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Dossiê especial Cadernos de Estudos Sociais e Políticos

clássicas
1

Editoras: Marcia Rangel Candido


e Verônica Toste Daflon
v.6, n.11, 2017 (IESP-UERJ)

ENSAIOS SOBRE A AMÉRICA LATINA

“As noivas de Satã”: misoginia e


bruxaria no Brasil colonial
Por Carolina Rocha

O grito de independência das


mulheres latino-americanas
Por Lília Macêdo

ENTREVISTAS

Bila Sorj
Socióloga e pioneira nos estudos de
gênero no Brasil

Hebe Vessuri
Antropóloga e especialista em estudos
sociais sobre a ciência na América Latina

RESENHAS E CRÍTICAS

“União Operária”, de Flora Tristán


Por Felipe da Silva Santos

“Calibã e a Bruxa”, de Silva Federici


Por Mariane Silva Reghim

AUTORAS CLÁSSICAS
Aleksandra Kollontai || Charllote Perkins Gilman || Clara Zetkin || Flora Tristán || Harriet Martineau
|| Harriet Taylor Mill || Mary Wollstonecraft || Nísia Floresta || Olympe de Gouges || Simone de
Beauvoir || Sojourner Trurh || Virgínia Woolf || e mais

TEXTOS POR
Anita Guerra || Lorena Marina dos Santos Miguel || Lolita Guerra || Luna Campos || Nicole Midori
Korus || Teresa Soter || Vaneza de Azevedo
clássicas

editoras autoras
Marcia Rangel Candido Anita Guerra
Verônica Toste Daflon Carolina Rocha Silva
Felipe da Silva Santos
Lília Maria Silva Macêdo
assistente editorial Lolita Guerra
Mariane Silva Reghim Lorena Miguel
Luna Campos
Mariane Silva Reghim
projeto gráfico Nicole Midori Korus
Ana Bolshaw Teresa Soter Henriques
Vaneza de Azevedo

ilustração de capa comitê editorial


Sophia Pinheiro Cadernos de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ)
Anna Carolin Venturini, IESP/UERJ
Cadernos de Estudos Sociais e Políticos Felipe Munhoz de Albuquerque, IESP/
Dossiê especial "Clássicas", v.6, n.11, 2017. UERJ
Leonardo Nóbrega da Silva, IIESP/UERJ
ISSN 2238-3425 Marcelo Borel, IESP/UERJ
Instituto de Estudos Sociais e Políticos Marcia Candido, IESP/UERJ
(IESP) Marina Rute Pacheco, IESP/UERJ
Universidade do Estado do Rio de Mariane Silva Reghim, IESP/UERJ
Janeiro (UERJ) Natália Leão, IESP/UERJ
Rua da Matriz 82, Rio de Janeiro - RJ Raul Nunes de Oliveira, IESP/UERJ
Índice

apresentação artigos e ensaios


MARCIA RANGEL CANDIDO E VERÔNICA TOSTE DAFLON 6 O QUE É UMA MULHER? VERSÕES E CONTRAVERSÕES DO
ESSENCIALISMO FEMININO
ANITA GUERRA 58
entrevistas
BILA SORJ: SOCIÓLOGA E PIONEIRA DOS ESTUDOS DE GÊNERO “AS NOIVAS DE SATÔ: MISOGINIA E BRUXARIA NO BRASIL COLONIAL
NO BRASIL CAROLINA ROCHA 68
POR MARCIA RANGEL CANDIDO E VERÔNICA TOSTE DAFLON 8
O GRITO DE INDEPENDÊNCIA DAS MULHERES LATINOAMERICANAS
HEBE VESSURI: ANTROPÓLOGA E ESPECIALISTA EM ESTUDOS LÍLIA MACÊDO 80
SOCIAIS SOBRE A CIÊNCIA NA AMÉRICA LATINA
POR MARCIA RANGEL CANDIDO E VERÔNICA TOSTE DAFLON 10 “MÃE!” (2017) E O MITO DA MULHER ETERNA
LOLITA GUERRA 90
clássicas RETOMANDO O DEBATE IGUALDADE VS. DIFERENÇA A PARTIR DE
HARRIET MARTINEAU: A CONTRIBUIÇÃO ESQUECIDA DA PRIMEIRA AUTORAS CLÁSSICAS: UM ARGUMENTO INTERMEDIÁRIO
SOCIÓLOGA NICOLE MIDORI KORUS 110
LORENA MARINA DOS SANTOS MIGUEL 16

