Você está na página 1de 98

CIBELE APARECIDA DE MORAES

GÊNEROFEMININOSINGULARPLURAL: UMA LEITURA


CRÍTICA DA COLUNA DO MEIO, DE MILLY LACOMBE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

MESTRADO EM LETRAS

Dezembro de 2014
2

CIBELE APARECIDA DE MORAES

GÊNEROFEMININOSINGULARPLURAL: UMA LEITURA


CRÍTICA DA COLUNA DO MEIO, DE MILLY LACOMBE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras, da Universidade Federal de São
João del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do
título de mestre em Letras.

Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura


Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural
Orientador: Prof. Dr. Anderson Bastos Martins

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

MESTRADO EM LETRAS

Dezembro de 2014
3

CIBELE APARECIDA DE MORAES

GÊNEROFEMININOSINGULARPLURAL: UMA LEITURA


CRÍTICA DA COLUNA DO MEIO, DE MILLY LACOMBE

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________
Prof. Dr. Anderson Bastos Martins – UFSJ (Orientador)

____________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Luiza Scher Pereira – UFJF

____________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Ângela de Araújo Resende – UFSJ

____________________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Manoel da Silva Oliveira – UFSJ (Suplente)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

MESTRADO EM LETRAS

Dezembro de 2014
4

pós
Angélica Freitas

os homens as mulheres nascem crescem / veem como os outros


nascem / como desaparecem / desse mistério brota um cemitério / enterram
carcaças depois esquecem // os homens as mulheres nascem crescem / veem
como os outros nascem / como desaparecem / registram registram com o
celular / fazem planilhas depois esquecem // torcem pra que demore sua vez /
os homens as mulheres / não sabem o que vem depois / então fazem uma pós
// os homens as mulheres nascem crescem / sabem que um dia nascem /
noutro desaparecem / mas nem por isso se esquecem / de apagar o gás e a luz

para a adelaine, síntese da mulher que almejo ser, em todas, de


todos os lugares: divinópolis, carmo da mata, são joão del-rei, rio de janeiro,
manhuaçu, são lourenço, são paulo, congonhas, juiz de fora, belo horizonte,
barbacena, itapecerica, itabirito, ouro preto, serra negra, santos dumont,
petrópolis, vitória, caxambu, entre rios de minas, lagoa dourada, recife, antônio
carlos, salvador, pedralva, tiros, caetanópolis, los angeles
5

RESUMO
Esta dissertação se pretende um exercício crítico e autobiográfico das crônicas
publicadas pela jornalista Milly Lacombe na Revista TPM (Trip Para Mulheres),
e reunidas, em 2010, no livro tudoésóisso: amor, conquistas e outros prazeres
fundamentais. O estudo parte de breve contextualização da crônica como
gênero ligado ao jornal, se detém na teorização de Eneida Maria de Souza
(2002, 2011) sobre a crítica biográfica, para desembocar nas questões de
gênero envolvidas nesta escrita de si, amparando-se em textos de Eve
Kosofsky Sedgwick (2003), Judith Butler (2012) e Julia Watson (2012).

Palavras-chave: crônica, crítica biográfica, estudos de gênero


6

ABSTRACT

This thesis is intended as a critical and autobiographical exercise over the


comment texts written by the journalist Milly Lacombe for Revista TPM (Trip
Para Mulheres) and collected in 2010 in the book tudoésóisso: amor,
conquistas e outros prazeres fundamentais. This study starts out from a brief
contextualization of the comment text (crônica) as a genre associated to the
printed press (the newspaper), lingers on Eneida Maria de Souza’s theorization
of biographical criticism (2002, 2011) and ends at the gender issues that come
into play in this writing of the self as they appear in the work of Eve Kosofsky
Sedgwick (2003), Judith Butler (2012) and Julia Watson (2012).

KEYWORDS: comment text, biographical criticism, gender studies


7

SUMÁRIO

RESUMO 05

INTRODUÇÃO: Para se ler com a memória 08

I) “A beautiful place to die” 14


1. Intermezzo 22

II) Milly e a crônica 26


1. O primeiro começo: Metaphorical penis 27
2. Chronicas: nascer e florescer 32
3. Chronistas feministas 37

III) Milly e Eneida: a crítica biográfica 45


1. Entrevista imaginária: conceituação 46
2. Nem verdadeiro, nem verossimilhante: ficcional 48

IV) Milly e Eve: a epistemologia do armário 59

V) Milly e eu: considerações finais 89

VI) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 92


8

INTRODUÇÃO
Para se ler com a memória

Conheci a jornalista Milly Lacombe em setembro de 2004, num


encontro-relâmpago que durou quatro segundos, nas escadarias do prédio
onde funcionam a redação das revistas Trip e TPM, e de outras publicações
desse grupo editorial, sediado em São Paulo. Leitora de suas crônicas desde
quando passei a assinar a revista que ela então dirigia, confesso que não fiquei
muito impressionada, mesmo porque jornalistas, em dia de fechamento, não
são as pessoas mais indicadas para um papo de fã. Também, a tendência
natural à idolatria que dedicamos àqueles a quem admiramos embaralha nossa
perspectiva: como eu a achei pequena!
No ano seguinte, fiz um curso sobre crônicas de autoria feminina,
ministrado pela professora Constância Lima Duarte (UFMG) neste Programa
ao qual agora estou vinculada, e meu trabalho final versou sobre a produção de
Vocês-Sabem-Quem. Desde então, e vencida minha assinatura da TPM,
passei a colecionar as crônicas que podiam  e ainda podem  ser lidas na
versão eletrônica da revista (www.revistatpm.uol.com.br). Com periodicidade
mensal, é de se imaginar o monstro que eu estava criando, um corpus que se
autoalimentava para além das possibilidades analíticas de um curso de
Mestrado, como eu pensava então.
Em setembro de 2010, abro as páginas eletrônicas da revista, e qual
não é minha surpresa ao ser informada do lançamento de um livro contendo as
crônicas selecionadas pela própria autora, de seu começo na TPM até aquela
data! Entendi tudoésóisso: amor, conquistas e outros prazeres fundamentais
como um sinal: era o objeto de que eu lançaria mão para a seleção 2011 do
Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-
Rei. Rapidamente, sentei-me à tela, e redigi uma carta para Milly, contando
essa história de maneira semelhante à que faço aqui. No entanto, não a enviei,
talvez por pudor, autocensura, timidez, não sei. O que sei é que a ideia vingou,
e aqui estou eu, remexendo a memória em busca de justificativas para um
9

projeto que vem lá de 2005, quando se tinham passados sete anos exatos,
decurso que, segundo os antroposofistas, fecha um ciclo.
Pois bem. O livro de Milly também abriu para mim um caminho de
legitimidade. A crônica é, segundo Antonio Candido (1992), “filha do jornal e da
era da máquina, onde tudo acaba tão depressa”, e que nos liberta, a nós,
jornalistas, da efemeridade dos recortes hiperinstântaneos da matéria de jornal.
Dulcília Buitoni, professora da Escola de Comunicações e Artes da USP,
discute a produção feminina desse gênero já considerado literário e anuncia: “é
na imprensa feminina que encontro os antecedentes da crônica” (1985). Que
remonta aos folhetins que entretinham as senhoras oitocentistas, as quais, uma
vez autoras, optaram, num primeiro momento, pela “seriedade de afirmação”,
para, em seguida, com o desdobramento de sua escrita, adotar o humor, a fina
ironia e o lirismo mais descabido, dos quais as crônicas de Milly nos dão
exemplos acabados:

[...] Foi nessa época que o moleque começou a apresentar


desvios comportamentais preocupantes, como passar o dia
assistindo no vídeo a uma série que se chamava As Faces da
Morte  ao que consta, cenas reais de pessoas morrendo. Ali
tive certeza de que criávamos em casa um serial killer, embora
até os sete anos ele jurasse a meus pais que queria ser lixeiro.
Mas a vocação do varão não era nenhuma dessas.
No começo dos anos 1990, ele chega em casa com a notícia
de que havia entrado na faculdade: Medicina da USP. Pronto,
era o que meus pais precisavam para eleger oficialmente o
moleque o homem mais capaz do planeta. Macho, filho
exemplar e médico. Quando minha mãe me ligou para dizer
que o Arnaldo ia ser doutor, tive uma crise de choro.
De uma maneira ou de outra, Adriana, Nininha e eu nunca
deixamos de ser duras e crueis com o moleque. O que ele
talvez não saiba é que, como mães substitutas, o que sentimos
é orgulho  e que foi por isso que eu chorei tanto quando
soube que ele ia ser médico. Orgulho por ele ter sobrevivido à
nossa chatice, por ele ter se transformado em um nadador
fenomenal, em um sujeito sensível e carinhoso, em um
homem, como sonhavam meus pais, raro. (LACOMBE, 2010,
p. 93)

Não por outro motivo, a crônica, prosseguindo com Antonio Candido,


“consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com
relação à vida de cada um”, inesgotável. Porque feito de um sem fim de
10

possíveis, o texto de Milly Lacombe apresenta-se como convite a outras


leituras, a outros escritos, a outros saberes, sem violência nem arbitrariedade,
mas com a firmeza de quem sabe que a cultura e seus múltiplos significados
compõem-se de dobras e redobras  uma teia de sentido tecida e refeita pelo
próprio homem.1
Assim contaminada, imaginei para esta dissertação estrutura
semelhante à de um jornal antigo, o que me permitiu certas liberdades que
deixariam sem fala um purista da Associação Brasileira de Normas Técnicas,
mas que, acredito, serão bem acolhidas pela minha moderna banca feminina
de avaliação.
Dentre outros pecadilhos normativos, começo nomeando os
capítulos com números romanos, e não arábicos como recomenda a regra. A
Parte I, “A beautiful place to die”, funciona como um nariz-de-cera, aquela
delícia de arroubos folhetinescos que foi enterrada, com o pesar de Nelson
Rodrigues, pela introdução nas redações brasileiras, durante os anos 1950, do
padrão dito “científico” da escola jornalística americana. A idiotia da
objetividade, “em forma de pura, sucinta e objetiva informação”2, que se
presumia imaculada como as legiões angélicas, chegava com seus “five W’s:
who?, when?, where?, what?, why?”. Optante das sabedorias da subjetividade,
neste quase capítulo o arrebatamento nada mais é do que uma declaração à
Teoria Crítica, por meio das formas cambiantes pelas quais elas, Teoria &
Crítica, passam pelas memórias de minha vida. Neste momento, recordo a
necessidade de apresentar as indagações que problematizam as
argumentações de um texto que se pretende investigativo sem, contudo, deixar
de se amparar, um minuto sequer, no imodesto amor que devoto à Literatura.

1
Fazemos coro a Eduardo Galeano: “Entendíamos por cultura a criação de qualquer espaço de
encontro entre os homens e eram cultura, para nós, todos os símbolos da identidade e da
memória coletivas: testemunhas do que somos, as profecias da imaginação, as denúncias do
que nos impedem de ser. [...] Queríamos conversar com as pessoas, devolver-lhes a palavra: a
cultura é comunicação ou não é nada. Para chegar a não ser muda, achávamos, a cultura nova
tinha de começar por não ser surda.” (GALEANO, 2011, p. 164-165)
2
Crítica de Nelson Rodrigues ao pudor dos jornais modernos em abrir espaço e drama para
crimes passionais. Para ele, eram praticamente inexistentes as fronteiras entre jornalismo e
ficção: ‘Eu não via nenhuma dessemelhança entre literatura e jornalismo. Já ao escrever o
primeiro atropelamento, me comovi como se fosse a minha estreia literária’. Em COSTA, 2005,
p. 242.
11

Na Parte II, Milly e a crônica, inicio o cotejo história-atualidade deste


gênero híbrido, múltiplo e adejante, que nasceu no rodapé do jornal e
floresceu, notadamente no Brasil, até alcançar a nobreza do alto da página. Se
nas origens tudo era angústia (registrada nos cadernões de anotar a vida) e
dúvida (consumida nas chamas do debate tão vitoriano acerca da paternidade
literária e da criatividade feminina), no entremeio de sua evolução histórica a
crônica seduziu os românticos, os realistas, os naturalistas, os simbolistas, os
parnasianos, os pré-modernos, os modernos e os contemporâneos. Na
efervescência cultural da década de 1960, impulsionada pelos cadernos de
cultura, a crônica de autoria feminina  cujas pioneiras ditavam, a partir de
meados do século XIX, os contornos do que viria a se constituir no amplo leque
temático e formal da produção do gênero  assume o tom de uma narração
reflexiva ao centro e à margem, que abarca cotidiano, dor, prazer, confissões e
memórias, fazendo do ato da escrita estratégia de apropriação das histórias
dos outros. A questão é ruminar. E contar. E lembrar, como Joaquim Ferreira
dos Santos, que:

Cronistas são seres curiosos, exibicionistas pelo avesso.


Maltratam-se na apresentação da falta de qualidades, como se
estivessem na vida apenas com a missão de flanar ao léu.
Procuram, no entanto, demonstrar isso com um charme tão
particular que ao fim da apresentação, feita à base apenas de
palavras, pontos e vírgulas, a mulher desejada o veja louro,
alto e de olhos azuis.
Tenha cuidado com eles. (O GLOBO, 27/10/2014, p. 8)

Milly e Eneida: a crítica biográfica, Parte III, é um exercício ficcional


norteado pela técnica da entrevista, uma das que mais me seduzem em minha
profissão, no qual me entrego ao prazer de editar uma conversa imaginária
com a decana da crítica biográfica brasileira, a professora que entortou (e
depois realinhou) meu entendimento da biografia como reinvenção e registro.
Tomando por base os artigos assinados por ela e reunidos nos livros de
cabeceira daquela modalidade crítica, Eneida Maria de Souza e eu debatemos
o estatuto ficcional da encenação de subjetividades no ato da escrita e do
12

discurso autobiográficos, ressaltando o caráter elusivo que sustenta o conceito


de autoficção.
A penúltima, Parte IV  Milly e Eve: a epistemologia do armário,
pode ser descrita como uma aventura, a aventura de ler as crônicas de Milly
Lacombe, titular da primeira coluna gay em revistas femininas brasileiras, sob a
ótica da teoria queer, guiada pelo entendimento de que a sexualidade é um
dispositivo histórico de poder alicerçado na regulação da vida social e
individual, como propõe Eve Kosofsky Sedgwick no clássico estudo do qual me
apropriei para nomear este capítulo3. Lugar de contradições, o armário
metaforiza encenações e dilemas que cercam e cerceiam a vivência plena das
relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo, tentando normatizar formas
de amar que, no entanto, escapam por fronteiras de resistência e insubmissão.
A título de conclusão, temos, na Parte V  Milly e eu, a tentativa de
enfeixar teoria e memória num panorama de reafirmação da urgência,
conveniência e utilidade da crítica feminista para a sobrevivência rearticulada
da intensão reflexiva da qual os estudos de gênero extraem seu vigor analítico.
Nunca é demais sublinhar essa opção, guerrilheiramente, como faz Aline Valek
no blog Escritório Feminista:

Tirar a roupa para protestar também não pode. Porque há


quem diga que as mulheres até podem lutar por seus direitos,
mas não podem “lutar demais”.
Essas pessoas é que definem quem pode ficar nua, onde,
quando, por qual motivo e para quem elas devem se mostrar.
Mas as feministas é que são chatas.
Querem cagar regra sobre o que a mulher pode ou não fazer
com seu próprio corpo. Mas as feministas é que são chatas.
Feministas são chatas porque falam de assuntos que ninguém
quer ouvir. Porque querem mudar coisas que não interessa aos
privilegiados mexer. Porque escrevem e falam sobre assuntos
que vão deixar as pessoas desconfortáveis.

3 A opção metodológica aqui passa por Michel Foucault: “A sexualidade é o nome que se pode
dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade,
mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos
prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e
das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de
saber e de poder”. (FOUCAULT, 2005, p. 100)
13

Feministas são as malas sem alça que desconstroem as


mensagens da mídia e as estruturas da sociedade. Feministas
são as chatas que questionam tudo.
Feministas reivindicam que a mulher faça do seu corpo e da
sua vida o que bem entender, sem nenhum papel de gênero
para limitá-la e nenhum homem para oprimi-la, e por isso são
consideradas umas chatas. Tudo porque acreditam na ideia
radical que mulheres são seres humanos.
É, as feministas são chatas. E eu estou convicta de que sou
uma também. (VALEK, 2014,
www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista)

Eu sou feminista também. E esta dissertação sou eu saindo do


armário espaçoso e confortável das seguranças que me definem, em direção
ao voo cego de imaginar detalhadamente o resultado final e temer cada passo
da travessia, o olhar direto para o centro das coisas (a teoria), o olhar
enviesado para as margens (da obra), ouvidos apurados para os sons de
névoa e silêncio lançados pelos donos da neblina das palavras inspiradas das
histórias de Eduardo Galeano. Ao tomar o pulso da cena (aprendi com Pamuk),
entendi (com Ana Elisa Ribeiro): mulher que escreve não é coisa que se defina.
É um desassossego. É um facho. Se de luz ou de trevas, ainda não sei.

Boa leitura!
14

I. “A beautiful place to die”

Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe;


mas principal quero contar é o que eu não sei se sei,
e que pode ser que o senhor saiba.
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
15

No dia 18 de junho de 2010, uma sexta-feira, vivi minha relação mais


forte com a teoria. Não a literária, a médica. Minha filha mais velha, o gênio
enciclopédico da casa  que desde os cinco anos sabia, entre outros
conhecimentos dessa ordem, ser o guepardo o animal mais veloz do mundo ,
na companhia de quem passo as noites devorando livros, “acordou” em
convulsão, sem que nós atinássemos quais os motivos. Como quem busca na
estante o poema certo para os momentos solenes, nossa única reação foi ligar
para o pediatra, que nos recebeu aflito na porta do hospital, com aquela (ainda)
criança que eu trazia desacordada nos braços, por quem ele nutre especial
afeição desde que a recebeu de minha barriga num inverno particularmente
gelado. Talvez por saber do nosso amor pelos livros, e depois que a tivemos de
volta, após excruciantes 47 minutos de ausência, contados da hora em que a
descobri em crise, às 6h10, seu pediatra a presenteou com uma revistinha do
Calvin, enquanto me orientava a ler a “literatura” médica que ele trazia escrita
em seu bloco verde de receitas. Naquele corredor desmontado de hospital em
obras, não consegui entender o que eram tantos sites relacionados com aquela
inconfundível letra ilegível, alguns em francês, língua de sua especialização.
Mas a palavra “literatura”, dita em contexto tão esdrúxulo, chamou minha
atenção: seria uma senha para indicar a gravidade da crise? Seria apenas
conforto para todo o desamparo que sentíamos? Era tudo e mais: um código
que me convocava a ser forte, por meio da única linguagem que ele sabia que
me estruturaria. Este poema estava escrito no verso da receita verde de sites:

Antes que seja,


essa profecia das minas
queima cadáveres suspeitos
os seus mortos
enterra por aí mesmo
o medo
é o espelho
dessa geração
onírica
e contaminada

O medo sublinhado, embaralhado como na poesia concreta. Nunca


soubemos quem o autor.
16

Assim, mergulhamos na “literatura” médica sobre convulsões na pré-


adolescência. À medida que aquela teoria dura penetrava nas conversas
diárias da casa, mais e mais eu sentia a necessidade, como uma dor, de me
refugiar na poesia. Diariamente, retirava das estantes: Drummond, para
reencontrar a segurança suspensa; Manoel de Barros, para refundir solo e
silêncio; Adélia Prado, para reafirmar minha identidade; Bandeira, para
reorganizar o que não tive; Guimarães Rosa, para remapear aquela vereda
esconsa.
Numa tarde, lá pela metade da leitura em voz alta do conto do
Miguilim, percebi como ia dominando o ritmo tão particular desse texto
enviesado. E me lembrei de quando o estudamos com a professora Márcia
Marques de Moraes (PUC-MG), em oficina do 19º Inverno Cultural da UFSJ, e
de como passei a gostar mais ainda daquele conto primoroso. Na fieira das
lembranças de meus primeiros contatos com João, vi que também a oficina do
professor Wander de Melo Miranda não diminuíra em nada o choque da
descoberta do Grande sertão.
Que chegou cedo, na virada dos 15 para os 16 anos, quando li três
livros que revolucionaram meu messiânico projeto secreto de transformar o
mundo: as veredas do grande sertão, As veias abertas da América Latina
(Eduardo Galeano), e O segundo sexo (Simone de Beauvoir), edição standard
do Círculo do Livro, do qual era uma assinante furiosa. Enxerguei ali todos os
argumentos de que precisava para embasar a teoria de minhas lutas, os quais
passei a usar com o ímpeto de um cristão novo e a inconsciência de uma
guerrilheira. Estava optando, talvez sem o saber ainda, pelo vício da literatura
como matéria de redenção biográfica.
Por que me lembrar, justamente em circunstância de abismo, quão
benéficas foram aquelas breves intervenções teóricas para ratificar meu amor
por Guimarães Rosa? Uma maneira de estancar a angústia? Ou uma
provocação, ao estilo Terry Eagleton? Cito: “Se teoria significa uma reflexão
razoavelmente sistemática sobre as premissas que nos orientam, ela
permanece tão indispensável quanto sempre” (EAGLETON, 2005, p.14). A
17

ponto de se apresentar como possibilidade de perda ou morte, sem abdicar,


contudo, de sua “potência encantatória” e “vigor não-servil”.4
Daí o título das reminiscências que abrem esta dissertação, tomado
de empréstimo à última entrevista de Glauber Rocha, concedida ao ator belga
Patrick Bauchau, protagonista de O estado das coisas, de Wim Wenders,
ganhador do Leão de Veneza em 1982, um ano após a morte de Glauber.
Rodado nos arredores de Sintra, onde o brasileiro vivia, fugindo do presságio
de que morreria aos 42 anos de idade, o que de fato aconteceu, o filme de
Wenders tratava exatamente da luta que consumiu o cineasta brasileiro  a
submissão da arte ao consumo e ao processo industrial.
A angústia e a agonia de Glauber eram expressas pela frase que
repetia sempre: “Sintra is a beautiful place to die.” Dias antes, saindo de Paris,
“ele subiu a serra de Sintra achando que ia morrer. Vinha carregado de
desassossego e frustrações. A Europa, que antes o consagrara como gênio e o
cobrira de prêmios, rejeitava agora o seu último filme, A idade da Terra”
(VENTURA, 2005, p. 80, 84 e 85). Rejeitava por quê? Não teria Glauber
sucumbido a um apressado obituário infligido a ele por um estado de crítica
apocalíptico, preso a uma defesa irrevogável do que se considerava o “cânone
cinematográfico”? Pois, se a crise é a condição natural da crítica, por que
retroceder? Por que relativizar a vitalidade de tudo o que pode ser construído a
partir das indicações de fim? Eagleton indica uma primeira resposta: “Houve
um tempo em que os estudantes escreviam ensaios acríticos, reverentes,
sobre Flaubert, mas tudo isso está mudado. Hoje, escrevem ensaios acríticos,
reverentes, sobre Friends” (EAGLETON, 2005, p. 17).
Resposta esta que caminha na direção do que foi dito por Gabriel
García Márquez, com o qual me inclino a concordar também: a mania
interpretativa, a reboque dos excessos semióticos, terminou por se firmar como
“uma nova forma de ficção que às vezes encalha no disparate” (MÁRQUEZ,
2006, p. 105), recorrendo à falácia de confundir o agudo com o obscuro, quem
sabe se na tentativa oca de atribuir à literatura um estatuto científico vago e
raso, que não combina em absoluto com ‘o domínio daquilo que só o romance

4
MEIRA, 2010, p. 8 e 9, na introdução de COMPAGNON, Literatura para quê?
18

pode descobrir e dizer’ (COMPAGNON, 2009, p. 53)? Creio, ainda com


Márquez, que prodígios literários semelhantes aos canônicos ocorrem
cotidianamente, “e se não os vemos é porque somos impedidos pelo
racionalismo obscurantista que nos inculcaram os maus professores de
literatura” (MÁRQUEZ, 2006, p. 105).
Todavia, ocupando o lugar de uma crítica literária em formação, não
posso me abrigar com Gabriel no quarto dos fundos, lugar do intenso prazer de
leituras. É preciso assumir o protagonismo que se espera de uma formação
culturalista, que enfrenta e promove a “gradativa diluição de marcos teóricos”
do discurso crítico, “causada pela vertente pós-estruturalista e pelas
inclinações pós-modernas da crítica” (SOUZA, 2002, p. 19). Dessa forma, um
curso de literatura tem que ser mais do que um bom guia de leituras, pois já
não é mais possível voltar, “aliviados, a uma idade de inocência pré-teórica, [...]
em que era suficiente declarar que Keats era deleitável ou que Milton era um
espírito resoluto” (EAGLETON, 2005, p. 13).
Necessário se faz investigar que tipo de novo pensar é demandado
pela nova era global do capitalismo, como sugere Eagleton (Idem, p.14), sem
desconsiderar “por que motivo as concepções artísticas, teóricas e políticas
não deveriam também trocar o caminho tranquilizador do reconhecimento pelo
do saber sempre em processo” (SOUZA, 2002, p. 73), atenta às razões pelas
quais a literatura “deixa de se impor como texto autônomo e independente 
se é que algum dia ela assim pode ser vista” (SOUZA, 2002, p. 20).
Para tanto, é preciso baixar o tom dramático da altissonante crise da
crítica, que sempre existiu, inscrita num contexto filosófico mais amplo, a
exquise crise, detectada e aguçada por Mallarmé, com o que até mesmo Leyla
Perrone-Moisés está de acordo5. Na defesa da trincheira das “altas literaturas”,
a professora se bate para “impedir o desvario eclético da prática analítica dos
estudos culturais”, na aguda observação de Eneida Maria de Souza (2003, p.
72). Pejado de interjeições, que exprimem dúvidas zombeteiras, o artigo de
Leyla Perrone-Moisés, pelo abuso do “ora, ora”, faz lembrar outro de igual teor,

5
A argumentação, defendida no histórico 5º Congresso da Abralic, chegou a público via
caderno +mais! da Folha de S.Paulo, de 25 de agosto de 1996, com o título “Que fim levou a
crítica literária?”
19

publicado no Jornal do Brasil por ocasião do IV Encontro Nacional de


Professores de Literatura, realizado na PUC-RJ em novembro de 1977, que
traz a assinatura da jornalista Norma Couri, com o título “Esses jovens mestres
e suas teses maravilhosas (quem as entende?)”. No texto, a jornalista
depreciava a linguagem específica do enfoque universitário, que se chocava
com a natureza experimental dos artigos jornalísticos6.
Cito trecho do artigo de Perrone-Moisés em referência:

O “culturalismo” que atinge a área literária, e não apenas ela,


ameaça substituir as disciplinas especializadas por um
ecletismo desprovido de qualquer rigor na formação do
pesquisador e na formulação de conceitos e juízos. Quanto à
literatura, se esta se dilui na “cultura”, passa a ser vista apenas
como expressão, reflexo, sintoma, e perde sua função de
conhecimento, de crítica do real e proposta indireta (estética)
de alternativas para o mesmo. (PERRONE-MOISÉS, 1996, p.)

