazer aqui, não é? O senhor poderia entrar em contato com meus
advogados e ver se consegue uma oferta melhor do que a do sr. Gaul? Se
não conseguir. . .
- Farei isso - prometeu Snelson. Harriet estava pálida.
- Podia me arranjar uma sacola? - pediu. . Poucos minutos depois, ela
saía do escritório levando a foto da
mãe em uma sacola de plástico. Entrou num café aconchegante que servia
tortas e bolos feitos em casa. Sentou-se ao lado da janela, pediu uma
xícara de café e um bolo de nozes e ficou observando as pessoas passarem.
Mas não tinha fome e o bolo não descia pela garganta.
Olhou ao redor, e parecia que ninguém estava sozinho. A fotografia da mãe
a fazia se sentir mais sozinha do que nunca. No dia seguinte mesmo
voltaria para Londres, para seu apartamento e para Anthony. Não, para
Anthony não voltaria. Mas tinha vários amigos que ficariam felizes por
vê-la.
Deixou o bolo quase inteiro no prato, comprou um sanduíche de queijo e um
doce e pagou a conta. Pensou em caminhar até a beira do rio e comer lá,
mas antes resolveu passear pela rua principal. Nas lojas de roupas não
viu nada que a atraísse. Olhou nos antiquários, mas também não encontrou
nada. A maioria das pessoas que passavam olhava para ela, mas mal as
notava.
Por fim, chegou à margem do rio. Fazia anos que não ia ali, mas nada
havia mudado. Havia o ancoradouro, com os botes e as pequenas lanchas
paradas, os visitantes passeando, as crianças brincando na grama, sempre
vigiadas pelas jovens mães, os aposentados sentados nos bancos,
conversando e tomando sol.
O dia estava agradável e Harriet caminhou um pouco antes de sentar-se em
um banco embaixo de um velho carvalho. Pegou o doce e o sanduíche que
tinha comprado e atirou tudo aos patos. De repente, sentiu-se cansada;
sua cabeça rodava.
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Se ficasse realmente doente, quem cuidaria dela? Seus amigos, é claro,
mas agora não precisava de ninguém que cuidasse dela, porque sabia muito
bem qual era seu
problema. Quase não havia comido, desde a morte do pai, e isso era mais
uma tolice de sua parte.
Deitou-se na grama e fechou os olhos, o calor do sol fazendo-a se sentir
relaxada e sonolenta. Um cochilo seria bom. Depois, pegaria um táxi.
Poderia ir para a casa dos Snelson, seria bem recebida. Mas, como suas
malas estavam na mansão Tudor e ia embora no dia seguinte, era mais fácil
voltar para lá.
Acordou quando sentiu que alguém tinha se sentado a seu lado. Uma moça
bem jovem, segurando uma cesta de compras numa das mãos e um carrinho com
um bebé na outra, sorriu para ela.
- Alo!
- Alo!
- Tempo bom, não acha?
- Sim.
- Fui à cidade fazer compras - a moça continuou - e parei aqui para
descansar um pouco. - Estava corada e suando de cansaço. Começou a
conversar sobre o preço das coisas e quanto tinha custado aquela cesta
com mantimentos, e Harriet concordava movendo a cabeça, sem parar de
admirar o bebé adormecido.
- Ele é lindo. Como se chama?
- William - disse a mãe, orgulhosa. - E é um moleque. Olhou para Harriet.
- Será que eu. . . eu a conheço? Quero dizer, acho que já a vi em algum
lugar.
- Minhas fotos já apareceram em algumas revistas. A moça sorriu:
- Ah, sim, é claro!
Quis saber tudo sobre a vida glamourosa de uma modelo e Harriet tentou
satisfazer sua curiosidade. Ficaram ali muito tempo.
- É tarde, tenho que ir - disse Harriet, olhando o relógio.
- Eu também. Meu marido está esperando por mim. Adorei conhecê-la. Você
tem muita sorte.
- É?
- com sua beleza, você é a moça mais sortuda que conheço. Harriet riu e
brincou:
- Você devia me ver logo que acordo!
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A jovem sorriu e foi embora, carregando seu bebé e suas compras. Harriet
caminhou de volta à cidade. A garota é que era a sortuda, pensou. Tinha
um filho lindo e um marido esperando por ela. Mas não havia ninguém, em
lugar nenhum, esperando pela belíssima Harriet.
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CAPITULO IV
Harriet chegou bem a Londres. Foi até o apartamento do pai, logo depois
de ter deixado sua bagagem em casa. Poderia ter convidado uma amiga para
ir com ela, mas achou melhor ir sozinha; não sabia como reagiria. Não
tinha estado lá depois da morte do pai e, se tivesse que chorar, preferia
que isso acontecesse sem a presença de ninguém.
O apartamento era muito confortável e bem localizado, com uma bela vista
para o Regents Park. Pensou com um certo pesar que teria que vendê-lo,
mas não fazia sentido ficar com dois apartamentos. com o dinheiro da
venda, pagaria algumas dívidas e faria algum investimento. Antes de
vender, teria que separar as coisas do pai.
Para sua surpresa, o apartamento estava todo arrumado: roupas nos
armários, livros e revistas nas estantes, sapatos engraxados. Harriet
pensou que a faxineira caprichara para que tudo estivesse pronto para a
volta de Henry Brookes. Separou algumas fotografias da família, duas da
mãe, uma do pai e uma dela mesma, tirada cerca de um ano
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atrás, e guardou-as na bolsa. Procurou uma mala grande o suficiente para
que pudesse levar alguns papéis; nada de correspondências antigas. Henry
não era de guardar muita coisa. Uma ou outra carta pessoal ela queimou
sem nem mesmo ler, e separou algumas contas atrasadas. Pegou alguns
quadros, um porta-cigarros de prata que ele sempre usava, algumas roupas.
A mobília também ia ser vendida. Quando terminou a arrumação, já era
noite. Sentou-se por um momento na escuridão. Ia visitar alguns amigos
que a confortariam, mas o que desejava mesmo, naquela noite, era alguém
em quem pudesse confiar de verdade, alguém que a protegesse.
Estava habituada a ir e voltar da casa do pai sozinha, sempre tinha sido
assim. Mas não nesse dia. Agora precisava de alguém, de um ombro para
chorar, alguém a quem confessar todas suas dúvidas e anseios e que não
visse apenas sua beleza exterior.
Talvez, algum dia, Nigel pudesse ser essa pessoa toda especial. Isso, se
Jotham Gaul lhe desse chance. Só de pensar em Gaul, prendeu as lágrimas e
ficou de pé imediatamente. Queria pensar em Nigel, pois a lembrança dele
lhe trazia algum conforto. Mas, sempre que pensava nele, acabava pensando
em Gaul também, e não era nada agradável.