ALGUMAS NOTAS DE PESQUISA SOBRE FLORA TRISTAN: resenhas e críticas


FEMINISMO, SOCIALISMO E VIAGENS “UNIÃO OPERÁRIA”, DE FLORA TRISTÁN
LUNA CAMPOS 30 FELIPE DA SILVA SANTOS 124

GÊNERO, RACIONALIDADE E ESCRITA EM “O PAPEL DE PAREDE “CALIBÃ E A BRUXA: MULHERES, CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA”,
AMARELO”, DE CHARLOTTE PERKINS GILMAN DE SILVIA FEDERICI
TERESA SOTER 40 MARIANE SILVA REGHIM 130

UMA BRASILEIRA ILUSTRE: NÍSIA FLORESTA E A LUTA POR LIBERDADE


E DIREITOS
VANEZA DE AZEVEDO 52
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Apresentação

Em 1883, nas primeiras linhas de seu ensaio serem apresentadas(os) a nenhuma autora lecionar sobre elas. Agradecemos às muitas
clássico “A mulher como inventora” (Woman clássica. mãos que se uniram ao nosso esforço: as
as an inventor), Matilda Joslyn Gage chamou autoras e autores dos textos dessa coletânea,
atenção para como era comum a alegação Esta revista é resultado de um esforço as entrevistadas, a artista Sophia Pinheiro,
que as mulheres não possuíam atributos coletivo profundamente identificado com responsável pela ilustração que compõe
intelectuais criativos e que não eram capazes a indignação que moveu Gage em 1883: a nossa capa e a designer Ana Bolshaw,
de realizar contribuições originais e úteis à retomar o passado, contestar o presente e idealizadora do projeto gráfico.
vida social. Ciente de que essa afirmação modificar o futuro. No primeiro semestre
era usada para justificar a invisibilização e o do ano de 2017, o Instituto de Filosofia e
não reconhecimento do trabalho intelectual Ciências Sociais da Universidade Federal do
e criativo das mulheres, Gage a confrontou Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ) foi cenário de Marcia Rangel Candido e
com extrema perspicácia: além de resgatar debates, apresentações e aprendizados na
grandes feitos femininos em campos como disciplina “Gênero na Teoria Social e Política Verônica Toste Daflon
a ciência, a tecnologia, a literatura, as artes, Clássica”.
mostrando que nada na constituição biológica
das mulheres as tornava inferiores aos Nos debruçamos sobre o trabalho de
homens, ela também descreveu os fatores autoras pouco estimadas em nossos círculos
estruturais que faziam das mulheres uma e a cada leitura nos surpreendemos com
parcela minoritária entre os inventores, o seu pioneirismo, a engenhosidade das
artistas, cientistas etc de prestígio. suas análises sobre conjunturas políticas e
sociais, e sobretudo nos espantamos com a
Para tal, mencionou aspectos como a exclusão injustificável das suas contribuições
legislação social, a subordinação feminina do cânone da sociologia, filosofia, história,
dentro da família e do casamento, a ciência política etc. Com o intuito de ir
dificuldade de acesso à educação, entre além dos limites das salas de aula e dar
outros. Passado pouco mais de um século continuidade à difusão desses trabalhos,
da publicação desse texto, a necessidade apresentamos nessas páginas artigos
de recuperar as reflexões e invenções das produzidos pelas(os) alunas(os) do curso,
mulheres ainda persiste. Na escola, pouco bem como colaborações de pesquisadoras
se fala de cientistas e pensadoras do gênero convidadas. Esperamos que o contato com
feminino. É comum que estudantes de essas autoras clássicas provoque nas(os)
grandes áreas das ciências humanas concluam leitoras(es) o mesmo prazer da descoberta e
suas graduações, mestrados e doutorados sem o deleite intelectual que tivemos ao estudar e
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Entrevista com
Bila Sorj

