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1 Bashar encode Glee Sechiepe Universidade Federal Fen e dtr em Antoplogi Soc fala Univedade de So Past £ profane junta do Departamento ‘de Anopioga fede Programs de is Geaduagio em Antoplops da Unierdade Feral Foninene Atlee cers on cronde (Coordenaors do Cur de "spect em Potae ibis desis Cia Siang abla e (Cooder de eran (ef Gran em [Antropol (UR) € ‘onstage Eon Adonis instasona de Contin (NEAT) Ure COMO SE DISCUTE RELIGIAO E POLITICA? CONTROVERSIAS EM TORNO DA “LUTA CONTRA A INTOLERANCIA RELIGIOSA” NO RIO DE JANEIRO INTRODUGAO Pensar as relagdes entre religiio politica representa um grande desafi, que sio considerados comumente como temas que deveriam ficar fora do debate piiblico. Quem nunca cuviu que politica, religido e futebol nao se discutem no Brasil? Certamente, esse dito popular nao condiz com a pritica, jt que todos esto fortemente presentes na sociabilidade € definigio de identidades piblicas. Basta uma olhada ripida nos féruns virtuais contemporineos para verificar {que esses constituem os assuntos mais comentados © que importa ressaltar aqui é que o dito revela uma intengao, que & 0 da evitagio de conflitos, ou seja, thé uma moralidade que deveria orientar os debatese que consagra a explicitagio, de opgdes como algo que representa ‘um risco aos lagos sociais, dificultando a emergéncia de problemas piiblicos. Este é um dado muito importante para pensar como o conflito é representado na sociedade brasileira £ a partir desse aspecto que proporho desenvolver uma discussto acerca de processos de mobilizago em torno dos conflitos relativosa intolerancia teligiosa no Rio de Janeiro, bem como da recente proposta de formulagio e implementagdo de politicas piblicas, no ambito do governo, estadual. 194 1 COMUNCAGAES D0'SER | REUGIES EM CONDO. NIMERDS, OEITS,PESSOAS ‘ANA PAULA MENDES DE MIRANDA’ Portanto, este artigo no pretende abordar a relagdo entre os campos da religido e da politica como mum cenario de oposi¢io radical, que ruitas vezes marca as andlises. Também nao se trata de uma discussio acerca das disputas no campo religioso ro que se refere as religiGes de matriz afro-brasileira e aos cevangilicos. © foco ¢ pensar a religido ‘como um fator que conforma as relagdes entre as pessoas e as instituig6es estatais, especialmente no que se refere as formas de adrainistracao de conflitas, no ambito policial € judicial, ¢ & formulagio de politicas pablicas no plano do governo estadual. Esta perspectiva privilegia pensar como conflites, cuja motivacéo € de natureza religiosa, sio enfrentados por distintas agéncias priblicas que formaimente atestam que o Estado brasileiro é laico. Para este fim, tomo ‘como base casos classficados como de intolerancia religiosa (Miranda, 2010 € 2012), identificados a partir de uma pesquisa etnogrifica desenvolvida desde 2008. ‘A CONSTRUGAO DE UMA AGENDA A PARTIRDAVISIBILIZAGAO DE CONFLITOS: Inicialmente, & preciso. esclarecer que legalmente, no Brasil, nao existe uma tpificagio para _intolerincia religiosa. A legislagdo se refere ao crime de discriminagio, que é inafiangével, conforme estabelece a Lei n? 7.716/89 (conhecida como Lei Cad), que se refere, inicialmente, apenas & discriminagio racial, mas que incorporou outras expressies de preconceitos,a partirda Lei 1n°9.459/97, sob aforma de manifestacies verbais e/ou comportamentais, ou seja, devises pré-concebidas acerca de qualidades fisicas, intelectuais, morais, estéticas ou psiquicas de sujeitos, ou ainda pela perpetragio de agoes discriminatérias que propiciam um tratamento diferencial em fungio de caracteristicas étnicas, raciais, religiosas (Guimaraes, 2004), Embora a existéncia de contflitos envolvendo grupos religiosos de matriz afro-brasileira nao seja um tema novo no Brasil, tomo como referéncia o destaque que a intolerdncia religiosa passou a ‘ocupar na esfera publicanno Riode Janeiro a partir da composigio da Comissio de Combate & Intolerancia’ Religiosa', que se constituiu como um movimento de