Você está na página 1de 124
COLECAO “ENSAIO & TEORIA” Dirigida por Luis Felipe Baéta Neves (0 Jogo ea Consttuipao do Sujeito na Dialética Socal (Circe Vital Brasil) ‘Memérias do Social (Henri Pierre Jeudy) ‘Comportamento eContracontrole Social crénica do behaviorismo radical ide Skinner (Celso Pereira de Sa) ‘As Méscaras de Deus e @ Totalidade Totalitiria (Luis Felipe Basta Neves) Michel Maffesoli 0 Tempo das Tribos v 0 declinio do individualismo {B28 sociedades va a de massa Arosa e Late Felipe Bata Neves ‘Traduglo de Marta de Lourdes Menezes Revist erica de Arno Voge aot in epi aa oe ToWroRArousGeesvnasagia Para Raphaele, Sarah-Marie, Emmanuelle PREFACIO A SEGUNDA EDIGAO ‘ritos © Pés modernidade ‘Ja mencionei anteriormente que o que melhor poderia carac- terizar a pés-modernidade era o vinculo que estava sendo estabo- Tecido entre a ética ea estética.! O que pretendia dizer com isso 6 ‘queen via o novo vineulo social (ethos) surgindo a partir da emogao compartilhada ou do sentimento coletivo. Portanto, em ver de ver ai uma frivolidade qualquer & disposigao de alguns, vanguarda, boémia artistica, talvez estivéssemos mais inspirados se deseo: brissemos nesta coletivizagdo dos sentimentos um dos fatores essenciais da vida social que est em vias de (relnascer nas sociedades contempordneas, [Nao nos esquegamos que tal perspectiva se insere, hi muito tempo, na tradigdo intelectual francesa: os surrealistas, certa~ ‘mente, mas também G. Bataille e, mais recentemente, Michel Foucault, Em cada um desses casos, com nuangas de real impor- ‘aneia, o destaque é dado a uma perspectiva global, holistica, que integra a vivencia, a paixdo eo sentimento comum. Reconhecemos |i uma maudanga importante de paradigma: em ver de dominar 0 ‘mundo, em ver de querer transformé-lo.oumudé-lo trés atitudes prometeanas ~ n6s nos dedicamos a nos unirmos a ele através da “contemplago”. A prevaléncia da estética, a perspectiva ecolégi a, a ndo-atividade politica, as diferentes formas do souci de soi e (08 diversos cultos do corpo so, na realidade, nao importa 0 que possam parecer, formas desta “contemplagio™ Em cada um de todos esses easos, sera a ambientagao do tempo e do lugar que ira determinar a atividade, a eriagao: quer seja a eriagao maiiscula das obras de cultura, ou a criagio rmicrosedpica da vida do cotidiane. Mas, nao nos esquegamos, 0 Cf Avs Crus des Apparncs 190) tad prtuateB Vous 1986 que va de soi faz.comunidade. E nesse sentido que o que eu chamei dde “orgiasmo” & matricial. E verdade, so momentos em que ‘oboecados pelo “fazer”, 0 aspecto racional das coisas, 0 ativismo social, nés vamos minorizar esta abordagem “ambiental”. Dai em diante, tudo 0 que nao podemos contar, que nao conseguimos ‘medir, tudo o que € de ordem do evanescente e do imaterial € considerado como quantidade desprezivel. (Sao muito diferentes as épocas em que renascem a preocu pacio com o estar juntos e a estranha pressio que nos impulsiona para 0 outro, Historicamente, o barroco é da quantidade, e em rossos dias os diversos agrapamentos de vida corrente repetem a mesma coisa, Trata-se ai de um verdadeiro “uso dos prazeres” sobre o qual Michel Foucault soube to bem mostrar a importan- cia societal Assim, vemos que o ambiente tem uma fungéo: a de criar um corpo coletivo, de modelar um ethos. E 0 que nos ensina ‘historia da arte nao deixa de encontrar repercussio em outras situagies mais profanas, onde se exprime uma “ligagao” nao ‘menos importante. Quanto a isso, basta pensar nas reunides musicais, esportivas ou de consumo para medir esta fungao con- tempordnea, ‘Mudanga de cultura, ndo se dird mais o Stimmung de uma paisagem, ou de uma catedral, mas se falara de feeling de uma Telagao, do sentimento induzido por um lugar, ou de outras categorias no menos vaporosas para descrever um “situacionis- ‘mo” amorogo, profissional ou cotidiano de conseqdéneias nao despresiveis dentro da “eriagao", em sua aceitagao a mais extensa de uim periodo predeterminado. F assim que podemos compreen- er e analisar esse fendmeno espantoso que 6a moda, que nasce dda necessidade de se singularizar, mas que nao pode existir a ser seeretando a imitagao mais banal. A moda, no trajar, na ‘deologia ou no linguajarete., traduz bem esta “inflagao do senti mento" (G, Simmel) suscitada pela atmosfera ambiente, © individuo nao é, ou nao é mais, mestre de si. © que nao quer dizer que ele nao seja ator. Ele oé,naverdade, masa maneira daquele que recita um texto escrito por outra pessoa. Ele pode ‘acrescentar a entonacdo, com mais ou menos ealor, eventualmen- te introduzir uma réplica, no entanto, ele continua prisioneiro de ‘uma forma que ele nao pode, em nenhuma hipstese, madifiear por vontade prépria. Nesses tempos em que & de bom-tom falar sobre individualisme, quando é dificil questionar esse pensamento con- vencional, nao ¢ imitil lembrar a evidéneia empirica da imita furiosa, desse instinto animal que nos impulsiona em geral a “fazer como os outros”. Simmel via nisto um fendmeno sociologico dos mais instrutivos: “o individuo se sente conduzido pelo ambi- cente palpitante das massas como que por uma forga exterior, indiferente ao seu ser ou A sua vontade individuais. Mesmo que, contudo, esta massa seja constituida exclusivamente de tais indi. vidos"! ‘Ao elaborar a sua ética da simpatia, M. Scheler se dedica a ‘mostrar que ela nao é nem essencialmente, nem exclusivamente social. Ela seria uma forma englobante, matricial, de certo moda E esta hipétese que eu formularei por minha ver. Seguindo a ‘comparagao das histérias humanas, depois de terem sido minor zadas, esta forma estaria novamente presente, Bla privilegiaria « fungio emocional e os mecanismos de identificagho e de partici- pagao que vém a seguir. O que ele chama de “teoria de identifica 80 da simpatia” permite explicar as situagies de fusdo, esses momentos de éxtase que podem ser regulares, mas que podem ‘gualmente caracterizar 0 clima de uma época.t Esta teoria da identificagao, esta saida estatica de si esta em. perfeita congrudneia com o desenvolvimento da imagem, com aquele do espetdculo (do espetaculo stricto sensu nas paradas politicas) e, naturalmente, com aquele das multidées esportivas, {das multidoes de turistas ou simplesmente com as multidoes de esocupados. Em todos esses casos, assistimos & superagio do rincipium individuationis, que era © nome de ouro de toda organizagio e teorizagdo sociais, ‘Serd mesmo necessdrio, como sugere M. Scheler, uma grada- so entre “fustio”, “reprodugio” e “participagao” afetivas. Seria ‘melhor, a meu ver, e apenas a titulo heuristico, estabelecer uma nebulosa “afetual” de uma tendéncia orgidstica ou dionisiaca, AS explosdes orgidsticas, os cultos da possessao, as sitiagdes fusio- nais sempre existiram. Mas, as vezes, eles tomam um ar endémico Sine, Gore, Sil piatmotae Pai, 198, 16 "Sehlor Me Aauree rms dla Spat Pan Pa Wah p 19 ng, MBAS se tornam preeminentes na consciéncia coletiva. Sobre alguns ‘assuntos née vibramos em unissono, Halbwachs fala sobre isso ‘como “interferéacia coletiva”® Esta nebulosa “afetual” nos permite compreender a forma especifiea que toma a sociabilidade em nossos dias: 0 vaivém de ‘nossa tribos, De fato, diferentemente do que prevaleceu nos anos 170, se trata menos de se agrogar a um grupo, a uma familia ou a uma comunidade do que o ire vir de um grupo a outro E 0 que pode dar a impressdo de uma atomizagao, eo que pode fazer falar erroneamente em narcisismo, De fato, contraria- ‘mente a estabilidade induzida pelo tribalismo clssico, o neotri- balismno 6 caracterizado pela Muidez, as reunides pontuais e a dispersao. B assim que pademos descrever 0 espetdculo das ruas ‘das megalopoles modernas. O adepto do jogging, 0 punk, o look retro, 0 bom mogo elegante, os “apresentadores de televisdo” nos ‘onvidam a uma viagem incessante. Através de sedimentagies Ssucessivas, se forma um ambiente estético. E é no interior desses ‘ambientes que regularmente podem ocorrer estas “condensacoes instantaneas, res, mas que naguele momenin si objeto de ‘um grande investimento emocional. Besse aspecto sequiencial que permite falar de superagao do principio de individualizagio. is a constatagao que O Tempo das Tribos pretende propor. Como podemos ver, trata-se de uma proposta importante cujas consequéncias, epistemolégicas e sociais, ainda devem ser explo- rradas. Mas é a compreensiio que as ciéncias humanas saberdo ter desta proposta que Ihes permitiré, ou nao, responder aos intime- +08 desafios langados pola pis-modernidade neste fim de séeulo. O Autor APRESENTACAO Laie Felipe Batta Neves ‘A publicagio de um novo livro de Michel Maffesoll no Brasil suscita algumas reflexées sobre sua obra e... sobre n6s proprios. Quais os efeitos que o trabalho de Michel Matfesolt pode acarretar; o que ele revela de nés enquanto “poro”; 0 que exibe, por contraste, de nassas maneiras intelectuais de “tazer ciéncia”? Fico, nesta Apresentacso, especialmente voltado para os cefeltos que 0 tempo das tribos pode ter para a teoria social tal ‘como é (por muitos) praticada entre nés. Minha primeira observagio é sobre a critica (a pritica) ‘affesoliniana ao eariter normativo e judicativo que as “clén- clas sociais” tendem a assumir. Julgamentas de valor que, fina- listas, ve voltam para a “implantagéo do Futuro” e que, por ‘indole, menosprezam o presente (a vida) e 0 conjuntural. Como se a Historia, que tanto louvam, se desse fora do presente € da conjuntura; ¢ como se essa Deusa precisasse de arautos. ‘Arautos que, revestidos do manto do Saber (¢ de feu Poderes), ‘Bo querem falar apenas em seus préprlos nomes, mas que ‘teimam em falar em nome do Povo, da Justica, da Moral No lugar dessa palxio pelo ventriloquismo dos Demiurgos Cientistas, to conhecida quanto pouco estudada entre n6s, ‘M. Maffesou! prope uma outra: a palxio pelo social tal como fle é, tal como ele se dé, e nio como deveria ser. Esse respelto Pelo objeto (vivido e) analisado mio 6 sindnimo de apologia ‘pelo estabelecido ou elogio da inigildade. © movimento ests patente em todo 0 esforgo de compreensio felto; apenas ele ‘escapa aos teleologismes e 20s moralismas. Esta escrita sobre o social de M. Maffesoll permite um (otoroso) confronto com o teslsmo qué se abateu sobre o pals, ‘nosso “pais intelectual”. Podemos, com este e outros de seus livros, ver até que ponto a “eriatividade clentitia” entre nbs continua fortemente manictada. E no por nenhuma forca auto- tira e extema academia, mas sim pelos compromissos ‘mternos que acsbaram por se estabelecer to rigidamente entre desempenho intelectual ¢ tradicionalismo teérico. Perdemos muito da capscidade de errar, de avangar conhec'mentos no “estabelecidos” (pelo “estabelecimento universitario”...), de arrisear, de langar conhecimentos no “acabadas", Perdemos ‘ capacidade de ensalar — palavra, aids, cheia de sentidos. Nio ‘que teoria social no Brasil mio tivesse eonhecido o ensalo; pelo contririo, ela foi “fundada” por ele, com Gilberto Freyre. ‘Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr. O magnifico ensais- ‘mo bras'ieiro destes “fundadores” tem que ser recuperado em sua cusadia, em sua erudigdo, em sua elegincla de estilo — ‘io com 0 sentido de veneragio passadista, mas pela fertildade que pode trazer, pelo antidoto que pode representar & sensa- Doria e & platitude ‘A cusadia intelectual, aqui, em M. Matfetoti,néo é — como (08 apparatchik poderiam esperar — nio ¢, repetimos, sinénimo de Inconseqléncia ou falta de conhecimento tebrico. O que vemos € uma constante re-apropriagdo... dos clées'cos. Marx, Weber, Durkheim — tno que nio falta s nenhum dos cursos de “Metodologia” de nassas universidades... — esto citados f so vistos de forma inteligente e inovadora, concorde-se ou ‘no com as posigées de Maffecolt quanto a eles. Assim sendo, ‘8 periedade do trabalho nio se confunde com a sisudez dos que (querem nos convencer