Nossa entrevistada, Bila Sorj, é socióloga, Bila Sorj: De fato, foi só nas últimas décadas quando entram em contato, pela primeira vez,
historiadora e professora titular da que pensadoras sociais e sociólogas do sec. com as análises sociais realizadas por estas
Universidade Federal do Rio de Janeiro. XIX, e de séculos anteriores, começaram a pesquisadoras.
Pioneira, Bila foi uma das estudiosas que ter suas obras reconhecidas e divulgadas na
colaboraram para a formação do campo de academia. Todavia, este reconhecimento vem
estudos de gênero no Brasil. Durante sua sendo feito de uma maneira específica, por
formação, ela fez graduação e mestrado em meio dos estudos de história do pensamento Creio que a exclusão delas do cânone da
Sociologia na University of Haifa e doutorado social e não como autoras fundamentais disciplina é uma questão de gênero, da norma
em Sociologia pela Manchester University. para a formação de sociólogos. Chama a que associa, em geral, o mundo científico e
Hoje, Bila é coordenadora do NESEG atenção também que as iniciativas de resgate suas qualidades (racionalidade, competição
– Núcleo de Estudos de Sexualidade e destas autoras são, em geral, obra de autoras e conquistas) ao universo masculino. Estas
Gênero, do Programa de Pós-Graduação em mulheres e feministas. autoras, por melhor que fossem, eram vistas
Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ, como fora do lugar reservado às mulheres
onde desenvolve pesquisas sobre estudos As autoras clássicas continuam esquecidas na sociedade naquele período. Isto está
de gênero e relações de trabalho, família pelo cânone sociológico, formulado na década mudando, ainda que o ritmo seja mais lento
e políticas públicas. É autora de diversos de 40 e 50 pela sociologia norte-americana, do que se espera. Com certeza, a disciplina
artigos e livros nacionais e estrangeiros sobretudo pelo T. Parsons, que indicou os ganharia muito se incorporasse estas autoras
sobre o assunto. Em nossa curta entrevista, eleitos à clássicos da disciplina. É até mesmo nos seus cursos regulares, tanto pelo ponto de
perguntamos a ela como se posiciona com um paradoxo, que estas autoras, como vista que trazem sobre as sociedades em que
relação ao assunto de nossa revista: as autoras Harriet Martineau, fortemente ancoradas viveram como pela qualidade dos trabalhos
clássicas e seu lugar nas ciências sociais. em pesquisa empírica e comparativa e outras que nos legaram.
que se apoiam em etnografias riquíssimas
Editoras: As autoras clássicas raramente sobre as sociedades em que viveram, tenham
são utilizadas no ensino de Sociologia e sido excluídas do cânone que supostamente
Ciência Política. Isso acontece mesmo em valorizava a pesquisa empírica no momento
campos específicos como os Estudos de da institucionalização da disciplina na
Gênero. Quais causas você sugere para essa acadêmica norte-americana. Portanto, esta
dinâmica? Você considera importante inserir exclusão não se justifica pela qualidade
pensadoras pioneiras entre os cânones dessas das obras, que são muito instigantes e até
disciplinas e campos de estudos? surpreendem os estudiosos contemporâneos
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Entrevista com
Hebe Vessuri