Depreende-se o afã de rotular como modismo a teoria cultural,


comportamento avesso ao experimentalismo e à dificuldade, próprio de quem
julga deter os valores consensuais que legitimam a sacralidade do cânone. Há
rigor formal e conceitual no caos aparente:

[...] acredito na necessidade de serem consideradas posições


teóricas que funcionem como articuladoras das proposições de
análise e como elementos dignos de operar o distanciamento
crítico. Nesse sentido, deverão ser respeitadas as pluralidades
interpretativas, levando-se em conta o inumerável conjunto de
novos objetos até pouco tempo desconsiderados pela crítica,
como os estudos de minorias, dos textos paraliterários, da
correspondência, do memorialismo, e assim por diante. A
leitura de um texto, seja ele qual for, deveria receber um olhar
que atingisse no mínimo um efeito deslocado, transdisciplinar e
avesso às limitações impostas pelo senso comum. (SOUZA,
2002, p. 69; SOUZA, 2012, p. 125)

Assim, um texto, seja ele qual for, tem que ser lido, seja por qual
motivo for: debate ou deleite. Na direção contrária ao que foi listado por Leyla

6
A polêmica é narrada em detalhes por Eneida Maria de Souza em Tempo de pós-crítica, p. 64
a 68. Em “Os livros de cabeceira da crítica” (Crítica Cult, p.15 a 24), o enfrentamento é
atualizado sob a luz do “reconhecimento do estatuto ficcional das práticas discursivas e da
força inventiva de toda teoria”.
20

Perrone-Moisés, o mais ameaçador efeito perverso que ronda a literatura,


produção e crítica, é a falta de leitura. O risco? O de uma substituição
infindável de zelosas ortodoxias por outras (EAGLETON, 2005, p. 16), que não
levem em consideração “o antiquíssimo adágio: não é necessário se concentrar
tanto no ramo nem na folha, a ponto de esquecer que eles fazem parte de uma
árvore, e esta de um bosque” (LLOSA, 2009, p. 64).
Nos bosques da ficção, herança salutar do pensamento
estruturalista foi a formalização do objeto, antídoto contra os males da crítica
tradicional, pautada pelo biografismo, a paráfrase e o impressionismo (SOUZA,
2012, p. 14), que ainda enredam as incipientes análises de críticos nascentes e
também a produção dos que optaram por ensombrar-se debaixo dos ramos
mais baixos da fronda crítica.
Operação ficcional mesclada a operações teóricas, a metáfora surge
como potência imaginativa e conceitual por excelência da produção ensaística
que dá forma à crítica cultural, ampliando as dimensões significativas e
interpretativas da enunciação. Assim, a teoria se constitui como abertura e
âncora, sempre tentando traçar novas rotas:

O desejo de tornar o campo teórico da literatura um discurso


sem fronteiras, me fez optar pela abertura interdisciplinar e pela
transformação desse discurso numa forma de intervenção
cultural, com vistas a contribuir para a compreensão dos
acontecimentos que ocupam a nossa vida contemporânea.
(SOUZA, 2012, p. 131)

O exercício paciente e cuidadoso da crítica está além de impressões


fugazes. Propagador de inconformidades, é alimento para “essa trapaça
salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do
poder”, ou seja: para a literatura, conforme a nomeou Roland Barthes
(COMPAGNON, 2009, p. 40). Ou substância tóxica, se passamos a ler o texto
e novos objetos de estudo como descartáveis, destituídos de fundamento, mais
preocupados em driblar o instrumental de leituras teóricas de que o crítico
dispõe do que mergulhar em profundidade nos desafios analíticos que as
categorias narrativas demandam, considerando o “alto grau de interligação dos
21

discursos e da contaminação dos mesmos entre si” (SOUZA, 2002, p. 107),


verificado na pós-modernidade7.
Claro que, hoje, não se pode fazer a leitura de um texto literário em
sentido imanente apenas. É preciso considerar o ultrapassamento da fronteira
literária e a rede relacional que o próprio texto estabelece com outros, de
diferentes suportes, aqui incluídos os de extração teórica: os arcanos da
disciplina não podem se sobrepor ao contato com o objeto em análise, sob
pena de a crítica se enredar num epigonismo irreparável, que vampiriza a
vitalidade das “altas leituras” demandadas por um exercício crítico realmente
interventivo:

Somos obsoletos professores universitários. Eu faço


atualmente uma dissertação (que já era obsoleta quando
nasceu em ideia) sobre o Conceito hegeliano. Tenho certeza
de que fazer uma tese sobre o sutiã da Marilyn Monroe seria
mais interessante. [...]
A vida tornou-se uma partida perigosa, na qual, de tanto lidar
intelectualmente com essências, nós as perdemos. [...]
Quando soltamos nossas presas, em geral acabamos por
transformá-las também em vampiros, inoculando-lhes o veneno
da dúvida, da análise, do questionamento. Tornam-se daí em
diante incapazes de viver o simples prazer com a existência.
[...] Os sintomas começam pela perda dos sentidos, que
acabam automaticamente por desaparecer quando o doente
passa a duvidar da realidade deles. Depois o enfermo começa
a ter perturbações psicológicas, surge inesperadamente um
sentimento infundado de superioridade. Privado dos sentidos,
começa, em um paradoxo, a pensar que vê e percebe mais do
que a maior parte das pessoas. Mas as contradições
sintomáticas não terminam aí: crendo ver e perceber algo além,
ainda assim, poucos são capazes de transformar essa

7
“Pós-moderno quer dizer, aproximadamente, o movimento de pensamento contemporâneo
que rejeita totalidades, valores universais, grandes narrativas históricas, sólidos fundamentos
para a existência humana e a possibilidade de conhecimento objetivo. O pós-modernismo é
cético a respeito de verdade, unidade e progresso, opõe-se ao que vê como elitismo na cultura,
tende ao relativismo cultural e celebra o pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade.”
Essa é a definição de Eagleton (2005, p. 27) para o instável conceito de pós-moderno, que
tanta necessidade de fixação desperta entre os jovens críticos da cultura. No entanto, é preciso
ser cauteloso com as definições do crítico inglês, sempre trabalhando no limite de finas ironias.
Para Eneida Maria de Souza, não é imperativo temer o conceito, desde que seu lugar teórico
esteja bem definido, e seja usado de forma clara. Como ela escreve em Tempo de pós-crítica:
“É quase impossível fornecer uma só definição do conceito, é preciso delimitar campos,
disciplinas, ou optar pela caracterização do pensamento pós-moderno ou da leitura pós-
moderna da cultura. A pós-modernidade, em toda sua dimensão e abrangência, não poderá ser
analisada sem a reflexão das várias vertentes que compõem o pensamento moderno” (SOUZA,
2012, p. 188).
22

pretensão em juízos próprios. A maior parte torna-se incapaz


de formular qualquer raciocínio original sobre aquilo que teria
apreendido. Caem em uma compulsão à repetição sistemática,
em uma epigonia crônica, cada vez mais imersos na certeza de
que exprimem ideias próprias. (GRAMMONT, 1994, p. 32 a 35)

Dessa forma, as ortodoxias, de cujo questionamento depende o


vigor crítico, exigem a recusa ao retrocesso do fechamento teórico, saudoso do
centralismo que engendra imutabilidades e fixações. Nunca é demais repetir a
máxima de Eneida Maria de Souza: “As disciplinas têm histórias, não têm
essências.”

Intermezzo
Prefiro a experiência vicária do leitor ingênuo, aquela leitura
de quem se identifica com as personagens,
de quem gostaria de morar dentro dos romances preferidos.
Manuel da Costa Pinto

Em certos momentos, eu também. Desejo de possuir a biblioteca de


Elinor Loredan e o dom de Mortimer Flochart, o Língua de Prata, capaz de
trazer personagens à vida, de maneira semelhante ao que é narrado em
Coração de Tinta (Iain Softley, New Line, 2008). Acrescentaria à trama
somente o poder (crítico?) de escolher quem sairia da vida para entrar na
ficção, troca que o poder evocatório da leitura de Mortimer e de sua filha,
Megan, exige, aleatoriamente.
Gostaria de controlar esse dom. Gostaria de não ver sufocada a
criatividade. Gostaria de contribuir para que a crise da crítica fosse diariamente
alimentada pelos futuros formadores de indagações, e que tais indagações
defendessem “melhor os seres vivos contra a estupidez dos preconceitos, do
racismo, da xenofobia, das obtusidades localistas do sectarismo religioso ou
político, ou dos nacionalismos discriminatórios”, conforme a inflamada defesa já
citada de Mario Vargas Llosa sobre a necessidade da literatura (LLOSA, 2009,
p. 64).
Gostaria que não tivéssemos pudor em nos apaixonar por nossos
objetos de estudo, como se fossem menos “científicos” que os da ciência
clássica de experimentação. Abriguemo-nos nas margens suplementares da
23

investigação, onde podemos, contínua e discretamente, transitórios como os


poetas, fechar a porta atrás de nós, despir nossas capas, nossos penduricalhos
e outras parafernálias poéticas (e críticas) e enfrentar  em silêncio, com
paciência, à espera de nós mesmos  a folha de papel ainda em branco.8
É esse esforço que permite a transposição do conceito de “literatura
lázara”, de Jean Cayrol  segundo o qual arte nenhuma, depois de Auschwitz,
poderia pretender redimir o horror nem reabilitar a vida, visto que qualquer
remissão ou reconforto literário tornava-se impensável (COMPAGNON, 2009,
p. 42-43)  para o de “crítica lázara”. Vencidas as impossibilidades, essa
proposta crítica aglutinaria seu instrumental heurístico em torno de sua
constituição oposicional e paradoxal, as quais trabalhariam pela ressurreição
do texto e da forma, encerrando o lento suicídio faustoso da Literatura no
século XX.
Encanto e desencanto, morte e renascimento, frágeis e radicais,
tornariam à cena:

Mencionei a inspiração. Poetas contemporâneos respondem de


forma evasiva quando lhes perguntam o que é isso, e se existe
de verdade. Não é que nunca tenham conhecido a bênção
desse impulso interior. Só que não é fácil explicar a uma outra
pessoa aquilo que você mesmo não compreende. [...]
Seja lá o que for a inspiração, ela nasce de um contínuo “não
sei”.
Poetas, se autênticos, também devem repetir “não sei”. Todo
poema assinala um esforço para responder a essa afirmação,
mas assim que a frase final cai no papel, o poeta começa a
hesitar, a se dar conta de que essa resposta particular era puro
artifício, absolutamente inadequada. Portanto, os poetas
continuam a tentar e, mais cedo ou mais tarde, os resultados
da sua insatisfação consigo mesmos são reunidos, e presos
num clipe gigante pelos historiadores da literatura, e passam a
ser chamados de suas “obras”. [...]
Mas na língua da poesia, em que se pesam todas as palavras,
nada é usual ou normal. Nem uma única pedra e nem uma
única nuvem acima dela. Nem um único dia e nem uma única
noite depois dele. E sobretudo nem uma única existência, a
existência de nenhuma pessoa neste mundo.
Tudo indica que os poetas terão sempre uma tarefa muito
árdua à espera. (SZYMBORSKA, 2007, p. 65)

8
Apropriado de SZYMBORSKA. “A poeta e o mundo”. Revista piauí, n. 8, maio de 2007.
24

Tarefa que serviria de norte também para indiciar caminhos sobre a


persistente questão: o método inibe a força criadora? Para Virginia Woolf, a
resposta é: não. “Seja como for, é um erro ficar de fora examinando ‘métodos’.
Se somos escritores, todos os métodos estão corretos, qualquer método serve,
desde que expresse o que é nosso desejo expressar” (WOOLF, 2014, p. 112).
Para a ensaísta inglesa, os desafios que se impõem ao crítico são semelhantes
aos que o romancista enfrenta na luta violenta da escrita da palavra. “Inventar
meios de estar livre para registrar o que escolhe” (Idem, p. 113) pressupõe um
certo balizamento da imaginação crítica e criativa em prol dos fragmentos de
significação que permitem à vida e à obra existirem de modo absolutamente
mais completo. Em artigo de 1919, Virginia Woolf já apontava a amplitude de
alcance da matéria ficcional:

‘A matéria apropriada à ficção’ não existe; [...] se pudermos


imaginar a arte da ficção bem viva e presente em nosso meio,
ela mesma há de pedir sem dúvida que a provoquemos com
transgressões, como pedirá que a respeitemos e amemos, pois
assim sua juventude se renova e sua soberania estará
garantida. (WOOLF, 2014, p. 115-116)

É exatamente o que quero aqui. Se não transgressões,


provocações, ditas face a face, texto a texto, criação a criação, como aprendi
neste Programa de Mestrado. Entre os problemas a serem interrogados e
discutidos, pontifica a hipótese de que o gênero, por ser um construto social
como proposto por Judith Butler, estaria sendo textualmente construído nas
crônicas da jornalista Milly Lacombe. Em outras palavras: Milly Lacombe não é
um sujeito gay previamente à sua escrita. Escrever a vida própria não resulta
do fato de existir um eu prévio, pleno e integrado, que produz o texto, mas é
algo que ajuda a desenvolver ou definir esse sujeito da escrita, em suas
diversas dimensões (sexual, de classe, intelectual, afetiva, etc.). Para tanto, é
preciso investigar que elementos constitutivos poderiam estar envolvidos nessa
escrita de si. A memória da infância num contexto burguês? A cumplicidade
com o pai, seu “amigão”? A descoberta do prazer clandestino de beijar outra
menina? A decisão de assumir o gozo de namorar mulheres?
Ou: a partir de que lugar Milly Lacombe se constrói em seus textos?
25

Seu lugar de fala é seu lugar do texto, inserido no mercado


capitalista da comunicação segmentada, pelo qual perpassam memórias
autobiográficas que hoje dão voz aos marginais da cultura. Contaminada per
se, pelo caráter híbrido em relação ao outro, a autobiografia encontra na crítica
biográfica o esteio teórico que lhe permite ascender de simples relato do vivido
ao status de ressignificação da experiência, não sem antes rejuntar os
resíduos, as fissuras, resultantes da fricção entre fato e ficção. “Não tomemos
por certo que seja mais no julgado comumente grande do que no julgado
comumente pequeno que a vida existe de modo mais completo”, adverte
Virginia Woolf (2014, p. 110).
Como um tumor maduro, a teoria pulsa dolorosa, respaldando o que
disse no começo: “Theory is a beautiful place to die.”
26

II. Milly e a crônica

Brotou assim, de puras necessidades jornalísticas,


uma nova forma de ficção, um gênero novo
de romance: o indigitado, nefando, perigoso,
o muito amado, o indispensável folhetim folhetinesco.
Ronald de Carvalho

Os críticos odiaram. Os leitores adoraram.


Cristiane Costa
27

1. O primeiro começo

Metaphorical penis
No princípio era o caderno. As mocinhas podiam escrever apenas
seus pensamentos e estados d’alma nos diários de capa romântica e cadeados
dourados, pássaros suaves levando corações ou estandartes pelo bico, até
atingirem as altas raias da inspiração criadora, uma vez que, como esclarece
Lygia Fagundes Teles, “depois de casadas, não tinha mais sentido pensar
sequer em guardar segredos, que segredo de mulher casada só podia ser
bandalheira” (TELES, 1980, p. 16). O refúgio mais à mão se impunha: o
cadernão de anotar a vida, no qual, como pepitas de ouro escasso,
registravam-se os gastos e as compras da casa, as receitas de família, as
simpatias para vencer males diversos, as remessas de cebola, pão, café e
sabão. Talvez antes mesmo do que a conquista dos rodapés dos jornais, foi
este o primeiro espaço de registro das inspirações da mulher brasileira, que
teria ainda um longo caminho a percorrer em busca da legitimidade de sua
carreira literária, ofício historicamente reservado aos homens.
Tão marcadamente atávica a destinação masculina para as letras
que, ainda em 1944, servia de parâmetro para julgamentos críticos de toda a
espécie, os quais não se furtavam a uma recorrente acidez.
Como relembra Lygia Fagundes Teles:

Um crítico literário do século XIX, irritado com o livro de uma


poetisa que ousou sugerir em seus poemas alguns anseios
políticos, escreveu no seu artigo: “É desconsolador quando se
ouve a voz delicada de uma senhora aconselhando a
revolução. Por mim, desejaria que a poetisa estivesse sempre
em colóquios com as flores, com as primaveras, com Deus.”
Mexendo em antigas pastas na tentativa (vã) de ordená-las,
acabei encontrando o recorte de uma crônica publicada em
1944. É sobre um pequeno livro de contos que escrevi quando
cursava a Faculdade de Direito. Diz o cronista que se assinava
M.G.: “Tem essa jovem páginas que apesar de escritas com
pena adestrada, ficariam melhor se fosse de autoria de um
barbado.”
Afetei um certo desdém pela crônica mas fiquei felicíssima:
escrever um texto que merecia vir da pena de um homem, era
o máximo para a garota de boina de 1944. Eu trabalhava,
28

estudava e escolhera dois ofícios nitidamente masculinos: era


uma feminista inconsciente mas feminista. (TELLES, 1980, p.
73)

Dessa forma, não espanta a questão de a autoria ter se delineado


como uma das mais profícuas fronteiras críticas consolidadas na tradição dos
estudos de gênero. Gilbert e Gubar, nos dois primeiros capítulos de The
madwoman in the attic (2000), investigam a polêmica em torno da paternidade
literária e da criatividade feminina, que marcou fortemente a era vitoriana,
quando se estabeleceu, a partir do cânone, que o talento para escrever seria,
etimológica e etiologicamente, masculino. A simbologia fálica da caneta
riscando “o espaço puro da página virgem” (GILBERT e GUBAR, 2000, p. 6)
alijava terminantemente as mulheres da produção literária: sem um órgão que
as habilitasse a gerar textos, restou-nos a “perfeita imagem” (Idem, p. 15)
mítica refletida de relance pelo espelho do texto literário masculino, estruturada
de forma a nos fixar em máscaras construídas para obnubilar toda e qualquer
possibilidade de autoafirmação.
Confinadas aos estereótipos de pureza angelical e pensamento
virginal vigentes nos séculos XVIII e XIX, nos tornamos, nós, mulheres, objeto
artístico de adoração, modestas, submissas, graciosas, castas, polidas,
desprendidas, perdidas numa potência de alienação tão aguda que fatalmente
desaguaria no culto estético da fragilidade, o qual nos exigiria o sacrifício da
total autoanulação: a mulher ideal, morta-viva, almeja céu e sepultura, habita o
mundo dos mortos, mesmo estando, ainda, ligada a um corpo físico fenecente.
Renasce, então, em potência de negatividade  Lilith, a monstruosa face
obscura, deve ser silenciada, pois a simples contemplação de seus contornos
conjura a face mais oculta do interdito, trazendo à tona representações
impensáveis, como a da mulher que assume a autoria de seu texto e a
geografia de seu corpo.
Ao corpo de uma mulher que contempla o corpo de outra mulher,
não restam senão frestas por onde olhar o caminho que leva à
inextricavelmente à danação e ao júbilo:
29

Da cama, me entrego a esse filme que vejo faz cinco anos.


Você no banheiro.
O que torna a película ainda mais sedutora é que você faz isso
apenas de calcinha. Se meu estado não fosse de paralisia
diante de sua beleza, a obrigação deveria ser levantar, aplaudir
gritando “Bravo! Bravo!” Mas não consigo, estou debaixo do
lençol, cabeça encostada à parede, abobada por seus
movimentos. [...]
Quando você apaga a luz do banheiro, finalmente me vê e
sorri. E aí vem andando em direção à cama. Antes de deitar,
tira a calcinha. Nessa hora, me afundo para dentro do lençol e
espero o contato. (LACOMBE, 2010, p. 231)

Em um mundo dominado por estruturas patriarcais, no qual as


escritoras ainda enfrentam aquilo que Gilbert e Gubar denominaram “angústia
da autoria”, em contraponto ao conceito de “angústia da influência”, descrito
pelo crítico Harold Bloom, o desejo de descoberta, de quem crê conhecer,
empreender e transgredir, vem envolto em invólucro de zombaria e
condenação  possível fissura no emaranhado das hipócritas regras sociais
(que se batem por manter Lilith atada a estereótipos de personificação maligna
que lhe são atribuídos em mitologias de diferentes culturas, as quais
sucumbem seu poder à guarda das portas do inferno).
De acordo com Bloom, escritores do sexo masculino são obrigados
a lidar com a influência/afluência de seus precursores, o que resulta no medo
de não ser ele próprio o criador (fathers), de não ser ele a própria origem
(latência/potência) de seus escritos. Tal qual um Édipo literário, autores se
veem presos a um contínuo influxo de subjugar os criadores que os
precederam, desviando o decifrar do enigma para bem distante de questões
espinhosas como aquela.
Autoras, por seu turno, não são afetadas pela aflição da influência,
visto que, na maioria das vezes, não têm um espelho em que mirar-se com
olhos desvelados. O medo, aqui, é o de não estar habilitada a criar, é o de ser
engolida pelo isolamento proveniente das polaridades paradigmáticas (anjo-
monstro) comumente associados à produção intelectual da mulher, as quais
desaguavam, quase sempre, no aniquilamento físico. Novamente, o texto de
Lygia Fagundes Teles pode ser convocado para ilustrar o argumento do
isolamento intelectual feminino. Ao descrever a angústia que afligia a mulher
30

dotada de talento poético, sublinha a assertividade da teoria das autoras norte-


americanas:

Tia L. escondia sua poesia, quis guardá-la para a morte. [...]