organizagoes religiosas, inicialmente apenas de matriz. afro-brasileira, de representantes do movimento negro de organizagdes nao governamentais, @ partir de 2008, em reagio a uma série de acontecimentos no Rio de Janeiro, dos quais 0 grupo destaca quatro eventos como exemplares do tipo de contflito existente: 1) @ invasto por traficantes de drogas a barracées, quebrando imagens e ‘ameagando de morte os religiosos que nao se convertessem ao Evangelho no Morro do Dendé,Itha do Governador (RJ) 2) a existencia de comunidades dominadas pelas milicias, cujos “lideres” comecaram a perseguir os religiosos de ‘matriz africana; 3) a invasdo de um terreiro, no bairro do Catete, e sua depredacao por quatro cevangélicos neopentecostais, que foram detidos em flagrante, suscitando grande repercussio na midia devido a prisao do pastor Tupirani, da Igreja Geracao Jesus Cristo, situada no Morro do Pinto, zona portuaria do Rio, e de Afonso Henrique Alves Lobato, que frequenta a mesma igreja, pois os dois haviam colocado na internet (youtube) videos com “ataques” aos pais-de-santo, onde questionavam a legalidade e a legitimidade do Estado € das autoridades policiais e judiciais, fariam a defesa do lema “Biblia sim, Constituigao nao!”, ¢ ironizavam a Lei Ca6, chamada de Lei “Cad, expressio que, na giria carioca, significa mentira. 4) a mae que perdeu, provisoriamente, 4 guarda do fitho cagula porque a juiea entendeu que ela ndo tinha condigdes morais de criar a crianga por ser candomblecista Desde a sua constituigio, a CCIR tem entre seus objetivos estimular as vitimas a apresentar demandas judiciais para 0 reconhecimento de seus dirvitos e organizar manifestagoes piiblicas visando “combater 0 preconceito religioso’, langando mao dos instrumentos legais com vistas a0 cumprimento da Constituigio no que diz respeito& liberdade de credo. Foram noticiados na imprensa vérios ‘ataques* aos templos, 0 que provocou a indignacio e a mobilizagio de candom>lecistase umbandistas,levando- 08a orgenizar uma manifestacao publica nna Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALER)). A Comissio de Combate Intolerincia Religiosa acusou, na época, as Igrejas neopentecostais, em especial, a Igreja Universal do Reino de Deus (TURD), de atentarem contra a liberdade religiosa, ameagarem a democracia e de estarem enterrando a possibilidade de as comunicades de terreiro, estabelecidas nas favelas € comunidades carentes, garantirem o minimo de dignidade em sua pratica religiosa que a Constituigéo Federal thes faculta’. Segundo representantes da Comissio, membros dessas grejas_perseguem, ameayam, agridem e demonizam as. “religides de matriz africana’ e também outras religides A intolerancia religiosa aparece nos Aiscursos dos religiosos que participam da Comissio como anteposta liberdade religiosa, representando um desafio a0 convivio numa sociedade Goneaes dade de Temenos dodo dead, tendo Babine pics ‘staloaorpnizaro Tahiti Rgums oo nc 2000 e segundo ‘Comino de Def dat Reges Afi Brsleas conap, ‘una sedo reid ‘ey semeln, ds ‘erento miesde ‘eno Momo do Aros, a Compe do Lins e ehancira Daponie ‘mc htaogebo, bacon nce mas os Saunas seers. ‘songs Ss 0 temo sngue ets seni tad por representa fra pla qa espentecoraiem i aes ‘ings, 207) cow st oscuTe Reuse € oxinioN ROVERSIA EM TORND O“LUTA CONTRA AINTOLERINGA REL NORD OE JANEIRO 15 5. mada tvidades rela pla CCR produ do Rte Montrados pla Comsio liga no Ride ato, ue ft enteie 4 Comits 2 Dicts Heme ds CONUS em 208 Dupont em nica Salat ci. Dil adeno em 2013 A Deegan de Crnes Racine Delton de Tnlernca de Si alo nica do pa at om une que dds egal discs oo invesiadores, dees cssem fensonument Sexe 206, pared cing do Grupo Ae Represnoe Anise {hu Inoerani(GRADD, terctrnda uti Dele da Cian So 7.4 Palade Gopaatna, lem dea pac de le ¢conbes por seria now feud Semana pr anes Canina hind wma sible para soa ‘cada tulad pra aloxto apasagemdeana 4 tr de Sc 19, Spebton concent ‘pln de fom arista ealeraio do ano Senda progrevmeie ‘Shandon come lea ‘cal, 198 // COMUNICARBES D0 1SER | REUOIDES EM CONEKLO-NUMEROS OREITS, es plural. As formas de manifestagio da intolerincia seriam varidveis, indo de atitudes preconceituosas, passando por ofensas a liberdade de expressio da fé, até as manifestagdes de forga contra ‘minorias religiosas. De todo modo, as -uitas priticas de intolerancia religiosa sio identificadas como demonstragées de falta de respeito as diferencas ¢ as liberdades individuais e que, devido auséncia de conhecimento e de informacio, podem levar a atos de perseguicao religiosa, cujo alvo seria a coletividade. A proposta da Comissio ¢ combater a intolerancia religiosa, relacionando, assim, as suas manifestagoes ao fascismo € aos atos antidemocriticos. Segundo a Comissio, a proposta ndo é a de iniciar uma “guerra santa’, mas lutar pela possibilidade de optar por uma renga, ou optar por nao crer, € néo ser desrespeitado ou perseguido por isso. Assim, faz parte dos debates na Comissio adefesa da liberdade rligiosa associada & liberdade de expressio, como forma de ‘mobilizar mesmo as pessoas que nao sio religiosas: a reivindicagao & pelo “direito de acreditar e de nao a:teditar’ Ressalta-se que na agenda estabelecida pelo grupo “lutar contra a intolerancia” € “defender a liberdade” religiosa sio agoes correspondentes, e nac hé uma distingao clara entre elas no plano do discurso. Porém, durante 0 trabalho de campo foi possivel observar que 0 “combate & infolerincia” se refere a realizacio de atos piblicos que demonstrem que “todas as religides sio uma 36 que devem conviver harmonicamente, € 2 divulgagio da necessidade de realizacio de registros de ocorréncias em delegacias para a proposigao de agbes judiciais. ‘A Comissio tem buscado dar visibilidade as suas demandas’, das quais destaco 0 desejo de construgio de um Plano Nacional de Combate & Intolerancia Religiosa; a aplicagao efetiva da Lei 10,639/03 em todas as escolas do Brasil, que introduziuno curriculo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temética “Historia e Cultura Afro- Brasileira, estabelecendo. _ punigoes Aqueles que nio se enquadrarem imediatamente; a reilizagao do censo nacional das casas de religiao de matriz africana, através das Secretarias Especiais de Inclusdo Racial e Direitos Humanos € do Ministério de Assisténcia Social, em parceria com universidades em cada estade; @ a criagio de uma delegacia especializada em crimes étnicos e raciais, tal como existe em Sio Paulo’, proposta que além de nao ser consensual tem deixado de ser apresentada nos debates publicos Para dar divulgagio @ esta agenda, a Comissio. tem) promovido uma interlocugio com a midia para enfatizar a relevancia do tema, o que ¢ feito pela Coordenagéo de Comunicagio, que vem estabelecendo um didiogo com setores da sociecade civil e do Estado. Este didlogo tem sido fundamental para a repercussio do tema da intolerdncia e da propria CCIR, sendo realizado de diferentes maneiras. A estratégia de comunicagio utilizada pela Comissdo tem 0 objetivo de tomar piblico as questées referentes aos temas da liberdade e da intolerancia religiosa, particularmente no. cenério do Rio de Janeiro, buscando agregar distinios atores e instituigGes sociais como novos aliados. O evento mais importante promovido pela Comissio, que se torneu. um marco de seu trabalho, é a “Caminhada em Defesa_ da Liberdade Religiosa’, que em 2013 alcangou a sexta realizagio. Trata-se de uma manifestacio realizada sempre no més de setembro, na orla da Praia de Copacabana, local escolhido or proporcionar maior visibilidade a0 evento, em que milhates de pessoas levam ‘cartazes e faixas com suas reivindicagoes por reconhecimento de direitos” Dentre as atividades regulares da Comissao, esta a realizagac de reunides semanais na sede da Congregacio Espirita Umbandiste do Brasil (CEUB), localizada no bairro do Estécio, na cidade do Rio de Janeiro, para a recebimento de deniincias de casos de intolerancia religiosaque so encaminhadas ao poder Piblico. Participam dessas reunides os Integrantes da