Nossa entrevistada, Hebe Vessuri, é e no Conselho Internacional de Ciências recebi de uma associação do Norte global. Eu preocupação com a responsabilidade da
antropóloga social, vinculada a institutos Sociais (ISSC). Vessuri desenvolve trabalhos também me perguntei sobre o porquê disso ciência com o público, ou mais amplamente,
de pesquisa na Argentina, na Venezuela acadêmicos profundamente comprometidos e tratei de explicar no meu próprio discurso com a sociedade, também estou certa de
e no México (Centro de Estudos Sociais com a democratização da ciência. Na pequena de aceitação do prêmio. Eu o anexei ao final que não me dediquei a promover minha
de Ciência do Instituto de Investigação entrevista apresentada a seguir, a autora desse texto caso alguém se interesse em lê-lo. obra como normalmente é feito nesses
Científica - IVIC, Centro de Pesquisa de comenta sobre desigualdades na produção e anos de marketing globalizado, pois eu
Geografia Ambiental - CIGA-UNAM, circulação do conhecimento científico. De fato, é incomum que tenham dado o não gostava de frequentar os congressos
Conselho Nacional de Investigações prêmio a mim porque é a primeira vez que e eventos internacionais, nem de buscar
Científicas e Técnicas -CONICET e Editoras: o dão a uma pessoa de fora do âmbito contatos em uma corrida por avaliação
Instituto de Ciências Humanas e Sociais)., Você foi a primeira pessoa fora da Europa e norte-americano e europeu. E, ademais, a e popularidade. Pois bem, eu preferi os
Conselho Nacional de Investigações dos Estados Unidos a receber o Prêmio John uma mulher. No entanto, devemos levar pequenos simpósio e workshops que dão
Científicas e Técnicas (CONICET) e D. Bernal da Society for Social Studies of em conta que nos últimos anos também na oportunidade de conhecer pessoas e dialogar
Instituto de Ciências Humanas e Sociais). É Science (4S). Isso é incomum, tanto pelo fato 4S tem havido um interesse crescente por com elas mais do que os 15 minutos de uma
pioneira em estudos sociais sobre a ciência de você ser latino-americana, como por ser outras regiões do mundo global, entre outros apresentação mutilada do trabalho, que é o
na América Latina, pelos quais recebeu mulher – visto que a produção científica de motivos, pela emergente presença de jovens que normalmente ocorre em um congresso
vários prêmios nacionais e internacionais. mulheres costuma ter menos visibilidade que estudantes e investigadores de distintas internacional. Reconheço, por outro lado, que
Após realizar doutorado na Universidade a dos homens. Seus trabalhos representam partes do mundo que participam da vida em participei ativamente da gestão de programas
de Oxford, foi exilada durante a ditadura uma contribuição de extrema relevância sociedade e discutem temas que no passado científico internacionais, pois me pareceu
argentina, e ajudou a fundar programas de para pensar a respeito do compromisso da ficavam fora do horizonte da agenda oficial. importante estar ali e dar uma opinião a partir
graduação na Venezuela e no Brasil. Exerceu ciência com o público e com a superação Em particular, há mais pessoas da América da perspectiva dos países do Sul global. Mas
importantes atividades na comissão de das desigualdades. Como você observa a Latina que hoje participam em atividades da não creio que isso, na prática, tenha tido
Ciência e Tecnologia do Conselho Latino interação entre as desigualdades regionais 4S. Também creio que isso tudo é reflexo alguma influência sobre o prêmio.
Americano de Ciências Sociais (CLACSO), que afetam a produção acadêmica dos latino- da maior presença numérica de mulheres
na Reitoria da Universidade das Nações americanos e as desigualdades de gênero? na organização dessa associação e do peso O que mais tratei de fazer foi aproximar
Unidas, na União Internacional de Ciências Como você enxerga o papel das ciências teórico que os estudos de gênero tiveram temas que me pareciam importantes para
Antropológicas e Etnológicas (IUAES), na sociais na transformação da sociedade? precisamente no campo dos estudos ligados à ver se entusiasmava jovens da América
Comissão de Ética na Ciência da UNESCO, ciência. Latina a embarcar no estudo de alguns
no Conselho Internacional de Governança Hebe Vessuri: deles, assim como fazer visíveis aspectos da
de Risco (IRGC), no Programa Internacional Agradeço pelo interesse de vocês em Em relação ao meu trabalho, se estou bem realidade da nossa região do mundo, que
Para o Desenvolvimento Humano (IHDP) entender melhor as razões do prêmio que convicta de que ele sempre expressou uma eram ignorados em nossos próprios países.
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Esclareço, no entanto, que minha escolha As questões da igualdade, como aspiração conhecimento, sempre funcionou como nosso olhar sobre a realidade que nos rodeia,
não é anti-internacional ou anti-global. Creio universal, e a realidade das desigualdades um elemento discriminador, decidindo em todas as suas dimensões, e propor
que temos a possibilidade e a obrigação de manifestadas em múltiplas dimensões da qual conhecimento é válido, legítimo, maneiras novas e renovadas de interpretar
estudar nossa realidade sócio-histórica, mas vida social, sempre foram as que mais “verdadeiro”, e o que não é. Inclusive, isso fatos e processos com um compromisso ético