Escrevia os poemas escondida, fechada no quarto, a letra
tremida, a tinta roxa. Meu bisavô ficou meio desconfiado e fez o
seu discurso: “Umas desfrutáveis, mana, umas pobres
desfrutáveis essas moças que começam com caraminholas,
metidas a literatas!” Ela entendeu e fechou a sete chaves a
obra proibida. Antes de morrer (morreu de amor contrariado),
pediu que enchessem com seus versos o travesseiro do caixão
branco, era moda caixões com travesseiros. Foram tantos os
versos, mas tantos que tiveram que encher também o
acetinado colchão da mocinha duplamente inédita, era virgem.
(TELLES, 1980, p. 89-90)

Recusando-se a discutir com sombras, optando por falar sobre e


escrever a partir de seu lugar de enunciação próprio, autoras contemporâneas
rechaçam a quase totalidade dessa angústia da autoria, ao deixar claro sua
disposição de ler velhos textos com um olhar novo, que redefina direções
críticas capazes de implementar “a difícil tarefa de realizar a verdadeira
autoridade literária feminina, simultaneamente conforme e subversiva aos
padrões literários patriarcais” (GILBERT e GUBAR, 2000, p. 73). Trata-se,
segundo citação de Adrienne Rich pelas autoras, de um ‘ato de sobrevivência’
(Idem, p. 83) que legitima a rebelião desencadeada pelas mulheres escritoras,
ávidas por libertarem-se do espelho-prisão no qual viveram enclausuradas por
tanto tempo pelos pais do patriarcalismo.
Esta energia revolucionária desbrava a posse de um território no
qual nada funciona binariamente, no qual cada conquista é um aprofundar-se
em águas rasas, à margem de regras e rótulos, como bem ilustra o elogio de
Milly Lacombe à sua “Supertia”:

Loli foi a primeira mulher de ferro que conheci. Dava foras


homéricos em meu pai e meus tios quando, nos almoços de
domingo, eles diziam que a mulher era um homem inacabado.
Ela me fez ver que éramos mais inteligentes, perseverantes e
espertas do que eles. Loli foi minha primeira referência, a
mulher mais inspiradora que passou pelos anos inaugurais da
minha vida. Com Loli aprendi o valor do X (todos eles), regra
de três (que uso até hoje), a extrair raiz quadrada e,
31

principalmente, a pensar por conta própria. Mas, mais


importante, Loli me ensinou a ter opinião. E a nunca omiti-la,
por mais contrária que ela pudesse ser. Loli era uma
subversiva, uma feminista, uma mulher à frente do seu tempo.
Sem Loli eu talvez nunca tivesse tido força e coragem para
dizer “eu sou gay” e continuar olhando o mundo de frente. Sem
Loli eu certamente não seria quem sou. (LACOMBE, 2010, p.
72-73)

Mesmo participando daquilo que Elaine Showalter chamou, em “A


crítica feminista em território selvagem” (1994), de “subcultura” literária  da
qual, todavia, emerge alto potencial de energia criativa , a possibilidade de
escolher a queda como via de transformação das dicotomias sexistas é um
mais além no processo curativo do adoecimento associado à inadequação das
mulheres que escrevem. Para subjugar os riscos que corremos ao não
negarmos desejar o fogo poético da cura, não mais considerado enfermidade,
intensa criatividade subjaz a uma aparente aceitação9.
Mesmo “infectada” (como se diz de Emily Dickinson), a frase escrita
sentencia libertação, embora se instaure o paradoxo do pharmákon derridiano
(1991): essa nascente condição desponta contradicta ao ato criativo/crítico:
remédio e veneno  pode curar, sedar, iludir, matar, visto que nosso lugar
autoral é irracional e estranho, enigmático, elegíaco, arcano, humano.
Não podemos nos esquecer de que séculos de confinamento, literal
(casa dos pais) e figurativo (textos masculinos), solidificaram uma arquitetura
que emoldurava um espaço desconfortável e restrito de criação, o qual foi
9
De acordo com Virginia Woolf, no ensaio “Mulheres e ficção” (1929), a grande mudança que
se alastrou pela escrita das mulheres, na virada do século XIX para o século XX, foi “uma
mudança de atitude. A mulher escritora deixou de ser amarga. Deixou de se indignar. Quando
ela escreve, não está mais protestando e defendendo uma causa. [...] Ela será capaz de se
concentrar em sua visão, sem distrações que venham de fora. O afastamento que esteve
outrora ao alcance do gênio e da originalidade só agora está chegando ao alcance da mulher
comum. Por isso um romance médio de mulher é muito mais autêntico e muito mais
interessante hoje do que há cem ou mesmo há cinquenta anos.” (WOOLF, 2014, p. 277)
Contudo, é ainda verdade que há muitas dificuldades a serem vencidas se uma mulher quiser
escrever como lhe aprouver. Uma delas, de ordem técnica, diz respeito à frase, cuja forma
canônica não guarda compatibilidades com a dicção da escritora que então despontava. “É
uma frase feita por homens; muito pesada, muito descosida, muito pomposa para uma mulher
usar. [...] E isso uma mulher deve fazer por si mesma, alterando e adaptando a frase corrente
até escrever alguma que tome a forma natural de seu pensamento, sem esmagá-lo nem
distorcê-lo.” (Idem, p. 278) A luta é árdua e, às vezes, inglória, por se ater demasiadamente às
convenções. Mas impõe-se: “Mas isso, afinal, ainda é meio para um fim, e o fim só poderá ser
alcançado quando a mulher tiver coragem para se sobrepor à oposição e determinar-se a ser
fiel a sim mesma.” (WOOLF, 2014, p. 278)
32

sendo minado com a gradativa corrosão da metáfora fálica em favor da


metonímia yoni.10 Se a caneta penetra a página virgem, o texto jorra em fluxo
impetuoso, a torrente esdrúxula de palavras sangrando-a, sedutora, amorosa e
doida, laçando caçador e presa num sortilégio único, de brumas e clarões.
Libertadas da angústia, do medo e da violência, mulheres-palavras se lançam
dos sótãos à loucura, talvez fundindo privilégio e dor, abismo e contemplação.

2. Chronicas: nascer e florescer


Dos primórdios de seu nascimento até hoje, a crônica é um gênero
de natureza híbrida, que oscila entre limiares do jornalismo e da literatura.
Antes do uso consagrado que lhe deu o desenvolvimento da imprensa,
notadamente no século XIX, a crônica era entendida como registro histórico
fidedigno de um tempo presente, vinculada ao relato de feitos heróicos
definidores de identidades nacionais. Narrava também impressões de viagem
daqueles que se aventuravam por mares e terras desconhecidas. Cadernos de
bitácora eram comuns nos navios portugueses e espanhóis, não só para
marcações náuticas  registravam as rotinas a bordo, assim como
experiências mágicas vividas pela tripulação. Vale lembrar, sob tais
delimitações, o cronista-mor da Torre do Tombo, Fernão Lopes, e o navegante
florentino Antonio Pigafetta, que acompanhou Fernão de Magalhães na
primeira viagem ao redor do mundo, consagrando-se como o cronista daquela
grande aventura.
Alocada no rodapé da página de jornal, ali, bem ao rés-do-chão, a
crônica veio preencher um espaço de transitoriedade, onde se mesclavam
variedades diversas: charadas, piadas, receitas culinárias, mezinhas caseiras,
segredos de beleza, crimes, comentários políticos, crítica teatral, colunismo
mundano, crítica literária, divulgação de livros, filmes, eventos sociais.
Machado de Assis, ao refletir sobre a emergência do trabalho do cronista,
define aquela “nova entidade literária” como sendo “a fusão agradável do útil e

10
Apropriação da simbologia sânscrita referente ao órgão sexual feminino, representado pela
deusa Shakti, da qual se origina toda a potência da vida (vagina x phallus).
33

do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo” 11. E


convoca seus leitores, a aproveitar, sobretudo, “a ocasião, que é única;
deixemos hoje as unturas dos estilos; demos a engomar os punhos literários;
falemos à fresca, de paletó branco e chinelas de tapete” (COSTA, 2005, p.
249).
Por meio deste caráter despretensioso na aparência, tantas vezes
adejante  tanto Alencar (1854) quanto Machado (1859) recorrem à metáfora
do voo ziguezagueante do colibri para ilustrar a condenação à fugacidade que
marca a organização estética do “novo animal”  a crônica se vale de uma
estrutura polimórfica que pode “hibridizar conto, notícia, poesia, memórias,
cartas e monólogos, dentre tantos outros gêneros” (NEVES, 2005, p. 48)
Etimologicamente moldada ao tempo (chronus) e reconhecidamente locus de
subjetividades, a crônica foi, durante sua evolução, abandonando
paulatinamente a intenção de informar e comentar, agora restrita aos colunistas
de cada editoria dos jornais, para assumir um tom ligeiro e uma certa
gratuidade, “quando, à custa de magia e de encanto fez que a pena se
lembrasse dos tempos em que voava”12.
Nas crônicas de Milly Lacombe, a entidade literária recém-nascida
desponta vigorosa rumo à efêmera perenidade, ou àquilo que Rubem Braga,
considerado o velho mestre da crônica brasileira (COSTA, 2005, p. 263),
definiu como seu grande mistério  a simplicidade:

Milton e eu clicamos de cara, mesmo morando em cidades


diferentes [...] em 1997, aos dezenove anos, o rapaz de quase
dois metros acabou indo passar um tempo comigo e com Tati,
minha companheira na época, em Los Angeles, onde
morávamos.
Logo no primeiro dia, quebrou o rádio do meu carro, a porta do
meu quarto, a secretária eletrônica e queimou uma panela a
ponto de eu ter que inutilizá-la. Em uma semana, mesmo sem
falar inglês (embora ele jurasse que falava tão bem que o
sotaque já era quase imperceptível), fez uma lista de amigos
que era três vezes o tamanho da minha  e eu estava lá há
um ano. O telefone de casa, que até então repicava

11
Para mais detalhes sobre o nascimento da crônica e sua consolidação como gênero
tipicamente brasileiro, ver: NEVES, Maria Alciene, 2009.
12
José de Alencar, Ao correr da pena. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 24/09/1854. Xerox.
34

pouquíssimo, passou a tocar trezentas vezes por dia. “Is Milton


there?”, era a frase que mais ouvíamos. Por essa época, eu
trabalhava como entregadora de pizza e um belo dia vejo que
estou indo entregar pizza na minha própria casa, para Dr.
Milton, como constava do cadastro. Milton me deu cinco
dólares de gorjeta.
Eu já estava a ponto de envenená-lo quando minha tia resolveu
repatriar o filho.” (LACOMBE, 2010, p. 58-59)

Para Eduardo Portela (1979), a evolução folhetinista-cronista-


colunista pode somente ser levada a efeito graças à “desestrutura” do gênero,
magistralmente sintetizada pelo Velho Braga: “Se não é aguda, é crônica.” De
acordo com o crítico,

A estrutura da crônica é uma desestrutura; a ambiguidade é a


sua lei. A crônica tanto pode ser um conto, como um poema
em prosa, um pequeno ensaio, como as três coisas
simultaneamente. Os gêneros literários não se excluem:
incluem-se. O que interessa é que a crônica, acusada
injustamente como um desdobramento marginal ou periférico
do fazer literário, é o próprio fazer literário. E, quando não o é,
não é por causa dela, a crônica, mas por culpa dele, o cronista.
Aquele que se apega à notícia, que não é capaz de construir
uma existência além do cotidiano, este se perde no dia-a-dia e
tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros, esses
transcendem e permanecem. (PORTELA, 1979, p. 37)

Tais motivos nos fazem crer terem sido a justificativa para que o
gênero exercesse e exerça tamanha atração sobre os poetas. “Sem
compromisso com os fatos nem a obrigação de criar uma história com início,
meio e fim, a crônica era compatível com certas habilidades, como a
capacidade de sintetizar em poucas palavras todo o sentimento do mundo”,
escreve Cristiane Costa (2005) em Pena de aluguel (Idem, p. 251). Alçada da
marginalidade do rodapé ao Olimpo das mais nobres editorias, a crônica
moderna se consolida no país a partir da década de 1930, por artes de nomes
com Mário de Andrade, Oswald, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral e Pagu,
num movimento sentido em toda a América Latina. Cristiane Costa explica:

Também os modernistas latino-americanos, como Rubén


Darío, José Martí e José Enrique Rodó praticaram “com
particular devoção este gênero no meio do caminho”. A crônica
35

jornalística foi um laboratório para os escritores de todo o


continente, o espaço no jornal onde testaram novos estilos e
ideias, além de tornar seus nomes e propostas conhecidos dos
leitores. Eventualmente, as crônicas chegam a corresponder a
até dois terços das obras completas desses autores. Embora
considerado um “gênero bem brasileiro”, a versão latino-
americana da crônica não é diferente da que conhecemos:
“Este gênero consiste de breves artigos sobre virtualmente
nenhum assunto, escritos num estilo literário autoconsciente,
que pretendia ser tanto informativo como entretenimento.”
(COSTA, 2005, p. 252)13

No entanto, é na geração seguinte à dos modernistas que a crônica


brasileira conquista seu tom definitivo: na esteira de Carlos Drummond de
Andrade e de Nelson Rodrigues, vieram Rubem Braga, Otto Lara Resende,
Paulo Mendes Campos, Murilo Rubião, Wilson Figueiredo, Autran Dourado,
Fernando Sabino, Sérgio Porto, Antônio Maria, Carlos Heitor Cony, João
Ubaldo Ribeiro, além de repórteres, redatores e editores que fizeram parte da
geração de ouro do “Caderno B” do Jornal do Brasil  Affonso Romano de
Sant’Anna, Ivan Junqueira, Marcos Santarrita, Noênio Spínola, Muniz Sodré,
Fritz Utzeri, Mário Pontes, Fernando Gabeira, Mário Faustino, Carlinhos
Oliveira, Ferreira Gullar, entre vários outros.
Mestres no manejo da tríplice liberdade (de espaço, de horário e de
assunto) elogiada por Paulo Mendes Campos, a qual se revela, contudo,
apenas aparente, estes cronistas sabem que, a despeito da visibilidade junto
ao público, o trabalho de escrever sobre minudências cotidianas está longe da
facilidade, custando esforço e insegurança. Gabriel García Márquez, por

13
O depoimento de Gabriel García Márquez a esse respeito é solar: “Uma boa prova do
sentido quase bárbaro da honra profissional é sem dúvida esta crônica que escrevo todas as
semanas, e que por esses dias de outubro vai completar seus primeiros dois anos de solidão.
[...] Escrevo-a todas as sextas-feiras, das nove da manhã às três da tarde, com a mesma
vontade, a mesma consciência, a mesma alegria e muitas vezes com a mesma inspiração com
que teria de escrever uma obra-prima. Quando não tenho o tema bem definido me deito mal na
noite de quinta-feira, mas a experiência me ensinou que o drama se resolverá por si só durante
o sono e que começará a fluir pela manhã, a partir do instante em que me sentar diante da
máquina de escrever. [...] Meu primeiro objetivo com estas crônicas é que a cada semana
ensinem algo aos leitores comuns e correntes, que são os que mais me interessam, ainda que
estes ensinamentos pareçam óbvios e talvez pueris aos doutores sábios que tudo sabem. [...]
Impus-me esta servidão porque senti que entre um romance e outro eu ficava muito tempo sem
escrever, e pouco a pouco  como os jogadores de beisebol  o braço ia esfriando. Mais
tarde, essa decisão artesanal se converteu em compromisso com os leitores, e hoje é um
labirinto de espelhos do qual não consigo sair.” (MÁRQUEZ, 2006, p. 477-478).
36

exemplo, assim como Carlos Drummond de Andrade, descarta a angústia da


influência da reportagem no romance: “O jornalismo ajudou minha ficção
porque me manteve em relação íntima com a realidade” (MÁRQUEZ, 2006, p.
10). Para o escritor colombiano, o impasse pode chegar a um ponto de
equilíbrio:

O problema é que em jornalismo um só dado falso desvirtua


irremediavelmente os outros dados verídicos. Em ficção, em
compensação, um só dado real bem usado pode tornar
verossímeis as criaturas mais fantásticas. A norma ocasiona
injustiças de ambos os lados: em jornalismo há que se apegar
à verdade, mesmo que ninguém creia nela, e por outro lado em
literatura se pode inventar tudo, desde que o autor seja capaz
de torná-la verossímil. [...] John Hersey, que era um bom
romancista, escreveu uma reportagem sobre a cidade de
Hiroshima devastada pela bomba atômica, e é um relato tão
apaixonante que parece um romance. Daniel Dafoe, que era
também um grande jornalista, escreveu um romance sobre a
cidade de Londres devastada pela peste, e é um relato tão
surpreendente que parece uma reportagem. (MÁRQUEZ, 2006,
p. 169-170)

Equilíbrio sim, fronteiriço porém, posto que o cronista, pela própria


imprecisão de seu ofício, habita um lugar entre a verdade imaginada e a
imaginação verdadeira. Nômade nesse trânsito, esse autor conserva, como
quer o crítico José Castello (2012, p. 23-24), “os estigmas negativos que
cercam a figura do forasteiro  aquele que sempre desperta desconfiança e
em quem não se deve, nunca, acreditar inteiramente”, embora seja o maestro
da potência do gênero, qual seja, “sustentar-se como o lugar, por excelência,
do absolutamente pessoal”.
Espaço de liberdade e de recomeços, a tradição que marca a
crônica como o mais brasileiro dos gêneros apõe a ela adjetivos como fluido,
traiçoeiro, mestiço, o que nos leva a corroborar a proposta de José Castelo
(2005, p. 25): “Um gênero sem gênero, para uma identidade que, a cada
pedido de identificação, fornece uma resposta diferente. Grandeza da
diversidade e da diferença que são, no fim das contas, a matéria-prima da
literatura”.
37

3. Chronistas feministas
Na relação de grandes autores que pertenceram à fase áurea do
caderno de cultura do Jornal do Brasil nas décadas de 1960 a 1980
enumerados acima, omiti propositadamente o nome das (poucas) mulheres
que lá estiveram. Marina Colasanti e Léa Maria foram subeditoras do “Caderno
B”, chefiado pelo editor Paulo Afonso Grisoli. Maria Helena Malta escrevia
textos sobre comportamento. E ninguém menos que Clarice Lispector assinava
crônica semanal no mesmo espaço. Começou no dia 19 de agosto de 1967, e
chegou até 29 de dezembro de 1973, praticamente sem interrupções. Em
1984, sete anos depois que Clarice se fora, as 244 crônicas que publicou no
Jornal do Brasil foram reunidas no livro A descoberta do mundo.
A Clarice cronista era tão desadaptada quanto a Clarice escritora. Já
era, à época, uma autora respeitada, tida como “difícil”, “hermética”, porém
distante do prestígio de que veio a desfrutar posteriormente. Nas raras
ocasiões em que surgia na redação, dava a impressão de total insegurança,
percebida pela afoiteza com que tentava tirar da bolsa as laudas de papel
pardo amarrotadas e rasuradas, ao mesmo tempo em que tentava esconder a
mão queimada no acidente do cigarro aceso na cama. Na crônica de 9 de
setembro de 1967, confessa:

Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função


daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E,
além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de
escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como
profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico
automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se
estivesse vendendo minha alma.” (LISPECTOR, apud COSTA,
2005, p. 263)

Da mesma forma que com Lygia Fagundes Telles, cronista e


contista, a relação de Clarice Lispector com o jornalismo começou nos
primeiros anos da década de 1940, quando ambas ainda cursavam a
Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Clarice trabalhou como redatora,
tradutora e repórter da Agência Nacional. Em A Noite, conviveu com Lúcio
38

Cardoso, Antonio Callado e José Condé. Passou dez anos longe da imprensa,
retomando a carreira como Tereza Quadros, numa coluna feminina (“Entre
Mulheres”) do jornal O Comício, dirigido por Joel Silveira e Rubem Braga.
Clarice escrevia, traduzia, recortava modelos de vestidos, dava dicas de
beleza, moda, economia doméstica. Em 1956, passa a publicar crônicas,
contos e entrevistas na revista Senhor. Três anos depois, torna-se
colaboradora regular no Correio da Manhã, sob o pseudônimo de Helen
Palmer, tendo a seu cargo a coluna “Feira de Utilidades” (1959-1961), dedicada
também às preocupações da “mulher moderna”: receitas, filhos, beleza. Em
1960, trabalhou com Alberto Dines no Diário de Notícias, até ser convidada por
ele a assumir a crônica dos sábados do “Caderno B” (COSTA, 2005, p. 260-
266).
A autora de A paixão segundo G.H. seguia a trajetória de várias
escritoras que alcançaram a honra de dispor de espaço próprio numa
publicação periódica. Nísia Floresta, Josefina Álvares de Azevedo, Carmem
Dolores, Júlia Lopes de Almeida, Lúcia Miguel Pereira, Bertha Lutz, Dinah
Silveira de Queirós, Anna Rita Malheiros, Cecília Meireles, Rachel de Queiroz,
Carmen da Silva, Marina Colasanti, Lya Luft, Martha Medeiros, Danuza Leão,
Fernanda Takai, Maitê Proença, Maria Esther Maciel, Milly Lacombe. Da virada
do século XIX até a primeira década do século XXI, essas autoras, dentre
várias e várias, puderam conquistar, manter, ampliar e revolucionar o gênero
que tem ligação quase umbilical com a imprensa feminina.
Dulcília Schroeder Buitoni (1985) afirma que as relações entre
crônica e mulher (gênero/gênero) remontam a muitos e antigos laços, o mais
perene talvez o folhetim, cujos “temas matrizes” eram claramente identificados
com a rotina da mulher enclausurada no círculo doméstico e familiar: a
mudança do tempo, o cotidiano, o coloquial, a cidade, as modas, os livros
seriados.
Das revistas das grandes maisons aos periódicos de orientação
pedagógica, seja política ou doméstica, comentários mundanos mesclavam-se
a moldes do que então se usava na Europa e a comentários ligeiros sobre a
temporada lírica ou os grandes bailes da Corte. Numa ainda incipiente
39

segmentação, tais assuntos também podiam ser lidos nos jornais considerados
feministas, a reboque da defesa veemente dos direitos mais elementares das
mulheres. Dulcília Buitoni ressalta o pioneirismo do Jornal das Senhoras,
lançado na capital federal em 1852, tendo à frente Joana Paula Manso de
Noronha e posteriormente Dona Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e
Vellasco, que defendiam o acesso das mulheres à educação na mesma página
em que exortavam suas leitoras a não descuidar do amor maternal e nem da
formação espiritual familiar.
Mais corajosas, na avaliação de Dulcília Buitoni, foram Francisca
Senhorinha da Motta Diniz, editora de O Sexo Feminino (1873-1877) e
Josephina Álvares de Azevedo, responsável por A Família (1888-1889). “Tanto
a professora mineira quanto a irmã do poeta Álvares de Azevedo lutavam pela
educação, instrução e emancipação da mulher” (BUITONI, 1985, p. 82),
abrindo um caminho que mais tarde (1918) seria ocupado pelas cronistas da
Revista da Semana, as quais, a exemplo de Bertha Lutz, muito fariam pelo
sufrágio feminino no Brasil, de modo direto ou indireto.
Mais originais, pela efervescência temática e estilística, são
apontadas as pequenas crônicas que Patrícia Galvão publicou em O Homem
do Povo, jornal dirigido por seu companheiro Oswald de Andrade. Pequenas
pela exiguidade das duas estreitas colunas que abrigavam tanta mordacidade e
deboche, nunca pela desconexão com a realidade. Aliás, tanta lucidez e tanto
espírito combativo valeu a Pagu um violento confronto com os conservadores
estudantes de Direito da Maria Antônia, perplexos com o peso da pena da
cronista que assinava a seção “A mulher do povo”. Seguindo “a linha crítica
ferina de toda a publicação” (BUITONI, 1985, p. 86), Pagu, com seu texto
agressivo e desmistificador, constitui-se caso raro entre as cronistas, de 1931
até hoje. As moças de então eram provocadas sem piedade, com absoluto
conhecimento de caso:

Ignorantes da vida e do nosso tempo! Pobres garotas


encurraladas em matinês oscilantes, semi-aventuras e clubes
cretinos. [...] Se vocês, em vez dos livros deturpados que lêem,
e dos beijos sifilíticos dos meninotes desclassificados,
voltassem um pouco os olhos para a avalanche revolucionária
40

que se forma em todo o mundo [...] (13/04/1931) (apud


BUITONI, 1985, p. 87)

Buitoni sugere que a mulher cronista, durante grande parte do


desenvolvimento de sua produção, optou por trabalhar, com extrema
seriedade, pela afirmação do novo papel social a que almejava, afastando-se,
assim, do leve toque de humor que sempre se pode perceber como marca do
gênero. Somente nos anos 70 as cronistas feministas assumiram a narração
reflexiva sobre seu cotidiano, suas dores, amargores e fulgores, fazendo desta
trincheira local privilegiado para a análise e reinvenção de suas inquietações,
certas do alcance da admoestação do jornalista Mario Sergio Conti:

Como literatura não é culinária, a descrição dos ingredientes da


crônica não funciona como receita. O seu conteúdo também
não conta: escrever sobre o cotidiano não faz um cronista. É a
intuição do escritor, o andamento que dá às frases, que faz
com que meia dúzia de parágrafos virem crônica. Incorporar os
nervos da vida à forma literária é o desafio para achar a
medida do homem. É preciso arte para fazer isso. (CONTI,
2013, p. 66)

Considero que esta medida do homem e da arte é que nos mantém


a salvo do empobrecedor discurso biologizante que por vezes assombra as
formas com que vemos o mundo. Historicamente, podemos afirmar que a
posição marginal da crônica parece se aproximar da marginalizada posição da
mulher como produtora de conhecimento que mereça registros. Todavia, com o
desdobramento do processo de escrita/leitura amadurecido no contexto de
confinamento polissêmico da produção de mulheres, transforma-se a visão de
mundo unívoca do patriarcado. Doravante, partir-se-á de um lugar à margem,
não-canônico, para outro, erodido, no qual a conformidade dá lugar à
perplexidade, à identidade, à alteridade. A partir de Clarice Lispector  num
desdobramento do pioneirismo de mulheres como Nísea Floresta, Josephina
Álvares de Azevedo e Júlia Lopes de Almeida no cenário literário do
Oitocentos, tomado de assalto por uma produção que já apontava as
transgressões genealógicas e classificatórias que a verve literária feminina
empreendia em face da sensibilidade artística masculina  consolida-se uma
41

nova forma de pensar a situação da mulher, que põe em xeque a condição


marginal feminina:

Sei que o que escrevo aqui não se pode chamar de crônica


nem de coluna nem de artigo. Mas sei que hoje é um grito. Um
grito!
Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma.
Isto é apenas. Não entra em gênero. Gêneros não me
interessam mais. Interessa-me o mistério. (LISPECTOR, apud
COSTA, 2005, p. 265-266)

Embora importantes transformações no papel das mulheres ressoem


na sociedade brasileira, ouvem-se ainda poucos gritos e escasso desejo de
mistério, o que nos leva a inferir que vários sótãos permanecem trancados,
alimentando muito mais abismo do que contemplação. No caso de Milly
Lacombe, criação e caos são marcas autobiográficas que se refletem no
modus operandi de sua produção. Titular da primeira coluna gay da imprensa
brasileira, ex-comentarista do canal televisivo SporTV, paulistana, ateia,
homossexual e corintiana, considera a crônica o gênero literário mais
confessional do mundo. Em entrevista à jornalista Jaqueline Amaral14, Milly dá
dicas sobre seu processo de escrita:

As melhores são as que saem em minutos. Tem algumas que


eu nem lembro de ter escrito, que saíram tão inspiradas que
nem parecia que era eu escrevendo. É como se eu entrasse
numa fenda temporal, uma experiência doida. Outras eu
começo a escrever e o coração dispara, então sei que vai ser
bacana. Outras me fazem chorar e eu tenho que parar, mas
não quero parar para não perder a inspiração, então continuo,
e o teclado vai ficando molhado e eu não vejo mais nada que
teclo. Quando acabo, tá tudo cheio de erro de digitação, levo
um tempo arrumando. (LACOMBE, 2010)

Milly Lacombe quer, primeiramente, sobreviver. Ocupando um lugar


bem definido na grande indústria da comunicação segmentada, a cronista gay
(por que não a cronista “lésbica”?) atinge um público específico, com o qual
compartilha experiências de vida, memórias da infância e as histórias de seus

14
Publicada em 16/07/2010, no blog da Tpm, no formato pingue-pongue (pergunta-resposta
rápidas), com o titulo “Milly Lacombe em ação”.
42

amores, num estilo que remete às técnicas do “New Journalism”, que floresceu
nos Estados Unidos nos anos 60, constituindo-se numa bem-sucedida tentativa
de cruzar as fronteiras entre literatura e jornalismo.
Para esta escola  que primava por injetar técnicas literárias no
texto jornalístico , não havia objetividade que não pudesse ser transcendida,
nem matéria jornalística que não pudesse ser personalizada, nem cronista ou
repórter que não pudesse se expressar como personagem não apenas da
narração, mas também como intermediador do acesso do leitor à experiência
narrada. Assim, a experimentação formal, já comum nas crônicas assinadas,
atinge e contamina a própria pauta dos temas tratados, deixando nebulosa a
demarcação das linhas entre ficção e não-ficção.
Desta deriva estilística decorre um alinhamento com a crítica cultural
que se abre a minúcias esparsas e contínuas, atenta às possibilidades de
investigação dos mais diversificados produtos culturais, seus processos de
reinvenção e reinserção nas sociedades contemporâneas, em consonância
com as usuais inquietações dos Estudos Culturais15, conforme teorizado por
Nelly Richards:

A crítica cultural  tal como a entendo  trataria não apenas


de levantar a suspeita do leitor contra o falso pressuposto da
inocência das formas e da transparência da linguagem, oculto
pelos pactos de força e pelos convênios de interesses que,
tacitamente, amarram entre si valores, significações e poderes.
Trataria, também, de exercitar a imaginação crítica em torno
das fissuras entre o real e seus outros, que a arte mantém
sugestivamente abertas, para que o leitor se anime a romper o
molde do sentido prefabricado, com o desfazer e refazer de
uma subjetividade livre de se deixar atrair pelo desconhecido
de categorias e palavras vagabundas. (RICHARDS, 2002, p.
185)

15
Adelaine LaGuardia assim sintetiza aquelas possibilidades: “Os estudos culturais, com sua
usual inquietação frente às grandes narrativas, as sintaxes teóricas absolutas, trazem para a
cena acadêmica objetos ‘questionáveis’ do ponto de vista da sua relevância, esses objetos não
legitimados que, em tese, não valeriam a pena ser estudados, mas que nos permitem indagar,
a partir das premissas do senso comum, do gosto, dos afetos e dos engajamentos, como
novos objetos e formas culturais se instauram nas sociedades contemporâneas.” Ver SOUZA
et al., 2012, p. 202.
43

É sob esse entendimento que as crônicas de Milly Lacombe podem


ser analisadas, pois demandam esse exercício crítico de imaginação,
responsável por romper categorizações e subjetividades apriorísticas. Em Tudo
é só isso, reunião dos textos da autora, selecionados manu propria, o relato
autobiográfico emerge com todas as particularidades narrativas que
caracterizam a complexa relação entre obra e autor, cujas instabilidades
apontam para trocas metafóricas entre fato e ficção como capazes de enfeixar
um corpus privilegiado de relações teóricas que jogam luz sobre práticas
discursivas nômades.
Como gênero que dá voz aos marginas da cultura, as crônicas
autobiográficas da “carioca Milly Lacombe, [...] que gosta mesmo é de escrever
livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma
16
gata”, permitem que ela se reinvente a si mesma na escrita. Ao “negar o
estatuto convencional das funções familiares” (SOUZA, 2011, p. 72), instaura
em sua escrita uma nova modalidade subjetiva, qual seja, a da melancolia, que
“ainda assinala a necessidade de reconhecer a presença do corpo como
alteridade e registro” (Idem, p. 86), o que a cronista da Coluna do Meio faz por
meio do resgate de histórias familiares que a marcaram, moldando seu
discurso autobiográfico em direção a uma narrativa que elenque experiências,
amores, perplexidades, conquistas e dores, com o propósito de contar uma
história que seja visceral e arrebatadora, e que traga o “gosto simples da vida”
entranhado na lembrança:

“Bilu, vamos sair, só você e eu?”, era o que ele dizia ao pé do


meu ouvido. [...] A ideia, e só ali ele me explicou, era passear
comigo pelo centro de São Paulo e me contar um pouco da
história da cidade que ele aprendeu a amar depois dos
quarenta, quando saiu do Rio, onde nasceu. [...] O homem era
uma enciclopédia, sabia datas, nomes e fatos sobre qualquer
coisa, sem sequer titubear. Até hoje, toda vez que tenho
alguma dúvida, de gramática ao regime político do Butão, por
reflexo, levo a mão ao telefone para ligar para meu homem. Só
então lembro de duas coisas fundamentais: de que ele se foi e
do Google.

16
Excerto extraído da definição que a autora dá de si ao final das crônicas publicadas na
Revista TPM (Trip Para Mulheres).
44

Depois desse dia, meu pai nunca mais entrou no quarto num
domingo de manhã para me convidar para sair. E, ainda assim,
eu continuei a esperar por ele, acordada na cama, todos os
domingos. Hoje entendo que ele sabia exatamente o que
estava fazendo quando nunca mais voltou. O gosto daquele dia
havia sido tão especial, tão raro e doce que não valeria a pena
repeti-lo, sob pena de fazer com que ele fosse diluído nas
águas do ordinário. (LACOMBE, 2010, pp. 28-29)

Em 1929, Virginia Woolf escreveu um ensaio que em tudo nos


remete ao clássico Um teto todo seu, e no qual despontam os princípios de
análise da ficção que as mulheres escrevem, ou que é escrita sobre elas. No
raiar do século XX, a ficção das mulheres se baliza por ser corajosa; sincera;
sem amargura; fiel ao sentimento da autora; distante da feminilidade como
valor; impessoalidade; intelectualidade; relações políticas. Bem distante da
espontaneidade divina, palavrosa e prolixa, que lhe era atribuída em passado
recente. Hoje, pode-se dizer que o vaticínio de Virginia Wolf se cumpriu, e a
face de Lilith não precisa mais ser subjugada, pois o lado escuro é justificável
por sua própria existência e natureza. As mulheres escrevem (menos e
melhores) romances, poesia, crítica, história, biografias, crônicas. Chegou a
“era de ouro e talvez fabulosa em que as mulheres terão o que por tanto tempo
lhes foi negado  tempo livre e dinheiro” e um teto todo seu (WOOLF, 2014, p.
283). “Se é a vida em si que queremos, aqui a temos decerto” (Idem, p. 111).
45

III. Milly e Eneida: a crítica biográfica

Todo escritor que se preza sabe que os


infernos reais, quando transpostos para a literatura,
são sempre imaginários, são sempre uma criação.
Se a literatura é um espaço privilegiado e libertário,
é justamente por dar à imaginação
o mesmo peso da vida. [...] O texto literário não é
apenas o relato de uma experiência
prévia; ele é a própria experiência.
Bernardo Carvalho
46

1. Entrevista imaginária: conceituação

Esta entrevista é um exercício autoficcional de interpretação dos


pressupostos da crítica biográfica, tal e qual se apresentam hoje na Academia,
alimentados pelos escritos teóricos capitaneados por Eneida Maria de Souza,
que me conduziu nessa aprendizagem, eu, para quem tudo era a mais pura
verdade nos escritos biográficos.
Em jornalismo, a estratégia classificar-se-ia como “entrevista
imaginária”, editada a partir de declarações textuais apropriadas da obra de
escritores, estudiosos e críticos que as propuseram. É um exercício adejante,
que exige imaginação e conhecimento em doses proporcionais, para que o
jogo da verdade traga à tona, ou não, respostas para os enigmas da vida. No
Brasil, a novidade estilística teve início com o polêmico David Nasser na
Revista Manchete, mas foi se aperfeiçoando ao longo do tempo, despindo-se
da capa do ilusionismo, de cunho sensacionalista (e às vezes inverossímil), até
chegar ao requinte de se constituir como instrumento de trabalho legítimo,
principalmente entre os jornalistas literários, desde que anunciado. Recorrendo
novamente a Zuenir Ventura, destaco: “Lembro-me de uma frase de Godard
dizendo que a câmera pode ser de esquerda ou de direita. Se uma máquina
pode ser a favor ou contra, só mudando o ângulo, imagine o que não se pode
fazer com a linguagem, que está encharcada da nossa subjetividade” (COSTA,
2005, p. 286). Nestor Canclini reforça o argumento, ao dizer que “a identidade
é uma construção imaginária que se narra” (MÜHLHAUS, 2007, p. 16).
Para Leonor Arfuch (1995), a entrevista não deixa de ser também
uma “invenção dialógica”, forma de narrar, no sentido bakhtiniano, que atribui
autenticidade ao que é dito, mesmo que sua credibilidade se baseie em
estratégias próprias da criação literária e midiática (gestos, expressões,
entonações), que contaminam uma pretensa objetividade com uma não rara
exacerbação das subjetividades dos atores envolvidos nesta “espécie de
renovação cotidiana do contato personalizado com o mundo”. Sob esse ponto
de vista, estabelece-se um princípio de cooperação modulado pela presença
do Outro, que assegura a entrevistador e entrevistado um espaço de
47

heterogeneidade enunciativa, a tal ponto que a multiplicidade dos usos e


recursos linguísticos se abrem para os mais diversos suportes  literário,
jornalístico, midiático, corporativo , promovendo “um conjunto de esquemas
valorativos do mundo” em redes abertas e virtuais.
Arfuch, no entanto, não deixa de considerar as fissuras desse pacto
dialógico, cujo princípio de cooperação é regido por uma série de regras que,
embora acordadas mutuamente, insinuam possibilidades de quebras
contratuais, cujo resultado é o embaralhamento da convenção que organiza a
percepção dos interlocutores. O contrato de competência comunicativa pode
ser ajustado ou violado.
Assim, se há negociação dos significados que o texto sempre
desperta no leitor, podemos apostar em especificidades relativas, visto que os
limiares discursivos se fluidificam, indefinindo fronteiras e instaurando tramas
de sentido que trazem, em sua variância, releituras das regras e desvios desse
“jogo intersubjetivo da verdade”. Pois estamos à frente de um trabalho narrativo
que se assenta sob certas similaridades discursivas detectáveis, por exemplo,
entre ficção literária e televisiva (ou de qualquer outro meio). Como atividade
enunciativa que tece redes intersubjetivas de controle e persuasão, a entrevista
se rende à obsessão biográfica que tomou de assalto o horizonte
contemporâneo dos meios de comunicação de massa. A exaltação do vivido
divisa uma interioridade marcada por relatos altamente tipificados, nos quais a
evocação do detalhe intenta singularizar subjetividades. Produtora de
realidades, a entrevista, também “contaminada” pelo “New Journalism”
americano, se vê diante do novo mundo da autorrepresentação e da
veracidade, onde é possível o manejo criativo de realidades. Em outras
palavras: onde é possível ficcionalizar.
48

2. Nem verdadeiro, nem verossimilhante: ficcional


O mais difícil, nesta entrevista, foi criar um título à altura daqueles que
nomeiam a vasta produção ensaística de Eneida Maria de Souza, nossa crítica
mais cult. Finalista da 53ª edição do Prêmio Jabuti (2011), na categoria
Biografia, com livro que analisa a correspondência de Mário de Andrade e
Henriqueta Lisboa, nossa entrevistada vem se dedicando, nos últimos anos, ao
estudo da crítica biográfica como uma das vertentes da crítica literária e
cultural, a qual se apropria da metodologia comparativa ao processar a relação
entre obra e vida dos escritores pela mediação de temas comuns e
demasiadamente humanos: a morte, a doença, o amor, o suicídio, a traição, o
ódio. Reunidos por um fio temático e enunciativo, independente de intenções
ou da época em que viveram, escritores e pensadores constituem matéria
biográfica a ser analisada em nível teórico e ficcional, que enseja diálogos
inesperados e ficcionais entre escritores que se situam distantes no tempo,
caso de Guimarães Rosa, Franz Kafka e J.M. Coetzee, possibilidade
alinhavada pelo desdobramento da pesquisa iniciada no Diário da Guerra,
mantido por Rosa entre 1939 e 1942, durante sua estada em Hamburgo (1938-
1942). “São textos em progresso, versões adulteradas e aumentadas do
mesmo fato, recriações ficcionais que se aproximam e se afastam do
documental”, explica. Ou seja: as relações causalistas e factuais de uma
suposta “verdade biográfica” são suspensas, a favor de uma caracterização da
biografia como biografema, no sentido proposto por Roland Barthes, o de
construção de uma imagem fragmentária do sujeito, uma vez que não se
acredita mais no estereótipo da totalidade e nem no relato de vida como
registro de fidelidade e autocontrole. “Nesse processo de escrita de fronteiras
tênues, oscilantes entre fato e ficção, sujeitos fraturados compartilham da
construção de biografias e se disseminam na rasura das assinaturas e no
embaralhado dos textos”, esclarece Eneida. A embasar essa discussão sobre a
crítica biográfica, em sua vertente verdadeiramente revolucionária, tomaremos
como objeto de análise o livro tudoésóisso: amor, conquistas e outros prazeres
fundamentais, da jornalista Milly Lacombe, cuja pretensão é armar, ao longo
das 65 crônicas que o compõem, uma carpintaria autobiográfica da memória
49

familiar, cujo eixo gira em torno da subjetividade gay da autora, a reboque de


suas múltiplas identidades e motivações. Milly é explícita em relação a seu
projeto biográfico: “No meu caso, a exposição é fundamental porque uma de
minhas intenções quando comecei a coluna era a de mostrar que
homossexualidade não é doença, nem desvio, e que gays levam uma vida tão
banal como qualquer outra pessoa”. À entrevista.

Cibele de Moraes  Antes de nos embrenharmos no universo de Milly


Lacombe, diga-nos de onde vem seu interesse pela vertente teórica da
crítica biográfica.
Eneida Maria de Souza  Minha formação intelectual e atuação profissional
na área da Teoria da Literatura talvez tenha me levado a esse caminho de
investigação, marcado tanto pela produção ficcional quanto a documental do
autor, o qual desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e
expande o feixe de relações culturais. Meu interesse está nessa quebra de
limites. O início teve como motivação o trabalho de edição da correspondência
entre escritores (Mário de Andrade, Henriqueta Lisboa, Murilo Rubião), pela
oportunidade de esclarecer dados até então nebulosos de suas obras,
soluções que possibilitaram sistematizar com mais rigor a poética defendida
por eles.

CM  Fui avisada de que a pergunta costuma enfurecê-la, mas vou me


arriscar: não podemos dizer que toda crítica é biográfica?
EMS  Num sentido estrito, pode ser que sim. Todavia, a invenção de
biografias literárias e sua análise pela crítica especializada, por sua própria
natureza compósita, englobam a relação complexa entre obra e autor,
possibilitando a interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e
exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a
ficção. Assim, ficcionalizar os dados significa considerá-los como metáforas,
ordená-los de modo narrativo, sem que haja qualquer desvio em relação à
‘verdade’ factual. O gesto ficcional de composição de biografias torna-se
obrigatório para a elaboração de uma dicção que se situa entre a teoria e a
ficção, expressa como marca pessoal de cada ensaísta, de cada autor, de cada
50

cronista, de cada poeta. Pois, como queria Jacques Rancière, ‘o real precisa
ser ficcionalizado para ser pensado’.

CM  Obra e vida, teoria e ficção, são, assim, escritos e encenados?


EMS  Exatamente. Mesmo no caso explícito das histórias narradas por Milly
Lacombe, tão referenciais, não se deve argumentar que a vida esteja refletida
na obra de maneira direta ou imediata, ou que a arte imita a vida, constituindo
seu espelho. Se há espelhamento, sua matéria é o texto. Oscar Wilde nos deu
a direção primorosa: a vida imita a arte. A crítica biográfica, tal qual vem sendo
praticada na abrangência permitida pelos Estudos Culturais, não pretende
reduzir a obra à experiência do autor, nem demonstrar ser a ficção produto de
sua vivência pessoal e intransferível. As relações teórico-ficcionais entre obra e
vida resultam no desejo de melhor entender e demonstrar o nível de leitura do
crítico, ao ampliar o pólo literário para o biográfico e daí para o alegórico. O
importante a destacar nessa relação é considerar os acontecimentos e os
dizeres como moeda de troca da ficção, uma vez que não se trata de converter
o ficcional em real, mas em considerá-los como cara e coroa dessa moeda.

CM  O lastro biográfico transcende, então, a empiria de uma


interpretação textual baseada em soluções fáceis e superficiais?
EMS  Transcende e a ultrapassa. Como queria Jacques Derrida, por meio da
utilização da categoria espacial de superfície, imune à verticalidade, que exige
um olhar analítico em profundidade. Deleuze nos traz o sentido de origem,
entendido no seu estatuto de invenção, ao descartar qualquer ilusão de
princípio fundador ou de autenticidade factual. Todo testemunho contém
necessariamente uma lacuna, ou uma invenção. Beatriz Sarlo, que você tanto
aprecia, já disse que, se nós, leitores, ainda mantemos nosso interesse por
escritores, é porque não nos convenceram, nem pela teoria, nem em nossa
experiência, de que a ficção seja um apagamento completo da vida.

CM  Na aparente profusão de combinatórias narrativas que remetem ao


fascínio biográfico, qual o objetivo da crítica?
51

EMS  Articular temas construídos nas obras com eventos pessoais e tentar
enlaçar as múltiplas paixões que regem tanto a vida como a literatura. Nunca é
demais repetir que a escolha do método biográfico impõe determinada
disciplina e se afasta de aproximações ingênuas e causalistas operadas por
adeptos da pesquisa biográfica como caça aos segredos e enigmas do texto.
Mesmo que o nome próprio de uma personagem faça referência a pessoas
conhecidas do escritor, isso não impede que sua encenação, ou a própria
narração, embaralhe os dados e coloque a verdade biográfica em suspenso. A
pesquisadora Jovita Gerheim Noronha acaba de lançar, pela Editora UFMG, a
coletânea Ensaios sobre a autoficção, que reúne textos de críticos e escritores
franceses consagrados, por meio dos quais temos acesso ao panorama
histórico do conceito, de Philippe Lejeune a Philippe Vilain. O que primeiro se
depreende é que não há consenso sobre essa “palavra-espelho”. A tarefa do
crítico, no momento em que a autoficção se consolida como categoria
conceitual corrente em nosso campo analítico, é buscar compreender as
relações de força que se estabelecem em torno do centro gravitacional comum
das escritas de si.

CM  Foi com base naquela suspensão que você escreveu que “a figura
do autor cede lugar à criação da imagem do escritor”?
EMS  Sim. Considerando que o sujeito da escrita não é um ser pleno, e sim
uma construção que opera dentro e fora do texto ficcional, na vida mesma, o
autor assume uma identidade mitológica, fantasmática (Barthes) e midiática. A
personagem autor, construída tanto pelo escritor quanto pelos leitores,
desempenha vários papéis de acordo com as imagens, as poses e as
representações coletivas que cada época propõe aos seus intérpretes da
literatura. Cada escritor, portanto, constrói sua biografia com base na rede
imaginária tecida em favor de um lugar a ser ocupado na posteridade: ou o do
ausente ou do morto. Essa “cessão” opera uma mudança no eixo interpretativo:
vida passa a ser texto, palco no qual se encenam as subjetividades do sujeito
crítico.
52

CM  Por isso é que as biografias de escritores dizem a verdade de sua


obra?
EMS  É claro, o eu que escreve é outro que o eu que vive. Mas o eu que
escreve não é diferente daquele que vive, e se ele se faz romancista
(‘imagista’, como nos diz Sainte-Beuve) da vida do escritor, então ele tem, pela
ficção, acesso à verdade da obra. No caso de Milly Lacombe, arrisco dizer que
talvez falte à realidade a riqueza estilística da mentira, assim como a verdade
(factum) desconhece a retórica tentadora da imaginação.

CM  Não posso deixar de destacar que nossa cronista escreve numa


revista de circulação nacional, dirigida a um segmento de alto poder
aquisitivo, habituado ao consumo de bens culturais os mais exclusivos.
Como a estratégia narrativa de um texto híbrido pode contribuir para a
montagem do perfil autobiográfico de Milly?
EMS  A crônica, entendida como gesto autobiográfico, segundo suas
considerações anteriores, fomenta redes associativas com a obra e a
experiência do escritor. Lembremo-nos de Silviano Santiago, em Meditação
sobre o ofício de criar: “A distinção entre autobiográfico e confessional ganhou
corpo textual no momento em que comecei a conjugar minha própria
experiência infantil de vida com o auxílio dos verbos de minha memória”.
Trabalhando no liame entre esfera pública e espaço privado, entre o individual
e o coletivo, entre a ficção e o ensaio, entre o espontâneo e o teatral, entre a
oralidade e a escritura, esse gênero não canônico (que remete à entrevista
também, cujo arsenal a jornalista Milly Lacombe domina, como percebemos
pelos perfis que assina na Revista TPM) pode ser considerado como uma
contribuição à produção de uma história aberta a múltiplas vozes, inclusive à
daquela Milly de papel. O teórico Vincent Colonna, citado por Silviano,
classifica a configuração híbrida da autoficção como ‘uma nebulosa de práticas
aparentadas’.