Dorothy McGill e o marido Sam viviam na parte de cima da pequena galeria
de arte de que Harriet era sócia, bem próxima a Twickenham Green. As
pinturas e esculturas que costumavam expor e vender eram de artistas
razoavelmente conhecidos e modernos. A
atual mostra era de um americano, Jackson Pollock, que pintava seus
quadros
borrifando tinta nas telas. O quadro que ficava na vitrine era uma
mistura de amarelo, roxo, vermelho e preto, apenas manchas. Quando
Harriet desceu do táxi e viu
aquilo, a primeira coisa em que pensou foi que Jotham Gaul seria capaz de
usar uma camisa naquelas cores.
Dorothy era roliça e muito bonita, morena de cabelos longos e cheia de
energia. Harriet chegou bem na hora do jantar e sem avisar. Apesar disso,
a amiga sorriu
de satisfação, ao vê-la. Sempre que aparecia, Harriet dormia no quarto de
hóspedes e ajudava nas vendas da galeria.
-. Quando voltou?
- Hoje mesmo. Estou vindo do apartamento de papai.
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- Foi lá sozinha? Por- que não me avisou? Eu teria ido com você.
- Não se preocupe, fui lá só para pegar algumas coisas.
- Mas vamos entrando, Harriet. Deve estar cansada da viagem e da
arrumação toda.
- Seja bem-vinda - disse Sam.
Agora que Henry morrera, os dois se sentiam um pouco responsáveis por
Harriet, apesar de não serem tão mais velhos nem terem qualquer
parentesco. Harriet ficava feliz por isso.
- Sente-se - ele ofereceu. - Está com fome? Ei, Dorothy, tem mais disso?
"Isso" era uma pizza de mozarela e uma salada. Havia só um pequeno
pedaço.
- Não se preocupem - Harriet disse -, vou até a cozinha, e faço um
sanduíche.
Procurou por queijo e presunto na geladeira, cortou uma fatia de tomate e
passou um pouco de manteiga no pão. Quando voltou, com o sanduíche e um
copo de leite, Dorothy perguntou:
- Ué, e o seu regime?
- Fica pra depois. Ontem cheguei a desmaiar por não me alimentar direito.
Além do mais, estou meio esgotada. E falida. A fábrica tem que ser
vendida, está cheia de credores. Tudo o que meu pai me deixou foi isso:
dívidas. - Deu uma mordida no sanduíche e olhou para eles, esperando que
dissessem algo. Mas apenas se olharam, surpresos. Imaginavam que Henry
Brookes era um homem rico o suficiente para garantir o futuro da única
filha, que nunca parecera se preocupar com dinheiro.
- Mas você não está tão quebrada assim. E os contratos de modelo?
- Eu estava pensando em alguma coisa mais regular. Pensei que pudesse
conseguir um trabalho na fábrica, mas o sujeito que a comprar não vai me
oferecer nada, com toda certeza.
Dorothy engoliu em seco.
- Se está precisando mesmo de emprego fixo, podemos lhe oferecer um na
galeria. Afinal, é uma ótima vendedora.
- Sou mesmo? - Sempre tinha ajudado nas vernissagens, mas só por
diversão. Nunca pensara seriamente a respeito.
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- E é ótima também para distribuir as peças na galeria. Lembra da
exposição daquele escultor italiano, Agnelli? Ninguém conseguia dispor as
esculturas dele de uma forma agradável. Você conseguiu.
- É mesmo? Nunca pensei que soubesse fazer qualquer coisa, além de posar
diante de uma câmara ou desfilar.
- Ora, Harriet! - disseram os dois, quase em coro. Mesmo assim, ela achou
que Dorothy estava apenas sendo gentil em lhe oferecer um emprego.
- Por enquanto, não quero me comprometer, Dorothy. vou viajar daqui a
duas semanas para uma ilha no sul da Itália. vou com um rapaz que
encontrei no enterro de meu pai e que já conhecia há algum tempo. Não
vamos só nós dois, é claro, mas muita coisa depende de nossa convivência
lá... Quero dizer, talvez não volte para morar em Londres. . .
- Casamento à vista? - Sam brincou.
- Que coisa boa, Harriet! - disse Dorothy, sincera.
. - Isso ainda é confidencial, mas, se ele me pedir em casamento, acho
que aceito.
Poderia casar com ele, sim. Se Jotham Gaul não estragasse tudo e Nigel
não desistisse dela para ficar com Annie não-sei-do-quê.
- Ele é rico? - perguntou Dorothy.
- Não. Tem uma adorável mansão antiga, bem conservada, e algumas terras.
Cria ovelhas e planta. Digamos que é um fazendeiro próspero, mas não é
rico.
Nigel telefonava toda noite, e eles conversavam sobre o que tinham feito
durante o dia. Principalmente sobre o que ele havia feito. Harriet
gostava de saber o que se passava na mansão. Nigel falava mais da falta
que sentia dela. Também sentia muita vontade de vê-lo, quase tão grande
como a que ele dizia sentir.
Encontraram-se todos no aeroporto de Heathrow, em Londres. Nigel já tinha
dito a ela que não ficariam mesmo a sós, porque já havia combinado a
viagem com Annie muito tempo atrás.
Annie, pelo que Harriet entendeu, tinha feito pé firme de ir à ilha,
mesmo sabendo que o rapaz levaria a nova namorada. Das duas, uma: ou era
muito corajosa, ou seu caso com Nigel era menos sério do
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que a mãe dele imaginava. Harriet teve esperança de que a outra não
estivesse tão apaixonada e não se magoasse.
Nigel já esperava, quando ela chegou. Abraçou-a e olhou-a extasiado, como
se ela tivesse saído de um sonho.
- Você está fantástica!
Harriet usava calça e jaqueta de algodão cor de pêssego, e uma camiseta
bem decotada por dentro; sapatos de pano tipo ténis, brincos de argola e
uma bolsa de lona. Mas chamava tanta atenção, que parecia vestida de ouro
ou prata. Nigel sentia um evidente orgulho disso.
Levou-a na direção de um homem e de duas moças que tomavam café, ele,
Alistair Wilson, um arquiteto que ia estudar algumas das reformas que
Joth queria fazer na vila de Piccola Licata; as duas moças, atraentes,
eram Annie e Eriça. Annie tinha cabelos suavemente ondulados, não era
bonita, mas tinha um sorriso doce e luminoso. Quando disse "Olá", Harriet
compreendeu por que a mãe de Nigel pensava ter encontrado a nora ideal.
Já Eriça parecia muito desagradável. Era bem atraente, mas não devia ter
gostado de ver que Harriet era ainda mais do que ela. Eriça era mulher de
Alistair Wilson, um homem de seus trinta e poucos anos, cabelos pretos e
um bigodinho fino, franco e sorridente.
Nenhum sinal de Jotham. Harriet havia endurecido o coração para poder
encontrá-lo novamente. Depois de cumprimentar todo mundo e trocar algumas
palavras, perguntou:
- E Jotham?
- Ele vai nos encontrar na ilha, direto de Milão. Passou a última semana
lá - disse Nigel, que não havia mencionado o fato pelo telefone.