o que faz do nosso trabalho uma ciência é a me preocuparam, desde minha tese de foi acompanhado frequentemente por uma e cognitivo.
possibilidade de postular o que estudamos doutorado sobre um campesinato sem separação entre um conhecimento e aqueles
em nosso contexto particular situado em terra na Argentina. Quando o vemos em que têm esse conhecimento, tentando salvar
termos compreensíveis em outros contextos relação à ciência, estas se expressam em pelo o primeiro, mas não os segundos, a quem
culturais. O olhar cultural sempre me menos dois aspectos: por um lado, há as nem sequer se reconhece a autoria desse
pareceu fundamental. A ciência é cultura, desigualdades e as assimetrias denunciadas conhecimento como parte de seu patrimônio
tem culturas, os diálogos comparados, nesse pelos pesquisadores das questões globais, cultural e social...
sentido, são imprescindíveis. E nesse sentido, em relação aos arranjos de prestígio e poder
se era necessário escrever em inglês para que internacional; controle disciplinar por revistas Em uma fase como a atual, em que houve ****
pudessem me ler na África ou na Ásia, eu de um clube exclusivo que atua como porteiro uma tremenda expansão dos horizontes Tradução do discurso de aceitação:
escrevia em inglês. de reconhecimento e qualidade, o caráter do conhecimento, as relações com outras
subalterno da ciência fora do mundo euro- formas de conhecimento estão mudando, Estou muito grata ao comitê de indicação
Eu escrevi muito, mas como muitos dos meus americano, restos coloniais que deram origem mas devemos ter cuidado para que também e ao 4S. Foi uma surpresa maravilhosa para
trabalhos foram publicados como capítulos de a estudos pós-coloniais, exploração cognitiva, a dimensão da responsabilidade da ciência mim algo que é certamente um reflexo do
livros coletivos que tratavam de fazer avançar etc. No entanto, é necessário levar em com os atores sociais que historicamente caráter cada vez mais internacional do 4S,
temáticas particulares, não sei quanto do que conta que as assimetrias e as desigualdades produziram e renovaram esse conhecimento, que começou a olhar para o Sul Global.
escrevi está espalhado por aí, perdido ou também fazem parte das reivindicações não se perca de vista. E quando dizemos Eu comecei a frequentar esses encontros
invisível aos olhos de muitos. Embora quando de pesquisadores nas províncias e regiões ciência, aqui estamos dizendo ciência na em Washington em 1979. Àquela época eu
eu comecei já havia o debate para publicar periféricas de países europeus e norte- sociedade, ciência como sociedade. ficava muito intrigada com as características
em revistas ou fazê-lo em livros, no que era americanos, onde a colonialidade, etc., não do campo nos EUA, com o qual eu estava
então o novo campo de estudos sociais da tem lugar. As ciências sociais têm uma responsabilidade menos familiarizada do que com os campos
ciência pensávamos que publicar em livros crucial em relação à necessidade de melhorar na Europa – como o Reino Unido e França.
coletivos, onde cada autor desenvolvia um Mas há outros tipos de desigualdades e a capacidade de olhar criticamente o Eu havia mudado de país de residência
tópico específico relacionado ao tema geral assimetrias em relação à ciência que têm a que fazemos como seres sociais e como recentemente e de campo de estudos porque
do volume, nos permitiria avançar na frente ver com outras formas de conhecimento sociedades. Elas mesmas são dominadas eu era exilada política da Argentina, apenas
do conhecimento. Talvez hoje eu faria isso de “não científico”, ou seja, não reconhecido no presente por interesses comerciais poucos anos depois de ter conquistado
forma diferente, mas a história não reconhece pelo sistema científico oficial. Embora a e estratégias políticas, o que ameaça meu doutorado em Antropologia pela
condicionalismos contrafactuais. ciência em si seja o resultado de um processo transformá-las em instrumentos dos poderes Universidade de Oxford. Na época, eu fiquei
histórico e cumulativo de hibridização do dominantes. O melhor antídoto é aguçar entusiasmada com a ideia de estudar as causas
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do que parecia ser a falha persistente em se antes já propostas e discutidas no Sul Global,
construir sociedades modernas, abertas e mais que no seu trânsito perderam as pistas de suas
igualitárias na América Latina. O papel dos origens. Em última análise, isso não importa.
cientistas e da ciência em tudo isso prometia Não é uma questão de chorar por um lugar
oferecer algumas chaves de compreensão, no banquete. O que é interessante é que com
particularmente em um lugar como a o tempo mais esforço internacional se tornou
Venezuela, meu país de adoção, no contexto verdadeiramente possível através do cultivo
dos anos 1970 e de uma “nova” democracia da diversidade. Eu estou feliz e honrada em
cheia de entusiasmo e criatividade. Eu aceitar a nomeação ao prêmio J.D. Bernal de
descobri que os cientistas estavam fortemente 2017. Eu agradeço por essa honra.
interessados em discutir o futuro do país
e da região. De um jeito ou de outro, essa
preocupação em entender o papel da ciência e
dos cientistas no mundo em desenvolvimento
ficou comigo desde então.