CM  Definição que o próprio Doubrovsky desconstrói...


EMS  Nem mesmo os críticos franceses chegam a um acordo sobre o
estatuto da autoficção, que hoje não se restringe mais ao campo da literatura,
53

estende-se às outras artes. Serge Doubrovsky já disse que a riqueza da


autoficção é sua variedade de sentidos. À proposição de Colonna da “extensão
máxima” do campo teórico da autoficção, Doubrovsky contrapõe a necessidade
da existência real de um autor, até mesmo por acreditar que a homonímia
autor-narrador-personagem dá ao texto um regulamento que o inscreve no
pacto autobiográfico. Contudo, se a autoficção, dicionarizada como “ficção, de
fatos e acontecimentos estritamente reais”, se inscreve no funcionamento
simbólico da própria escrita, o “pacto” ficcional torna-se um “pacto oximórico”,
na medida que lidamos com narrativas nas quais ‘a matéria é estritamente
autobiográfica e a maneira estritamente ficcional’. [Está no livro da Jovita; você
já tem o seu?] Para Doubrovsky, o ficcional não é apenas o fictício (pura
invenção), é também o romanesco, isto é, coloca em cena ‘um vivido que se
conta vivendo. Autobiografia ou autoficção, a narrativa de si é sempre
modelagem, roteirização romanesca da própria vida.’

CM  Doubrovsky afirma também que toda autobiografia, qualquer que


seja sua ‘sinceridade’, seu desejo de ‘veracidade’, comporta sua parte de
ficção. De todo modo, reinventamos nossa vida quando a rememoramos,
com o que Silviano Santiago parece concordar. Para clarear esse ponto,
pergunto: é o que faz Milly Lacombe?
EMS  As crônicas têm, sim, um forte sotaque autobiográfico, principalmente
quando se referem às lembranças do pai e a seus familiares próximos (mãe,
irmãs, irmão, sobrinhos e sobrinhas, seu link de futuro). O relato não é uma
história destilada, está infectado de rememórias. Cria um texto que pretende
traduzir uma mudança de percepção que se tinha de si e a que se tem hoje, e a
toda hora deixa entrever uma marca de sua formação. Estou me lembrando da
crônica em que descreve o ritual matinal de passar o cinto pelo cós da calça do
pai, e o quanto aquilo foi decisivo para sua subjetividade.

CM  Posso citar? Página 78: “A resposta deve estar na simplicidade do


gesto. Ao me deixar assumir o controle, mesmo que por vinte segundos, meus
pais antecipavam um papel que, mais tarde, seria meu. Ao aceitar dominar os
passos de meu pai, o ritmo de nossa dança e a escolha do cinto, estava
54

construindo um tipo de autoconfiança que, como mulher, me seria


indispensável. Ao conquistar a atenção plena de minha mãe, entrava numa
zona de energia pela qual, repetidas vezes na vida, acabaria procurando”.

EMS  Ou seja, o ritual está descrito. Mas quem pode afirmar que os reflexos
em sua formação não estejam sendo ficcionalizados? O sujeito cartesiano
íntegro sucumbiu a Freud e seus sucessores. Do seu descentramento resultou
o fragmento, as marginalidades, tanto que Doubrovsky aconselha: “Cada
escritor de hoje deve encontrar, ou antes, inventar sua própria escrita dessa
nova percepção de si que é a nossa.

CM  Pedro Nava diz: ‘Os fatos da realidade são como pedra, tijolo 
argamassados, virados parede, casa, pelo saibro, pela cal, pelo reboco da
verossimilhança  manipulados pela imaginação criadora. O resto é
relatório.’ Sobre o que o memorialista está a nos alertar?
EMS  Nava chama a atenção para a impossibilidade de se apostar na prática
hermenêutica de análise textual, assim como no deciframento de “sentidos
ocultos” a partir da relação naturalista e causal entre vida e obra. A título de
esclarecimento, vamos falar de um outro aspecto da entrevista como meio
legitimador do exercício teórico-ficcional. Seguindo a trilha aberta por Diana
Klinger em sua análise sobre a autoficção  que está em Escritas de si,
escritas do outro , podemos também considerar a entrevista como uma
performance que, embora pressuponha preparação, treinamento, ensaio antes
de sua realização, ainda se mostra aberta à contingência e à interatividade
(como ocorre na redação de crônicas, diga-se). Klinger destaca: “o conceito de
performance deixaria ver o caráter teatralizado da construção da imagem do
autor”. Ou, dito de outra forma: deixaria à mostra a incapacidade de o sujeito se
manter íntegro e onipotente. A autoficção, longe de se impor como chave que
abre todos os enigmas da autobiografia, guarda, segundo Jean-Louis
Jeannelle, o conhecido estatuto conferido ao sujeito pelas teorias
psicanalíticas, foucaultianas e barthesianas, da ficcionalização de si, da
encenação de subjetividades no ato da escrita e do discurso.
55

CM  Podemos nos deter sobre o conceito de autoficção?


EMS  O termo foi postulado por Serge Doubrovsky em 1971, como a forma
pós-moderna, ou melhor, pós-holocausto, da autobiografia, pois, ‘mesmo que
todos os detalhes sejam exatos, o relato é sempre reinvenção do vivido’, posto
que ‘não se lê uma vida, lê-se um texto’. E ainda: ‘A autoficção é o meio de
ensaiar, de retomar, de recriar, de remodelar num texto, numa escrita,
experiências vividas de sua própria vida que não são de nenhuma maneira
uma reprodução, uma fotografia... É literalmente e literariamente uma
invenção’. Sendo assim, o referencial é desestabilizado, deslocado no espaço-
tempo da narrativa, pois são mais livres os protocolos enunciativos. O autor
tem a liberdade de utilizar seu próprio nome para sua personagem ou narrador,
sem que tal gesto interfira no grau de fidelidade/infidelidade narrativo, posição
distinta daquela defendida por Philippe Lejeune quanto ao pacto autobiográfico.
A desestabilização do referencial produz, com efeito, a invenção e a
estetização da memória, esta não mais subordinada à prova de veracidade.
Trata-se de ação deliberadamente ficcional por parte do sujeito, do gesto de
dessubjetivação que o insere no jogo fabular da narrativa. Estar
simultaneamente no interior da linguagem e fora dela consiste na operação
paradoxal da presença/ausência do sujeito na complexa cena enunciativa.

CM  Nesse caso, o escritor está autorizado a mentir?


EMS  A mentir verdadeiramente, sim. A estratégia referencial às avessas que
acabo de descrever ainda se reveste da antiga poética narrativa, marcada pelo
que os franceses chamam de mentir-vrai, ação que reúne princípios de
enunciação ligados ao teatro e ao romance, construindo uma cenografia da
própria enunciação. Para Maryse Vassevière, ‘o discurso autobiográfico tem
sempre anseio do necessário desvio pela ficção’. O mentir-verdadeiramente é o
que se pode considerar como uma ‘pura teoria do romance se o acento é
colocado sobre o mentir’, ou como ‘um território no vasto continente da
autoficção se se coloca o acento sobre o verdadeiro’. Portanto, somente a
ficção é capaz de oferecer acesso ao real, e o que se atinge ao fim de uma
narrativa, como ao de uma vida, não é a verdade revelada das personagens,
mas uma série de imagens quebradas, percorrida de reflexos à contramão.
56

CM  Onde o limite tênue entre fato e ficção?


EMS  Demarco esse limite no terreno da verdade poética, campo fértil para
esta escrita autobiográfica que se corporifica em diversos discursos para
manter o movimento paradoxal de proximidade e distanciamento entre
literatura e vida, ficção e documento. Lembranças mentirosas, mentiras
lembradas. Toda ficção não é literatura, mas toda literatura é ficção. Ocorre-me
uma comparação. A Revista piauí publicou artigo de Perry Anderson sobre
Claude Lévi-Strauss, o antropólogo mais famoso do século XX, cuja vida
poderia intimidar qualquer candidato a biógrafo, pois sempre negava que sua
pessoa tivesse qualquer interesse. Dizia que lembrava pouco de seu passado e
tinha a sensação de que não havia escrito os próprios livros. Lévi-Strauss dizia
ser apenas uma ‘encruzilhada passiva’ onde ‘coisas aconteciam’: “Eu nunca
tive, e ainda não tenho, a percepção de sentir minha identidade pessoal. Eu me
vejo como o lugar onde alguma coisa está acontecendo, mas não existe um
eu”.

CM  Nesse projeto de escrita como apropriação da memória de outros


(já que as margens identitárias estão arrefecidas), o que existiria então?
EMS  Quem sabe uma aproximação do conceito de ensaísmo, como
proposto por Cynthia Ozick na edição número 9 da Revista serrote? Guardadas
as devidas formalidades, as crônicas de Milly Lacombe poderiam ser vistas
como John Updike entendia a perfeição feminina: ‘curvas em torno dos centros
de repouso’. O ensaio, consequentemente, seria o retrato do corpo da mulher,
“movimento de uma mente livre quando brinca”. Seu poder, entendido como
indução ao assentimento, estaria potencializado, espraiando-se pelas fontes da
ficção, como escreve Ozick: “O ensaio pode ser produto tanto do intelecto
quanto da memória, do espírito leve ou sombrio, do bem-estar ou do desprazer.
Mas há sempre uma certa quietude, às vezes uma espécie de alheamento.
Furor e vingança, creio, pertencem à ficção. O ensaio é mais ameno. Por
muitas vezes, suscita ações de memória e, apesar de suas encarnações mais
alegres ou mais bizarras, o ensaio é sobretudo uma forma serena e
melancólica”.
57

CM  A crônica “Em um restaurante da rua Batataes” é exatamente isso!


Veja o trecho que marquei. “Meu pai morreria, vítima de um acidente
hospitalar, cinco anos depois. Me deixou cedo demais, mas, ao lidar comigo
sempre cheio de respeito e maturidade, me ensinou a ser suficientemente forte
para conseguir seguir pela vida sozinha, para me entender como sou. Hoje, sei
que aquele almoço marcou minha entrada no mundo adulto. A partir dali, tive
que me reescrever, me revisitar e me rever. Quando o homem que é um pouco
do que somos é capaz de nos tratar como se fôssemos uma coisa
completamente nova, madura e robusta, é porque, de fato, devemos ser tudo
isso. Se pudesse encontrar com ele para mais um almoço e o visse tão triste
sei que agiria de forma completamente diferente. [...] Talvez pedisse um vinho,
talvez citasse algum autor que pudesse ter dito melhor o que eu estava
pensando, talvez até chorasse. Mas uma coisa certamente eu faria: diria a ele
que não estava com pressa nenhuma porque não tinha nada para fazer
naquela tarde a não ser conversar com ele.”

CM  Entendo: as crônicas de Milly teriam esse tom mais ameno, curtido


em suas memórias familiares, ressoando serenidade e uma certa
melancolia?
EMS  Sim, numa proposta que, acaba de me ocorrer, se assemelha à
postura crítica de Denilson Lopes, citada no texto de Diana Klinger. Ao tipo de
crítica à qual se dedica, ‘com afeto e com o corpo’, a autobiografia é decisiva,
pois permeia a própria escritura do ensaio, que se constitui como uma poética
que identifica autor e objeto, o que traz, na opinião do crítico, ‘um gesto maior
de ficcionalidade à tradição conciliadora e elegante do ensaio’, contrapondo-se
à espetacularização da intimidade, fazendo com que o desejo maior de auto-
exposição se transforme numa possibilidade sutil da voz do sujeito na crítica e
na autobiografia. Quanto à pergunta sobre Milly Lacombe especificamente, a
resposta fica com ela, você quer ler?

CM  “Explicando as estrelas” é o título da crônica: “Quando eu era pequena,


meu pai gostava de me falar sobre as estrelas. Apontava para o céu e
58

explicava como distinguir uma estrela de um planeta: ‘os planetas são maiores
e mais brilhantes’, dizia. Mostrava o Cruzeiro do Sul, as Três Marias e contava
que algumas das estrelas que estávamos vendo já não existiam mais, mas
ainda assim éramos capazes de vê-las. ‘A distância entre nós é tão grande
que, quando a luz que elas emitem chega aqui, elas podem não mais existir’,
dizia ele. ‘Porque estrelas nascem e morrem como todos nós’”.

CM  Quando Silviano Santiago discorre sobre o estatuto vivido das


invenções autobiográficas, ele quer dizer ser possível questionar a
verdade poética, os textos de nossa cronista incluídos?
EMS  No sentido de uma releitura teórica a partir da crítica biográfica
centrada nos estudos de gênero, sim. Ao leitor de Milly, cabe escolher entre
diferentes mundos ficcionais, tendo em vista as quatro questões constitutivas
do que tem sido para Silviano o exercício da literatura do eu: as questões da
experiência, da memória, da sinceridade e da verdade poética. Os fatos
autobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala
confessional, preferindo vagar no verdadeiramente falso. A verdade não está
explícita numa narrativa ficcional, está sempre implícita, recoberta pela capa da
mentira, da ficção. No entanto, é a mentira, ou a ficção, que narra poeticamente
a verdade do leitor.
59

IV. Milly e Eve: a epistemologia do armário

Lembro quando você me falou,


dentro do armário,
só tem bolor e naftalina.
Vem já pra fora, meu bem,
que só aqui é que tem,
calor e adrenalina.
Zeca Baleiro
60

Gastrônomos de todo o mundo guardam um esqueleto em seus


armários de dispensação, e seu nome é ortolan, ou Emberiza hortulana, ave
nativa da Europa e de certas regiões da Ásia. A cerimônia de degustação deste
prato milenar da França rural é secreta, por criminosa, e envolve todo o aparato
da alta culinária gourmet: terrines de caça clássicas da era Carême, galantinas
de aves variadas, patês, rillettes, vinhos raros. A ave, submetida à engorda por
meio de uma dieta ininterrupta de figos, painço e aveia, é assada inteira, e
servida muito quente em minicaçarolas (cocottes) de ferro fundido, sob fundo
de armagnac. O ritual desta que foi a refeição do presidente François
Mitterrand em seu leito de morte deve ser consumado longe da vista de Deus:

[...] colocamos os guardanapos grandes sobre a cabeça, [...]


queimamos os dedos ao levantar os passarinhos
delicadamente, pelo crânio quente, para colocar o bicho na
boca, começando pelos pezinhos, e deixamos só a cabeça e o
bico para fora.
[...] Primeiro senti a pele e a gordura. Quente. Tão quente que
precisei aspirar e expirar rapidamente, em pânico, para o ar
entrar e sair [...] ventilando o ortolan, que eu movia pela boca
com a língua, para não me queimar. [...] Senti um vestígio de
sabor de armagnac, o bafo morno das partículas de gordura no
ar, um miasma delicioso, intoxicante. [...] Apertei os molares
lentamente, comprimindo e fraturando as costelas do
passarinho, sendo recompensado com uma sensação de
umidade e um jorro quente de gordura e miúdos a descer
queimando pela garganta. Raramente dor e prazer combinaram
tão bem. Sinto um desconforto vertiginoso, a respiração
entrecortada enquanto prossigo mastigando, lentamente  o
mais lentamente possível. A cada mordida, conforme os ossos
e camadas de gordura, carne, pele e órgãos se mesclam,
surgem sublimes notas de sabor e aroma variados,
maravilhosos, ancestrais: figo, armagnac, carne escura
levemente temperada com o salgado do meu próprio sangue
conforme os ossinhos finos furam a bochecha. Engulo, sugo a
cabeça e o bico, que até agora estavam pendurados nos
lábios, e esmago o crânio, jubiloso. (BOURDAIN, 2011, p. 15-16)

Assim alimentados, confortáveis na bonomia que se segue ao bom


cometimento dos pecados capitais, os comensais se levantam e vão
retomando lentamente o comportamento irrepreensível de respeitáveis
amantes da boa mesa que se preocupam com a alimentação de seus
semelhantes, não sem antes o acordo tácito (celebrado entre olhares
61

enevoados pela fumaça dos cigarros) de manter a sete chaves o segredo


daquele festim diabólico.
À maneira de uma epistemologia da gula, a confraria conhece o
potencial destrutivo de reputações associado ao prazer de se consumir um dos
pratos mais raros e proibidos da cozinha internacional. Daí talvez decorra todo
o esforço de ocultamento, perfeitamente traduzido pela clássica expressão
“askeleton in the closet”, comum nos países de língua inglesa, a qual codifica
um imperativo de silenciamento semelhante à ormetà das famílias mafiosas
italianas.
Desejos enunciáveis subordinados a necessidades silenciáveis
remetem à condição problematizada por Eve Kosofsky Sedgwick no que se
refere à sexualidade “como um dispositivo histórico do poder fundado em
formas de regulação da vida social e individual” (MISKOLCI, 2007, p. 56) de
pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo. A pesquisadora norte-
americana afirma: “O armário é a estrutura que melhor sintetiza a opressão gay
neste século” (SEDGWICK, 2003, p. 11), por codificar um “sistema excruciante
de double binds [duplos vínculos], oprimindo sistematicamente pessoas,
identidades e comportamentos gay, minando os próprios alicerces da sua
existência através de restrições contraditórias impostas ao discurso” (Idem, p.
11).
Inspirados na análise foucaultiana do discurso, os procedimentos
metodológicos de Eve Sedgwick, em Epistemologia do armário, tomam por
base estratégias de poder e mecanismos regulatórios da vida individual e
coletiva, simbolizados na metáfora do armário, que definem o que as
sociedades da segunda metade do século XX consideram como vida sexual e
amorosa aceitável: aquela que preenche “os corações de rapaz e moça com
chama mútua”, como se pode ler no poema “Dois amores”, de Lorde Alfred
Douglas (1894), referenciado por Sedgwick.
Essa sexualidade cindida entre os que se relacionam com pessoas
do mesmo sexo (homossociabilidade) e os que se relacionam com indivíduos
do sexo oposto, mantendo instituições e valores ligados à ordem
heterossexista, é questionada por Michel Foucault:
62

Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que


não se diz; é preciso tentar determinar as diferentes maneiras
de não dizer, como são distribuídos os que podem e não
podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de
discrição é exigida a uns e outros. Não existe um só, mas
muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que
apóiam e atravessam os discursos. (FOUCAULT, 2005, p. 30)

Como esboçado pelo teórico francês no primeiro volume de A


história da sexualidade, a partir de fins do século XVIII, o par
conhecimento/ignorância adquire nova dimensão e visibilidade na cadeia
metonímica de oposições binárias que tentam narrar as dicotomias que
parecem ter infectado o quadro epistemológico da modernidade, polarizado em
fórmulas como público/privado, sujeito/objeto, segredo/revelação,
masculino/feminino, homo/heterossexual. Na cultura europeia oitocentista,
“conhecimento” e “sexo” se tornam inseparáveis conceitualmente, a ponto de
conhecimento significar, em primeiro lugar, conhecimento sexual; ignorância,
ignorância sexual; “enquanto o próprio devir epistemológico se converte, por
seu lado, numa força cada vez mais saturada pela pulsão sexual” (SEDGWICK,
2003, p. 14).
Cognição, sexualidade e transgressão se alinham de maneira
resistente, mas não compacta. Nas fissuras do projeto romântico, a
sexualidade passa a se constituir essencialmente como coisa secreta,
tornando-se, nas palavras de Sedgwick (Idem, p. 14), “o objecto preciso da
exacerbada ansiedade epistemológica/sexual do sujeito em finais de
Oitocentos”. Assim como o sabor que não pode dizer seu gosto, “o amor que
não ousa dizer o nome” (Lorde Alfred Douglas) se vê enredado numa estrutura
discursiva de dominação integralmente inspirada, objeto e temáticas, na
reificação de um peculiar objeto de cognição  não mais a sexualidade como
um todo, mas o tópico homossexual, ponto de inflexão crítica ao moderno
processo de autoconhecimento das definições sexuais que marcaram a
passagem do século XIX para o século XX.
Cabe aqui uma breve digressão sobre escritos anteriores de
Sedgwick, considerados seminais para a modulação do que hoje conhecemos
63

como Teoria Queer. O próprio termo é uma deriva polissêmica, que pode ser
traduzida como esquisito, anormal, estranho, excêntrico, além de conotar
desonra, degeneração, pecado, perversão, quando dirigido a tudo e a todos
que representam as potencialidades e as temeridades dos marginais que
transgridem as convenções de sexualidade e de gênero, terminando por
ameaçar a ordem social estabelecida. Na apresentação do debate contido na
vigésima oitava edição dos Cadernos Pagu, que se debruça sobre as
“sexualidades disparatadas”, os organizadores, Ricardo Miskolci e Júlio Assis
Simões, vão a Foucault:

Não somente assistimos a uma explosão visível de


sexualidades heréticas, mas sobretudo  e esse é o ponto
importante  a um dispositivo bem diferente da lei: mesmo que
se apóie localmente em procedimentos de interdição, ele
assegura, através de uma rede de mecanismos entrecruzados,
a proliferação de prazeres específicos e a multiplicação de
sexualidades disparatadas. (FOUCAULT, 2005, p. 128)

Nesse cenário de sexualidades dispersas, o queer passa a designar


também as desestabilizações, em sentido amplo. Despudorada, dissidente,
despropositada, desafiadora, a teoria queer se recusa a regulamentar as
sexualidades disparatadas; antes, propõe a ousadia de escrever sua própria
epistemologia.
Essa proposta ganhou o mundo a partir de meados da década de
1980, em contrapartida ao discurso “novo e vingativo” (SEDGWICK, 2003, p.
15) das políticas governamentais americanas frente ao dramático avanço da
epidemia HIV-Aids, nomeada como “peste gay”. O termo, ofensivo, foi
apropriado por pequenos grupos de resistência, que passaram a denunciar “os
efeitos normativos, renaturalizadores e excludentes” (MISKOLCI e SIMÕES,
2007, p. 10), não só da conduta das autoridades médicas do governo Reagan,
guiada por objetivos de normalização sexual-social, mas também das políticas
identitárias que prevaleciam nos movimentos feministas, gay e lésbico, de
caráter marcadamente moralizante. Dessa forma, os estudos queer propunham
um foco de atenção crítica às políticas do conhecimento e da diferença,
assumindo o compromisso “de pensar a sociedade a partir das margens, dos
64

excêntricos, daqueles socialmente estigmatizados a ponto de não serem vistos


como parte do humano” (MISKOLCI e SIMÕES, 2007, p. 14).
Partindo dessa linha de análise, a teoria queer se distancia dos
estudos de gênero e dos estudos gays e lésbicos, ao questionar a continuidade
heterossexista entre os conceitos de sexo, gênero, desejo e práticas do
primeiro, e o compromisso do segundo com os interesses políticos associados
às minorias. Os binarismos nos quais se embasam (masculino/feminino,
heterossexual/homossexual) cada uma dessas linhas de estudo deveriam ser,
forçosamente, submetidos à desconstrução crítica queer, cuja ênfase recai na
desmontagem/remontagem das estruturas discursivas que produzem os
saberes sexuais organizadores da vida social e supressores das diferenças.
Como podemos ler nos Cadernos Pagu (2007):

Queer desafiaria, assim, o próprio regime da sexualidade, ou


seja, os conhecimentos que constroem os sujeitos como
sexuados e marcados pelo gênero, e que assumem a
heterossexualidade ou a homossexualidade como categorias
que definiriam a verdade sobre eles. De modo geral, o sistema
moderno da sexualidade é encarado, da perspectiva queer,
como um conjunto de saberes e práticas que estrutura a vida
institucional e cultural de nosso tempo. (MISKOLCI e SIMÕES,
2007, p. 11)