pela mesmice € pela Invocardo ecto- plismica de figuras institucionalmente entronlzadas ‘Ao lado de uma (re-)vis'ta aos clissicos, 0 trabalho que se segue apresenta vantagens “substantivas” adiclonais. Per- ‘ite ao leitor brasileiro tomar (ou rever) contato com autores pertencentes a outras tradigses intelectuals, mu'to poueo vistas ‘na propria Europa (¢, portanto, aqui...) por muito tempo ‘Como Simmel, Schutz ¢ tantes autores de linhagens fenomeno- 1égicas rigorosamente desconhecidas pelos controladores/produ- tores de bibliografias do “jé-consagrado”... Some-se a exsas ‘qualidades a de apresentar —o que jé 6 uma saudivel “traai- ‘qlo” de Mattesoli — recentes teses unlversitirias de colegas seus de diversos paises, além de artigos e livros publicades em paises com que, infel'zmente, temas pouco contato em eltneia social (como a Ttélia). (© ‘tema’ principal do lvro ¢ o das ormas grupais que ‘surgem nas sociedades contemporineas. © grupalismo — sur- preta de muitos —, ou o neotribalismo recente das soc'edades complexas, é, na verdade, uma tela para onde converge uma rea dlscussio conceitual suscitada por Maffesoll. Diseussfo que toca fundo temas recorrentes nas discussdes académlcas no Brasil, como o que d'stingue e confronta as nocdes de “Indivi- duo” @ “sociedade”. Aqul, como em diversos outros momentos, 4 “soluglo te6rlea” proposta é Inovadora e ume série de revisdes cconeeituals 6 lancada & mesa dos debates Série que passa pelo proprio conce'to de Historia; por uma visio holistca nfo tota- itdria; pelo re-exame da importincia do politico e do econémico; or uma re-consideragdo das diferencas entre o¢ conceitos de “cultura” e “ivilzagio”; por uma nova valorizagio do Muldo. do simples, do polimorfo, do camblante, do parcial; por uma farcinante proposieio relativa ao papel da afetividade, da pro- ximidade, do calor humano na constituigéo soelal; por uma série de chibatadas dirigidas ao institucional, ao burguesisme © 0 produtivismo; pela s'gnifieagio corajosa atribuida 20s aspectos culturals das sociedades humanas; pela relterada dite renga constatada entre nogées habitualmente fundides, como as de “poder” e “poténcla” — ou de algumas “mal-vistas”, como ‘de “forma”. ‘Toda essa série de exemplos — meramente indieat'vos ds riqueza do livro que aprerentamos — néo deve, obviamente ser tomada como signo de “pertencimento a mais uma mode vinda és Europa”. Séo, pelo contrérlo, um convite & leltura clegante, instigante, que o tempo das tribos pode proporeionar. (0 ato de haver — ou niio — colneidéncia de posigées importa ‘pouco; 0 que conta é 0 exerciclo de inteligincla que pode ser felto ¢ 0 praser que se pode usufruir destas ousadas péiginas ‘maffesolin'anas tdo préximas — pela errlincia, coragem e des- ‘temor — daquilo que Freud um dia, falando amorosamente de um “selvagem” texto seu, chamou de “fantasia clentifia”. ‘SUMARIO A Maneira de Introdugio Capitulo L~ A Comunidade Emacional Argumentos de uma, pesquisa) 1 A Aura estética 2 ‘Rexperiéncia ética 3. Ocostume Capitulo I~ Poténcia Subterrinea 1. Aspeetas do vitalismo 2. Odivino social 8. A“auto-referéncia” popular Capitulo I~ A Sacialidade contra Social 1. Para além do politico 2 Um"familislismo” natural Capitulo IV — 0 Tribatismo ‘A nnebulosa afetual Oestarjuntoa toa® ‘A tocialdade eletiva ‘Ale do segredo Massas eestiloe de vida Capitulo V0 Policultaraliemo 1. Da triplicidade 2 Presenga e afastamento 18 1B 22 30 ra 46 67 9 ot 101 101 mL us 11 128 6 ua ua 3. O palitetimo popular, ou a diversidade do deus 4. Ocquilibrio erzanico Capital VI Da Proxemis 1, Acomunidade de destino 2. Genius oct 3 Tribos erodes 4A Rede das redes Notas 152 159 169 169 19 193, 203 209 A MANEIRA DE INTRODUCAO 1. Algumas precaugbes quanto ao uso Ambiéneia, els um termo que frequentemente reapareceri no decorrer deste livro; pois talvez seja util explicar, em poucas palavras, que foi ele que presidiu & sua claboragio. Bu tinha comecado uma obra precedente colocando-me sob fa patronage de Savonarola. Hoje invocarel a de Maqutavel, fazendo referéneia ao que ele chama de “o pensamento da praca piibliea”, Para aqueles que Idem, para os que sabem ler, segue- “se uma reflexio de f6lego que, através das nogSes de poténcia, e soclalidade, de quotidiano, de imaginario, pretenda estar ‘atenta ao que constitul, em profundidade, a vida corrente de rnossas soeledades, neste momento em que se conclul a era ‘Moderna. As balizes agora colocadas permitem rumar com fir- ‘mera, na direcio da cultura, que deve cer entendida no sentido forte do termo, e que esta prevalecendo sobre 0 processo eco- ‘nOmico-politico. A tonica colocada nos diversos rituais, na vida, comum, na duplieldade, no jogo das aparéneias, na sensibili- ade colet'va, no destino, em suma, na temitica dionisiaca, finda que possa ter provocado sorricos, no deixa de ser util zada de diversas manciras, em intmeras anilises contempori- ‘eas. Isso é normal. A histéria do pensamento demonstra muito ‘bem que, a0 lado dos mimetismos Intelectuals ou das autolegiti- ‘magées a prior, existem legitimidades que se constroem com 0 lwo, Algumas geram um saber capltalizado, outras, no sentido ‘etimol6gico do termo, “inventam”, isto ¢, fazem ressaltar 0 (que esta presente mas que temos alguma dificuldade em dis- cenit. 2 © Tro san Twos Entretanto, no se trata de ser trlunfaliste, Hste discernt ‘mento nio 6 colsa facil. A sensater que impera em nossas disc! plinas, ¢, certamente, expresso do uma prudéneia necesséria, porém, multas veues mortifera, # interessante notar, além diss0, que ele combina muito bem com a desenvoltura a mals pre- tenclosa, Ser que existe uma grande diferenga entre o que M, Weber chamou a “pequena engrenagem de um‘pensamento ‘teenoeritica € “ndo-me-importismo” que resgata, com Iuero, ‘0 que ele (ou outros) semearam hi muito tempo? De fato, tum vale bert o outro, ¢ o incensamento comum de ambos por parte de um piblico beato merece atencfo, Ser’ necessérlo, fentiéo, como fazem slguns, vilipendiar uma época poueo vigo~ rosa e um tanto ignara? Eu nio feria tio leviano. & natural que alguns tomem os bobos da corte por jornalistas apressa- dos, Amal de eontas isto também faz parte do dado socal ‘Mas podemos, jgualmente, imaginar que alguns tenham outras ‘ambig6es, como por exemple, dirigir-re a emes happy few que desejam pensar por si mesmos ¢ que encontram em tal liv, fou qual andlise, uma ajuda, um trampolim que thes permita epifanizar seu préprio pensamento, Ingenuidade, pretensio? O ‘tempo sero Julz. E apenas alguns espiritos avisados saberio antecipé-to, um pouco. Espero ter feito compreender que a ambicio desta obra 6 dirigit-te misteriosamente, sem falsa simplieidade nem compll- ‘eagio nit, & comunidade de espiritos que, fora das igrejinnas, das associagées e dos sistemas, pretende pensar esta “homme: rie”, de que falava o sibio Montaigne, e que é também o seu ‘destino, Espirites livres, certamente, pols, ver-se que, nas de- rivas que vim a segulr, seré necessirio ter 0 pleno dominio dos préprios movimentos para a aventurosa navegacio do pen- samento, Freischwebende Intelligentzid. Talves essa seja uma perspectiva inquictante mas que nio delxa de ser interessante para os que conferem a esta aventura a importincia que Ihe 6 devida. Em resumo, no tenho nenhuma vontade de fazer um esses livros que, como dizia G. Bataille, “prendem com facill- dade aqueles que os Idem... (desses livros que) agradam 0 ‘A Mares 98 Seroausho a ‘mals das vezes aos espiritos vagas e impotentes que querem fugit e dormir” (Ceuores Completes, t. VIII, p. 588). 1 til informar que nio se trata, no caso, de um estado ’aima, mas de esclarecimentos de bastante valia, pois a tradi- ‘ional compartimentacdo d'seiplinar ndo sera respeitada, 0 que, natursimente, nfo favorece a seguridade intelectual que ela costuma trazer consigo. £ @ préprio objeto abordado que exige cesta transgressio, Na verdade, agora aceita-se cada ver mals que a existéncla social, da qual nos ocupamos, se presta com muita difleuldade ao recorte eoneeltual. Deixemies isso para os Dburocratas do saber, que acreditam fazer eiénela, presidindo & reparti¢fo classificada daquilo que, supostamente, cabe a cada tum. Que a partilhia seja felta em funclo das classes, das cate- orias séclo-protssionals, das opiniges politias ou de outras eterminagées a priori, tanto faz Para usar um termo melo barbaro, que nos esforgaremos continuamente para ex-pllltar, eselarecer, o que tentaremos manter é uma perspectiva “holls” fica": nogéo que, numa constante reversibllidade, une a globa- lidade (social e natural) com as diversos clementos (melo € pessoas) que a constituem. Isso, no rastro da temétiea que reivindico, volta a reunir os dols extremos da cadela, o de uma ontologia existencial e o da mals simples das trivialidades. * A prime’ra, tal como um rato lazer, uminando as diversas ma- nifestagées da segunda, 8 evidente que, na perspectiva da divisio, que ainda tem lum papel dominante, esse procedimento 6 inquletante, © ae tenderé a preferir as abordagens monogrificas, ou delberada- ‘mente te6ricas. Vou desconsiderar, entretanto, as delicias inte- leetuais de cada uma dessas atitudes, confiando no fato de que certas consideragées “inatuals” podem ser perfeltamente ‘dequadas ao seu tempo. Para o que n0s oeupa agora, vou eltar Lévi-Strauss que demonstrou, com a repercussio conheclda, que no era 0 caso de exaccrbar a separagio clisslea entre Magia e cifncia, e que, pela sua enfatizacso dos “dados sensi- veis, a primeira nfo tinha sido, de modo algum, init) para 0 Gesenvolvimento desta tltima.* Por minha parte tentarel levar ‘até as uiltimas consequéncias a l6gica dessa comparagio, ou, ‘ © Two nas Tass ‘pelo menos, aplicé-la a outros tipos de polaridades préximas Darel explicacées mais detalhadas, a respeito, no capitulo final. Entretanto, quer me parecer que existe ai um paradoxo fecundo, «, seguramente, dos mais ttels para cbeervar as configuragtes sociale, apoiadas cada ver mais na sinergia, daguilo que, até ‘agora, se tinha tendéncia a separar ‘A antinomia do pensamento erudito € do bom senso parece 6ovia, E naturalmente para o primeiro 0 ditimo 6, antes de ‘hido, doente. Quando nio é classificado de “falsa conseléncia”, ‘© bom senso é, no minimo, débll. O desprezo pelas “anima candida” ¢ a pedra de toque da atitude intelectual. 36 falet a respeito desse fendmeno. Gostaria, agora, de mostrar que isto ‘nko deixa de ter conseqiéncias para explicar ineapacidade de compreender o que, na falta de melhor denominacio, cha- maremos a Vida, Referir-se & vida em geral 6 algo que no se faz sem risco, Isso pode conduzir, em particular, a um devaneio sem horlzontes, mas, na medida em que podemos lastrear esta pperspectivagio com os “‘dados sensiveis", evocados acima, mio deixaremos de aleangar a margem dessa existéncia concreta, ‘Go estranta as clucubragées desencarnadas. Ao mesmo tempo, ¢ importante preservar a possibilidade da navegagio de longo ceureo, & assim que se “Inventam” novas terras. E isto, a cate- goria geral o permite. Bis ai em questio o problema da siner~ ia: propor uma s0eiPIogia vadia que ndo seja ao mesmo tempo ‘uma sociologia tem objeto, (© movimento reversivel que val do formismo & empatia, pode, também, mostrar 0 deslocamento de importéncia que festé ocorrendo, de uma ordem social essenciaimente mecanista, ara uma estrutura complexa @ dominante orgdnica. Aststi- mos & substituigo da Histéria linear pelo mito redundante. ‘Tratewe de um retorno do vitalismo do qual pretendemes ‘mostrar as diversas modulagGes. Os diferentes termos evocados, centretanto, encadeiam-se uns aos outros. A organicidade remete ‘a0 Impulso vital ou & vida universal to cara a Bergson. Nio ‘esquegamos, no entanto, que ele propunha uma intulgso direta ‘para dar conta dela. M. Scheler e G. Simmel partithavam igual- A Muses oe temcuteo s ‘mente esta visdo da unidade da vida.