Eu trabalhei com a hierarquia e a


estratificação na organização social da ciência,
a natureza periférica da maior parte da ciência
produzida no mundo em desenvolvimento,
as estratégias dos cientistas desses países para
tornar seu trabalho visível. Meu trabalho se
baseia no dilema entre usar/fazer ciência
para responder aos desafios das sociedades
locais ou se tornar potencialmente integrado
ao mainstream da ciência, o reconhecimento
de que o conhecimento é “situado”, os
truques do jogo internacional da ciência
– complicado pelas regras das estruturas
de filantropia e financiamento. Eu me
surpreendi diversas vezes ao perceber que as
comunidades científicas mais fortes do Norte
redescobriram diversas ideias heterogêneas
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Hariet Martineau:
A Contribuição Esquecida
da Primeira Socióloga
Lorena Marina dos Santos Miguel

resumo: Estudantes de ciências sociais de primeiro da autora e reivindicar seu status de autora
Harriet Martineau (1802-1876) é denominada período costumam ouvir de seus professores clássica da sociologia.
como a “primeira mulher socióloga”. O título, uma mesma brincadeira: a sociologia teria
todavia, não resultou em reconhecimento sido fundada pelos “três porquinhos” – Marx, Seria impossível num espaço como esse
e publicidade devida frente aos trabalhos Weber e Durkheim. Embora um bocado realizar um trabalho substancial sobre tudo
tão inovadores e importantes que produziu. descabida, a piada indica a importância das que Martineau produziu frente às dezenas
Por reconhecer esse erro, esse texto procura contribuições dadas por Émilie Durkheim de livros, ensaios e artigos que ela deixou.
familiarizar o leitor brasileiro com o trabalho (1858—1917), Karl Marx (1818-1883) e Max Por isso, me limito aqui a discutir um dos
da autora. Abordo aqui principalmente a Weber (1864-1920) aos estudos de Sociologia. seus principais trabalhos, “How to Observe
contribuição trazida por ela em seu livro “How E, por isso, tornaram-se os famosos Morals and Manners” (1838), no qual ela
to Observe Morals and Manners” (1838) – “porquinhos” da disciplina. Obviamente não desenvolveu concepções pioneiras sobre o
possivelmente a primeira obra metodológica da é possível negar a influência desses autores, trabalho sociológico. Por fim, finalizo com a
Sociologia. porém há alguns anos se tem ampliado defesa da importância do papel de Martineau
o rol de autores “clássicos”, conforme o para o campo sociológico e possibilidades
próprio campo da sociologia muda. Alexis futuras de estudo do amplo material deixado
palavras-chave de Tocqueville (1805-1859) e Georg Simmel por ela.
Harriet Martineau; metodologia; cientistas (1858- 1918), por exemplo, já têm hoje lugar
clássicos; Inglaterra vitoriana; relato de viagem garantido no panteão dos clássicos. Mas e
quanto à participação de Harriet Martineau How to Observe Moral and Manners
(1802-1876) na criação e desenvolvimento da
Sociologia? O mundo se ampliou para os europeus desde
a época das Grandes Navegações, porém foi
Ler e ensinar sobre Martineau não se nos séculos seguintes, especialmente o XIX,
trata de mera concessão às mulheres e à que se tornou possível que mais viajantes
participação feminina no campo sociológico. conhecessem terras novas. O resultado foi a
É preciso reconhecer que a importância explosão de diários e relatos de europeus sobre
de Martineau se deve ao seu trabalho diversos países e regiões. Eram trabalhos que
incansável de popularização do conhecimento não tinham rigor científico de observação e
sobre economia clássica, à criação de um apresentavam conclusões gerais sobre toda
método para a investigação sociológica e uma população com base em impressões e