- Ah, sei. . . - Deu um largo sorriso de alívio.
Então, não teria que aguentá-lo colado à sua nuca durante os três dias de
viagem até o golfo de Licata.
- Você não gosta de Jotham? - perguntou Eriça, com inocência fingida.
- É uma longa história - Harriet desconversou, sorrindo.
A viagem foi agradável. Passaram a noite em Palermo e cruzaram a Sicília
de carro. Alistair guiou a maior parte do tempo.
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Harriet nunca ficava sozinha com Nigel e conversava pouco. Às vezes, riam
juntos, mas ela preferia ficar a sós com seus pensamentos. Nigel a
admirava com os olhos a maior parte do tempo e Alistair também dava suas
olhadas, quando Eriça não estava vendo.
Sentia-se muito tensa desde a morte do pai e aproveitava para relaxar.
Era quase um tempo de convalescença. Por isso, também não fazia esforço
algum para se incorporar ao grupo. Achava, portanto, meio ridículo que
Nigel ise apaixonasse por ela cada vez mais. Tudo o que tinham
compartilhado eram as poltronas no avião, os assentos no carro e as
refeições no hotel de Palermo.
Durante a viagem, Annie se comportou irrepreensivelmente. Se estava com
ciúmes, não o demonstrou.
Um barco de pesca esperava para levá-los a Piccola Licata. A ilha
brilhava no meio do mar. Um vulcão, dito extinto, cercado de limoeiros,
laranjeiras e oliveiras,
aparecia do lado que viam da ilha. Harriet tirou os óculos escuros para
ver melhor.
A ilha parecia cada vez mais bonita, à medida que se aproximavam. Suas
praias eram brancas, contornadas pela linha escura das rochas.
- Logo estaremos lá e você poderá tomar uma ducha e descansar. Foi uma
viagem cansativa, não acha?
Não estava cansada, mas com muito calor. Até o vento era quente. Uma
ducha seria adorável. Ou talvez pudessem mergulhar naquelas águas
profundamente verdes...
- Vamos nadar. O que acha, Nigel?
- Gostoso, mas não há piscina.
- É, estou vendo - disse Harriet, com ironia. Ele não sabia que era uma
ótima nadadora. Na certa, pensava que só seria capaz de dar algumas
braçadas na piscina.
- Posso ver Jotham! - gritou Eriça, olhando para a ilha de binóculo. -
Ele está esperando por nós no ancoradouro. - O binóculo passou de mão em
mão. Primeiro, Annie;
depois, Harriet.
- Onde fica a vila? - perguntou ela.
- Na praia, à direita de Joth, no alto - respondeu Nigel.
Ela o veria logo. Achou a vila pelo binóculo. Era uma construção branca,
longa e térrea, com portas amarelas e telhado vermelho. Conseguiu ver a
varanda, vasos coloridos
com plantas. Depois focalizou a praia e viu Joth.
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Havia outro homem com ele, mais magro e baixo, e bem moreno. Os dois
usavam camisas de tecido grosseiro, conversavam e riam.
- Acabou? - Eriça perguntou.
Harriet tinha ficado com o binóculo por muito tempo.
- Desculpe, me distraí com a beleza da ilha. A vila pareceu interessante.
Quem é o outro homem no ancoradouro?
- Pensei que você tivesse olhado a vila.
Como eu gostaria que você fosse Annie, pensou Harriet. Não teria
escrúpulos de competir com você, mas detesto a ideia de magoar Annie.
- Como eu disse, a vila parece interessante. - Virou-se para Nigel e
repetiu a pergunta: - Quem é o outro homem?
- Paolo, filho de Piero e Elena, o casal que cuida de tudo na vila.
Harriet achou que poderia gostar do lugar, com suas laranjeiras e
limoeiros em flor e a praia branca. Mas seus olhos vagavam inquietos em
direção ao pier de Jotham Gaul. A calma tinha acabado. Um sentimento que
parecia um calor na boca do estômago a incomodava. Sua pele reagia à
proximidade de Gaul como se ele tivesse eletricidade. Coçou o braço,
olhou para o céu e pensou: sou definitivamente alérgica a ele.
O barco atracou e todos começaram a saltar e jogar as bagagens no cais.
Todos, inclusive os dois pescadores que os tinha trazido. Joth estava
dando as boas-vindas. Tanto Eriça quanto Annie pularam em seus braços.
Ele as beijou e continuou abraçado a elas enquanto cumprimentava os
homens.
Paolo olhava para todos. Era mais velho do que Harriet imaginara, pele
muito escura, cabelos crespos bem curtos. Saudou Harriet, sorridente.
Joth parecia ainda maior e mais rude. Usava uma camisa rasgada e aberta
no peito, sandálias e calça com manchas e remendos. Tinha a aparência de
um vadio de praia, exceto por todos estarem à sua volta como se fosse um
rei.
Por cima de todas as cabeças, seus olhos se encontraram com os de
Harriet.
- Meu Deus! Você aqui?!
Claro que ele não tinha se esquecido de que ela iria. Só estava
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querendo dizer aos outros o quanto era sem importância para ele.
Meu Deus, que sujeito insuportável!
- Imaculada como sempre - ele acrescentou, debochado.
- Está pretendendo derreter meu coração com tantos elogios?
- perguntou, cínica. - Que lugar simpático você escolheu para
viver. . .
- Nem sempre - ele disse, aproximando-se.
Eriça, Annie e os outros foram andando na frente. Harriet ficou
aborrecida por não ter conseguido fugir dele e acompanhar o grupo. Não
conseguia andar. Permaneceu imóvel e olhou para ele através dos óculos
escuros e grandes.
Quando ele estava suficientemente perto para encostar nela, Harriet
começou a tentar controlar a respiração acelerada. Sorrindo, Jotham tirou
os óculos dela. Nunca poderia esperar que ousasse tocá-la.
- Ah, sim, é você... disse, recolocando os óculos.
Harriet fechou os olhos. Ele sabe que tenho medo dele, pensou, e sentiu
frio naquele dia quentíssimo.
Estavam pegando as bagagens- Era preciso cruzar a praia e subir alguns
degraus de rocha. Harriet supôs que os homens carregariam tudo. Andou um
pouco, levando sua bolsa, e ouviu Jotham chamar.
- Ei, não suba de mãos vazias!
Virou-se e pegou uma maleta que ele estava segurando.
- Não sei se já avisaram mas aqui ninguém fica sem fazer nada
- disse Joth.
- Por mim, tudo bem.
Carregar a mala na praia era fácil; difícil era subir os degraus, e
realmente duro, chegar até a vila. Qualquer peso era um suicídio, naquele
calor, e o humor de Harriet piorou ao ver Eriça de mãos vazias. A ela,
Jotham não tinha chamado de volta.
Nigel, com uma mala em cada mão, ia um pouco atrás de Eriça, prevenindo-a
dos perigos do caminho.