® Voltare! freqlentemente ‘a essa perspectiva pols, além de permitir a compreensio do panvitalismo oriental, que se encontra ma pritica de muitos equenos grupos contempordneos, ela esclarece, também, a femogio e « dimensdo “afetual” que os estruturam enquanta tats. ‘Vemos, entio, 0 interesse do alerta enunclado acima, © {ato de 0 dinamismo social mio estar mais trithando ot ea- ‘minhos da Modernidade, néo signifiea que esse dinamismo nao exista mais dentro dela. E, ao seguir o trajeto antropolégico, que apontel, a melhor manelra de dizer a mesma coisa ¢ de- ‘monstrar que uma vida quase animal percorre, em profundl- dade, as diversas manifestacses da socialidade. Dat a insisténcia ‘na “rellanca”, na religiasidade que & uma parte essencial do ‘tribalismo de que vamos nos ocupar, ‘Sem qualquer contetido doutrinal, podemos falar, de uma verdadeira sacralizagio das relagdes socials, que o positivista Durkheim chamou, & sua manelra, 0 “divino social”. # assim (que, por minha parte, compreendo a Poténcia da. socilidade ‘que através da abstencéo, do siléncio, e da astieia se opse ao Poder do econémico-politice. Encerrarel este primeito alerta com uma elucidacio tirada da kabala. Para esta as “poténclas” (Zetirot) constituem a divindade. Segundo G. Scholem essas poténcias sio os elementos primordiais em que toda realidade se apbia. Por conseguinte “a vida se espalha no exterior e viv flea a crlago, permanecendo, 20 mesmo tempo, no Interior, de maneira profunda, e o ritmo feereto do seu movimento, do seu pulso, 6 a Tet da dindmica da natureza”.* Este pequeno apblogo permite resumir 0 que me parece ser papel da socia- lidade: para aquém ¢ para alm das formas institufdas, que sempre existem e que, as vezes, so dominantes, existe ‘uma centratidade subterrdnea informal que assegura a perduraincia dda vida em socledade. # para esta realidade que convém vol- tarmos os nossos olhares. Nio estamos habituades a ela, n0ss0s Instrumentos de anilise esto um pouco antiquados, mas int- ‘meros indfcios, que tento formalizar neste livro, not apontam ue este 0 continente que nos convém explorar. Este € um . (0 taro 245 THOS — mes, gut & empreencimento para as présimas déeadas. SabemoS, Sempre pos estum que se corora a esonbeseraqulo que € Ee neces, anda, gue tjamos suflenteente elon, ¢ fem encsivas prevenyesinteeetni,para que eH© pazo néo ej longo demas 2. Quomodo salt Sit em te ea ee SSE ae rile tae ft siren a oer el ‘Num primeiro momento, e no contra-pé de uma atitude eae emma 0 eens eae ee nw Sen ee ees emo ea es oe eee eee SS sue aware oan ne ences eee ote cian a ete a eee comers eee earn eo ere ae Se eee ie re Soe eee ene oe ees 1A steers 88 Deonogio : temos por que nos preocupar com o que pasta ser a verdade ftima. No caso, a verdade ¢ relativa, tributéria da sltuagéo, ‘Trata-re de um “situacionismo” complexo, pois o observador ‘esté, 20 mesmo tempo, ainda que parclalmente, integrado em tal ou qual das situagdes descritas por ele. Competéncia e ape- téncia caminham lado a lado. A hermenéutiea supée ser quer descreve da mesma substine'a que aquilo que desereve, Ela requer uma “certa comunidade de perspectiva”.* Os etnélogos © 08 antropélogos canaram-se de insistir neste fendmeno. Creio que € hora de acciti-lo também para as realidades que nos slo préximas. ‘Mas como tudo aquilo que esti nascendo & frégi, incerto, ceheio de imperfe'gses, nossa abordagem tem as mesmas quali dades. Daf a aparéncia de frivolidade. Um terreno movedigo neces‘ita de um tratamento adequado © néo é vergonha fazer “surf” sobre as ondas da socialidade. #, inclusive, uma questo de prudéncia que nio deixa de se mostrar eficaz. Desse ponto de vista, a utilizagéo da metifora é perfeitamente “relevante” Além do fato de ter ela os seus titulos de nobreza, e de ser utiliada na produgio intelectual de todos os periodos de efer- vescéneia, ela permite também essas erlstalisagées especiticas Que sio as verdades aproximativas e momentaneas. Disseram de Beethoven que ele encontrava na rua os temas de suas mais belas passagens, o resultado nio 6 desprecivel. Por que nio ‘ocreveriamos nds as nossas partituras a partir do mesmo chéo? ‘Assim como a persona e suas méscaras, na veatralidade quo- fdlana, a sociatidade & estruturalmente ardilosa, inapreensivel, df a confusio dos unlversitiries, das politics, dos jornal'stas Que a descobrem alhures, quando acreditam té-1a apreendido. Numa corrida desvairada, os mais hone‘tos vio subrepticla- ‘mente, mudar de teoria, ¢ produzir um outro sistema, explica- tivo e completo, para aprendé-la de novo, Nao seria melhor, como eu dizia hi pouco, “estar nela” e praticar também a ‘sticia? Ao invés de aborda-la de frente, positivando ou eriti- endo um dado social fugidio, utilizar uma tétiea de matizes, G isear de vies. 8 a pritica da teologia apotitica: de Deus ‘lose fala senio por evitagdes. Desse modo, ao invés de querer, ‘do maneira iluséria, apreender firmemente umn obleto, expick10 fe esgotd-lo, contentar-se em descrever os seus contornss, ‘seus movimentos, suas hesltagées, seus Gxitor © seus diversos sobressaltos. Mas como tudo tem a ver com tudo, e'sa asticia, também, poderi ser aplicada sos diversos instrumentos que tradicionalmente utilizamas em nossos disciplinas. Tanto para eter o que eles tém de uti, quanto para ullrapassar sua righ ez. A esse respelto gostarla de fazer como este outro outsider; ‘que @ Gottman, Ele fol um dos que inventou conceltos, mesmo que tenha preferido, as veres, “utiliear palavras antigas, dan- doshes um novo sentido ou fazendo-as entrar em eombinas originals que rompem com 0 peco dos neolog'smos".* Preferir fot “‘miniconceitos” ou ag nogdes as certezas estabelecidas, ‘mesmo que Isso possa chocar, parecesme o penhor de uma atitude mental que pretende permanecer o mals perto possivel dos solavancos que ‘0 préprios dos caminhos de toda vida social, 3. Ouverture Eis af, em grandes pinceladas, © quadro geral em que vao ‘se mover as diversas consideragées sociolégicas que soguem. A ambiéncla de uma é20ca, e, por conseguinte, a ambiéncia de ‘uma pesquisa, que se desenrola ao longo de multos anos. Os ‘seus resultados pareials foram regularmente “testados” com diversos colegas, com Jovens pesquisedores, na Franca e em ‘numerosas universidades no estrangeiro. B ela se apéia num pparadoxo essencial © vaivém constante que se estabelece entre a mas- siflcagéo crescente ¢ 0 desenvoivimento dos microgrupos que chamaret “tribos” ‘trata-se da tensio fundadora que me parece carscterizar 8 soclalldade deste fim de século, A massa, ou 0 povo, dferen- temente de proletarlado ou do outras classes, no so apdiam ‘numa légiea da identidade. Sem um fim precito, elas néo sio f sufeitos de uma histéria em marcha, A metifora da tribo, 1A Monae 3 texop0eto . por sua vez, permite dar conta do procesto de desindividuall- ‘acd0, da saturacdo da fungdo que Ihe ¢ inerente, e da valori zacdo do papel que cada pessoa (persona) € chamada a repre- sentar dentro dela. Claro esté que, como as massat em permanente agitacio, as tribos, que nelas se cristalizam, tam: pouco sio estvels. AS pessoas que compéem es:as tribos podem evolulr de uma para a outra Podemos dar conta do desiocamento que esta ocarrends © 4a tensio que ele suscita através do seguinte esquema: Soetal Soc'alidade Estrutura mecinica Bstrutura compleza ou (Modernidade) orgainica (Poe Modernidade) crenata eotri- vases 1 tomas | \ sna reson (fungio) (papel) grupos contratuais tribos atetuais (dominios culturais, produtivo, cultusl, sexual, ideoldgico) em fungdo dessa dupla hipotese (deslocamento ¢ tensio) ue, a0 meu feitio, farel intervir diversas leituras teéricas 0 Pesquisas empirieas que me parecem dteis A nossa reflexio* + "Wxiio um aspeeta exotério © wim aipecto esoteric em qualquer Brocsaiment.O aparato erition #4 aut expresiio, ‘Como $6 disse, néo se trata de fazer dlscriminagées, © além das ‘obras sociol6gicas, Mlosétieas ou antropologieas, o romance, 8 poesia ou o caso quotidiano terio nela gua parte. O essenc'al & fazer sobressair algumas formas, talves ‘irreais”, mas que ppossain permitir a compreensio, no sentido forte do termo, desta rmultiplieidade de situagdes, de experiéncias, de agées 1ogicas © ndo-l6gieas que constituem a socialidade. Entre as formas anallsadas, esta, evidentemente, a do tri- batismo, que se encontra no centro do trabalho. Ela é precedida ‘pelas nocies de comun'dade emocional, de poténcia e de socia- lidade que a fundamentam. E é seguida pelas de policultura- tismo e de proxeiia que tio suas conseqiéncias. Proponho, in fine e a quem interessar possa, um ‘método” teérico que five de biistola através da selva induzida pelo tribalismo. Existe, certamente, alguma monotonia nos assuntos abordados, fe também certa redundinela, em fungao do objeto estudado. ‘Como as “imagens obsessivas” que existem em toda obra lte- varia, poétiea, einematogrifiea etc. cada época repete, de ma- ‘neira aguda, miltiplas variagoes em torno de alguns temas notéries, Por isso em eada uma das formas abordadas encon- frames #s mestnas preocupagées. Apenas o Angulo de abords- gem muda, Espero, as'im, dar conta do aspecto polieromitico fo. todo social. Num staque notivel contra a parafernélia, tausal, G. Durand fala da “teoria do reeltal”, que seria a ma- rneira mais adequada de traduair @ redundincia do relato mi- tieo, de suas reduplieagies e das varlantes que ele difunde.* sta feoria convém, perfeitamente, 20 conheclmento ordinrio que elaboramas e que se contenta em assinalar e re-citar 8 eflorescéneia e a miscelanea repetitiva de um vitalismo que, de ‘mancira efeliea, Iuta eontra a angistia da morte, repetindo sempre a mesma coisa. ‘Mas essa teoria do recital, um tanto arrumadinha, no ¢ feita para aqueles que acreditam ser possivel esclarcoer com ‘Para nio tomar pesado 0 corpo Go texto, ete aparalo que 0 ss mints eonslderagdes fl remet'do s0 fhm do Two. Além a Stustra- fe que estan Teferdneias pretendem forecer, podem também perm fir a cada in avanger em suas prdpriee pesguisax (Nols do Autor) A aun om teooUgto a la a aco dos homens, muito menos para aqueles que, confun- ‘indo 0 erudito ¢ 0 politi, pensam que é possivel usi-la como Instrumento, Ela € antes uma forma de quietismo que se con- tenta em re-conhecer aqullo que 6, aquilo que ocorre. De ceria forma, uma vator'zagdo do “primus vivere”. Como disse antes, 6 seguramente para os happy few, que estas piginas esto reservadas. Re-conhecer a nobreza das marsas ¢ das tribos exige uma certa aristocrecia de espirite, Mas quero eselarecer que essa aristocracia nfo é apansgio de uma camada social, de um ‘grupo profissional e menos ainda dos especialistas. Debates, col6quios, entrevistas me ensinaram que podemos encontré equitativamente distribuida entre numerosos estudantes, traba- Thadores soelais, executives, jormalistas, sem esquecer, logica- ‘mente, aqueles que sfo simplesmente homens de cultura. # a ‘estes que me dirijoe digo que este livro se pretende uma simples nictagso para penetrar naquilo que 6. Se ele flegio, isto 6, se leva as ditimas conseqiénclas uma certa légica, ele nio “inventa” senio 0 que ex'ste,¢ isso, certamente, Ihe veda propor ‘qualquer solugao ainda que para o futuro, Em eontrapartida, ‘tentando colocar questées supostamente essenciais, prope tum ebate que nfo se presta as vergiversagées, &s aprovagées me- ‘tocres, sem falar, naturalmente, dos silénelos dissimulados. Bpocas efervescentes necessitam de impertinéneias contir- matorias. Espero ter colaborado com algumas. Da mesma forma (8 periodas em que as utopiaa se banalizam, se realizam, e em ‘que pululam os devanelos. Alguém d'sse que esses momentos sonham os seguintes? Sonham sim, mas menos enquanto pro- 0580s do que enquanto fiogdee feltas, de migalhas esparsas, de Construcées inacabadas, de tentativas mals ou menos bem suce- idas. Na verdade ¢ preciso fazer uma nova interpretagao desses. fonhes