No Brasil, os estudos queer vêm se institucionalizando em linhas de


pesquisa diversas das que existem nos Estados Unidos, por meio do trabalho
de pesquisadores como Guacira Lopes Louro, Berenice Bento, Peter Fry,
Nestor Perlongher, Ricardo Miskolci, Larissa Pelúcio, Sandra Regina Goulart
de Almeida, Adelaine LaGuardia, entre outros, que têm procurado estabelecer
interlocuções temáticas e elaborações teóricas relevantes com as Ciências
Humanas e Sociais e os Estudos Culturais, num movimento não reverencial ao
paradigma teórico estrangeiro, e sim de busca de espaços de análise a partir
dos quais a voz subalterna possa ecoar. Pois, de acordo com Miskolci e
Simões (2007, p. 13), “se não faz sentido converter a teoria queer em nova
ortodoxia, também não tem cabimento rechaçar as importantes discussões que
ela propõe sob a justificativa de tratar-se de uma reflexão ‘importada’ e ‘alheia’
à nossa realidade cultural e política”. Para os pesquisadores, as conceituações
65

e experiências sexuais-cognitivas que indiciam a teoria queer encontram


“grande ressonância na sociedade brasileira”. De suas interações se originam
reelaborações singulares que superam a aplicação desta ou daquela matriz
teórica, convergindo para um movimento dinâmico de autorreflexão que vem
pavimentando abordagens criativas e sofisticadas da teoria queer em face das
particularidades do contexto brasileiro, “notadamente o exame crítico das
categorias e identidades sexuais e a visão geral da sexualidade como temática
privilegiada para a compreensão de configurações e processos sociais,
culturais e políticos mais amplos” (MISKOLCI e SIMÕES, 2007, p. 12).
É então nesse panorama embrionário que emerge a epistemologia
do armário. As clivagens teóricas anteriores começam em 1985, ano de
lançamento de Between men  English literature and male homosocial desire,
no qual Sedgwick analisa, sob o viés sociológico de análise de obras literárias
inglesas do século XIX, a emergência da ordem sexual em que vivemos,
fazendo uso do arsenal teórico do feminismo marxista (historicismo), do
feminismo radical (estruturalista) e do pós-estruturalismo foucaultiano.
Between men inicia a desconstrução do conceito de gênero como
categoria totalizante de análise, a partir de duas conjeturas: a constatação de
que a homofobia é um imperativo misógino que gere tanto as relações íntimas
quanto as relações de poder na ordem social, reguladora de nossa
sexualidade17; e a comprovação do caráter compulsório da orientação
heterossexual. Assim como a célebre afirmação de Simone de Beauvoir a
respeito da não-naturalidade do ser mulher18, Eve Sedgwick postula a não-
essência da heterossexualidade: ninguém nasce heterossexual, é a sociedade
que nos força a sermos. Esse fato é, segundo Miskolci,

17
A historiada Joan Scott secunda esta conjetura de Between men, ao afirmar que é esquiva
“uma oposição entre homo e heterossexualidade, já que ambas são interdependentes e
partícipes da mesma economia fálica. Esta dinâmica cria, simultaneamente, sujeitos do desejo,
legítimos ou não, mas de forma a fazê-los parecer imutáveis, fora da história, em suma,
‘naturais’ ” (apud MISKOLCI, 2007, p. 57).
18
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização
que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam o feminino”
(BEAUVOIR, 2009, p. 361).
66

[...] a base de toda uma ordem que beneficia com poder os


homens que subordinam as mulheres e não se relacionam
amorosamente com outros homens. Em outras palavras,
vivemos em uma época em que a heterossexualidade é o meio
privilegiado de socialização e apenas neste regime de verdade
as pessoas são reconhecidas, aceitas e inseridas nas
principais instituições sociais. (MISKOLCI, 2007, p. 57)

A originalidade dessa investigação chega ao século XX, trazendo ao


proscênio outro destacado dispositivo de regulação da vida social: o armário,
objeto não apenas de ocultação da vida amorosa daqueles que a vivem
secretamente; também, dos que a usufruem abertamente. O armário vira o jogo
a favor do temor de ver expostas intimidades e desejos, forçando mecanismos
de proteção que operam a tríade segredo/mentira/vida dupla, cujo objetivo
primordial é evitar as consequências danosas da revelação nas esferas familiar
e pública, nas quais a vontade individual se dobra às conveniências do
assujeitamento e da subordinação. Eve Sedgwick explica: “O mesmo sucede
quando alguém sai do armário: a ignorância pode revelar-se como ignorância,
não como o vácuo ou o vazio que finge ser, mas como um espaço
epistemológico consequente, preenchido e consistente” (SEDGWICK, 2003, p.
19).
No incentivo ao segredo e à busca de invisibilidade metaforizados
pelo viver no armário, o sujeito desejante se equilibra entre impossibilidades,
visto que a norma social se choca com os desejos aprisionados na intimidade,
gerando opressões institucionalmente corporificadas em escala coletiva. Ser
gay nesse sistema que favorece a injúria e a humilhação é “ficar sob as tutelas
radicalmente sobrepostas do discurso universalizante dos atos e do discurso
minoritarizante das pessoas” (SEDGWICK, 2007, p. 47)19, de tal forma que as
“geografias pessoais e políticas” (Idem, p. 39) se constituam para além do
limiar da identidade erótica. Obscuridade versus segredo aberto: assim pode
ser definida a estruturação específica da epistemologia do armário 20.

19
Quando a referência a Sedgwick trouxer o ano 2007, trata-se da tradução de Plínio Dentzien
da Epistemologia do armário publicada na edição 28 dos Cadernos Pagu (Dossiê Sexualidades
Disparatadas), citada nas referências bibliográficas deste trabalho.
20
Armário, a canção de Zeca Baleiro citada como epígrafe deste capítulo, prossegue
iluminando a argumentação de Eve Sedgwick: “Não é que eu não queira, / mas é tão difícil
para mim. / É claro que eu quero, / quero mais que tudo, / mas sinto tanto medo, / um medo
67

Para a argumentação de Sedgwick (2003, p. 22), assumir-se é, na


maioria das relações entre pessoas do mesmo sexo, uma questão de
verbalizar intuições e convicções que pairavam sobre o implícito e contraditório
código de comportamento que traduziria uma suposta identidade homossexual.
No caso de Milly Lacombe, nosso objeto de estudo, a saída do armário se dá
em condições de ruptura “ensolaradas”, porém não menos voláteis e violentas,
por trazerem em seu bojo a infecção do “segredo patogénico” (SEDGWICK,
2003, p. 23).
Foi exatamente assim numa tarde de agosto de 2000, quando se
deu a revelação de sua homossexualidade para a mãe, aquela que sempre
dirigiu a casa e a família, a que “através de seus gestos sempre sonoros,
públicos e sicilianos, nunca deixou margem para que eu pudesse duvidar do
amor que ela sentia por mim” (LACOMBE, 2010, p. 115), pelo contrário: Adele
era uma referência tão absoluta na vida de Milly que se tornou o padrão de
segurança e conforto sempre desejado em seus relacionamentos adultos,
como narrado na crônica “A pista de kart ao lado de casa”:

[...] quando contei que era gay  de todas as coisas que já fiz
na vida, a mais difícil , e ela me virou a cara por mais de três
anos, eu nunca me senti excluída. Frequentávamos festas de
família, restaurantes em datas especiais, a casa de minhas
irmãs, e ela não me olhava, era como se eu não existisse. [...]
Mas eu sabia que, lá no fundo, bem no fundo, depois da
vergonha e da decepção por saber que a primogênita, a filha
que, fisicamente, fica a cada dia mais parecida com ela, era
gay, ela sentia orgulho. Orgulho por eu ter ficado de pé na vida,
por eu ter encarado minha própria realidade, por ter desafiado
padrões e detritos morais, por tem me tornado uma mulher
forte e segura  mesmo, e isso para a geração de minha mãe
faz toda a diferença  sem ter um homem a meu lado.
A ironia é que eu talvez nunca tivesse conseguido me tornar
quem sou não fosse o exemplo prematuro da figura feminina
forte. Sem esse comportamento seguro, determinado, quase
arrogante de enfrentar o mundo, que ela revelou a mim muito
cedo, eu talvez ainda vivesse escondida.
[...] Durante quase quatro anos eu achei que tinha perdido
minha mãe e, vez ou outra, ponderava se havia sido válido ter
peitado o mundo por uma missão até certo ponto nobre, mas

absurdo! / Medo dos vizinhos, / medo da mommy, / medo do daddy, / e do meu irmão, / que já
foi skinhead. / Oh, meu amor, / ninguém me faz tão feliz, / ninguém me fez tanto bem... / Mas já
que eu não posso sair do armário, / peço que você entre no armário também...”
68

que me custou minha heroína, a fonte dos meus genes


apaixonados. Mas aí eu vi que quem me colocou no mundo
está me assistindo. E que eu não preciso de outra audiência.
(LACOMBE, 2010, p. 116-117)

O prejuízo da revelação gay é duplamente devastador, não somente


pelo fato de que a pessoa que toma parte nessa episteme vê sua sexualidade
perturbada pela divulgação da identidade erótica do outro, mas também porque
“as incoerências e contradições da identidade homossexual na cultura do
século XX são responsáveis pelas incoerências e contradições da
heterossexualidade compulsiva” (SEDGWICK, 2003, p. 23). Amparada pela
lógica da subordinação de gêneros, assumir-se não encerra as relações com o
armário, nem tampouco rompe com o paradigma da subordinação feminina. O
tom confessional que se ouve a cada turbulenta saída do armário não deixa de
privilegiar a essência culpa/perdão derivada do ato mesmo de se confessar, o
qual é guiado, na realidade patriarcal, pela preservação da disciplina e da
submissão femininas. Assim, a revelação/confissão ocorre sob (e perpetua) um
sistema coerente de subordinação que exige empenho extremo na construção
 a partir de fragmentos dispersos, e sempre tardiamente  de “uma
comunidade, uma herança utilizável, uma política de sobrevivência e
resistência” (SEDGWICK, 2007, p. 40) para os afetos e desejos entre pessoas
do mesmo sexo, socialmente expostas a uma cultura altamente homofóbica.
Nesse cruzamento das linhas definidoras da identidade de gênero,
no caso, da identidade gay feminina, a trincheira que Milly Lacombe escolhe
está assentada em bases de aceitação familiar, inserção profissional e
fidelidade conjugal. Sem as irmãs, afirma, “não teria sido acolhida quando saí
do armário”, não teria os nove sobrinhos queridos, “não haveria ser humano
nesse mundo que soubesse exatamente quem sou e de onde vim ou que
aguentasse as mais irritantes e juvenis manifestações de minhas imperfeições
sem colocar em cheque a relação” (LACOMBE, 2010, p. 27). Sem a família,
seu colchão de afeto, como poderia ser “a tia esquisita, gay, que vive
apresentando a eles novas amigas” (Idem, p. 63)? Sem seus descendentes,
para quem deixar de herança “a noção de que crescer, mesmo fora dos
padrões, não é sofrer” (Idem, p. 63)?
69

Cada uma dessas possibilidades de definição identitária remete a


Foucault e deságua num paradoxo. Como outros historiadores, o teórico
francês situa em meados do século XIX uma mudança de interpretação da
relação entre pessoas do mesmo sexo no pensamento europeu. A sexualidade
entre homoafetivos deixa de ser compreendida em função de “actos genitais
proibidos e isolados”, aos quais qualquer um estaria sujeito “caso não
mantivesse os apetites sob controle apertado”, e passa a ser entendida como
“o resultado de identidades estáveis (a ponto de os traços da personalidade de
cada um o poderem definir como homossexual, talvez mesmo na ausência de
qualquer actividade genital)” (SEDGWICK, 2003, p. 26). Assim, no século
vitoriano, instaura-se a aporia nominativa que anseia explicar e definir essa
nova criatura, o sujeito homossexual  necessidade tão premente que produz,
em contrapartida, categoria mais inédita  a da pessoa heterossexual.
Para Eve Sedgwick, questionar essa evidência natural opositiva não
basta para formar, nem para representar, a sexualidade e a identidade de
gênero da categoria nominativa h-o-m-o-s-s-e-x-u-a-l, considerada, política e
ideologicamente, como “classe minoritária específica, independentemente do
que nela tenha sido fabricado e devidamente etiquetado” (SEDGWICK, 2003,
p. 27). Indispensável para aqueles que se definem contra ela, a nominação se
organiza “em torno de uma incoerência radical e irredutível” (Idem, p. 29),
estranha ao mundo homossexual feminino, onde nada funciona binariamente, e
onde Milly mergulhara sem equipamento de segurança:

[...] eu estava apaixonada. E fazia menos de uma semana que


tinha, pela primeira vez, beijado meu objeto de afeição 
minha melhor amiga. A grande e fundamental fronteira da vida
tinha sido por mim cruzada [...] Nada sabia eu sobre
discriminação, intolerância, preconceitos. Sabia apenas que
estava apaixonada, que era correspondida e que não poderia
haver muita coisa errada quando o que você quer fazer é dar e
receber amor de uma certa outra pessoa. [..] Talvez por isso
nunca tenha me arrependido de ter cedido ao singular encanto
que tem, para mim, o beijo em outra mulher, na mulher que eu
amo. Talvez por isso não tenha medo de desafiar crenças e
estruturas morais para me submeter ao maior dos desejos: o
de me permitir amar alguém do mesmo sexo. (LACOMBE,
2010, p. 66; LACOMBE, 2010, p. 78)
70

Por tatear na impossibilidade de um recurso discursivo unívoco,


aquela visão minoritarista (segundo a qual há uma população diferenciada de
pessoas realmente gays) e universalizante (que, de acordo com Sedgwick
(2003, p. 29) assegura ser o desejo sexual “um solvente poderoso e
imprevisível de identidades estáveis”), ganhou influência somente ao articular
uma espécie de camuflagem das sanções éticas heterossexistas e
masculinistas, que lograram inaugurar uma “nova família excitante de
estruturas narrativas ligadas à saída do armário” (SEDGWICK, 2007, p.45), por
intermédio das quais o lesbianismo se transformaria, sobretudo, numa questão
de identificação com a mulher, superando o alinhamento essencialista do
argumento da virilização feminina. Na crônica de Milly Lacombe, a narrativa
das lembranças do relacionamento de uma década com Tati, “o amor que não
acaba”, norteia a saída estruturante do armário: “Tati me fez acreditar que eu
podia, que eu devia, que eu precisava ouvir os anseios mais profundos da
minha alma. Me fez chegar a lugares que eu talvez levasse uma vida para
chegar, se chegasse. Me fez optar pela estrada certa, mesmo não sendo a
mais fácil ou nítida” (LACOMBE, 2010, p. 90-91).
A incongruência entre as visões minoritária e universalizante da
definição sexual permanece incapaz de desatar as amarras que controlam o
discurso moderno definidor da nomeação das sexualidades, sejam elas
normativas ou disparatadas. Nem mesmo a valorização do jogo instável e
transformador do desejo, nem a valorização da identidade e da comunidade
gay puderam refrear o ímpeto categorizador. Para entender as consequências
desse impulso de controle conceitual, é preciso “esclarecer o modo como as
pessoas homossexuais e o desejo homossexual se relacionam com a noção de
género” (SEDGWICK, 2003, p. 30-31). Eve Sedgwick propõe a análise de dois
“tropos de género” (Idem, p. 31), imbricados entre si, contraditórios, imanentes,
fraturados, a depender do momento histórico específico de sua ocorrência. São
os tropos da inversão e o da separação dos gêneros. O tropo é, de acordo com
os filósofos céticos da Antiguidade, a forma discursiva que demonstra a
impossibilidade de se atingir a verdade, delimitação absolutamente coerente
71

com o embasamento foucaultiano do projeto teórico de Sedgwick na


Epistemologia.
O tropo da inversão, ou tropo liminar, existiu, e ainda persiste, na
codificação do discurso sobre o desejo pelo mesmo sexo. Anima muliebris in
corpore virili inclusa (“alma de mulher aprisionada num corpo de homem”)  a
recíproca sendo verdadeira  traduziria o impulso vital da preservação de uma
heterossexualidade essencial no interior do próprio desejo, por meio de uma
leitura singular da homossexualidade, que parte da teorização de Christopher
Craft apropriada por Sedgwick: o desejo subsiste, por definição, “na corrente
que alterna entre um eu masculino e um eu feminino, qualquer que seja o sexo
dos corpos em que cada um se manifeste” (SEDGWICK, 2003, p. 31). Em
decorrência, a instabilidade vertiginosa desse modelo, no qual se abrigam as
performances da androginia e o “genderfuck”21, tornou-se um símbolo de valor
marginal, inserido no espaço intervalar entre os gêneros.
O tropo da separação de gêneros tende a reassimilar identificação e
desejo, ao contrário dos modelos de inversão, que dependem desta distinção.
Na perspectiva separatista, cruzar as fronteiras do gênero não faz parte da
essência do desejo; este estaria subordinado à renomeação das categorias
nominativas: “lésbica” se definiria como “mulher identificada com mulheres”,
“gay” como o homem que ama homens, naturalmente instalados no centro
definidor de seu próprio gênero (SEDGWICK, 2007, p. 49). É “natural” que
pessoas do mesmo gênero, reunidas sob as mais variadas formas de
organização social, compartilhem vontades e conhecimentos institucionais,
econômicos, emocionais, físicos e sexuais, num continuum do desejo
homossocial feminino (e masculino) que sugere a assimilação mútua descrita
acima. É nesse tropo que a sexualidade de Milly Lacombe encontra guarida.
Chama a atenção em Tudo é só isso o fato de, entre 65 crônicas, em apenas
duas, “Amor em cacos” e “As formas mais simples de amar”, aparecer grafada
a palavra “lésbica”:

21
Ricardo Miskolci, em nota na tradução do texto de Eve Sedgwick (2007, p. 49), lembra que o
termo se refere a performances que, propositadamente, embaralham os sentidos do jogo de
identidades e personificações tradicionais de gênero, dando destaque às suas ambivalências e
instabilidades, caso de David Bowie, Peaches e Annie Lenox, entre outros. Exemplar da
performance genderfuck no Brasil seriam os Dzi Croquettes e Secos & Molhados.
72

Conheci Roberta através de amigos comuns. Não foi amor à


primeira vista, mas, quando bateu, bateu arrebatadoramente.
Como manda o manual da boa lésbica, fomos morar juntas no
mês seguinte. Tivemos, ambas, que romper sólidos
relacionamentos anteriores, que ainda eram baseados em
amor e respeito. Depois, tivemos que nos adaptar a novas
pessoas em nossa vida. Novos amigos, novas famílias, novos
sobrinhos, novo endereço, novos lençóis, novas manias, novos
problemas. [...] Repetidas vezes me perguntam como é, afinal,
o amor homossexual e repetidas vezes eu digo que é
exatamente igual ao hétero. [...] O que nos une não é um
papel, a necessidade de cumprir uma função social, de agradar
aos pais, de procriar, de não encalhar, de não falhar. Para
existir e funcionar como um casal, temos que superar
preconceitos, olhares tortos e estupefatos, temos que dar
constantes explicações e enfrentar situações cotidianamente
constrangedoras. Então, quem sabe, nosso amor seja mais
forte, mais puro, menos hipócrita. (LACOMBE, 2010, p. 105-
106)

Sim, porque se houvesse um manual de como ser uma lésbica


de sucesso (não, não existe um), a segunda lição certamente
seria: “Compre imediatamente um cachorro. De preferência,
um Schnauzer” (não me pergunte por quê). A primeira lição,
claro, falaria sobre o tamanho das unhas. (LACOMBE, 2010, p.
129)

O caráter imanente daquela primeira alocação teórica veio à tona


com a cisão instaurada pelo movimento alemão de defesa dos direitos
homossexuais, polarizado pelas discussões entre Hirschfeld e Friedlander. O
primeiro acreditava num ‘terceiro sexo’, ao passo que o segundo classificava a
homossexualidade como o ‘estágio evolutivo mais alto e mais perfeito da
diferenciação de gênero’ (SEDGWICK, 2007, p. 50). A uni-los, a clareza a
respeito da pluralidade das bases que sustentam a aliança e a
transidentificação entre grupos variados. Estabelece-se, então, sob o tropo do
separatismo de gênero, que as lésbicas procuram semelhanças entre todas as
mulheres, incluindo as mulheres heterossexuais (como no “continuum lésbico”
de Adrienne Rich)22, e que os gays as busquem entre homens, héteros

22
Numa explicação relâmpago, podemos dizer que Adrienne Rich utiliza os termos “continuum
lésbico” e “existência lesbiana” em contrapartida à conotação clínica, pejorativa e limitada do
termo lesbianismo. Este sugere tanto o fato da presença histórica das lésbicas quanto a
criação contínua dos significados dessa própria existência. Aquele pretende incluir uma
extensão, por intermédio da vida de cada mulher, considerada sua dimensão histórica, de
73

inclusive (como no já citado modelo de masculinidade de Friedlander e,


recentemente, nos modelos de ‘libertação masculina’). Contrariamente, sob o
tropo da inversão, homens gays procuram identificação com mulheres
heterossexuais, sob o argumento de que também são femininas e desejam
homens, ou com lésbicas, com as quais compartilham uma posição liminar. As
lésbicas, de maneira análoga, buscaram identificar-se com homens gay ou
héteros, esta última de maneira não sistemática. Os modelos separatistas, de
Rich e Friedlander, tendem a um entendimento universalizante da definição
homo/heterossexual. O integracionista ou inversivo (o “terceiro sexo” de
Hirschfeld) sugere alianças entre lésbicas e gays, inclinando-se aos modelos
minorizantes e separatistas de política e identidade especificamente gay
(SEDGWICK, 2003, p. 33).
Essa descrição detalha o quadro de modelos de definição
homo/heterossexual segundo as sobreposições entre sexualidade e gênero,
que encerra a Epistemologia do armário. Eve Sedgwick, contudo, nos adverte
sobre a contingência dos cruzamentos entre tropos e o caráter enganosamente
simétrico de mapas modelares, sujeitos aos imperativos históricos oriundos das
“profundas assimetrias provocadas pela opressão do género e pela opressão
heterossexual” (SEDGWICK, 2003, p. 34). O impasse da definição de gênero
orbita em torno das fraturas expostas de um “campo imponderável e altamente
estruturado de incoerências discursivas, num ponto decisivo da organização
social” (Idem, p. 34): justo o ponto em que todo gênero é determinado.
Determinação que se dá sob um regime de verdade claramente heterossexista,
sob o qual as palavras se ajustam de forma a se posicionar contra “o amor que
não ousa dizer o nome”, contra toda a ordem social, contra toda a ordem
sexual. Para Sedgwick, o projeto mais promissor reside no estudo da própria
incoerência e das incongruências que vêm regulamentando as tramas mais
produtivas e mortíferas de nossa cultura. Não há respostas para o dilema do
armário. Há empenho em decifrar e subverter as regras do jogo das estratégias

experiências identificadas com a mulher, para além da experiência sexual genital com outra
pessoa do mesmo sexo, tenha esse desejo sido consciente ou inconsciente. Se todas as
mulheres existem em um continuum lésbico, todas podem desfrutar e recriar suas fronteiras,
mesmo aquelas que não se identificam como lésbicas. Texto disponível em
https://antipatriarchy.wordpress.com.
74

discursivas que “tentam apontar a forma ‘correta’ de agir, de compreender a si


mesmo ou, sobretudo, que tentam delimitar a verdade e quem a pode enunciar”
(MISKOLCI, 2007, p. 62).
Judith Butler radicalizou o projeto promissor de Sedgwick.
Considerada ‘a mais eclética e brilhante teórica da sexualidade dos últimos
anos’ (SALIH, 2012, p. 189), a filósofa americana lança mão das mais
diversificadas epistemologias para confrontar noções consagradas em vários
outros campos do saber. Toda sua vasta produção se volta para o
questionamento da formação da identidade e da subjetividade, focando “os
processos pelos quais nos tornamos sujeitos ao assumir as identidades
sexuadas/‘generificadas’/racializadas que são construídas para nós (e, em
certa medida, por nós) no interior das estruturas de poder existentes’ (SALIH,
2012, p. 10). Como Eve Sedgwick, Judith Butler também investiga as
incoerências e as instabilidades do sexo e do gênero, e seus reflexos sobre as
estruturas de poder existentes, dedicando-se a deslocar categorias
naturalizadas (homem, mulher, macho, fêmea), para então desconstruir o
arcabouço discursivo da matriz heterossexual de poder que lhes dá
sustentação. O conceito de poder e discurso aqui também é foucaultiano:
indeterminado, múltiplo, disperso, enunciativo, histórico.
O gênero, para Butler, é “não natural”, ou seja, não se assenta sobre
correlações entre corpo (sexo) e gênero, como preconiza a
heteronormatividade. O gênero é um ‘artifício à deriva’ (SALIH, 2012, p. 71),
cujas normas são socialmente instituídas e mantidas. É um construto discursivo
produzido (e não um fato natural) no interior da sociedade capitalista
heterossexista, tão culturalmente construído quanto o gênero. Ou: sexo é
gênero. Sarah Salih esclarece:

Butler desfaz a distinção sexo/gênero para argumentar que não


há sexo que não seja já, e desde sempre, gênero. Todos os
corpos são ‘generificados’ desde o começo de sua existência
social (e não há existência que não seja social), o que significa
que não há ‘corpo natural’ que preexista à sua inscrição
cultural. Isso parece apontar para a conclusão de que gênero
não é algo que somos, é algo que fazemos, um ato, ou mais
precisamente, uma sequência de atos, um verbo em vez de um
75

substantivo, um ‘fazer’ em vez de um ‘ser’. [...] O gênero não é


apenas um processo, mas um tipo particular de processo, ‘um
conjunto de atos repetidos no interior de um quadro regulatório
altamente rígido’, como diz Butler. (SALIH, 2012, p. 89)

Assim entendido, o gênero demonstra ser uma construção


performativa  que significa exatamente artificialidade, encenação, em
oposição a real, genuíno. Se a performance supõe um sujeito preexistente (ato
com ator), a performatividade refuta a própria noção de sujeito, fazendo do
gênero ‘constituinte da identidade que pretende ser’ (SALIH, 2012, p. 91), ou
que simula ser. O corolário de Butler é este: não há identidade de gênero que
preceda a linguagem, é exatamente o contrário: a linguagem e o discurso é que
‘fazem’ o gênero (Idem, p. 91).
De que maneiras Milly Lacombe encena sua sexualidade gay?
Confortavelmente instalada no tropo do separatismo de gênero, a imanência
que subjaz à verdade daquele desejo estancado nas fronteiras que cerceiam a
união de pessoas do mesmo sexo é matéria suficiente para a repetição de atos
regulatórios rígidos que aparentemente cristalizam uma maneira natural de
ser? Sendo o gênero ‘a contínua estilização do corpo’ (SALIH, 2012, p. 89),
Milly encarna uma genealogia performativa 23, que tenta entender como a
ritualização reiterada de normas sociais classificatórias engendra sujeitos que
são o resultado de tais repetições. “Embora minha experiência homossexual
tenha acontecido na adolescência, passei os quinze anos seguintes vivendo
como hétero. Tive pelo menos três vezes mais parceiros do sexo oposto do
que do meu próprio e somente aos 29 anos me permiti experimentar sem culpa
uma relação gay” (LACOMBE, 2004, p. 9 e p. 14).
Gênero: se nós o fazemos pelo verbo, podemos concebê-lo como
instável, incoerente, recorrente, passível até mesmo de operar uma reinscrição
conservadora dos papéis sexuais  como se vê hoje na articulação política
pela regulamentação civil do casamento entre pessoas do mesmo sexo e na

23
Novamente, Butler usa o conceito “genealogia” em sentido foucaultiano, o da investigação
sobre o modo como os discursos funcionam e os propósitos políticos que eles cumprem. Judith
Butler: “A genealogia investiga os interesses políticos envolvidos em nomear como origem e
causa aquelas categorias de identidade que são, de fato, os efeitos de instituições, práticas,
discursos, com múltiplos e difusos pontos de origem”. (SALIH, 2012, p. 70)
76

nova fantasia gay, de se casar de branco, adotar crianças e animais de


estimação e formar uma família numa bela casa , gerando formas de
subjetivação e de sociabilidade específicas, que partem de memórias pessoais
como legitimadoras de uma identidade de gênero edulcorada, que não se
pretende revolucionária, a não ser pela saída do armário em si, e que enseja
uma libertação pacificadora e quase purificadora.
Milly Lacombe verbaliza essa argumentação quando narra o
encontro com o amor da sua vida, sua atual companheira (que não é nomeada
em nenhuma das crônicas de Tudo é só isso, e nem nas crônicas posteriores
que se seguiram, publicadas mensalmente na Revista TPM), fato que a lançou
numa “fenda temporal” que “paralisou o mundo naquele instante”, deixando-a
“para sempre alterada” (LACOMBE, 2010, p. 13-14). Abduzida, a colunista
assim descreve as possibilidades de uma futura vida a duas, inferidas já na
noite fria de maio em que o amor da sua vida caminhou em sua direção num
restaurante paulistano da moda:

O jantar termina sem que você saiba que o amor da sua vida
vai telefonar no dia seguinte. E que será apenas dali a duas
noites que vocês dormirão juntas, fazendo, como em seus
sonhos, amor a noite inteira. O jantar termina sem que você se
dê conta de que, em seis meses, estará morando com o amor
da sua vida, com quem terá conseguido atingir o raríssimo
ponto de ter, em dose intensamente iguais, sonhos e
memórias. Sem que você se dê conta de que não demorará
muito para apresentar o amor da sua vida para toda a família,
nem que, juntas, começarão a frequentar a casa de sua mãe 
que até pouco tempo não aceitava você, muito menos com
namoradas  semanalmente para jantar. E que o amor da sua
vida vai comer o macarrão alho e óleo da sua mãe, e repetir,
dizendo que aquele é o melhor macarrão que já comeu na vida.
E que sua mãe, depois de tomar algumas taças de vinho, vai
ter um acesso de riso na mesa e, com ele, provocar um acesso
de riso no amor da sua vida. O jantar termina sem que você
entenda que foi em uma noite fria de maio que o amor da sua
vida entrou em você, vestida em um casaco de couro e botas
de salto, para nunca mais sair. (LACOMBE, 2010, p. 15-16)

Vemos, então, que Milly Lacombe não é um sujeito textualmente e


nem corporificadamente queer; o é subjetivamente, seja nas negociações
identitárias que naturalizam uma maneira de ser gay perante seus familiares,
77

seja nas negociações demandadas pela rede de suas relações profissionais e


afetivas. Todavia, assim será somente se a prática significante de tais atos
performativos for lida a contrapelo das alianças tradicionais do sentido
ingovernável daquela teoria24. E se levarmos em consideração o argumento de
Butler a respeito das re-citações, segundo as quais o “sexo, bem como o
gênero, pode ser performativamente reinscrito de maneiras que acentuem seu
caráter factício, artificial (isto é, seu caráter construído) em vez de sua
facticidade (isto é, o fato de sua existência)”, como lemos em Sara Salih (2012,
p. 88). Dessa forma, o sujeito gendrado condensa em si tanto uma degradação
passada (os quinze anos em que Milly viveu como hétero) quanto uma
afirmação presente (não mais culpa por experimentar uma relação gay, que lhe
trouxe o amor de sua vida). E ainda se levarmos em conta a ressignificação da
sexualidade gay e lésbica através da abjeção25, ou contra a abjeção, que
parece ser o caso da colunista gay, a mulher que ama mulheres, a tia esquisita,
a irmã que ama de forma menos hipócrita, a filha que nunca duvidou do amor
da mãe. A colunista lésbica, a irmã lésbica, a tia lésbica, a filha lésbica, a neta
lésbica  são anáforas demais, que golpeiam a identificação sublime dos
amores e prazeres que a cronista erige para si.
Quando se trata, porém, de compartilhar a maneira de agir das
relações afetivas e sexuais entre mulheres, a palavra retorna, explícita, e Milly
a manuseia quase sem pudor, não obstante a permanência de um tom ligeiro e

24
Seguindo a interpretação de Sara Salih dos conceitos-chave do pensamento de Judith
Butler, temos que “as identidades heterossexuais são construídas em relação ao seu ‘Outro’
homossexual, que é visto como abjeto, mas os heterossexuais melancólicos são assombrados
pelos rastros desse ‘Outro’ que nunca se torna definitivamente ou completamente abjeto. Isso
significa que as identidades não são absolutamente tão héteros, legítimas ou únicas quanto
aparentam, e podem subversivamente ser trabalhadas a contrapelo, a fim de revelar a natureza
instável e ressignificável de todas as identidades de gênero.” (SALIH, 2012, p. 101) Inclusive se
tais identidades se voltam intencionalmente para a tradição heteronormativa.
25
“Segundo a definição canônica de Kristeva, o abjeto é aquilo de que devo me livrar para me
tornar um eu (mas o que é esse eu primordial que em primeiro lugar me expulsa?). É uma
substância fantasmática não só estranha ao sujeito, mas também íntima dele  íntima demais,
até, e esse excesso de proximidade produz pânico no sujeito. Nesse sentido, o abjeto afeta a
fragilidade de nossas fronteiras, a fragilidade da distinção espacial entre nosso interior e nosso
exterior bem como a da passagem temporal entre o corpo materno (mais uma vez, o domínio
privilegiado do abjeto) e a lei paterna. Espacial e temporalmente, portanto, a abjeção é uma
condição na qual a posição do sujeito é perturbada, ‘lá, onde o sentido se esvai;’ (FOSTER,
2014, p. 147) Segundo Foster, Judith Butler critica a priorização do nojo na definição de
Kristeva para o conceito de abjeção. A teórica americana tende a priorizar a homofobia como a
epítome do que é abjeto.
78

pedagógico na composição da identidade lésbica, cujos segredos serão


revelados para rapazes de todas as idades, com a intenção de fazer deles
amantes mais completos, embora cientes de que tratar uma mulher da forma
devida é um trabalho insano, que requer um pouco mais de esforço do que o
trinômio enfiar/meter/gozar: que rufem os tambores!
O que significa restringir qualquer indivíduo dado a uma única
identificação? Significa articular um espaço ambivalente de proibição e
produção do desejo, partilhando a cumplicidade de um segredo que, mesmo
público, não prescinde da intimidade. Ouçamos alguns conselhos de Milly:

Já fui para a cama com homens e mulheres. Mas o que me


habilita a escrever Segredos de uma lésbica para homens, e
ter a pretensão de dar palpites eróticos para os bem-
aventurados machos que se dispuserem a comprar este livro, é
o fato de eu ter saído do armário e não ter vergonha de me
chamar de lésbica. [...] Minha preferência, como já ficou claro
pelo título deste livro, são mulheres  e isso eu tenho certeza
de que você, ao contrário de minha mãe, entende
perfeitamente. [...] Vamos deixar uma coisa muito clara desde
já: uma lésbica não é aquela mulher frustrada que nunca foi
devidamente comida por um homem. Esse pensamento
machista já devia ter caducado há décadas. [...] De maneira
geral, lésbica é uma mulher como qualquer outra, mas que,
assim como você, prefere ir para cama com uma fêmea do que
com um macho. Muito simples. (LACOMBE, 2004, p. 9, 14, 23-
24)

O que faz de uma lésbica uma boa conselheira sexual para homens
é o aparato conservador que, na sociedade moderna, policia as sexualidades
disparatadas, no afã de torná-las decorosas. Com isso, tanto dentro como fora
dos armários dos movimentos de direitos dos homossexuais, a percepção
contraditória dos afetos e desejos entre pessoas do mesmo sexo e entre a
identidade gay feminina, “cruzaram e recruzaram as linhas definidoras da
identidade de gênero com uma frequência tão destrutiva” (SEDGWICK, 2007,
p. 42) a ponto de o próprio conceito de gênero ter-se tornado um tropos
transitivo e separatista, perdendo “boa parte de sua força categorizadora,
embora não de sua força performativa” (Idem, p. 42).
79

Márcia Arán e Carlos Augusto Peixoto Júnior, no artigo “Subversões


do desejo: sobre gênero e subjetividade em Judith Butlher” 26, ao analisar as
subjetividades queer, depois de entrelaçar a contingência das normas de
gênero à crítica ao simbólico estruturalista, escrevem: “Segundo Butler, na
realidade, uma mulher pode encontrar o resíduo fantasmático de seu pai em
outra mulher ou substituir seu desejo pela mãe por um homem e, neste
momento, se produz um certo entrecruzamento de desejos heterossexuais e
homossexuais” (ARÁN e PEIXOTO JÚNIOR, p. 144). A afirmação clarifica
nosso argumento da posição contra-diretiva de Milly na subjetividade queer, e
introduz guias para a análise do papel que a figura paterna desempenhou na
descoberta e no assumir sua identidade gay. A orientação sexual da filha mais
velha não era tabu para ele. A elaboração da memória paterna na formação da
mulher que nossa colunista se tornou parte da perda. Milly perde o pai e, pela
escrita, transfigura, para além da efemeridade do tempo, a lembrança, a
importância e a significação de ter sido gerada por aquele homem que a
ensinou a aplicar a lente do humor sempre que a calamidade a rondasse. “O
homem que não bebia água”, sexta crônica de Tudo é só isso, é a primeira e
mais completa declaração de amor ao pai de todo o livro. Não consigo resistir à
tentação de citá-la quase integralmente, pelo muito que revela:

Faz dois anos que meu pai morreu. Dois anos sem meu
companheiro e amigão. Dois anos sem ouvir suas bem
sacadas tiradas, as sempre oportunas citações de Oscar Wilde,
Eça ou Machado. Dois anos sem ter para quem ligar quando o
Fluminense ganha ou, como tem sido mais frequente, é
derrotado. E eu, que nunca havia sentido o baque de perder
alguém, estou ainda me ajustando à vida sem norte.
Meu pai, meu porto seguro, era um homem diferente. Entendia
absolutamente nada de consertos domésticos, de carros, de
máquinas. Nunca usou um computador, dava-se muito mal
com o telefone, não via nexo em celulares porque dizia que só
faria sentido pagar para não ser encontrado, não conseguia
passar fax e nunca dirigiu, [...] sempre que saía comigo, não
conseguia deixar de elogiar minha incrível habilidade para fazer
curvas sem colocar em risco a vida de pedestres.
Meu pai jurava que nunca havia bebido água  e, verdade
seja dita, nunca foi visto ingerindo algo que não fosse tanjal,
tônica ou vinho. Sempre que me via com um copo d’água na

26
Cadernos Pagu, n. 28, p. 129-147.
80

mão, perguntava porque eu insistia em beber aquele líquido


sem cor, sem cheiro e sem gosto se havia tantas outras opções
no mercado. [...]
Meu pai, jornalista por vocação e advogado por formação, dizia
que deixou de advogar por não acreditar na justiça e alegava
que se mudou do Rio, onde nascemos, porque a cidade tem
apenas duas estações: o verão, em julho, e o inferno, no resto
do ano. Meu foi embora cedo demais porque fingia ignorar que
o ser humano vive de corpo e mente. Vivia exclusivamente de
sua cabeça e utilizava o corpo apenas para conduzi-la ao
Jockey Club, onde podia ser encontrado quando não estava
em casa, lendo ou escrevendo.
Se eu fecho os olhos, consigo sentir com assustadora
perfeição sua mão, grossa, grande e firme, segurando a minha
para atravessar a rua. Às vezes, preferia me pegar pela nuca e
dizer, “gatinho a gente segura por aqui”. Fazia questão de
declarar, com um tipo de segurança que só os pais parecem
ter, que eu era o orgulho dele, que eu era linda, que eu era
genial. Deixava bilhetes para mim (datilografados em sua velha
IBM porque estava convencido de que não sabia mais escrever
à mão e porque nunca chegou perto de um computador) e
assinava, sempre, “beijos do pai coruja”.
Juntos, íamos ao Maracanã em dia de Fla-Flu, ao Morumbi
quando o jogo era bom, passeávamos pelo centro velho de
São Paulo, falávamos de política, de seleção, de Olimpíadas.
Dele, eu tenho os olhos, o amor pelo Fluminense, a mania de
usar ponto e vírgula (“porque muitas vezes é melhor que traço
e poucos sabem usar”, dizia), a paixão pela arte de escrever e
o hábito de arrumar metodicamente a comida no prato para
que o melhor fique por último. Com ele, aprendi a gostar de ler
quando lia Monteiro Lobato para me fazer dormir, a passar
manteiga na bolacha cream cracker e, antes de comer, levá-la
ao forno por dez minutos, e a imediata e incondicionalmente
admirar qualquer um que torça pelo Fluminense.
Meu pai, evidentemente, assim como qualquer outro, tinha um
milhão de defeitos. Só não posso citá-los porque descobri que,
quando alguém tão querido morre, enterra-se com o corpo toda
e qualquer imperfeição d’alma. Mas, se me fosse dada a tão
preciosa chance de dizer mais uma coisa para ele, uma só, eu
diria obrigada. Obrigada por ter me acolhido, por ter me amado
incondicionalmente, por ter lido para me fazer dormir, por ter
me apresentado o Maracanã, por ter me ajudado a atravessar
a rua, por ter me entendido mesmo quando eu não me
entendia, por fingir dar bola para as minhas neuroses, por me
ensinar a comer lagarto com mango chutney, por ter aceitado a
Tati, minha mulher, como parte da família.
Agora, se pudesse dizer duas coisas, diria que o Fluminense
ganhou do Vasco no domingo. De virada, no finalzinho. Como
nos velhos tempos. (LACOMBE, 2010, p. 31-33)
81

Ausente, a memória do pai se transforma em registro para a


compreensão do eu. O pai é o amigão, aquele que a compreende, sem
julgamentos, antes que ela mesma; o piadista; o leitor de Eça, Machado e
Wilde; o companheiro de leituras e das noites de sábado em casa; seu
cúmplice, que a ensinou a entender a vida sob a ótica e a ética das chuteiras
imortais. Arnaldo, seu pai, talvez cumprisse tantos papéis definidores por estar
distante de atributos tradicionalmente identificados com o masculino, como
saber dirigir e consertar máquinas. A morte do pai se configura como impulso
para a re-citação de si, que passou a orientar seu desejo para a busca de
cumplicidade e proteção. “Talvez por causa da habilidade de meu pai em me
fazer ver que a vida deve ser vivida de forma divertida, [...] eu tenha tido tanta
facilidade para sacar que pouco importa o gênero em que essa cumplicidade
se apresenta” (LACOMBE, 2010, p. 162).
São várias as crônicas em que Milly Lacombe rememora histórias
vividas com o pai. Uma das mais conhecidas é “Tragicomédias da vida
privada”, na qual conta como ele sobreviveu a um desabamento, que
considerou poético, de garrafas de Coca-Cola, que a mãe insistia em manter
empilhadas em equilíbrio circense num depósito improvisado na área de
serviço do apartamento onde moravam. Foi a primeira crônica de Milly
Lacombe que li. “E foi dessa forma, aos onze anos, que aprendi que cabe a
nós conferir conotações trágicas ou cômicas ao acontecimento, filosofia que
uso para lidar com tudo até hoje, de minha homossexualidade à morte dele,
meu pai” (LACOMBE, 2010, p. 24).
À sombra da figura do pai, nossa cronista vai amadurecendo a
descoberta de sua “verdade erótica”, de maneira semelhante àquela vivida e
narrada por Alison Bechdel em Fun Home: uma tragicomédia em família. Os
Bechdel vivem numa pequena cidade da Pensilvânia (Beech Creek), onde
Bruce Bechdel é professor de inglês, assim como sua mulher, Helen, que
também, eventualmente, trabalhava como atriz. Têm três filhos: Alison,
Christian e John. A família de Bruce é proprietária da Casa Funerária Bechdel,
a Fun Home (literal e ironicamente, Casa Divertida, ou Lar da Graça, como a
chamavam em particular, numa brincadeira alusiva à expressão “funeral
82

home”). Todos viviam à mercê das idiossincrasias e paixões do pai, que


contemplavam todos os sentidos da palavra: libidinal, maníaca, martirizante.
Helen e Bruce se conheceram na faculdade, numa montagem de A megera
domada, de Henry James, autor do qual a mãe seria uma personagem
clássica, assim como o pai poderia perfeitamente ter saído das páginas de F.
Scott Fitzgerald. Alison, aliás, afirma: “meus pais são mais reais para mim em
termos de ficção” (BECHDEL, 2007, p.73).
Sendo a filha mais velha, Alisson percebe o “clima ártico” que
marcava as relações familiares, e o quanto sua família causava estranhamento
a todos. Aos 19 anos, quando descobriu que era lésbica, foi “uma revelação da
mente, e não da carne”, descoberta “condizente com a minha criação entre
livros” (BECHDEL, 2007, p. 80). Ao anunciar aos pais, por carta, esse “meio
remoto” (Idem, p. 83), sua orientação sexual, as reações foram diferentes:
houve uma troca epistolar difícil com a mãe, e um telefonema do pai, em que
ele parecia feliz. A confissão, motivada pela possibilidade de emancipação, a
trouxe de volta para a órbita do conflito familiar presumido  a mãe anuncia
que o pai sempre teve casos com outros homens, chegando a ser julgado pela
denúncia de ter oferecido bebida a um menor. A acusação de crime sexual foi
desconsiderada pela juíza, desde que o pai se submetesse, durante seis
meses, a tratamento psiquiátrico. Para Alisson foi chocante, mesmo
conhecendo as mitomanias do pai: “E, como a morte dele foi tão próxima a
esse sombrio festival de saídas do armário, não pude deixar de supor uma
relação de causa e efeito” (BECHDEL, 2007, p. 65).
Na avaliação de Alisson, a morte do pai poderia ser entendida como
uma catástrofe que vinha de desenrolando bem devagar há tempo demais.
Relembrando as inclinações domésticas de seu progenitor, a filha vai
alinhavando indícios daquela outra sugerida (e mais perturbadora) queda:

Se já houve uma bicha maior que meu pai, foi Proust. [...] É
impreciso e insuficiente definir um homossexual como alguém
cuja expressão sexual discorda do gênero. Proust se refere aos
personagens explicitamente homossexuais como “invertidos”.
[...] Não éramos apenas invertidos. Éramos inversões um do
outro. Enquanto eu tentava compensar a parte efeminada dele,
ele tentava expressar algo feminino através de mim. [...] Havia
83

entre nós uma esguia zona desmilitarizada  nosso apreço


comum por beleza masculina. (BECHDEL, 2007, p. 99, 103,
104, 105)

Ao atravessar a Rota 150 para jogar uma braçada de mato que tirara
do quintal de uma casa de fazenda que pretendia restaurar, Bruce Bechdel é
atropelado por um caminhão. Tinha 44 anos, a mesma idade de Gatsby ao
morrer: teria sido um acidente, teria sido planejado, teria sido uma homenagem
doentia à ficção que tanto prezava? Seu pai lia A morte feliz, de Albert Camus,
o que desperta em Alisson a suspeita de premeditação: “Dei a entender que
meu pai se matou, mas isso é tão preciso quanto dizer que ele morreu
jardinando” (BECHDEL, 2007, p. 95). Autodidata, autocrata e autocida: a vida
do pai refletia os costumes de quem passara toda uma vida na solidão,
escondendo a própria verdade erótica, a ponto de se deixar intoxicar pela
vergonha sexual. A verdade não-dita no velório, que Alisson tinha ganas de
gritar para que toda a Beech Creek ouvisse, era: “Não é nenhum mistério. Ele
se matou porque era um veado maníaco-depressivo no armário que não
aguentou mais um segundo nessa cidade pequena de gente obtusa” (Idem, p.
131, grifos originais). Para Alisson, a história do pai só seria diferente se
houvesse um deslocamento geográfico envolvido, pois ela mesma estava certa
de sucumbir se permanecesse naquele lugar.
“A acusação verdadeira não ousava dizer o nome” (BECHDEL,
2007, p. 181). Porque, entre dois amores, o seu nome é vergonha.
Era tão espessa a camada de silêncio em torno da sexualidade
paterna, reforçada por vinte anos de sacrifícios maternos, que o cambiante jogo
de luz-e-sombra iluminava ora a evidência, ora o ocultamento da persona
pública e a realidade daquele pai tão opressivo quanto fascinante. De certa
forma, avalia Alisson, “pode-se dizer que o fim do meu pai foi meu início. Ou,
para ser mais precisa, que o fim da mentira dele foi o início da minha verdade”
(BECHDEL, 2007, p. 123). Que, como já dissemos, se deu entre livros, mais
especificamente, na livraria da faculdade, onde esteve em busca dos livros de
James Joyce indicados pelo professor de inglês do curso de inverno que faria
sobre Ulisses, o livro preferido do pai. Bruce nunca fora muito interessado em
84

crianças pequenas, mas, à medida que a filha crescia, percebeu que ela
poderia ser sua companheira intelectual, vínculo fortalecido pelas leituras
obrigatórias da disciplina de Inglês. Alisson foi sendo sufocada pelo ímpeto
didático do pai, mas dele derivou sua epifania literária lésbica, alimentada pela
bibliografia clássica disponível em casa. “Eu tinha pouca paciência para as
divagações de Joyce, com a minha própria Odisseia me chamando, tão
sedutora” (BECHDEL, 2007, p. 213)
Partindo do roteiro bibliográfico da referida epifania, Alisson vai para
casa no feriado de Ação de Graças disposta a dividir com Bruce o canto das
sereias ouvido ao longo do semestre. Incentivada por Joan, a mulher com
quem vivia, Alisson tentou falar com o pai a respeito. Recuou na primeira
oportunidade, quando poliam a prataria: “Mudei de assunto. Em parte pelo
escárnio dele, mas principalmente pelo medo nos seus olhos” (BECHDEL,
2007, p. 225). Na segunda, temos um dos momentos mais belos de Fun Home.
A caminho do cinema, close de filha e pai no interior do carro, enquadramento
fechado, quadros simétricos à maneira de fotogramas de um filme. Olhos fixos
à frente, a fluidez do desenho escorre pelas falas, pontuada pelos
pensamentos da narradora:

Alisson  Fiquei pensando se você sabia o que estava


fazendo quando me deu aquele livro da Colette.
Bruce  Não sabia, de verdade. [Silêncio] Foi só um palpite.
Bruce  Quer dizer que houve algum tipo de... identificação.
[Silêncio] Minha primeira experiência foi aos 14. Norris
Johnson. Ele ajudava na fazenda e na funerária. [...]
Bruce  Quando eu era pequeno, queria muito ser uma
menina. Eu me vestia de menina.
Alisson [exultante ]  Eu queria ser um menino! Eu me vestia
de menino! Lembra?
Narrador  Não foi o reencontro feliz e cheio de lágrimas de
Odisseu e Telêmaco. Foi mais como Stephen sem pai e Bloom
sem filho... tomando um duvidoso chocolate noturno no número
7 da Rua Eccles. Mas qual de nós era o pai? Senti-me
claramente paternal ouvindo essa declaração envergonhada. E
logo chegamos ao cinema. (BECHDEL, 2007, p. 226, 227)

As referências à Odisseia e a Ulisses são o fio condutor desse


momento único de revelação da inclinação comum entre pai e filha. Nunca
85

mais falaram sobre isso. “Tivemos nosso momento de Ítaca”, conclui Alisson à
página 228.
Ricas referências literárias, aliás, permeiam o relato autobiográfico
de Alisson Bechdel do começo ao fim. Aliadas ao traço sofisticado da
quadrinista-narradora, subjazem à exploração provocativa da sexualidade e
das relações de gênero numa família dominada pelas obsessões de um pai
tirânico e sufocante. O infindável jogo de aparências, um certo dandismo no
vestir-se, a busca pela sofisticação estética, a onipresença da arte e da
literatura balizam a percepção da enorme influência que o pai teve na vida da
personagem, da paixão pelos livros à sua homossexualidade. Tão original é o
relato que Julia Watson o coloca num outro patamar: o da “autografia”, termo
cunhado por Gillian Whitlock para denominar essa forma híbrida que incorpora
as multiplicidades do traço e do texto. O artigo de Watson, “Autographic
disclosure and genealogies of desire in Alisson Bechdel’s Fun Home”, merecia
uma análise exclusiva, tão luminares são as abordagens teóricas por ela
elencadas e brilhantemente dissecadas.
Para o nosso propósito, vamos nos ater ao que há de semelhante
entre as crônicas de Milly Lacombe e a de Alisson Bechdel. Em ambas, a
recuperação fantasmática da memória autobiográfica é mediada pela
Literatura, cujos facilitadores são os pais. Os dois textos são narrativas de
saídas do armário (“coming-out story”), complementadas pelo foco na
passagem da juventude para a vida adulta (“coming-of-age”), característica do
romance de formação (Bildungsroman), que tem entre seus subgêneros o
Künstlerroman, no qual se contam os processos de crescimento de um artista
até a maturidade, normalmente enfatizando os conflitos decorrentes do
confronto com os valores sociais hegemônicos. Em Milly, a lembrança é
pungente; em Alisson, é mordaz. Bruce, em sua obsessiva busca de harmonia
estética, é maníaco; Arnaldo, com seu figurino de jornalista do século XIX, é
bonachão. As primogênitas são devotadas aos pais. São eles quem as
sustentam emocionalmente, embora às vezes o círculo se feche em
perplexidades: o julgamento de Bruce, a morte de Arnaldo.
86

O mito de Ícaro é, segundo Watson (p. 30), um dos intertextos que


bordejam ambas as autobiografias. Na de Milly Lacombe, o pai é Dédalo, que
ensina a filha voar, guiada pelo futebol como metáfora das paixões que valem a
pena ser vividas. Na de Alisson, Bruce é o pai e o filho, Ícaro+Dédalo: o artífice
engenhoso, o cientista louco que se lança com asas de cera a paixões e
convenções proibidas. Em decorrência, Milly e Alison, como herdeiras do
legado dos pais, reatualizam o mito, pois são duas mulheres as sobreviventes.
À maneira de Proust, têm à frente caminhos tidos como diametralmente
opostos (Swann e Guermantes), mas na verdade convergentes, que
possibilitam leituras transversais da sexualidade que se descobre à sombra dos
pais e de obras literárias do cânone ocidental. A afinidade entre Arnaldo e Milly
é mediada, basicamente, pela leitura de Eça de Queirós e de Machado de
Assis, que ela recebe de herança poucos dias antes de o pai falecer; entre
Bruce e Alisson, a mediação mais eloquente é a de James Joyce, que se dá
num registro mais conflituoso do complexo processo de codificação da
subjetividade lésbica e da ocultação homossexual paterna.
Em Fun Home, o desenho das fotos que vão mostrando a Alisson os
dilemas e relações perigosas que a norma heterossexual impunha a seu pai
são de uma delicadeza ímpar e de um apuro técnico capaz de “autografar” toda
a beleza da narração. Os momentos de comunhão estética e erótica, os
olhares de júbilo, decepção e dúvida, as expressões das personagens
culminam nos retratos do pai quando jovem, quando já se pode perceber sua
elegante androginia. Não se trata de fotos libidinosas das orgias descritas por
Sade, nem as de élfica virilidade dos desenhos de Jean Cocteau; percebe-se,
antes, um olhar wildeano sobre o corpo andrógino, a postura de um menino
que vai desvestir o traje de banho para entrar, olímpico, na sexualidade que lhe
é vedada. O traço sublime bloqueia a abjeção do segredo, como se o armário
pudesse ser edênico, e impede a contaminação do último quadro, no qual
Alisson reinterpreta a morte brutal do pai:

Talvez minha ânsia em clamar que ele era “gay” como eu, em
oposição à categoria bissexual ou alguma outra, é apenas uma
maneira de ficar com ele para mim  um tipo de complexo de
87

Édipo invertido. [...] Porém, na difícil narrativa reversa que


impulsiona nossas histórias entrelaçadas, ele estava lá para
me pegar quando eu saltei. (BECHDEL, 2007, p. 236 e 238)

Quando Milly saltou, seu pai, sua quase perfeita complementação,


saltou com ela, mergulhado em silêncio, como era comum entre eles, que
desde sempre desfrutaram a cumplicidade das relações verdadeiramente
íntimas. Os domingos com o pai, passados no Jockey Club, muito lhe
ensinaram sobre relacionamentos, sensações e direções:

Saber que continuo a ter um cúmplice, alguém com quem


posso passar horas em silêncio, de uma forma ou de outra, me
devolve a sensação de proteção que, durante tantos anos,
senti tendo meu pai ao meu lado. E no fim, ao deitar ao lado da
mulher que amo e encerrar assim o dia perfeito, percebo que,
de um jeito ou de outro, tudo vai ficar bem e, silenciosamente,
agradeço a meu pai por ter inaugurado em mim sensações e
manias que me ajudam a colocar a vida em perspectiva para
entender que, a despeito das injustezas do mundo, isso aqui
vale a pena. (LACOMBE, 2010, p. 104)
88

V. Milly e eu: considerações finais

Que novidade. Ficção acontece comigo o tempo todo.


O relógio fazendo tic-tac-tic-tac em algum lugar da casa.
Não sei onde está. Os minutos pingando como uma torneira estragada e
o relógio carimbando e jogando-os nas gavetas perdidas da minha vida.
E eu aqui. Na mesma. Preciso de palavras que me façam flutuar
mais alto do que antes. Preciso abrir aquela garrafa de vinho que
está na cozinha. Preciso parar de dançar com o diabo.
Clara Averbuck
89

Quando, no resumo desta dissertação, digo pretender aqui um


exercício crítico e autobiográfico, não estou pensando apenas na teoria que
aprendemos na Academia. Penso em como fui tomada, atravessada, (às
vezes) aniquilada, (outras) iluminada por esta mesma teoria, fonte de
estranhamentos e insights que colocaram minha história de vida num outro
patamar, mais refinado, de onde posso agora divisar novas fronteiras para meu
treinamento crítico.
Assim é que, ao olhar para as páginas impressas sobre a
escrivaninha, percebo que minhas mãos tremem menos, percebo a respiração
concentrada no core, as descargas de adrenalina de volta aos níveis
plasmáticos normais, os suspiros guardados para emoções estéticas, como
deve ser. Porque volto à tona dos longos dias de leitura e redação como que
ressuscitada, quase convencida de ter conseguido empreender a crítica lázara
das crônicas de Milly Lacombe. Há momentos em que o sangramento perante
a página e o labirinto teórico é explícito.
Partindo de uma defesa apaixonada da Teoria, situo a produção de
Milly Lacombe no contexto das crônicas jornalísticas de autoria feminina, as
quais puderam chegar a estágios de excelência graças à ligação umbilical que
se estabeleceu entre imprensa e chronistas. Titular da primeira coluna gay das
revistas femininas brasileiras, a Coluna do Meio, além de se referir ao universo
e à memória do futebol (quem não se lembra da Zebrinha anunciando no
Fantástico os empates dos jogos do Campeonato Brasileiro?), faz blague com
a orientação sexual da autora, cujo conhecimento do mundo também passa
pela fome de bola. As crônicas autobiográficas de Milly Lacombe, analisadas à
luz das usuais inquietações dos Estudos Culturais para com objetos ainda não
legitimados na cena acadêmica, nos dizem de particularidades narrativas que
marcam o registro e a reinvenção de lembranças familiares e afetivas,
embaralhando a linha já tênue entre fato e ficção jornalísticos e literários.
A leitura que se guia pelos pressupostos teóricos da crítica
biográfica se aproveita da instabilidade conceitual do termo autoficção para
brincar com a recriação de um texto adulterado, apresentado sob a forma de
entrevista, imaginária, por meio da qual encenamos a construção de pontes
90

metafóricas entre análise, experiência e vida. Assim é que esse gesto permite o
diálogo crítico com os elementos constitutivos envolvidos nesta escrita de si: a
memória do pai, as relações familiares, o amor pelo Corinthians, a sexualidade
gay. O componente autobiográfico das crônicas de Milly Lacombe é expressivo
o bastante para promover a “roteirização romanesca” de sua vida. A fluidez das
margens autoficcionais abre espaço para a desconstrução do sujeito íntegro,
senhor de suas histórias, em favor do jogo fabular que permite encenações de
identidades fragmentárias e poéticas da intimidade que trazem à cena “um
vivido que se conta vivendo”, de acordo com Serge Doubrovsky.
No que se refere à sexualidade da cronista, a saída do armário se dá
tempos depois da descoberta do prazer de beijar outra mulher, ainda na
adolescência. E, se foi traumática, descosendo lascas do colchão de afeto
familiar sob o qual se amparava, foi também redentora, pois facilitou a
conformação identitária do desejo represado. E revelou o paradoxo universal
do armário  cárcere da manutenção da homofobia. Qualquer tentativa de
preservar-se está fadada ao fracasso. Na epistemologia descrita por Eve
Sedgwick, o armário joga com o temor individual da obscuridade versus o
medo coletivo de ver expostas as intimidades secretas e o medo coletivo.
O gênero é destituído de seu caráter totalizante de análise,
emergindo como conceito fraturado de subjetividades heréticas e sexualidades
disparatadas, perpassado pelas teorias discursivas foucaultianas. A partir
dessa incongruência, Sedgwick propõe “esclarecer o modo como as pessoas
homossexuais e o desejo homossexual se relacionam com a noção de género”
(SEDGWICK, 2003, p. 30-31) a partir de dois tropos de gênero, o da inversão,
e o da separação. É neste último, onde confluem identificação e desejo, que
julgamos perceber o lugar da sexualidade de Milly Lacombe, pelo menos até o
momento em que contingências históricas o permitam.
Como o “construto discursivo produzido no interior da sociedade
capitalista heterossexista”, conforme definição de Judith Butler, toda simetria
modelar cai por terra. Abrem-se fendas: tão culturalmente construído quanto o
gênero, sexo é gênero. Gênero é gesto performativo que produz significados
por palavras, atos e omissões, numa ‘contínua estilização do corpo’ (SALIH,
91

2012, p. 89) que parte de memórias vividas no registro de uma identidade


amenizada e pacífica. Temos, então, um sujeito gendrado, subjetivamente
queer, excêntrico pela norma, factício, sublime. Milly sobrevive numa posição
contra-diretiva da subjetividade queer, a qual ilustramos textualmente por meio
da transgressão à norma ortográfica que manda separar sujeitos enumerados
por vírgula. De um fôlego só, presentificamos, no texto, lembranças imemoriais
que transformam em registro a compreensão de si.
A crônica autobiográfica, gênero que hoje dá voz aos marginais da
cultura, inscreve Milly Lacombe num lugar de fala assentado em bases de
aceitação familiar, inserção profissional e fidelidade conjugal. À sombra da
figura do pai, cuja ausência ressalta o tremendo significado de ter sido gerada
pelo homem que a ensinou tudo, a recuperação fantasmática da memória
autobiográfica é mediada pela Literatura, ressignificada a ponto de traduzir a
quase perfeita identificação pai-filha, suas verdades e seus ardis.
92

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Gênero, Identidade, Diferença. Aletria:


revista de estudos de literatura, Belo Horizonte, n. 9, 1998/1999, p. 90-97.

ALENCAR, José de. Ao correr da pena. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
(Coleção contistas e cronistas do Brasil, vol. II)

ARFUCH, Leonor. La entrevista, una invención dialógica (1995). Disponível em


<http://webjam-
upload.s3.amazonaws.com/1_la_entrevista_l.arfuch__76__.pdf>. Acesso em
28 de julho de 2014.

ASSIS, Machado de. Crônicas selecionadas: antologia. São Paulo: Martin


Claret, 2009.

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas para crianças. São Paulo: Editora
Planeta do Brasil, 2006.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

BECHDEL, Alison. Fun Home: uma tragicomédia em família. Trad. André Conti.
São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2007.

BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo:


estética e cosmética da fome. Alceu – Revista de Comunicação, Cultura e
Política, PUC-Rio, n. 15, jul./dez. 2007. Disponível em
<http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu_n15_Bentes.pdf>. Acesso em
17 out. 2014.

BOURDAIN, Anthony. Ao ponto. Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Cia. das
Letras, 2011.

BUITONI, Dulcília Shroeder. Crônica/mulher. Mulher/crônica. Boletim


Bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo: Secretaria Municipal de
Cultura, Departamento de Bibliotecas Públicas, vol. 46 (n. 1/4), janeiro a
dezembro de 1985.

BUITONI, Dulcília Shroeder. Mulher de papel: a representação da mulher na


imprensa feminina brasileira. 2ª ed. São Paulo: Summus Editorial, 2009.

BUITONI, Dulcília Shroeder. Imprensa feminina. São Paulo: Ática, 1986.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Trad. Renato Aguiar. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
93

CADERNOS PAGU. Dossiê Sexualidades Disparatadas. Universidade Estadual


de Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, n. 28, jan./jul 2007.
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0104-
833320070001&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 18 ago. 2014.

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: CANDIDO, Antonio (org.). A


crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. São Paulo:
Editora da Unicamp/Rio de Janeiro: Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1992.

CARNEIRO, Luiz Orlando. Entrevistas imaginárias. Rio de Janeiro: MW


Comunicação Empresarial, 2013.

CARVALHO, Bernardo. Mongólia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

CASTELLO, José. Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Record, 1999.

CASTELLO, José. A literatura na poltrona. Jornalismo literário em tempos


instáveis. Rio de Janeiro: Record, 2007.

CASTELLO, José. As feridas de um leitor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,


2012.

COELHO, Frederico (org.). Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Beco do


Azougue, 2011. (Coleção Encontros: a arte da entrevista)

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Trad. de Laura Taddei Brandini.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

CONTI, Mario Sérgio. No epicentro da barafunda. Revista piauí, n. 82, julho de


2013.

COSTA, Cristiane. Pena de aluguel. Escritores jornalistas no Brasil 1904-2004.


São Paulo: Cia. das Letras, 2010.

CUNHA, Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais. Da crítica feminista e a


escrita feminina. O enésimo sexo – Revista de criação & crítica. São Paulo, n.
8, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2012.
Disponível em <http://www.fflch.usp.br/dlm/criacaoecritica/>. Acesso: 25 mai.
2012.

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo:


Iluminuras, 1991.

EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os Estudos Culturais e o


pós-modernismo. Trad. de Maria Lúcia Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.

FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac


Naify, 2012.
94

FREITAS, Angélica. Rilke shake. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro:
7Letras, 2007. (Coleção Ás de Colete)

FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. Trad.


Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria


Thereza da Costa Albuquerque e L. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro:
Graal, 1988. (17ª reimpressão, 2005)

GALEANO, Eduardo. Dias e noites de amor e de guerra. Trad. Eric


Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.

GRAMMONT, Guiomar de. O fruto do vosso ventre. São Paulo: Maltese, 1994.

GILBERT, Sandra; GUBAR, Susan. The madwoman in the attic. The woman
writer and the nineteenth-century literary imagination. New Haven: Yale
University Press, 2000, p. 3-92.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Novos tempos. Labrys, estudos feministas,


Universidade Federal de Santa Catarina, Instituto de Estudos de Gênero, n. 3,
jul./dez. 2003. Disponível em <http://www.labrys.net.br>. Acesso em 20 mai.
2012.

KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro. O retorno do autor e a virada


etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

LACOMBE, Milly. Tudo é só isso: amor, conquistas e outros prazeres


fundamentais. São Paulo: Benvirá, 2010.

LACOMBE, Milly. Segredos de uma lésbica para homens. São Paulo:


Jaboticaba, 2007.

LACOMBE, Milly; PASCOLATO, Constanza. Como ser uma modelo de


sucesso. A.....Z – o que é e como é vencer na mais desejada das profissões.
São Paulo: Jaboticaba, 2003.

LACOMBE, Milly; FRANCINE, Soninha; RAÍ. Para ser jogador de futebol –


dicas de um campeão para você se tornar um jogador profissional de sucesso.
São Paulo: Jaboticaba/Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2005.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. De Rousseau à Internet. Org.


Jovita Maria Gerheim Noronha. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves


Editores, 1991.

LLOSA, Mario Vargas. Em defesa do romance. Revista piauí, n. 37, outubro de


2009.
95

LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade.


Trad. Tomaz Tadeu da Silva. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

MANGUEL, Alberto e GUADALUPI, Gianni. Dicionário de Lugares Imaginários.


Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Crônicas 1961-1984. Trad. Léo Schalfman. Rio de


Janeiro: Record, 2006.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Reportagens políticas 1974-1995. Trad. Léo


Schalfman. Rio de Janeiro: Record, 2006.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Eu não vim fazer um discurso. Trad. Eric


Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2011.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo


Horizonte: Autêntica/UFOP, 2012, p. 21-34.

MOLLOY, Sylvia. Vale o escrito. A escrita autobiográfica na América Hispânica.


Trad. Antônio Carlos Santos. Chapecó: Argos, 2003.

MÜHLHAUS, Carla. Por trás da entrevista. Rio de Janeiro: Record, 2007.

NEVES, Maria Alciene. Os brilhantes brutos de Maria Clara da Cunha.


Dissertação de mestrado. São João del-Rei: Programa de Mestrado em Letras
 Teoria Literária e Crítica da Cultura, 2009. Adelaine LaGuardia Nogueira
(orientadora).

NORONHA, Jovita Maria Gerheim. Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2014.

OURO DE TOLO. Lacombianas. Disponível em


<www.pedromigao.blogspot.com>. Acesso em: 10 dez. 2010.

OZICK, Cynthia. Retrato do ensaio como corpo de mulher. Revista serrote, São
Paulo, Instituto Moreira Salles, n. 9, nov. 2011, p. 7-13.

PAMUK, Orhan. A maleta do meu pai. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de


escritores modernos. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Que fim levou a crítica literária? São Paulo, Folha
de S.Paulo, 25 de agosto de 1996, caderno +mais!

PIGAFETTA, Antonio. A primeira viagem ao redor do mundo: o diário da


expedição de Fernão Magalhães. Trad. de Jurandir Soares dos Santos. Porto
Alegre: L&M Pocket, 2011.
96

PINTO, Manuel da Costa. Paisagens interiores e outros ensaios. São Paulo: B4


Editores, 2012.

PISCITELLI, Adriana. Reflexões em torno do gênero e feminismo. In: COSTA,


Claudia de Lima e SCHMIDT, Simone Pereira (orgs.). Poéticas e políticas
feministas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2004, p. 43-66.

PORTELA, Eduardo. Visão prospectiva da literatura brasileira. Rio de Janeiro:


Editora Ouro, 1979.

PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”.
Estudos Feministas. Universidade Federal de Santa Catarina, v. 19, n. 1, p. 11-
20; jan-abril, 2011.

PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Jesús Carrillo. Disponível em


<http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332007000100016>. Acesso 12 dez. 2012.

PRIORE, Mary del (org.). História das mulheres no Brasil. 7ª ed. São Paulo:
Contexto/Editora Unesp, 2004.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Vermelho amargo. São Paulo: Cosac


Naify, 2011.

REVISTA CULT. Dossiê Literatura gay: bandeira política ou gênero literário?


São Paulo, Editora 17, n. 66, fev. 2003, p. 31-64.

REVISTA CULT. Dossiê O fim do jornalismo crítico? São Paulo, Editora


Bregantini, n. 188, mar. 2014, p. 6-10.

REVISTA ESTAÇÃO LITERÁRIA. Programa de Pós-Graduação em Letras da


Universidade Estadual de Londrina, Londrina, n. 11, jan./jul. 2013, p. 10-51.

RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Trad.


Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002.

SÁ, Jorge de. A crônica. 5ª ed. São Paulo: Ática, 2008. (Série Princípios)

SALIH, Sarah. Judith Butler e a teoria queer. Trad. Guacira Lopes Louro. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. Trad. Rubia Prates Goldoni e Sérgio


Molina. São Paulo: Edusp, 2005, p. 141-196.

SANT’ANNA, Alice. Rabo de baleia. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

SANTIAGO, Silviano. Eu e as galinhas d’angola. In: OLINTO, Heidrun Krieger;


SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Literatura e memória. Rio de Janeiro: Edições
Galo Branco, 2006, p. 21-31.
97

SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. Aletria: revista de


estudos de literatura, Belo Horizonte, n. 18, jul./dez. 2008, p. 13-178.

SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemologia do armário. Lisboa: Angelus Novus,


2003.

SEIXAS, Heloísa. O oitavo selo. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

SILVA, Tomaz Tadeu da (org. e trad.). O que é, afinal, Estudos Culturais? 4ª


ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In:


HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo
como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 23-57.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica: ensaios. 2ª ed. revista. Belo
Horizonte: Veredas & Cenários, 2012. (Coleção Obras em Dobras).

SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo (orgs.). Crítica e coleção.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

SOUZA, Eneida Maria de; TOLENTINO, Eliana da Conceição; MARTINS,


Anderson Bastos (orgs.). O futuro do presente: arquivo, gênero e discurso. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2012.

SZYMBORSKA, WISŁAWA. O poeta e o mundo. Revista piauí, n.8, maio de


2007. Disponível em <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-8/poesia/o-
poeta-e-o-mundo>. Acesso em 7 de ago. 2012. Ver também análise de
Eucanaã Ferraz em <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-66/despedida-
wislawa-szymborska-1923-2012/a-poeta-e-a-pedra>.

TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do amor. Rio de Janeiro: Record, 2006.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. 3ª ed. Rio de


Janeiro: Difel, 2010.

TPM. Milly Lacombe em ação. Disponível em


<http://revistatpm.uol.com.br/blogs/redacao/2010/07/16/milly-lacombe-em-
acao.html>. Publicado em 16/07/2010. Acesso em: 25 de mai. 2012.

VENTURA, Zuenir. Minhas histórias dos outros. São Paulo: Editora Planeta do
Brasil, 2005.
98

WATSON, Julia. Autographic disclosures and genealogies of desire in Alison


Bechdel’s Fun Home. Disponível em <http://www.jstor.com>. Acesso em: 23
mar. de 2012.

WOOLF, Virginia. O valor do riso. Trad. Leonardo Fróes. São Paulo: Cosac
Naify, 2014.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Trad. Bia Nunes de Sousa, Glauco
Mattoso. São Paulo: Tordesilhas, 2014.

Você também pode gostar