Chegando à vila, ainda tinham que subir uma escada de madeira que levava
à varanda. Havia sido reformada recentemente e a madeira nova brilhava,
contrastando com todo o resto da casa. A parede branca e as portas e
janelas amarelas estavam com a pintura descascada e
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desbotada. No entanto, a varanda era encantadora, com vasos de plantas
por todo lado e algumas jardineiras cheias de flores lindas. A casa
estava fechada e Harriet estava doida para entrar. Morria de curiosidade
de vê-la por dentro.
Não se decepcionou. Entrou em um hall muito amplo, com um piso de
cerâmica que devia ter quinhentos anos. Apaixonou-se pela casa à primeira
vista. Certamente já tinha sido uma casa muito bonita e, com um certo
trato, voltaria a ser. Não seria necessária uma reforma grande, pois era
sólida. Ainda sobrava algo de uma linda mobília. Harriet deu uma volta e
retornou ao hall. De lá saía uma escada de madeira, com dois leões
esculpidos no final do corrimão, no andar de cima; os leões seguravam
brasões de família. Examinou-os de perto; depois olhou para Jotham e
disse:
- Suponho que este não é seu brasão. Ele sorriu, irónico.
- Se fosse, teria alguma coisa de sinistro. Sou bastardo. Harriet viu que
os outros conversavam com um casal de velhos
morenos. Os dois diziam-se contentes pela chegada de todos, por vê-los
mais uma vez. Perguntou, baixinho:
- Piero e Elena? Joth confirmou.
A mulher estava vestida de preto da cabeça aos pés. Usava um véu negro e
argolas de ouro nas orelhas. Harriet calculou que deveria ter setenta
anos. O homem parecia ter raízes no chão, como uma velha árvore, mas via-
se que era ágil, ainda ativo e bem-humorado.
- Paolo também trabalha aqui?
- Cuida das ovelhas. São os únicos empregados da vila. Agora estava claro
o motivo por que cada um tinha que cuidar
de si; a casa era muito grande. Harriet seguiu Joth para que ele a
apresentasse.
Elena era uma senhora discreta, mas seus olhos brilhavam de curiosidade
ao olhar para Harriet. De quem seria aquela moça avulsa no meio dos
casais?, eles se perguntaram.
Ele avisou que os quartos estavam prontos. Harriet captou o olhar triste
de Annie. Será que ela e Nigel dormiram juntos da outra vez?
Jotham sugeriu que levassem as malas para cima.
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Piero pegou a bagagem de Harriet e Elena a conduziu até o quarto. Era um
corredor, com portas regularmente distribuídas, que dava de frente para a
escada. Seu quarto era o último. Piero colocou as malas e saiu. Elena
ficou esperando para ver se Harriet queria mais alguma coisa.
Havia um grande jarro azul com água fresca, dentro de uma bacia de louça.
Harriet estava encantada. A mobília era linda: cama, armário, penteadeira
e até uma escrivaninha.
- Que ótimo quarto! Adorei! - Elena sorriu e ela decidiu perguntar, em
tom casual: - Onde é o quarto de Gaul?
com um olhar malicioso, a velha apontou para a porta mais próxima.
Não a surpreendia que Jotham ficasse tão perto. Depois que Elena saiu,
Harriet foi até a janela. Havia uma varanda, mas teria preferido a vista
para o mar. A paisagem
era estranha, dali, dominada pelo vulcão. Abriu a janela e ficou tentando
distinguir os cheiros: laranja, oliveiras, sal... Nem uma brisa soprava,
nenhum passarinho cantava; tudo estava imóvel e silencioso, criando um
clima meio amedrontador. Mesmo que estivesse extinto há muito tempo, como
diziam, tinha se a impressão de que algo primitivo e poderoso poderia
despertar furiosamente o sono do vulcão.
Se isso acontecer, pensou Harriet, espero que eu perceba logo. Não
duvidaria que Jotham me deixasse aqui.
Tirou a roupa e tomou um rápido banho de chuveiro. Depois, passou
bronzeador, colocou o biquini e uma camisa azul. No fim das férias,
estaria moreníssima. . . Nos últimos tempos estivera um pouco pálida, mas
agora ficava cada vez mais saudável e morena.
Foi a última a descer. Nigel esperava por ela no hall e os outros estavam
na cozinha. Desculpou-se:
- Demorei muito?
- Você está maravilhosa. Resplandecente como uma deusa de ouro.
- Ê o óleo que me faz brilhar. Ah, sinto cheiro de comida. . . Havia sopa
de peixe, pastéis de queijo,-frutas, queijo de leite de
cabra e vinhos locais.
Antigamente, Elena só trabalhava na cozinha. Depois do declínio da
fortuna dos Raffaele, passou a ser zeladora da vila, e Piero
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continuou a cuidar dos jardins. A maioria dos empregados deixou a casa ou
morreu. Só os dois e seu filho Paolo ficaram.
Ali era o lar deles. Para onde iriam? Não havia lugar na casinha de
Paolo. Durante quase dois anos, depois que a condessa morreu, a vila
ficou vazia e foram eles que a mantiveram viva, sem nada receber. Os dois
temiam a vinda de um novo proprietário, mas nunca falavam disso, nem
mesmo entre si. Foi quando Jotham Gaul chegou; sorrindo gentilmente,
conversando com eles, tratando-os bem melhor do que o último
representante dos Raffaele, um homem ríspido que só tinha pisado na ilha
uma ou duas vezes.
Havia boatos de que outras casas seriam construídas, mas o sorriso de
Jotham fez com que Elena se sentisse segura:
- Louvada seja a Virgem Santíssima! Ele é um bom homem disse a Piero.
Elena era uma mulher sensível; Piero nunca a tinha visto errar.
Os visitantes começaram a chegar, e eles se sentiam felizes. Mantinham a
casa alegre e os tratavam com o mesmo respeito devotado ao signore. No
início, Elena chocara-se com as regras de Jotham de que cada hóspede
precisava arrumar seu quarto, lavar, limpar. Afinal, Piero e ela estavam
recebendo salários novamente. Mas depois admitiu que talvez fosse
realmente muito trabalho para os dois. E, afinal, os hóspedes se
divertiam, fazendo as tarefas em grupo. Jotham tinha lhe dito que depois
contrataria uma nova equipe de trabalho e ela seria a governanta.
Eriça e Annie planejavam o cardápio, fazendo uma lista de mantimentos a
serem trazidos de barco, quando Harriet sentou-se à mesa. Tomou sua sopa
em silêncio, até que Eriça perguntou:
- Sabe cozinhar bem?
- Não, mas aposto que você sabe.
- Cozinheira classe A! - disse Alistair, fazendo Eriça inchar de orgulho.
- E Annie faz uma das melhores comidas que já provei - Jotham disse,
fazendo a garota sorrir.