quotidianas. Essa 6 2 ambigio deste livro, Sociologia, sonhadoral Carfruto 1 A COMUNIDADE EMOCIONAL Argumentos de uma Pesquisa 1. Aura estética ‘Ainda que isto assuma uma forma aguda, seré necessirlo voltar, regularmente, ao problema do individualismo, que mals rio stja porque ele obsessiona alids, eom uma certa pertinéne'a, ‘toda a reflexio contempordnea. Como tal, ou sob uma forma erivada, quando se fala do narclsismo, ele esta no cere de ‘numerosos livros, srtigos, tses, que o abordam do ponto de vista, psicol6gico, 6 claro, mas também hist6rico, sociol6gico ou poll- fico, # de certa forma um trajeto obrigatério para quem pre- tende contribulr com seu tijolo para a edificagio de um saber sobre a Modernidade, Isso, certamente, no € initll, Bas eria problemas quando esse individualismo se torna, por forea das elrcunsténeias, 0 sésamo explicativo de mumerosos artigos jor- nalisticos, de discursos politicos ou de proposiqées moralstas. Todos eles, sem dar a minima importinela A prudénela ou aos matizes eruditos, difundem um eonjunto de pensamentos con vencionais, e um tanto catastrotistas, sobre o ensimesmamento, sobre o fim dos grandes ideais coletivas ou, compreendido no seu sentido mais amplo, sobre o fim do espago pablico. A partir dai temos um confronto com uma espécie de doxa, que talvex ‘do dure muito tempo, mas que é amplamente admitida e que Pode vir a mascarar ou denegar as novas formas socisis elabo- adas hoje em dia, fi que estas podem apresentar algumas « © Two nae Tastoe ‘expressées bastante visrels e outras perfeltamente subterrineas © aspecto espetacular das primetras serve, além disso, para si- tuflas sob @ rubrica das extravagtnelas inconseqlentes que ‘aparecem regularmente nos perfodos conturbados. O que esti ‘mula a propensio & preguliga que todo doxa possul. ‘Nio tenho a intencéo de abordar frontalmente o problema do individualismo. Vou felar dele, regularmente, a contrario. ‘Sendo o essencial apontar, descrever e analisar as configura ‘ees Foelals que parecem ultrapassélo, A saber, a massa inde: finida, povo sem identidade ou o tribalismo enquanto nebulose de pequenas entidades locals. Trata-se, é claro, de metéforas que pretendem scentuar, sobretudo, 0 aspecto confustonal da ‘socialidade. Sempre a figura emblemética de Dionisio. A titulo e fiee#o, propono fazer “como se” a categoria, que nos servi durante mals de dois séculos para analisar a sociedade, exti- vesse completamente saturada. Costuma dizer-se que, multas ‘yezes a reatidade supera a flegéo, Tentemos, pois, estar & altura aquela, Talver seja nesessirio mostrar, como o fizeram certos omaneistas, que o individuo néo tem mais a substancialidade ‘que, de modo geral, Ihe haviam creditado os fiésofos, a partir do Tluminismo. Trata-se, 6 claro, de um a priori. Em todo cas0, este o caminho que vamos seguir, elucidando-o com algumas notes, observagGes ou casos, que mesmo impertinentes, no serko de todo infundados, © teatro de Beckett nos indica 0 eaminno, destruindo ‘dusio de um individuo senhor de st mesmo e de sua historia Do maneira extramodo, e um tanto ou quanto premon'téria fle sponte a contingénela, o aspecto-efémero de todo indivl- dustismo, sublinhando, igualmente, a facticidade do processo ide individuagio e o fato de que ele conduz a um encarcera- mento. O individualismo & um bunker obsoleto, ¢ como tal me: rece ser abandonads. Bis 0 que Beckett nos invtiga a fazer. Posicia a que nio falta originalidade legitimadora no consenso de -rét-i-penser moderno. Posigéo que deve ter escapado a Inviserra de seus aedlitos, mas que esta em perfelta congruén- cia com a antiga sabedoria, que faz de cada individuo o simples “punetum” de uma eadela ininterrupta ou, ainda, que Ibe atri- A Comempine Exociomst 8 bul uma multiplic'dade de facstas, que fazem de cada qual um rmleroeotmo, cristalizagdo © expresido do macrocosmo geral. Re- ‘onhecemos aqui a Idéia da “persona”, da mascara que pode ‘er mutivel @ que we integra sobretudo numa varledade de cenas, de situagdes que sb valem porque represen cera, porque representadas em ‘A multiplic'dade do eu e a ambigncia comunitéria que els Induz serviré de’pano de fundo & nossa reflex. Propus cha- mila de “paradigma estético” no sentido de vitenclar ou de sentir em comum. Com efeito, enquanto a logica individualista se apbia numa identidade separada e fechada sobre s1 mesma, 1 pessoa (persona) 36 existe na relagio com o outro, Fazendo ‘ sociotogia de slguns autores modernos (Faulkner, T. Mann), Gibert Durand fala, a propésito, de uma “poténe'a de impes. soaldade* que ndo permite existir sendo no “espltito dos cutros".’ Tal perspectiva nos obriga a superar a dleotomia cléssica entre sujelto e objeto que fundamenta toda a filosot'a Durguesa, A énfase Incide, ento, muita-mais sobre 0 que une o quo sobre o que separa. Nao se trata mals da hictérla que construo, contratualmente astociado a outros individuos racio- ya's, mas de um mito do qual participo. Podem existir herbi santos, figuras emblematicas, mas eles rio, de certa maneira, ‘ipos-ideais, “formas” vasias, matrizes que permitem a qual- quer um reconhecer-se e comungar com os outros, Dionisio, D. Juan, o santo eristdo ou 0 heré! grego, poderfamos desfiar Infinitemente as figuras mitieas, 08 tipos socia's que permitem uma estética comum e que server de recepticulo a-expresséo do “nds”. A multiplicidade, em tal ou qual emblems, favorece Infalivelmente a emergéncia de um forte sentimento eoletivo Fol o que pereebeu P. Brown enquanto anallsava 0 culto dos santos no Antiguidade tardia.* Esse culto, erlando uma eadeia {de internsedérios, permite chegar a Deus, A “persona” resplan- (Asecnte estas nodosidades especies, que alo 08 santas, ex ‘elementos que constituem a deidade ¢ 0 coletivo eclesial The serve de vetor, a 1 (0 Tenro os Tes08 nae pode ser apd aon nose propinos on eae aio soll toh corps sat de Uh meme ot que oe recnbsce em tl ob quel Ueno sre Sa, ours glam ser “rj histones qu Open tel ez al ov Gal gb ei, at naan to poole erin wa mensage, cup contesco eer Greio seguir Uns © ous permantlam ent sme atas‘e nacre, us Propunam um fm st fend. Bo steer 0 Ho ie tm uma ene tte agrepnso. He 6 uth poo “eontinente. Exprine te Gat sum momento deieinada. Bisa ference Golve pu eater entre ov Pevodos abstain, rina 2 Tr "rpacor”Aqueles se spam no pein de Tatung, de epeag, cle plo contro, 80 dominados wi itatereneasc, pen "perdcrse” om wh sujet. coe Sue enamel de netalms) Tnmeresexemplos da nowa vids quotdana podem ts tear amblésele smodinal gue ena 9 deseyolnmenta tribal Alem dis, pfemor notar que ess exepon nfo antes uses porte pasar urbana eras atenctan “pene "ke, pentnart, qe expe To Sem uniformidade a conoclgage dos grup sto amo Sus ais pong dept prmaere ge ses conenporinea oferecan. A tendénca & orienta rch extn, que we obgrva nar lddes cient presenta semelhangae com sie gue for Augustin Braue Ge relages de “Simpatia” ene oe © obo, no Japle Tragildae da dsting, As vte ina Instn ene eu € ovouto ene rela eo objeto ot slgo qe be presi 8 teen Alin da extensliade doe ("an 99 Falabio © urn) pode ter umaalavenca metalic da mals er mente pra e omprensto do mado contemporine-* Nao Wale e pons iembrar‘ fina ge Jap ete Mo} em Sin, nem meso fuer refernsa & a perlormatvided exo aun oo tenga, para sublinbar 0 ato de i, ad Urata tae, um hog que se alia 8 Modernidad, por outro Indo ein @ totalmente inadequada para deserever as formas de agregneio sociat que vém luz. Estas tém contornos Indefinidos, 0 sexo, a aparéncia, os modos de vids, até mesmo 1 ideologia so cada vez mais quallfieados em termos (“trans." meta...") que ultrapassam a l6gien identtéria e/ou bindria Em resuio, e dando a esses termos & sua acepedo mals estrita podee dizer’ que assistimos tendencialmente & substitu'gao de um um seid! racionalzado por uma socalidade com domi- rants empética ss val exprtn'se numa suce‘sio de ambiéneas, de sen- timentos, de emogies, # interessante notar, por exempo, que aquilo a’ que se tefere « nocio de "Stimmung” (atmosteta) propria do romantismo alemfo, serve cada vez mai, ora pars Aeserever as relagées que imperam no interior doe microgrupoe soc'ais, ora para especifiear como estes grupos se situam 0s seus eontornos espaciais (eclogia, habitat, bairro). Da mesma forma uti'zagéo constante do termo Inglés “feting” no quadro das relagées interpessonis merece atengio. Servirh de eritrio para medir a qualidade das trocas, para decidir sobre © seu prosseguimento ou sobre seu grau de aprofundameato, Ora, ‘© nos referimos a um modelo dé organteagfo racionl, © que existe de mais instavel do que o sentimento? De fato, parece necessivlo mudar as nossas manelras de svalar os reagrupamentos socials. Deste ponto de vista pode- ‘mos utilizar, vantajosamente, a anilite sbelo‘histéra que M. Weber taz da “comunidade emacional” (Gemeinde). Ble esc rece que se trata de uma “categoria”, quer dae, algo que nunea exist de verdad, mas que pote servis como revelador de ltua- hes presenies. AS grandes caracteristleas atribuidas a esses comunidades emscionals sio: o aspecto eftmero, a “composigaa camb‘ante”, a inserigfo local, “a austneia de uma organizagio” © a esirutura quotidlana (Veraltagtcnung). Weber mostra também como, sob titulos diferentes, esses reagrupamentot encontram-se em todas as religiées, ¢, geralmente, d parte dor carijecimentos instiue‘onais.+ A eterna hlstéria do ovo © de fllnha. # dito estabelecer uma anteroridade, mas resalta 1 (0 Tero ots Twos de sua andlise que a ligagio entre a emocio partiIhada © a comunallzagio aberta é que suscita essa multiplicidade de grupos, que chegam a consttuir uma forma de laco social, no fim das contas, bem s6lido. Trata-se de uma modulagio perms- rnente, que, tal como flo condutor, percorre todo © corpo social Permantns a e instabilidade serio os dois pélos em torno dos ‘quals se articularé 0 emocional. : conveniente eaclarecer, desde o inicio, que a emovto da qual se trata. nio pode eer assimilada a um “pathos” qualquer. Parece-me equivocado interpretar os valores dionisiacos, aos (quals esta temétiea remete, como sendo manifestagées tit'mas > ativismo coletivo proprio do burguesismo, Primeiro foi ‘marcha eomum para o espirito, depois o dominio orquestrado dda natureza e do desenvolvimento teenolégico, finalmente, 2 Instrumentagéo coordenada dos afetos socials. Esta perspectiva, 6 excetsivamente teleol6giea ou dialética. Certamente algumas reallzagdes, como este paradigma que 6 0 Club Méditerranée, rmilitam neste sentido, Mas nossa andl'se deve estar atenta 20 fat de que aquilo que predomina, macicamente, na altitude ferupal, €0 dispéndio, 0 acaso, a desindividualizaglo, 0 que no permite ver na comunidade emocionsl uma etapa nova da pa- tétiea e linear marcha histriea da humanidade, Virias con ‘versas com o filésofo italiano Mario Perniola chamaram minha atengio para este ponto.* E, protongando seus trabalhos, s0b ‘um ponto de vista soc‘ol6gico, direl que a estétiea do “nds” & ‘um misto de indiferenga e de energia pontual. Paradoraimente fencontra-se ai um singular desprezo por toda atitude projetiva ‘uma inegavel intensidade na propria ago. & isso que caracte- riza a poténe!a impessoal da proxemia. ‘A sua maneira, Durkheim no deixou de sublinhar ese fato, E se, como de hibito, permanece prudente, nem por isso deixa de falar da “natureaa social dos sentimentas” e enfatizar ‘sua efickeia, “Indignamo-nos em eomum” escreve, ¢ sua des- crigéo remete & proximidade do balrro e & sua misteriosa “forga {de atragéo” que faz com que alguma coisa tome corpo. # neste quadzo que se exprime © paixio, que as crengss comuns si0 elaboradas, ou, simplesmemte, que <¢ procura a compan ““daqueles que pensam e que dentem como nés”.