Comissio, convidados e vitimas, mas merece destaque o fato de que ha dois integrantes da Comissio ‘que sio representantes do sistema de justica criminal: um delegado da Policia Civil cuja participagao é vista como uma Significativa contribuigao no sentido de discutir junto Policia Civil © valor do registro das ocorréncias relativas aos £2808 de intolerancia religiosa, jé que 0 Proprio delegado relata as resistencias que 0s policiais tém em reconhecer a “importincie do problema’, o que faz com que muitas vezes as ocorréncias sejam “bicacas’, ou seja, a vitima seja convencida a nio registrar; e um Promotordo Ministerio Piblico Estadual, integrante daSub-Procliradoria-Geral de Direitos Humanos e Terceiro Setor, que defende a investigacio pelo Ministério Piblico de “casos emblemiticos”, como uma forma de reduzir a impunidade vigente no pais, mas que pensa que a “uta” contra a intolerancia religiosa no ode ser apenas juridica, mas sim de “conscientizagao popular’. Percebe-se que a estratégia da CCIR tem se voltalo a dar visibilidade aos casos, seja por uma mobilizacio social 4 partir da midia, seja pela incorporacio de agentes piblicos ao debate, de forma a buscar a adestio dos mesmos & causa. Além disfo, ha também um esforgo de buscar a punicdo dos agressores, 0 que € nao consenso entre os integrantes no que se refere a sua eficécia no processo de mobilizacao. Assim, a CCIR pretende retirar © conflito relacionado a intolerancie religiosa do campo da intimidade para levé-lo 4 esfera publica, revelando um modo de operar poderes hhas relagdes sociais para atingir direta, ou indiretamente, os cursos de acio criminalizaveis No entanto, € preciso distinguir a acusagao da incriminagao (Misse, 1999), iniciando pelo fato de que a altima Fetoma a “letra da lei” para jogar com @ ambivaléncia dos interesses entre o acusador ¢ 0 acusado. A incriminagao & portanto, um controle de acusagbes sociais realizado pelos dispostivos que neutralizam os operadores de poder previstos em lei (flagrantes, indicios materiais, testemunhos, reconstituigdes \écnicas eatuagSes nos tribunais) durante as interagdes acusatérias, de modo que representantes do acusado, de Estado e da sociedade recriem dramaticamente 0 conflito com vistas a construira sujeisio crirsinal’ Desta forma, é possivel afirmar que 08 dispositivos utilizados nos ritos judiciais ndo produzem a incriminagio das transgressies, mas sim dos individuos. Isso acontece com base na agio da policia, que interpreta o evento como uma transgressdo a leie 0 crimina, retirando-o da condigao de ofensa moral, € 0 leva para a condicio de transgressio a lei, por meio de dispositivos estatais de criminagdo, que iniciarao 0 processo de incriminagao pela construgdode um sujeito-autor e seu indiciament. Assim, se a intengio da CIR é trazer para a esfera publica as agressSes, para identificar quem sio 0s agressores, 0 ‘que acaba acontecendo ¢ que as vitimas, quando vo & delegacia formalizar sua queixa num registro de ocorréncia, acabam tendo suas. demandas desqualificadas, pois os policiais esistem fortemente a aplicar 0 art. 20 da Lei Ca6” (Boniolo, 2011). Para o delegado ‘que participa da Comissao, a resisténcia 4 Lei Caé esta relacionada ao feto da lei ter “marcado uma época’, referindo-se explicitamente a um posicionamento do Estado em relagio a discriminagio racial, sem criticar diretamente, no entanto, @ auagio do ex-governador Leonel Brizola, que foi o primeiro a propor a introdugdo de principios democtiticos para regular os procedimentos policiais, © que foi mal recebido no interior das instituigdes policiais. Até hoje, écomum se oavir que “os direitos humanos” atrapalham a atuagopolicial. O delegado também chama a atencdo para © fato de que “a discriminagio € um problema que resiste, persste..” mas que iio seria exclusivo dos policiais. A Comissio atua, portanto. numa intermediagao entre as. vitimas © 0 8 Acrimioaaagoe ‘tela como um Proce oil oe spe ‘eage moral doinane Ie penalise 197

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