Harriet apreciou o fato de Annie precisar de alguém para falar de seus
dons, mas seria aborrecido se Jotham continuasse a aproveitar qualquer
oportunidade para elogiar a outra e inferiorizá-la. Disse, agressiva:
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- E você comeu poucas coisas boas na vida, não é? Já está chegando a
idade de lamentar o tempo perdido. . .
Jotham apenas sorriu, mas Eriça e Annie protestaram. Harriet avisou:
- Bem, não contem comigo na cozinha. Não sei fazer um ovo. Não era
verdade. Seria capaz de fazer qualquer coisa que fosse
preciso, mas não cozinhava bem e não queria ser um bom alvo para as
críticas ferinas de Jotham.
- O que você sabe fazer? - Jotham perguntou. Foi Nigel quem,
vaidosamente, respondeu:
- Ser maravilhosa. Uma garota bonita como Harriet não precisa saber fazer
mais nada.
Um pesado silêncio caiu. Idiota sem tato!, pensou ela, furiosa. Eriça a
estava odiando, Annie perdera o sorriso. E não era elogio dizer que ela
não passava de um enfeite. Disse, rapidamente:
- A maior parte da beleza é maquilagem. Truques de cosméticos. Se vocês
não precisam de outra cozinheira, que tal uma arrumadeira? Posso arrumar
as roupas, lavar os pratos... É só dizer o que querem que eu faça. Claro
que de meu quarto eu cuido.
- Isso nunca foi posto em questão - Jotham comentou, em tom de gozação.
Quando acabaram de almoçar, desceram para a praia, deitaram na areia
prateada, tomando banho de sol. A água parecia fresca, sob o céu ardente,
e Harriet já tinha resolvido nadar, quando Eriça se levantou e sugeriu a
mesma coisa. Virou-se para Harriet:
- Pelo menos, sabe nadar, não é? .
- Sei.
- Está vendo aquela rocha? - Havia muitas rochas na baía e Eriça estava
apontando para a maior, a uns cem metros dali. - Pode chegar até lá?
- Acho que sim.
- Corra, então! - Eriça falou, e saiu correndo, seguida de Alistair e
Annie. Nigel deu a mão a Harriet e entrou com ela nas suaves ondas.
Depois de algumas braçadas, ela percebeu que poderia vencê-lo na corrida,
e aos demais também.
Era uma boa nadadora, mas, se ganhasse essa corrida, os outros iam
antipatizar ainda mais com ela. Nadou calmamente. Alcançaram
72
a rocha e subiram, as garotas sacudindo os cabelos molhados. Jotham tinha
ficado na praia. Se tivesse vindo, Harriet se esforçaria para ganhar a
corrida. Talvez ele não nadasse bem, e seria divertido fazê-lo bufar para
tentar passá-la. Perguntou:
- Jotham não vai se juntar a nós?
Responderam que sim e começaram a brincar, nadando como golfinhos na
pequena baía.
Embaixo do pier, a água devia ser sempre funda, e seria um bom lugar para
mergulhar. Harriet queria saber se havia rochas submersas, mas deixou
para perguntar em outra hora: com Nigel tomando conta dela como se fosse
um bebé, não seria possível falar em mergulhar.
- Você está bem? Não está cansada de ficar aqui? - ele perguntou.
- Está tudo bem. . . - Harriet já começava a se irritar com aquela
paparicação. - Chega de fazer onda! - Sorriu, para amenizar.
- Quando estiver cansada de ficar aqui, vou boiar, não se preocupe mais.
Continuou sentada na rocha maior, enquanto os outros se espalhavam pelas
rochas menores. O sol estava fervendo, e, assim que se viu sozinha,
mergulhou, nadando calmamente mais para o fundo. Depois de algum tempo,
escutou que alguém a chamava. Levantou os braços e gritou:
- Aqui!
Torceu para que Nigel não fosse até lá. Estava gostoso ficar sozinha,
queria apenas continuar boiando, levantando de vez em quando a cabeça
para olhar a costa, as árvores, o vulcão.
Nigel não veio, e depois de algum tempo Harriet procurou por ele. Estava
sentado na rocha maior, falando com Joth. Teve certeza de que conversavam
sobre ela.
Não podia ouvi-los, mas a conversa parecia séria. Pegou uma corrente que
a levou mais perto. Queria interromper qualquer coisa que Jotham
estivesse fazendo. Ou ela teria que ir lá, ou fazer com que Nigel viesse.
Sorriu, de repente: podia fingir que se afogava, e Nigel viria para
salvá-la. Uma corrente começou a puxá-la. Levantou os dois braços e
gritou:
- Socorro! A correnteza está me levando!
Respirou fundo e mergulhou. Quando começou a subir, sentiu
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que alguém a agarrava. Ao chegarem à superfície, viu que era Jotham.
- Você?!
- Os afogados não escolKem os salvadores - respondeu ele, puxando-a até a
praia.
Harriet percebeu que, se resistisse, ele não hesitaria em ser estúpido.
Sabia que ela não tinha se afogado, mas a levava meio submersa, como se
estivesse desmaiada. Era de propósito. Queria fazê-la confessar ter
enganado Nigel.
Quando ele parou de nadar e a levantou, Harriet saiu cambaleando. Tinha
que impedir que ele tivesse certeza do truque, para continuar contando
com a simpatia de Nigel.
Deixou-se carregar e sentiu quando a depositaram na areia. Estava de
olhos fechados e escutou Jotham dizer em seu ouvido:
- Se não se levantar rapidinho, vou lhe dar um beijo inesquecível ...
- Saia de cima de mim! - Harriet gritou, já de olhos abertos.
- Não estou em cima de você. Não ainda. O que acha do beijo? Harriet
gritou tão alto que os outros se viraram para ver o que
acontecia. Nigel a chamou e todos saíram do mar. Nigel foi o primeiro a
chegar. Ajoelhou-se a seu lado.
- Você está bem?
- Acho que sim. Os outros, com exceção de Alistair, pareciam menos
impressionados, Annie mordia o lábio e Eriça perguntou:
- O que aconteceu? Pensei que soubesse nadar.
Harriet tinha engolido muita água e sentia-se enjoada. Nigel foi buscar
uma toalha. Jotham disse:
- Não vá longe da próxima vez.
Todos perceberam, pelo sorriso dele, que ela havia fingido, e começaram a
rir. Nigel chegou com a toalha e enrolou Harriet. - vou embora. Sinto
como se tivesse engolido
metade da baía.
- Você não parece elegante como de costume - Joth comentou.
- Escapei por pouco.
- Pare com isso. Não estava correndo perigo nenhum.
- Não perigo de afogamento. Estava brincando! Mas quase ganhei o beijo de
minha vida, de Joth, e não consigo pensar numa forma pior de morrer!
74
Todos riram, incluindo Jotham. Se riam corri ela ou dela, nunca saberia.
- vou indo, agora.
- O jantar é às sete. Você está bem? - perguntou Nigel.
- Estaria melhor se ele não tivesse me "salvado". Quase me afoga de
verdade - Harriet respondeu, num súbito acesso de raiva.