* Estas notas, bastante banais, dir-se-la, podem apl'car-se a multiplos objetos Blas sublinham, prineipaimente, o aspecto insuperdvel do subs- trato quotidiano, Ble cerze de matrie, a partir da qual se eris- talizam todas as representagées. Trocas de sentimentos, eustGes de botequim, crencas populares, virGes de mundo € futres tagarelices sem consisténcia que constituem ® solider a eomunidade do destino. Pois, ao contrérlo do que, até hoje, era de bom tom admitir, podemos eoncordar que a razio tem ‘muito poueo a ver com a elaboracio e a divulgacio das opinives ‘A difusio destas, tanto entre os primelros eristios quanto entre 05 soclalistan do século XIX, se deve multo ma's eos mecanis- ‘mos de contig’ do sentimento, ou da emogio, vividos em comum. Seja no quadro das redes das pequenas eélulas con- iviais ou pela étiea do eabaré, ao gosto das frequentadores, 1 emoyio eoletiva é algo encarnado, algo que Joga com 0 con: Junto as facctas daqullo que 0 séblo Montaigne chamou yhommerte”: esse mito de grandezas e de intimins, de idélas senerosas e de pensamentos mesqu'nhos, de ideallsmo e de arra'gamento mundano, em Suma, 0 homem. Podeias deduzir que é lsso que assegura uma (forma de solldarledade, de continuidade através das hist6rlas humensa) Fale! acima ‘em comunidade de destino, Esta pode, as veres, exprim'r-se através do quadro de um projeto racional ¢/ou po: Itico. As vezes, pode tomar, a9 contrério, o eaminho mals elicado € menos detinido da sentibilidade eoletiva. Neste caso 4 tintea reel sobre o aspecto confusional da pequeno grupo, Este, coneatenando-te com outros grupos, assegura a perdu: Finela da espécle. No primeiro caso, puodus-se © que Halbwachs chama de “visio de fora” que 6 a histéria; no segundo caso, Pelo contrério, se elabora, “vista de dentro", uma meméria co. Tetiva,* Prosseguindo com o paradoxo, esta meméria coletiva, por lum lado, est ligada ao espago préximo, por outro tado, trans cende 0 préprio grupo e o situa numa “linhagem” que ge pode compreender, seja stricto sensu, seja numa perspectiva imag = (© Tero nis Tasos ntia, De toda maneira, sob qualquer denominagéo que se Ihe ‘db ( emogio, sentimento, mitologia, ideologia) 1 sensibilidade coletiva, ultrapassando a atomizacéo individual, suscita as con figdes de possibil'dade para uma espécie de “awa” que val pertieulartzar tal ou qual época: comb a aura teoldgica na Tdade Média, a aura politica no séeulo XVII, ou a aura progressista, no século XIX. # possivel quo se assista agora, & eaboracio de ums cura estética onde se reencontrario, em proporgses diversas, 05 elementos que remelem & pulsio comunttéria, & propensio mistica ou & perspectiva ecolégiea. O que quer que possa parecer, existe uma ligagio slida entre esses diversos termos. Cada um, & sua maneira, di conta da organicidade das coisas, deste “glutinum mundi” que fax com que apesar da (ot or eausa da) diversidade um conjunto constitua um corpo. ‘Basa solidariedade orginiea se expressa de mil maneiras fe, certamente, € neste sentido que devemos interpretar 0 res- surgimento do ocultismo, dos cultos sincretistas e, mais part ccularmente, a importinela conferida ao esplritualismo ou astrolog'a, Reta altima, em particular, nfo pode mals ser con- ‘iderada um astunto de mocinhas sonhadoras, B algumas pes- ‘Quisas em curso fazem ressaltar sua dupla inscrigio cultural @ natural. A propésito, Gilbert Durand demonstra muito bem que a astrologia, centrada no individuo, é de origem recente, fe que a astrologia cléssica tere "como objetivo primeiro o des- tino do grupo, da cidade terrestro”.* A astrologia se insereve ‘numa perspectiva ecolégica represontada elas “ensas” que predispdem cada um a viver num amblente natural e social Sem entrar a fundo nessa questo, podemos enfatizar que ela participa da aura estética (aisthesisa que se apéia na uniéo, finda que pontilhada do macrocosmo ¢ dos microoosmos, e dos ‘microcosmas entre sl O que se pode extratr desse exemplo, bern como dos que Ihe sio préximos, & que servem de reveladores, 4o clima “holista” que sustenta 6 ressurgimento do rolidarismo fou da organicidade de todas as colsas Desca maneira, ao contririo da conotagéo que se the atribut trequentemente, a emocio ou a sensibilidade devem, de algum ‘moda, er conslderadas como um misto de objetividade e de sub- A Cowwinine Ewocion a Jetividade. Na minha reflexio sobre “a questio da proxemia” (et ‘cap. VI), propus chamé-la de espicitualidade materlalista. Ex- pressio meio gética que se confunde com aquilo que A. Berqué ' propésito da eficécia do meio, chama de relagéo “trajetiva’ (subjetive e objetiva). Com efelto,esté na hora de observar que 1 Idgiea binéria da separagéo que prevalecea em todos 0s do- ‘minios nfo pode mais ser aplicada de maneira estrita, Alma ‘© corpo, espirito e matéria, o imaginrio e a economia, a ideo- login e a producéo — a lista poderla ser muito long — no se optem de msneira radical. Na verdade, essas entidades, © a minisculas situagGes coneretas que elas ‘epresentam; s¢ con- Jugam para produzir uma vida quotidiana que, cada ver mais, ‘escapa & texinom'a simpliticadora & qual haviamos sido habi tuados por um certo positivismo reducionista, Sua sinergia produs esta sociedade complexa que, por sua ver, merece uma anilise complexa. “O multidimensional ¢ o inseparével”, para retomnar uma expressio de Morin, nos introduz numa “espiral” ‘sem fim que tornaré obsoleta a trangia e bastante enjoada contabilidade dos buroeratas do saber. Em fungio de precaupSes e de elucidagées, podemos atribuir ‘& metéfora da sensibitidade ou da emopio coletiva, uma fungi e conhecimento, Trata-ce de uma alavanca metodolégica que ‘hos introduz no cerne da organicidade caracteristica das elda- es contemporineas. Daf este apélogo: “Imagina’, por um ins- ‘ante, que o Padre Eterno queira levar com ele para o eéu uma casa de Népoles, Para seu desumbramento ele pereeberia, pouco ‘© pouco, que todas as casas de Népoles, como uma grande gambiarra, viriam atrés da primeira, uma apés outra, casas, varais de roupa, cangSea de mulheres e gritos de eriangas." ‘® essa a emogio que cimenta um conjunto. Este pode set com- ‘po:to por uma pluralidade de elementos, mas tem sempre uma, ambiéneia especifiea que os torna soliddrios uns com os outs. Essa experiencia 6 vivida, inicialmente, como tal, e € conve- ‘lente que o eruaito saiba dar conta dlsto, Resumindo, pode- ‘mos dizer que aquilo que caracteriza a estétlea do sentimento ‘do é de modo algum uma experitncia individualista ou “inte- 2 (0 traro ans Tce ioe", antes pelo contririo, & uma outra coisa que, na sus csséncla, é abertura para os outros, para o Outro, Essa abertura eonota o espago, 0 locel, a proxemia onde se representa o des- tino comum, & o que permite estabelecer um lago estreito entre ‘a matriz ou aura estética © a experiénetn ética. 2. A experitncia ética ‘34 disse, falando de tmorallsmo ético, que esse termo nada tem a ver com um moralismo qualquer, tdo em voga nos tempos que correm. Depois voltarel a essa questo. Entretanto, numa palavra, quero eéclareeer que, a uma moral imposta e abstrata ppretendo oper uma étiea que se origina num grupo determi- nado, que é, fundamentalmente, empitica (Einfithlung), pro- xémica. A histéria pode dignificar uma moral (uma politica); ‘0 espago, por tua ver, val favorecer uma estética e produzir uma ética. ‘vimos que a comunidade emocionsl 6 instivel, aberta, 0 ‘que pode torné-la, sob multos aspectos, anémica com relagéo {A moral estabeleeida. Ao mesmo tempo ela nio deixa de suscitar meio", & qual & muito dificil escapar. Conhecemos os aspectos extremos dela: a méfia, as associagGes de ladrdes. Mas, com freqiéneia, esquecemos que no meio dos negécios Impera ums conformidade cemelhante, Da mesma forma no meio intelectual, poderiamos multiplicar os exemplos & vontade. # verdade que, sendo diferenciado o grau de vinculacéo, nesses diferentes meics, 4 fidelidade as regras do grupo, frequentemente néo-ditas, esta sujelta a milltiplas variagSes. #, no entanto, dificil ignoré-la por completo. Seja como for, de maneira no normativa, 6 importante avaliar seus efeitos, seu carter marcante ¢, talv sua dimensio prospectiva. Com efelto, a partir da doxa inai- vidualista, de que }é fale, a persisténcia de um ethos de grupo 6, muitas vezes, considerada um arcaismo em vias de extincio. ‘Mas parece que, ma verdade, esti ocorrendo uma evolugéo. ‘Assim, tanto no que diz respeito aos pequenos grupos produ: ‘A Covowtsaoe EMocIONAL a tuvos, dos quais permanece como simbolo a Silicon Valley, até 0 que se chama “grupismo” dentro da empresa nipbnica, per- ‘eebemos que a tendéncia comunitéria pode caminhar lado a 1ndo com 0 desempenho tecnologico ou econdmico. Fazendo 0 bpalango dos diversos estudos a esse respelto, A. Berque eonstata que “o grupismo difere do gregarismo no fato de que cada ‘membro do grupo, conseientemente ou nio, se esforca, sobre- ‘tudo, para servir ao interesse do grupo ao invés de, simples. mente, procurar reftigio nele”." O termo “grupismo”, ainda que nfo seja especialmente eufOnico, tem o mérito de sublinhar 1 forga deste processo de Identificagio, que possibilita 0 devota- ‘mento gracas ao qual se reforga aquilo que é comum a todos. ‘Talver seja prematuro extrapolar o signitleado de alguns ‘exemplos ainda isolados, ou de uma situagSo particular, como 1 do Japio. Se estes exerplos nfo valem mais, tampouco valem ‘menos do que 0s que privilegiam © nareisismo contemportneo, Que mals nio seja, eles se referem & esfera econdmiea,.fetiche Por exceléncia da ideologia dominante, ao menos agora. Vejo al uma ilustragio a mais do holismo que se esboca sob nosso thos. Forsando as portas da “privacy”, 0 sentimento ganha e&- ‘Pago, ou em certos patses, reforca sua presenca no espaco pt- biico e produz uma forma de solidariedade que nio se pode mats Jgnorar. # necessirlo notar que além do desenvolvimento tec ‘ol6g'co, essa rolidar'edade reinvestiu a forma comunitéria que aereditivamos haver ultrapassado, Podemos nos interrogar sobre a comunidad, sobre s nostal- sla. que Ihe serve de fundamento, ou sobre as utlizagdes politlens que deta foram feitas. De minha parte, repito, tratase de uma ‘forma’ no sentido que del a este termo, que ela tenha exls- ‘ido ou ni, tanto faz. Basta que essa idé'a, como um pano de fundo, permita ressaltar tal ou qual realizaglo social, que pode ser imperfeita, ate mesmo pontual, mas que nem por isso deixa 4 exprimir a cristalizacio particular de sent'mentos comuns. ‘Nessa perspectiva “formista”, a comunldade vai se earacterizat ‘menos for um projeto (pro-fectum), voltado para o futuro, do Que pela efetuagéo “in actu” da pulsio de estar-junto. Ocer- Py (0 Tro ots THs ‘vando expresses da vida quotidiana, tals como dar calor bu ‘mano, eerrar firas, fazer uma corrente pra frente, podemos pensar que talver esteja af o fundamento mais simples da étiea comunitéria, Alguns pslcdlogos destacaram que existe uma ten- Géncla “gliscromorfa” nas relagées humanas. Sem entrar no ‘mérito da questio, parece-me que esta 6 a viscosidade que se fexprime no estar-junto comunitarie. Assim sendo, insisto, para cevitar qualquer desvio moralizante, que, 6 por forga das eireuns- timetas, 6 porque existe proximidade (promiscuidade), & porque existe « partitha de um mesmo terrtério (seja ele real ou sim- Dl), que vemos nascer a idéia comunitéria ea éttea que é © seu corolério. Para invalidar esses termos, dandones uma conotacio passadista, chegou-se a falar de ética de aldeia ou de balrro. Podemos lembrar ainda, que este ideal comun‘térlo € encon- trado também na ideologia populista e, mais tarde, no aner- ‘quismo, cuja bare é exatamente o ajuntamento proxémico. Para of anarquistas, em particular os russos Baktinin e Herzen, fa comunidade aldek (obrotchina ou mir) 6 a propria base do ‘ocialismo em marcha. Complementada pelas associagies de artesios (artels), ela prepara uma civlizagio fundamentada no swlldarismo. ™ O interesse dessa visio romantica ultrapassa a ‘habitual dicotomia propria do burguesismo da época, tanto na ‘sua verséo capitalista, quanto na sua versio marxiste, Com ‘feito, o devir humano & considerado como uum todo. # Isto que {44 a “obrofehina” seu aspecto prospectivo, Notamos ainda que festa forma social pe, com razdo, ser comparada com o fou rlerlsmo e, em particular, com o falanstério. F. Venturi, em seu livro, agora clissieo, sobre o popullame russo no séewlo XIX, {fax essa aprorimagio. E, o que serve multo bem a0 nosso Pro- ‘Pésito, repara ma ligaglo que existe entre essas formas sociais ‘ea busea “de uma moralidade diferente”. Ele o faz com algu- rma retictnela, Para ele, sobretudo no que concerne ao falans- térlo, essa busca faz parte do relno das “extravagincias”."