- Sinto muito, mas você parecia em apuros e Joth nada melhor do que eu.
Quando percebeu que fingia, bem. . .
- Se eu realmente estivesse me afogando, ele me deixaria morrer. Estavam
no alto dos degraus de pedra, e ela parou um pouco antes
de subir a escada de madeira que levava à varanda.
- Qual é seu quarto? - Nigel perguntou.
- O que fica ao lado do de Jotham.
Sentou-se em uma cadeira na varanda para descansar. Nigel disse a ela que
Annie tinha ficado no mesmo quarto da outra vez, mas que ele agora tinha
um quarto seu, no alto da escada.
- E você está perto de Joth?
- Como em sua casa. Sua mãe me pôs ali para me afastar de você e para que
Jotham pudesse me vigiar melhor. Tanto sua mãe quanto ele estão do lado
de Annie, não é?
- Gostam muito dela.
- Já que Jotham gosta tanto, por que não casa com ela?
- Jotham não é do tipo que casa. As garotas passam por sua vida. . . -
Nigel respondeu, rindo. - Acho que minha mãe pensou que você podia tentar
conquistá-lo. Não sei por que, pois ela sabe que ele não se envolve
realmente com ninguém.
- Bem, ela mesma me sugeriu que casasse com ele, mas qualquer cego pode
perceber que eu e Jotham Gaul nunca seremos bons amigos. - Levantou-se,
pegou a toalha. - Por favor, mostre-me onde ficam os chuveiros aqui fora.
Nigel beijou-a no ombro.
- E depois. . .
- Depois, vou descansar, e quero realmente dizer isto: descansar. Tomou
um banho rápido e não encontrou ninguém no caminho
de seu quarto. Não ouvia vozes; por isso, pensou que todos ainda estavam
na praia. Trancou a porta do quarto e começou a secar os cabelos. Jotham
tinha dito que não estava elegante; pois então, ia descer mais bonita do
que qualquer uma de suas amantes.
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Quantas teria tido? Não que se importasse com isso. Se estava se
arrumando para alguém, era para Nigel. Ouviu uma batida na porta,
desligou o secador e ouviu a voz de Nigel:
- Harriet, sou eu.
Já que tinha dito que ia descansar, se não fizesse nenhum barulho, ele
pensaria que dormia. Isso não o magoaria. Queria esperar até estar
apaixonada por ele. Ficou quieta, esperando que fosse embora.
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CAPITULO VI
Harriet ficou no quarto até a hora do jantar. Desceu então para a sala.
Não tinha planejado uma entrada de efeito, apesar de vestida de maneira
atraente, como sempre.
Estava com um vestido de voai branco, preso nos ombros e na cintura, com
aberturas laterais; usava uma pulseira dourada, presa no alto do braço,
brincos grandes e sandálias sem salto.
Os outros já estavam lá embaixo. Quando ela apareceu no alto da escada,
viraram-se para olhá-la. Aguentou firme a inspeção, acostumada a olhares
insistentes. Continuou descendo calmamente, mas, ao chegar no meio da
escada, Jotham deu início a uma irónica rodada de aplausos.
- Que entrada magnífica!
- Estou contente que tenha apreciado. Não se acham passarelas assim
perfeitas com facilidade. Sua escada é incrível.. .
- Disponha dela quando quiser... Nigel disse, solene:
- Você parece uma deusa, hoje mais do que nunca. - Havia
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mesmo alguma coisa de grego ou romano no vestido dela, mas o elogio lhe
pareceu excessivo. Sabia que isso constrangia Annie.
- Ou uma escrava - Jotham acrescentou.
Harriet quase lhe agradeceu a possibilidade de quebrar aquele
constrangimento.
- É melhor você não provocar, já que está distribuindo tarefas. Por falar
em tarefas, quem fez o jantar?
Tinha sido Elena, e estava ótimo. Comeram na varanda, enquanto as
estrelas apareciam e a Lua ia cada vez mais alta. Na baía, os barcos
passavam como estrelas na água.
Harriet sentou-se, silenciosa. Não queria estragar aquela sensação de paz
que pairava.. Bebeu seu vinho, comeu, escutando os outros falarem de uma
festa local à padroeira, daí a dois dias. Seria no pequeno templo romano
no sopé do vulcão. Os pescadores do continente costumavam trazer as
famílias e namoradas, bebidas e comidas, e todos da ilha participavam.
Sempre havia música e dança e uma disputa de arremesso de peso. Jotham,
que era o único que já tinha ido a uma, disse que a festa era ótima.
Harriet gostou da ideia e ficou intrigada com as ruínas romanas. Queria
descobrir onde ficavam. Havia muita coisa para explorar na ilha.
- Vamos entrar? - Jotham sugeriu, quando acabaram de comer. A porta
aberta mostrava uma sala aconchegante e bem iluminada. As explorações
podiam esperar até o dia
seguinte. Annie bocejava e Eriça disse que ia dormir.
Os homens ainda ficaram algum tempo lá embaixo, e as três moças subiram.
O quarto de Eriça era o primeiro. Entrou sem dizer nada; Annie gritou-lhe
um boa-noite, Harriet despediu-se falando para a porta fechada. Annie
sorriu.
- Eu tinha ciúme dela - disse -, na última vez que viemos para cá, porque
é mais bonita
do que eu. Agora, ela é que está com ciúme de você. Acho que você nunca
invejou
ninguém, não é?
- Poucas pessoas. Mas a aparência não é tudo para alguém ser feliz. -
Impulsivamente, perguntou: - Gosta muito de Nigel? Gostaria de ter
mordido a língua para não perguntar nada.
- Muito - Annie respondeu, parando na porta de seu quarto. Pensei que
íamos ficar noivos na festa. Você gosta dele?
- Gosto.
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- Bem, ele está maluco por você - Annie comentou, com inesperado humor. -
Não sei o que estou fazendo aqui. Não teria vindo, se Joth não insistisse
tanto. Teria sido muito melhor não vir; assim, não ine magoaria tanto.
Entrou no quarto e fechou a porta.
Então, Annie tinha vindo por insistência de Jotham? E que história era
aquela de ficar noiva na festa? Ninguém lhe havia dito nada.
Tendo Annie, Eriça e Jotham contra ela, seria difícil ficar sozinha muito
tempo com Nigel, Harriet pensou. A ideia de conhecê-lo melhor e refletir
sobre seus próprios sentimentos parecia irrealizável, naquele clima de
competição e inimizade. Eriça continuaria disputando o tempo todo e Annie
parecia sofrer cada vez mais. Tudo ficaria ainda pior, se Jotham não
parasse de hostilizá-la. Perguntava-se se conhecer Nigel valeria todo
aquele desgaste. Bem, sentia-se bastante atraída por ele e, apaixonado
como ele estava, acabaria encontrando uma saída. Ela não tomaria a
iniciativa.
Ainda estava quente. Mesmo depois de tirar a roupa e molhar o rosto e os
braços, sentia calor. Não conseguiu se cobrir e deitou pensando no mar.