* (© que o digno historiador itallano ndo viu, é que, para slém ‘de sua aparente funcional‘dade, todo conjunto soclal possul um forte componente de sentimentos vividos em comum, So esses que susoitam essa procura de uma “moralidade diferente", que ‘refiro chamar de uma experiéneia ética. Para retomar a oposigio clissiea, pode-se dizer que a socle- dade estd voltada para a histéria futura. A comunldade, por ‘sua ver, esgota sua energia na prépria eriagio (ou, eventual mente, recreacio),* Iss0 6 0 que permite estabelecer um lag entre a ética comunitaria ea solidariedade, Um dos a:pectos particularmente marcante dessa ligagio € o desenvolvimento do ritual. Como sabemos, este no 6, propriamente, teleoligico, isto €,orientado para um f'm, pelo eontrério, ele € repetitive ¢, por Jsso mesmo, dé seguranca, Sua tiniea fungio ¢ reafirmar 0 sen- timento que um dado grupo tem de si mesmo. O exemplo das {estas “corrobori”, mencionado por Durkhelm, é muito esclare- ‘edor neste sentido. O ritual exprime o retorno do mesmo. NO caso através da multipl'cidade dos gestos rotinelzos o quoti- ‘ianos, o ritual lembra & comunidade que ela “é um corpo”. Sema ‘ mecessidade de verbalizar isto, o ritual serve de anamnese & solidariedade e, como indica L. V. Thomas, “impliea na mobiti- tagio da comunidade". Como disia ha poueo, a comunidads “esgota” sua energia na sua propria eriagio. O ritual, na sua repet'tividade € 0 indiclo mais seguro deste esgotamento. Mas, fazendo isto, assegura a perdurancia do grupo. Fol ete para’ oxo que 0 antropéiogo da morte viu muito bem a proposito do ritual funerério que restaura “o ideal eonunitério que recone! lia(ria) © homem com a morte, e com a vida”. Como you explicar adiante, hé momentos em que a comunidade de des- tino ¢ sentida com maior aculdade. Nessas ocasides, por com densagio progressiva, a atencio se volta para aquilo que une. UniGo de certo mado pura, Sem contetida preciso, Un'ao para ‘enfrentar em conjunto, de manelra quace animal, a presenca da morte a presenga em face da morte, A histéria, a politica e 18 moral superam-na no drama (dramein) que evolui em fungao dos problemas que se colocam e os resolve, ou tenta fazé-lo, * © autor far um Jogo de palavras: eréation/rcréation, quer ter, entaporeeriapto/teereagia, (N. da Trad) Ey (0 Tero ota Taos ‘0 Destino, a eatética e a étien, pelo contrério, esgotam-na num trdgico que se apéia sobre o instante eterno e faz brotar, gragas fa 1ss0, ume solldariedade que Ihe 6 prépria. VViver sua morte quotidiana poder ser o resultado de um sentimento coletivo que ocupa um lugar privilegiado na vida social, # essa sensiilidade comum que favorece um ethos cen- trado na proximidade. sco significa, singelamente, uma, mane ra de ser alternativa, tanto no que diz respeito & producio, quanto & repaxtigio dos bens (econdmicos ou simbit'eos). Em ‘sua andlie das multidées, por vezes suméria, mas sempre rica fem Jampejas de luclder, G. Le Bon observa que “as regras deri- vadas da eqtidade teériea pura nfo poderiam conduzir “as ‘mult'dses", B que, em geral a impressio desempenha neste proceso um papel importante, Isto significa que a propria justiga esta subordinada A experiéncia préxima, que a justica ‘bstrata e tera é relativizada pelo sentimento (seja ele de 6aio fou de amor) vivido num territ6rio dado. Numerosas relatos, {quer falem de carnificinas ou de atos de generosidade,shustram ‘esta afirmagdo geral. © comerciante doutrinariamente racista, protegerd o drabe da esquina, assim como © pequeno.burgués “securitétio” no denuneiaré 0 pequeno vigarista do bairro, © tssim por diante, Néo € 96 a méfia que tem a le! do siléncio. ‘Os policlals que fazer investigagées numa aldela, ou num bairro, sabem muilto bem disso, Ora, 0 denominador comum dessas attudes (que mereceriam um tratamento especitico) € # solt Gariedade oriunda de um sentimento partilhado. ‘Ampliando um pouco 0 territrio, encontramos, ajudados pela m(dia, reagdes similares a nivel da “aldeia global”. Nao é ‘uma let de justign abstrata que favoreco o desenvolvimento dos “resto du coeur”, dos grupos de amigos que se encarregam de esempregados, ou outras manifostagSes caritativas. Podemo> ‘mesmo dizer que, numa perspectiva linear e racional de justicn, cestas manllestagées aio um pouco anacrOnicas, para no d'zer eaclondrias, Artesanais ¢ pontuals, elas nio se prendem 20 ere de tal ou qual problema, Podem na veréade servir de ulbt e representar o papel de curativo numa perna de pau. | Conamton RacetamA ” devemes adimitir que isto funciona e mobiliza as emocées coletivas. Podemos interrogar-nos gobre o significado, ou sobre 1 recuperagio polities, dessas manifestagdes. Podems, igual- mente, © é este o objetivo dessas notas, sublinhar, par um lado (que no se espera ma's, apenas, do Estado avastalador que se encarregue de certos problemas, eujos efeltos sia visiveis © Prd ximos,¢ por outro lado indicar que a sinergia dessa agées, pelo viés da imagem televisiva, pode ter um resultado néo negli- genclével. Num © noutro caso, aquilo que esta mais perto, ot @ realidade longingua, aproximada pela smagem, repereuter {ortemente em cada urn, constituindo assim, uma emogao coe tive, Trata-se de um mecanismo que esté Tonge de ser sectn- @érlo, Reencontra-se aqui a idéia holista (glotal) que or'enta nhossas afirmagées: a sensibilldade eomum que fundamenta. os fexemplos dados, vem do fato de se particlpar de, ow corres- ponder a, no sentido estrito ou talvez mistico destes terms, tum ethos comum. Para formular uma lei socilégica, direl, ‘como um leifmotie, que se privilegia menos aquilo a que cada ‘um vai aderir voluntariemente (perspectiva contratual e me- clea) do que aquilo que 6 emveionalmente comum a todos (perspectiva sensivel e orginiea) Essa é a experiéncin ética que a racionalizagio da existén- cla havia bande, & isto, também, que a renovacio da ordem ‘moral traduz de modo bastante equivocado, pois pretende ra clonalizar © universalizar as reagées ou situagées pontuais, presentando-as como novas @ priori, quando sua forea provém o fato do estarem ligadas @ uma sens'bilidade local. Endo & seno a posteriori que elas se encadeiam num efelto de extra tua giotal, © ideal eomunitério de baitro ow aldsia age mais or eontaminacéo do imaginario coletivo do que por persuasio e uma razio social. Para retomar um termo que fol empre- edo por W. Benjamin em sua reflexio sobre a obra de arte, lrel que estamos na presenca de uma “aura” especifiea, que um movimento de feed-back provémn do corpo social e, de re- torno o determina. © que resumirel da seguinte maneira @ sensibitidade coletiva, originéria da forma estética acaba Por eonstituir uma relagdo ética, ™ © Tewo sus Tame conveniente insistir nesse ponto, mesmo que seJe apenss ppara relativizar os ukasses positivistas que 96 querem ver no Imaginério coletivo um figurante supérfiuo que se pode dis- pensar em tempas de crise. Com efelto, podemas dizer que ele {wma as formas mais versas. As vezes se manifesta de manelra macroseépica e informa os grandes movimentos de massa, a8 diversas eruzadas, revoltas pontuais, ou revolugées polticas € econdm'cas. As vetes, pelo contrario, ele se eristaliza de maneira rmleroscép'ea e val irrigar em profundidade a vida de uma mul- ‘iplieidade de grupas soclais. As vewes, tinalmente, ocorre uma ‘continuldade entre este timo processo (esotérico) e as man- festagies geraig (exotéricas) antes indicadas. Seja como for, trata-se realmente de uma aura, de 6rbita mais ou menos cextensa, que serve de matriz a esia realidade, sempre e novar mente admirével, que 6 a socialidade. 4 dessa perspectiva que devemos apreciar o ethos da comu- n'dade, Aquilo que chamo “aura” evita que nos pronunclemos sobre a gua existéncia ou néo-existéncia: Parece que tudo fun- clona “como se" ela existsse. Nesse sentido podemos compre fender o tipo-ideal da “comunidade emocional” (M. Weber), a categoria “orglistico-extitiea” (K. Mannheim), ou aquilo que chamel de forma dlonisiaca. Cada um desses exemplos & uma ccarleatura, no sentido simples do termo, do sair de si, ex-staze, ‘que esta na légiea do ato social.” Parece que esse “éxtase” & ‘muito mais eflear na medida em que diz respeito aos pequenos ‘grupos, e por isso se torna mals perceptivel para o observador social, para dar conta desse conjunto complexo que proponho ‘usar, como metfors, os termos de “tribo” ou de “tribalismo”. ‘Sem adorné-los, cada ver, de aspas, pretendo insiatir no axpecto “eoesivo” da partia sentimental de valores, de lugares ou de ‘deais que esto, 20 mesmo tempo, absolutamente eircunseritos (ocalismo) e que so encontrados, sob diversas modulagdes, em ‘numerosas experiéncias cociais. # esse vaivém constante entre © estdtico (espacial) e 0 dinkmico (devir), 0 anedético © 0 ‘ontologico, 0 ordinérlo © 0 antropoldgico, que fax da anilise da sensibllidade coletiva um insrumento de primera ordem. Para A Comnsioe Ewoct 2 ltustrar essa observagio eplstemoldglea darel apenas uma exe: plo, 0 do povo judeu, Sem poder, nem querer fazer dele um andlise especifica, € contentando-nos com indici-lo como uma dlzegio de pevqulsa, podemos enfatizar que este povo é partleularmente representa: tivo da antinomia que acabo de apontar. Por um lado, ele vive Intensamente o sentimento coletivo da tribo, 0 que néo o ‘mpe- ‘din, a0 longo dos séeulos, de assegurar a permanéne'a de valo- res gerais e (sem dar a este termo um sentido pejorativo) eat rmopolistas, Religio tribal, que Ihe permite resistir &assimilagio, ‘modos de vida tribals, que, verdadeiramente, fundamentam a comunidade de destino, e, também, sexuslidade tribal que asse- gura a permanéncia, através dae miltiplas earnificinas e veis- situdes de que foi objeto. Circulagio da palavra, clrculagéo dos bens, elreulacio do sexo, af temos trés elxos antropolégicos em torno das qua’s se articula, geralmente, a vida social, No caso, ‘les tém um forte componente tribal. Varios historiadores € sooldloges assinalaram vitalidade, em sniimeros paltes, do “ghetto, do “shetl”, da sinagoga, sua ambignela e sua forte ‘coesio, H, como num reservatér'o de energia, & a partir dostes Tugares que se elabora uma boa parte daquilo que seri a eivill- zapio da cidade na dade Média, da metrépole da Kade Mo- ema e, talvez, da megalépole de mossos dias. Drssa maneira ethos da “Gemeinschaft”, da tribo, pontua regularmente 0 de- vir elvlizac‘onal do ocidente. Tndicio para pesquisa, afirmel, Como j4 disse isto € uma indieacso para a pesquisa, De fato ‘numerasos dominios, intelectual, eeoném‘co, espiritual, foram influenciades, de um modo prespectivo, por aqullo que salu do aldo de cultura emocional das comunidades judi, ‘Nao podemos exorimir de maneira melhor a realizacio desse “universal conereto” que foi um dos principals problemas da filosofia do séeulo XIX. Extrapolando, de mane'ra heuritiea, © exemplo que acaba de ser apresentado, & possivel dizer que, paradoxalmente, slo os valores tribuais que, em certos momen: tos, earacterizam uma época. Com efeito, estes valores podem cristalizar por atacado © que em segulda vai difractar-se no ‘onjunto do eorpo social. O momento tribal pode ser compa rado a0 periodo de gestacio: alguma colia 6 aperfeigada, pro- vada, experimentada, antes de decolar para uma expansio maior. Neste sentido, a vida quotidiana poderia ser, segundo & expressio de W. Benjamin © “concreto mals extremo”. Esta sintese permite compreender que o vivido © a experiencia par- ‘ihada podem ser o fogo depurador do processo alquimico que permite transmutagio. O nada ou o quase nada se tornn ‘uma totalidade. Os rituals mindsculos se inverter até se tor~ rnarem base da socialidade, Multum in parvo. Na verdade, 0 re- siduo 6 to tmportante que é ditfeil prever © que de miniscule se tomar macroscépico. Mas no se trata disto, basta, como eu disse, indlear a “forma” éom que mascem e crescem as valores socias, Podemos, entdo, dizer que a ética ¢, de certa forma, o eimen- to que fari com que dlversos elementos de um conjunto dado formem um todo. Mas, se fol bem compreend'do 0 que scabo de expliear ¢ preciso dar a este termo, seu centido mais sim- ples. No o sentido umtrteorizagéo qualquer a priori, mas da- aquilo que no dia-a-dia, sorve de cadinho as emocées ¢ aos sen- ‘Vmentos coletivos. Aquilo que faz com que, bem ou mal, uns se ajustem aos outrbs num territrio determinado, e que uns fe outro: se ajustem ao melo natural. Essa acomodagio 6, cer- tamente, relativa, Blaborada na felleldade e no infortinio, or gindria de retacées freqientemente conflltuais, ela 6 flexive, mas mem por iss0 deixa de apresentar uma longevidade espan- tosa Hla €, na verdade, expressio mals caracteristica do querersiver social, Torna-se necessério, portanto, falar um pouco mais sobre algumas manitestacdes dessa ética corriqueira, porque, como expressio da sensibllidade coletiva, ela nos Intro- dduz, @ pleno vapor, na vida dessas tribos que, na_massa, constiiuem a soviedade contemporinea, 3. 