Imaginou-se boiando de novo, mergulhando lentamente, e lembrouse de Joth
agarrando-a sob as ondas e levando-a para a superfície. Ele a teria
salvado, se estivesse se afogando. Tinha sido o único a entender seu
grito.
Mudou de posição e pensou como seria bom um ar condicionado.
Acordou com a sensação de que alguém a sacudia. Sentou-se na cama e olhou
em volta do quarto escuro. Sentiu uma vibração, como se estivesse em cima
de um metro.
Um tremor de terra? O vulcão? Quem garantia que estava mesmo extinto?
Haveria um barco para fugir?
Pulou da cama e vestiu um quimono verde. Abriu a janela e foi até o
terraço, examinar o vulcão. Pequenas nuvens acumulavam-se no topo, talvez
fumaça.
Nenhuma luz acesa na casa, todos dormiam. Ninguém teria sentido o tremor?
Tudo estava quieto, com exceção de uma leve brisa que remexia as folhas
lá fora. Mas ela não havia sonhado. Tinha certeza de que acordara com o
tremor. Precisava falar com alguém; senão, não conseguiria dormir.
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Foi até a varanda, que tandem dava para o quarto de Joth, e espiou pela
porta entreaberta.
- Ei! - Levantou um pouco a voz e disse: - com licença.
Ele se sentou na cama. Harriet limpou a garganta apertada pelo medo e
murmurou:
- Sou eu, Harriet.
- Estou vendo. . . Acho que voce errou de quarto!
- Não sentiu um tremor ha pouco? Minha cama tremeu. Tem certeza de que
essa coisa está extinta?
- Ah... Bem, não foi aqui, deve ter sido o ruído de algum motor por aí,
não se preocupe. O meao está extinto desde a época dos romanos.
Estava tão calmo, que Harriet acreditou. Mesmo assim, perguntou:
- Tem certeza de que não vai acontecer?
- Está extinto, garanto. Sinto muito que você tenha se assustado.
Importuna, pensou. Sustos histéricos. -
- Desculpe acordar você, mas ninguém me preveniu disso.
Virou-se para o vulcão. Parecia calmo, como uma grande montanha cinzenta,
e as nuvens
eram nuvens, não fumaça. Foi até a varanda, ficando lá, debruçada na
grade.
Joth se aproximou, vestido com um roupão.
- Não tinha visto o barco e não estava certa de que você me chamaria, se
fosse necessário
fugir - Harriet confessou.
- Por que acha que eu a Abandonaria, depois de salvá-la de um afogamento?
- Depois de quase ter me afogado, você quer dizer. - Sorriu, olhando para
ele. - Sabia que eu estava brincando, não é?
- Não. Mas se tivesse parado para pensar, teria percebido. Estava uma
noite clara e ela
pensou ver até a expressão de seus olhos, que a observavam. - Esse é um
de seus truques, hein? A frágil mocinha se afogando, desmaiando.
- Pareço uma frágil mocinha?
- Não disse que você era; Qisse que joga assim, quando interessa.
- Hoje, estava brincando, mas não fingi, quando desmaiei na mansão Tudor.
Foi a primeira Vez que desmaiei, mas nunca tinha perdido meu pai antes.
- Sinto muito, Harriet.
- Eu o amava muito, você abe.
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Por que tinha dito isso? Não queria a amizade de Joth.
- E foi por isso que se interessou por Nigel? Está procurando segurança?
Harriet não queria que ele começasse a investigar sua vida: Falou, séria:
- Disse a você que gostaria de viver na mansão Tudor. - Ficaram num
silêncio desconfortável, perto da verdade. Seus sentimentos para com
Nigel estavam ligados àquela casa; àquela festa de ano-novo, quando tudo
tinha começado, quando o pai se orgulhara dela pela primeira vez.
- Mas gosta dele?
- Não se meta! Quem disse que eu e Nigel não fomos feitos um para o
outro?
Ele olhou para ela durante um tempo que lhe pareceu infinito e disse:
- Pobre Annie! Não terá muita chance.
- Você está triste por ela, não é?
- Claro que estou. É uma grande garota, e o homem com quem esperava casar
está dormindo com...
- Não comigo!
- Não esta noite - corrigiu Jotham.
- Nenhuma noite.
Houve outro silêncio e ele disse:
- Por que não? Pensei que ele a achasse irresistível. . .
Até certo ponto, tinha sido por falta de oportunidade, pensou Harriet.
Mas só até certo ponto, pois poderia estar com ele agora, se tivesse
corrido para seu quarto, em vez de se meter com Jotham Gaul.
Disse, levianamente:
- Talvez eu esteja resistindo um pouco. Nigel tem boas maneiras, espera
ser chamado. Nunca bateria à porta do quarto de uma dama. . .
- Não olhe para mim - ele interrompeu, com indignação fingida.
- Não ando por aí, batendo em portas. Não preciso fazer isso, elas me
chegam pela janela. . .
- E aí descobrem que estão no quarto errado.
- Você não pode conquistar todos.
- Ouvi por aí que é você que conquista quase todas.
- E eu ouvi que é você que faz isso.
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Riram. Uma brisa levantou o robe de Harriet, deixando à mostra suas
lindas pernas.
O que estou fazendo aqui, pensou, quase nua, conversando com Jotham Gaul?
Virou-se na direção de seu quarto.
- Bem, boa noite. Mantenha nosso vulcão quieto.
- Farei isso por você.
Alguma coisa no timbre da voz dele fez com que ela hesitasse e olhasse
para trás. Mas Joth não disse mais nada. Ela entrou no quarto e fechou a
janela. Deitou-se, pensativa.
Não devia ter ficado lá fora mais de quinze minutos, conversando com ele.
Medo, raiva, risadas, em um espaço de tempo tão curto. . . O que viria
depois? Imagine se Joth se aproximasse dela quando estava com medo!
Ficaria assustada, claro, e furiosa. Mas então, enquanto riam, ele
poderia ter segurado sua mão, que ela continuaria a sorrir. . .
Sonolenta, ainda tentava descobrir por que tinha tido a impressão de que
ele não a queria lá. Se ela não tivesse se despedido, quanto tempo ainda
ficariam? O que mais deveria ter sido dito? Ou, feito.
Tornou a pensar nele, quando acordou. Ficou algum tempo deitada. Depois
foi-até a varanda e assegurou-se de que nada havia mudado. Não tinham
visto o fim do mundo juntos. Mas ele era um homem surpreendente.
Vestiu-se e desceu. Era cedo e o dia ainda estava fresco. Talvez fosse
uma boa hora para excursões. Se alguém lhe explicasse como, poderia ir
até as ruínas, ou, quem sabe, escalar o vulcão para ter certeza de que
nada fervia lá dentro.
Na cozinha, encontrou Piero e Annie tomando o café da manhã. Élena
descascava pimentões verdes e vermelhos.
- bom dia.