0 costume De Aristbteles a Mauss, patsando por Tomas de Aquino, & longa a lista dos que se interrogaram sobre a importancia do “nebitus” (“erie”). Trata-se de um termo que, atualmente, esté | Cosine Buocionse a ‘ansposto para » doxa sociotégiea, * Isto & étime, pois, contl- ura uma temitica de imporlancia fundamental” Remete a0 ‘onal, & vida de todos 0s dias, em uma palavra, ao costume, ‘que segundo G. Simmel € “uma das formas mais tipieas da vida social”, Quando sabemos a Importaneia que este sltimo 46 & “forma”, que eficéela cle Ihe confere, podemos imaginar ‘que nfo se trata de uma palavra vi, Um poueo mais adiante ‘le esclarece: “o costume determina a vida social como o faria uma poténeia fdral."* Somos, entdo, remetidos a uma acio Pertinay que re inscreve profundamente nos seres @ nas coisas & maneira pela qual eles aparecem, Trata-se quase de um eédig tleo que limita © delimita a mancira da estar com os ‘uttos muito mais do que poderia tazélo a situacko econd- ‘lea ow politica. # neste sentido que, depois da estética (0 sentir em comumn), ¢ da étice (0 taco coletivo), 0 costume &, seguramente, uma bon maneira de caracterizar a vida quot diana dos grupo eontempordineos um sentido mais puro As palavras da tribo". Face 'st2 preocupagdo de Mallarmé e, como os outros “mint conoeitas” empregados antes, pretendo dar & palavra costume sua acepeio mais ampla, a mals préxima também de sua etl: mologia (consuetudo): 9 eonjunto dos usos comuns que per: icm a um conjunto social reconhecer-se coma agullo que ta-se de um ago misterioso, que nio é formalizado e ver- batizado, como ‘al, sendo acessérla e raramente (os tratadas de iquots on de tors-maneiras, por exemplo). Nao é menos certo que ele trabatha, que cle “agita” profundamente, toda a soele dade, © costume, nes-e sentido, 6 o ndo-dito, 0 “resduo™ que ‘undamenta © estar-junto, Propus ehamar isto de centralidade subterrdnea ou “poténela” social em oposigio a poder. Bsta idéia meneontra-se em Gotiman (A vida subterrdnea) e, mals adlante, em Halbwachs (a Sveiedade silenciosa). * O que essas expre‘sies pretendem sublinhar, € que hi uma boa parte da fexisténcia social que escapa a ordem da racionalidade instru- ‘mental, A esta racionalidade no se pode atribuir um fim nem se pode reduzi-a a uma simples légiea da dominagio. A dupli- celdade, o ardil,o querer-viver, se exprimem através de uma mul tiplieidade de rituals, de situagdes, de gestuals, de experiénc'as, que delimitam um espaco de Vberdade. Por notar demais a ida allenada, por querer demais uma existincia perfeita ou fauténties, eostuma-se esquecer, de mancira obstinada, que ‘quotidianidade se fundamenta numa série de liberdades inters- ticiais¢ relativas. Da mesma manelra como se reconhecet para ‘a economia, pode-se concordar com o fato de que existe uma ociedade em negative, da qual é fell seguir as pegadas nas suas diversas e minisculas manifestagées. ‘Fago minha a coloeagéo de Durkhelm e de sua escola que sempre. privilegiaram a sacralizagio das relagdes. socials. De ‘minha parte, tenho dito em varias ocasiGes, © vou repeti-lo sempre: eonsidero todo eonjunto dado, desde © microgrupo até ‘ estruturagio estatal, como uma expressio do divino social, de ‘uma transsendéncla especifica, ainda que imanente. Sabemos, rho entanto, e numeroras historiadores das religiGes o mostra ram bem, que 0 sagrado é misterioso, assustador, inquletante, fe que € necessivio cativé-lo © negoc'ar com ele. Os costumes tém esra funcio. Eles so para a vida quotidiana aquilo que fo ritual 6 para a vida religiosa stricto sensu Além disso, 6 importante observar que, partlcularmente, na religiio popular muito dificil fazer uma separagio entre costumes ¢ rituals canonicamente estabelecidos, 0 que, aliés, tem sido a tarefa constante da hlerarquia ecleséstiea. Podemos dizer, entéo, que dda mesma maneira que o ritual litdrgico torna a igreja visivel, © costume faz uma comunidade existir como tal. Por outro lado, ‘num momento em que a separacio nio esta totalmente nftid se podemos acreditar em P. Brown, trocando as reliqu'as, na forma do costume, que as diversas igrejas locals irio constitulr- ‘se como rede, Essas reliquias server de elmento no interior de uma pequena comunidade, Elas permitem que as comunidades se unam e assim transformem “a disténcia com relagéo a0 sa- {grado em profunda alegria de proximidade”.* ‘Toda organizagéo in statu nascendi 6 algo de fascinante para 0 socl6logo. As relagées interindividuais ainda nio esto fixadas, e as estruturas socials ainda tém a flexibilidade da A Comemsine Ewoctome 2 Jjuventude, Ao mesmo tempo, ¢ importante encontrar pontos de ‘comparacéo para poder formalizar aquilo que se observa. Veja: se, 8 propésito, a endlise do historiador da civilizagio erista 1 partir dos mlerogrupos locais. Ainda que a titulo de hipétese de trabatko, certamente 6 possivel aplicar o processo duplo de ‘elianca” soclal © de negociagdo com o sagrado, que ocorria nes primetras comunidades cristés, as diversas tribos, ques fagem e se destazem in pracsenti, Sob mals de uum aspecto a ‘vmelhanca 6 esclarecedora: organizacio, reuniéo em torno de ‘um herét epdnimo, papel da imagem,” sensiblidade comum ete... mas 0 que fundamenta o conjunto & a inserigSo local, 1 espacializacéo e os mecanismos de solidariedade que sio rex, corolirio. Isto, aliés, é 0 que chamel actma de sacralizagio das relacdes socials: 0 mecanismo complexo das dédivas e contra- ~tdivas que se estabelece entre as diversas pessoas, por tm lado, e entre 0 conjunto assim constituldo e um melo dado, por outro, Se as trocas sio “reais” ou slo troeas simbélicas Isso tem pouea importanela, na verdade, a comunicagdo, no sew sentido mais amplo, utiliza caminhos o¢ mais diversos. © termo “proxemia”, proposto pela Escola de Palo Alto, rrareee dar conta, perfeltamente, dos dois elementos, 0 natural 0 cultural, dessa comunicacdo. A. Berque, por sua vez, sublinha © aspect “trajetivo” (objetivo e subjetivo) de uma tal relagéo. ‘Talvea fosse necessarlo, simplesmente, recorrer A antiga nogdo ‘espacial de bairro © & sua conotagio afetiva.™ Termo em de- sus0, mas que ressurge hoje em dia, sob a pena de diversos ‘observadores soc‘as, sinal de que ele J6 existe em vrias eabe- (28. Ese “bairro” pode assum'r matizes bem diversos. Ele pode, elim'tado por um conjunto de ruas ,designar uma area libi- ddinalmente investida (bairro “quente”, do “viclo", ete), fazer referéne'a & um conjunto comercial ow a um ponto nodal dos ‘transportes coletivos, isso pouco importa, Na verdade trata-se ‘de um espaco piiblico que conjuga uma certa funcionalidade com uma inegével carga simbélica. Inscrevende-se protunda- mente no imaginario coletivo, ele 6, entzetanto, constitufdo pelo ‘entrecruzamento de situagées de momentos, de espagos © de ™ (0 Tauro os Taos gente comum, e, por outro lado, no mais das vezes, ele é falado través dos esterestipos mais banais. A square, a rua, a taba carla da esquina, o lomaleio, ete. Af esto, conforme 0s centros de Interesse ou de necessidade, outras tantas pontuagoes tr vials da scelalidade, Entretanto, é esta pontuagio que suscita fs aura especitiea de tal ou qual bairro. B 6 de propésito que femprego este termo, na medida em que ele traduz muito bem ‘© movimento complexo da atmostera que emana dos lugares, ‘as atividades, e que lhes confere em retorno, uma coloracio fe um odor patticulares, Talvez seja essa espiritualidade mate- Tialiste, de que E. Morin fala poeticamente a propésito de certo bairro de New York, que destila talento, ainda que apoiado rna “auséneia de talento dos individeos’. & estende este talento a e'dade inteira, que se torna obra-prima, ao passo que “as vidas ‘io lamentéreis”. Portia, prossegue ele, “... se voct se delxa ossulr pela cidade, 9° voo8 se agarra aos fluxos de energia, se as forgas da morte que estio af para tritur voet, The despertam a vontade de viver, entdo New York pslcodeliza voce? ‘Bysn metifora exprime perfeltamente 0 vaivém constan- ‘te entre o esterestipo consuetudinér’o e 0 arquétipo.fundador [A meu ver, & esse processo de constante reversibilidade que Gilbert Durand chama de “trajeto antropol6gico”. No caso 8 estreita conenio que existe entre as grandes obras da cultura, fe aquela “cultura” vivida no dia-a-dia, constitu! o cimento ‘essenelal de toda vida societal. Rssa “cultura” causa de grande fadmiragio para multos, 6 feita do conjunto desses pequenos “nadas” que, por sedimentagio, constituem um sistema s'gnift- ante, © impossivel apresentar uma lista exaustiva deles, mss essa lista constituiria um programa de pesquisa dos mais per tinentes para a atualldade, Ela pode ir do fato culinario ao ims- ginario do eletrodoméstico, sem esquecer a publicidade, o tris: ‘mo de massa, 0 ressurgimento ¢ a multiplicacio das ocasioe festivas™ Bem se vé que sio coisas que dio conta de uma sen: stilidade coletiva, sem muito que ver com a dominineis eco: ‘émico-politica que caracterizou a Modernidade, Essa. sens biidade néo mais se insereve numa raclonalicade orkentada € ‘eleolégicn (a Zweckrationatitét webertana), mas & vivida ‘no presente, e se insereve num espago dado, hic et mune. & assim sendo, fez cultura no quotidiano, Permite a emergincia de valo- res verdadelros, ts vezes surpreendentes ou chocantes, mas que exprescam uma dindmica inegével (que talvez. seja neoeasitic aproximar do que M. Weber chama Wertrationaliti) 2 compreensio do costume como fato cultural que pode ermitir uma apreciagao da vitalidade das tribos metropolita- nas. & delas que emana esta “aura” (a cultura informal) na qual, volens nolens, estamos todos Imers0s, Numerotos sio 0: ‘exemplos que poderiamos dar neste sentido. & todos tein, como denominador comum, o fato de remeter & proxemla. Como, no sentido mais simples do termo, essas redes de amieade, que nao ‘tém outta fnalidade sendo reunir com- preender tudo que ultrapassa o horizonte politico. Para 0 pro- fagonista das ciénelas socials, © povo ou massa sio objeto © dominio reservados, E o que Ihe confere sua raxio de ser © sue justifleagio, Mas, ao mesmo tempo, sio assunto delicado ddemais para felar dele com serenidade. Pululam os @ priort ddogméticos ¢ os lugares-comuns do pensamento que, em fungio de uma l6giea do “ever ser”, vio tentar fazer do populacho ‘um "sujeito da histéria” ou qualquer outra entldade recomen- ‘avel e elvlizada. E do desprezo & idealizacio abstrata 6 um ilo, tas csse movimento no 6 irreversivel. Se o suje'to no se revela um “bom” sujeto, retoms-se & apreciagio inicial. Ai fst uma soclologia que “sé pode reconhecer um social cons tontemente reduzido & ordem do Estado”. * De fato, © popular na sua amblgildade © monstruosidade, 56 pode eer coneebido pejorativamente pelo intelectual politico, (que avalia tudo & luz do projeto (projectum), Na meihor ds hipétese esse popular (pensamento, religifo, manelra de sex) ser considerado como signo de uma impo:éneia de ser outra coisa, 0 que 6 necessério corrigi.