- bom dia. Sirva-se, Harriet - disse Annie.
- Só vocês já acordaram?
- Jotham está por aí - Annie respondeu.
Depois que acabaram seu café, Annie e Elena começaram a fazer a lista do
que tinham que comprar para a comida da festa.
A Vila Raffaele sempre havia patrocinado a festa. Agora que tinha um
signore de novo, voltara a seu antigo papel. Já no ano anterior, com
carta branca de Jotham, Elena se encarregara da comida, que foi um dos
pontos altos da festa.
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- Mais café? - Annie perguntou. - E talvez Joth queira um pouco mais.
Harriet surpreendeu-se dizendo:
- Quer que eu leve para ele?
- Se você quiser... - Annie pareceu surpresa também. - Acho que está no
escritório. A primeira porta à direita.
Assim, lá foi Harriet levando café para o "senhor". Ninguém poderia
acusá-la de não estar ajudando. Entrou no salotto, uma espécie de sala de
estar, ao lado do hall,
que obviamente tinha acabado de ser reformada. Estava pintada de novo,
num tom lindo de creme. As cortinas também eram claras.
Harriet reparou nas belíssimas pinturas; havia uma parede só com
originais, um deles de Miro, que certamente valia uma fortuna. No chão,
tapetes persas. O retrato
de uma mulher jovem imediatamente chamou sua atenção. Estava pendurado ao
lado de uma janela que dava para os limoeiros. Era uma mulher atraente,
de cabelos negros
e brilhantes, presos numa trança; usava um colar de pérolas e anéis.
Harriet olhou para o quadro e disse:
- Gostaria de saber quem é você.
A porta do fundo do salotto era a do escritório. Harriet bateu.
Jotham disse para entrar e arregalou os olhos quando a viu. Estava atrás
de uma grande mesa e de pilhas de papéis, uma à sua direita, outra à
esquerda. Entre as duas pilhas, um manuscrito que ele devia estar lendo.
- Annie mandou isto para você.
- Annie é muito atenciosa. - Joth pegou a xícara.
As pilhas de papéis a fascinavam por alguma razão. Ficou olhando para
elas.
- Mais alguma coisa? - ele perguntou.
A ilha parecia tão longe do mundo dos negócios. . . Ela continuou a olhar
os papéis e perguntou:
- Aqui tem correio?
- Os barcos de pesca trazem a correspondência. Você quer mandar alguma
coisa?
Harriet balançou a cabeça:
- Não particularmente. Apenas me pareceu engraçado que você continuasse a
comandar seus negócios daqui. Tem alguma coisa a ver
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com minha fábrica? - Corrigiu depressa, antes que ele o fizesse: Minha
fábrica que é praticamente sua?
- Tem.
Claro que era por isso que ela não conseguia desviar o olhar dos papéis;
não era mais sua fábrica, mas-ainda se preocupava com ela.
- Você está pagando as contas?
- Estou.
- De quê?
- Equipamentos novos, máquinas, móveis. Harriet perguntou, num impulso: -
Como você começou? De onde veio?
- Preocupe-se com quem eu sou agora - ele respondeu, sem levantar os
olhos do papel.
- Alguém que está tentando ajudar Annie a ficar com Nigel. Queria fazer
com que ele olhasse para ela, mas não conseguiu.
- Entre outras coisas.
- Você dirige uma dúzia de fábricas pela manhã, fica com a tarde livre
para dirigir a vida dos outros e chama isso de férias?
- Vá, e divirta-se em outro lugar. - Desta vez, Joth olhou para ela.
Harriet saiu, batendo a porta como uma criança emburrada. Também, não
podia realmente esperar que Joth discutisse com ela seus planos para a
fábrica, nem que contasse a história de sua vida. Como ele tinha dito,
tudo o que ela precisava saber era que ele estava ali agora.
Não foi direto à cozinha. Andou pelo salotto e parou na frente do retrato
da jovem mulher. Estava ali, de pé, quando Nigel chegou e lhe deu um
beijo de bom-dia. Ela olhou para o retrato e perguntou:
- Quem é essa mulher?
- Adelanta, condessa de Raffaele. Joth achou que devia deixar o retrato
aí. Afinal, ela morou aqui por oitenta anos. . .
- Eu também não tiraria o retrato; é muito bonito. Mas acho que Joth
devia ter pendurado junto os da família dele.
- Joth não tem parentes. Minha mãe e eu somos sua família.
- Como vocês ficaram amigos?
- Mamãe era amiga da mãe dele desde pequena. Ele foi educado pelo avô,
ferreiro em Yorkshire. A mãe morreu quando ele era criança,
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sem revelar a ninguém quem era seu pai. Joth costumava passar as férias
conosco.
- Vocês não imaginam como isso é importante para as crianças que não têm
pais. - Harriet se lembrava muito bem do tempo de escola, em que ficava
meses ansiosa por um convite para passar as férias na casa das amigas. -
Ele deve ter tido uma infância triste.
- Acho que sim. - Nigel não parecia completamente certo disso. -- Ele se
sustenta desde os dezesseis anos, mas nunca ninguém sentiu pena de Joth.
Todos nós sabíamos
que ele ia subir na vida.
- Como chegou aqui? - Harriet olhou para a porta do escritório, onde
Jotham estava transformando um negócio falido em algo rendoso. Gostaria
de ter feito isso. Se alguém a tivesse ajudado. . .
- Ele começou cedo, assim que saiu da escola. Abriu uma fábrica de
fundição de ferro, utilizando uma velha forja. Deu certo. Tudo que Joth
toca dá certo. Uma fábrica leva a outra e. . . Agora, não trabalha mais
com ferro fundido, mas com indústria pesada. Não mudou nada; é exatamente
o mesmo desde que o conheci.
- Isso é pena.
Nigel puxou Harriet pelos ombros.
- Eu realmente gostaria que você gostasse dele. Não sei por que vocês
dois não conseguem se dar bem.
Nesse momento, Joth entrou na sala.
- Ela está lhe contando o medo que sentiu à noite? Nigel não entendeu
nada. . . .
- Que medo?
- O tremor.. . Você não sentiu? Pensei que nosso vulcão tivesse acordado.
Olhei para as nuvens, pareciam fumaça - Harriet explicou.
- Não, é realmente seguro. - Nigel riu. - Você confundiu seus tremores
com os do vulcão! Mas por que foi ao quarto de Joth?
- Não estava procurando ninguém em particular. Fui até a varanda, e a
janela dele estava aberta. Só queria saber se podia voltar para a cama,
ou se devia correr até a praia e fugir de barco.
- Claro - Nigel disse, mas qualquer coisa em seu olhar mostrava que não
estava muito convencido.
- Vamos tomar café. - Harriet foi andando na frente de Nigel, devagar,
evitando cruzar com Jotham no hall.
- Estava atónita. Não compreendia por que se sentira tão culpada, nem por
que seu coração batia tão forte. Não se sentiria mais culpada
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Fim