* Na yerdade poderiamas tentar aplear a nés mesmos essa eitien, ever se 0 que n08 carac- ‘teriaa ndo 6 exatamente essa impoténgla de compreender @ outra coisa que é 0 povo! Massa informe, ao mesmo tempo popularesca © ideal'sta, generosa e mesquinha, em resumo, uma mistura pa- radoxal que, como todas as co!sas vivas, se baseia na tensio do ‘que é contraditério. Nao poderfamos tomar tal ambigidade por faquilo que ela realmente 6? A massa um tanto caétiea, inde- terminada, que de maneira quase-intencional tem como’ unico “projetO perdurar no ser. O que, levando em consideragio a Imposigdo natural ¢ social, nfo & nada, ‘Vamas inverter @ nossa visio. Poderiamos dizer, paratra- seando Maquiavel, que é preciso levar em consideracdo ‘mais © pensamento da praca pibliea do que o do paliclo, Esta preceupacéo nunca se perdeu. Desde of ciniees da antiguidade até 0s populistas do séeulo XIX foi este o assunto de. vérios fMésotos historiadores. Houve até ocasiges em que fol procla mada ® primavia do “ponto de vista da aldela” sobre 0 da Inteltigentzta. + Agora, no entanto, isso se tornow uma urgéneia, pols vivemos mum tempo em que os “aldeias” se multiplicam entro de nossos megalépoles. Nao se trata de um qualquer ‘estado de alma, inten¢io pledoss, ou de mais uma proposigéo sem consisténcia, Tratasse de uma necessidade que corresponde 0 espirito do tempo. Como tal poderiamos resum-la assim: 6 a partir do “local”, do territérlo, da proxemia, que se deter- ‘mina a vida de nossas soriedades. E todas essas coisas se referer, também, a um saber local, ¢ nio mais a uma verdade projetiva e universal, Isto exige, sem divida, que o intelectual saiba “estar” naquilo que desereve. Significa vivenciar-se a si mesmo, por que nio? como um “narodnik modero”,* protagonista © obgervador de um conheclmento ordinério. Mas existe outra conseqtiénela, importantiesima, também: a de fazer ressaltar ‘4 permanéneia do flo-condutor popular que percorre 0 conjunto da vida politiea ¢ social Isso significa, antes de tudo, que a Histér'a ou os grandes acontecimentos politicos resultam principalmente da massa, Nas suas teses sobre a fllosotia da histéria, Walter Benjamin 4 chamou a atengio para esse ponto, A sua maneira, Gustave a (0 Truro mAs Tahoe Le Bon observou que nfo foram os rels que fizeram a noite de Sd0 Bartolomeu ou as Guerras de Religio, como tampouce Robesplerre e Salnt-Just fzeram 0 Terror * Podem existir processas de accleragdo, personalidades que podem ser consl- eradas como vetores necessérios, com toda a certeza existem ceausas objetivas que nio deixam de influir, mas nada disso é suficiente, Sio, apenas, Ingredientes, que, para se reunir, neces: sitam de tuma energia especifica. Essa’ energia pode’ tomar Giversos nomes, como “efervescéncia” (Durkheim) ou “Virti (taquiavel). Nem por isso ela delxa de ser perfeitamen‘e inde- cidivel,e, no entanto, € este “nfo-sel-que” que funciona como fcimento. $6 a posteriori poder-sea dissecar a razio objetiva Ge tal ou qual aglo, que, a partir dai, pareceré bastante fra, demasiado previsivel, absolutamente inelutével, quando se sabe, nna verdade, que ela’ depende antes de tudo de uma massa ‘acalorada tanto no sentido préprio quanto no sentido figurado. Prova. disso € a espléndida descrigdo que E, Canetti faz do Iineéndio do palécio de justia de Viena, quando foram absel- vidos os policils assassinos de operdrlos. “Quarenta ¢ seis anos se passaram, e a emogio deste dia, eu a sinto alnda até a modula. A partir dal eu sol que ndo me seria necessério Jer ner uma pelavra sobre o que se passou quando da tomada da Bas- filha, Tomet-me parte de masa, confundi-me neta; néo sentia fa menor resisténcla contra aquilo que cla empreendia” Pode-se ver muito bem como no calor de uma emogao comum se solda um bloco compacta e sélido; todo mundo * se funde ‘num conjunto que tem sua propria autonomia e sua dinimlea specifica, ‘Neste sentido hé mltiplos exemplos, que podem ser mats paroxistices ou mals anédinos, porém, em contrapartida 0 que todos eles sublinham & que existe, strictu sensu, uma expe riénela “ex-tatlea” que fundamenta esse estar-junto em movi- ‘mento que 6 uma massa revoluclonéria ou politica. Experiéneis Taferincla a um personage teatral que aparece em varias tra- aigges Gramiticas curopéas; na Alemanba @ Jedermann; em Oil Vie Gente aparece na teoga dee arena, ehama-ae Todo Mundo © con twasens com Ninguém. «N, da Trad) ‘que, naturalmente, tem multo pouco que ver com a légica do projeto, Dessa maneira, como quer que possa parecer, a energia fem questéo, causa 0 efelto do simbolismo socletal, pode ser designada como uma espécle de centralidade subterrdnea que se Teencontra constantemente, tanto naa historias de todo ‘mundo, como naquelas que pontuam a vida comum, HG uma fOrmula de K. Mannheim, em Ideologia e utopia, ‘que resume muito bem essa perspectiva: “existe uma fonte de historia intultiva e insplrada quo a propria histéria real mio reflete sendo imperfeltamente”." Perspeetiva mistlea, ou mitica que seja, mas que néo deixa de esclarecer numeros0s aspectos da vida conereta de nossas socledades. Por outro lado a mistica tem uma esséncia mais popular do que se eré. Em todo caso, ‘seu enraizamento, manifestamento, 0 6. Em seu sentido etimo- 1égico ela remete a uma légica de unio, aquilo que une os ‘miciados entre eles, a forma extremada da religiéo (re-igare) Lembremes que pera definir a politica K. Marx dizia que ia era a forma profana da religiio, Assim sendo, dentro de nostos propésites, e forgando um poueo a rao, seria absoluta- mente estilpido dizer que, na oscilagio das histérias humanas, ‘2 ncentuscio da perspectiva misticoreligiosa relatviea o tnves- ttmento politico. Aquela fayorece sobretudo o estar-junto, este privilegia a agdo e a finalizaglo desta agdo. Para ilustrar essa hipétese com um exemplo da moda (mas nada é indtil para ‘@ campreensio do Espirito do tempo), podemos lembrar que © pensamento Zen (Teh’an) € a mistiea taoista, fortemente ‘arreigados ma massa chinesa, ressurgem regularmente, opon- 0.0 sempre as formas instituldas da ideologia © da politica foflelal do Estado chinés. £ 0 fraclonamento do conceito, 2 espontaneldade ¢ a proximidade que eles induzem que thes permite fayorecer a reslsténcia branda ou a revolta ativa entre ‘as massas." Isso tudo para dizer que a mistiea, tal como acabo de reterir, 6 um repositorio popular onde, além do individua- lismo e de seu ativismo projetivo, edo reforgadas uma expe. Hifneia e um imaginérlo colellvos ‘cuja sinergia forma essex Cconjuntos simbdlicos que esto na base, no sentido forte do termo, de toda vida socletal. Isso nfo tem nada a ver com a relaglo tetanlea que une o subjetivismo do intimismo hesitante © 0 objetivismo da conguista econdmico-politica. Os conjuntes simbélleos devem, antes, ser compreenaidas como matrizes onde, fe maneira organiea, 0: diversos elementos do dado mundano ‘ee interpenetram ¢ Se fecundam, suscitando, assim, um vita- smo irreprimivel que merece uma andlise especifica, 2 necessérlo, naturalmente, acrescentar que 0 espaco rell- gio do qual estamos falando nada tem a ver com a manelra habituat de compreender a religifo dentro da tradi¢éo oficial crista. K iso sob dois aspectos esseneiais, Por um lado com referdncia & adequagio que em geral se faz entre religito © interioridade, Por outro, com referéncia & relagdo que em prin cipio 6 estabetecida entre religifo e saloagdo, Estes do's pontos, podem resumir-se na ideologia individualista que estabelece luma relucdo privileginda entre 0 individu e a deldade. De fato ‘a maneira do politeismo grego, podemos imaginar uma concep- co da religizo que antes de tudo insiste na forma de ser/esta “juntos, naquilo que chamel de “transcendéncia imenente utra mancira de designar a energia que cimenta os pequenos {grupos e os comunidades." Perspectiva metaférica, 6 claro, que hos permite apreender camo o reeuo do politico scompanha o desenvolvimento desses pequenos “deuses falantes” (P. Brown), ‘causes ¢ efeltos da multiplicagdo de mumercses tribos contem: poraincas Observemos, também, ainda que de maneira alusiva, que 4 tradicko eristé fo} oficial e doutrinariamente soterioligica € individuatlsta, sua prétiea fopular, pelo contrério, fol eon- vival. Nio ¢ possivel abordar este problema aqui. Basta indicar que, antes de dogmatizar-se como 18, a religiosidade popular — aquela das peregrinagées, dos eultes de santas e outras mil Liplas sormas de superstigdes — foi expressio de socialidade ‘Mais do que ® pureza da doutrina, é 0 viver e o sobreviver juntos ue preccupa as comunidades de base. A Igreja Catéliea néo ‘se oquivocoa quando, de mancira quase-intencional, sempre cevitou ser uma igreja’de puros. Por um lado Tutow contra 29 heresias que deselavam introduzi-a nessa logica (como o dona- smo), por outro lado reservou a “sogregaclo” das presbiteros, do monaquismo e, prinelpalmente, do eremitismo para quem pretendesse seguir e viver os “conselhas evangéliees”. No mais, A soca cows 0 Goaus s ‘mantere firmemente uma dimensio multitudinéria belrando at ‘veres 0 Telaxamento moral ou doutrinal. Seria possivel ler nesta perspectiva a pritien das Indulgtncias que provocou, como sabe- mos, a revolta de Lutero, ou a benevoléncla dos Jesultas de corte que, tio fortemente, chocou Pascal. Podemos aproximar ‘eta perspectiva “multitudingria” da nogio de repositérlo em- pregada acima, pois, ela tora responsdivel um grupo por este ‘depésito sagrado que é a vida coletiva, * Nesse sentido a religifo Popular 6 realmente um conjunto simbélico que permite e fortalece a manutengio do lugar soci ‘Como distragéo vou propor uma primeira “Ie!” s0- clolégica: of diversos modos de agregacoes sociais ndo vvalem senéo na medida em que, ¢ se elas permanecem fem adequagdo com a base popular que thes serviu de suporte, Esta lel € véllda para a igreja, © 0 é, igualmente, para a sua forma profana que é a politica. “Uma igreja no se mantém sem poro” (E, Renan), ¢ as diversas decadéncias que pontuam ‘as lst6rias humanas poderiam ser compreendidas & luz de uma tal adverténela, Desconectar-se da base faz com que as insti tuuigdes se tornem inconsistentes e varias de sentido. Mas, @ contrano, de acordo com a nossa ética, isto indica e sublinhs, com forga, que s¢ a soclalidade pode, pontualmente, estrutu- rar-se em institulgSes ou em determinados movimentos politicos, ‘ot transeende a todos. Retomando uma imagem minera- 1égies, eles ado apenas psoudomorfoses, aninhando-se num> rmatris que hes sobrevive. & essa perdurimeia que nos interessa aqui. Eta expllea, também que o macico desengajamento politico ‘observado em nosscs dias, no significa uma acelerada des- ‘rulgio, sendo, pelo contrério, © indiclo de uma vitalidade renovada, Essa perdurdncla 6 a marca do divine, 0 qual néo ¢ uma entidade formal e exterior. Ao contrério, esté no Amage da reatidade mundana, sendo ao mesmo tempo a sua esséncia © 0 seu futuro, Podemos lembrar, a propésito, a clisscs termi. nologia da sociologia alemé, da oposicdo “Gemeinschaf — Ge- sellschaft” de Ténnles, ou a que prope M. Weber entre “comu-

Você também pode gostar