à sua contribuição a diferentes campos da punhados de relatos locais. Foram esses erros
microssociologia. Esse artigo tem a intenção que Martineau buscou enfrentar ao publicar
incipiente de trazer atenção para o trabalho “How to Observe Moral and Manners” (1938).
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Na contracapa da primeira edição lê- Martineu desejava evitar que as pessoas e debate o método sociológico. É nesse difundidos em sua época ao rejeitar o
se que o objetivo do livro é oferecer viajassem apenas para confirmar espaço que ela aborda a questão do rigor darwinismo social e a hierarquia dos povos.
“uma série de dicas para os viajantes e seus preconceitos. Caso a pessoa não metodológico. Para ela, há situações que são comuns a todas
estudantes, chamando a atenção para os conseguisse chegar, de forma metódica, a as sociedades, como o sepultamento dos
pontos necessários para o questionamento conclusões e teorias mais abrangentes, era mortos ou divisão de tarefas. O trabalho do
e observação” no campo da sociedade necessário admitir as limitações e reportar observador é descobrir como cada cultura
(Martineau, 1838, pag. iii). Felizmente, cuidadosamente aquilo que foi visto. Nesse Requisitos filosóficos expressa e organiza esses eventos da vida.
o trabalho da autora compreende muito caso, o viajante daria ainda assim uma De tal forma, quando cita um exemplo, ela
mais do que simples dicas e traz reflexões contribuição, contribuindo para criar material Nessa seção, a autora foca na questão da coloca no mesmo patamar um evento no Sul
sofisticadas sobre pesquisa e metodologia, para que no futuro se produzisse trabalhos mentalidade do pesquisador, refletindo tanto estadunidense, na Rússia czarista e em um
temas hoje considerados fundamentais para a mais completos (Idem, pag. 09-10). sobre o observador como sobre o observado pequeno povoado africano.
Sociologia. – uma reflexão muito avançada para uma
A autora dividiu o livro em três partes época em que vigorava o positivismo. Quanto Para ela, a imparcialidade não significa que
Martineu inicia sua obra defendendo de que principais: os requisitos para a observação, ao observador, ela indaga: O que deseja? O o observador deva considerar moralmente
o conhecimento e métodos são fundamentais. o que observar e métodos mecânicos. Na que busca encontrar nas observações que aceitável a escravidão ou o sacrifício
Em um tempo em que se considerava primeira seção, ela enumera o que um fará? Martineau adverte que, ao observar de crianças. Todavia seu dever é tentar
a observação um simples ato de olhar e observador precisa fazer para poder observar homens e mulheres de personalidades compreender o Outro e a forma de realizar
reportar o que se vê, a britânica apontava e escrever trabalhos significativos. Essa variadas, instituições políticas e sociais, como isso é buscar entender como todas as relações
como é preciso treinar os olhos para se poder seção foi dividida em três partes menores, governo e casamento, e eventos de vida, sociais e instituições são construídas na busca
realizar bem a tarefa. Já naquela época, ela que correspondem a requisitos filosóficos, como nascimento e morte, se o observador daquilo que todo ser humano, independente
defendia que a “ciência da sociedade” era morais e mecânicos. Na seção seguinte, a encontrar precisamente o que já esperava ou de quem for, mais preza: a felicidade.
tão complexa quanto a natural. Logo, para autora trata sobre os temas que ela considera ficar desconfortável e fizer juízos negativos
ela, da mesma forma que uma pessoa não se fundamentais na vida social, como a religião, sobre o que constatar, é melhor que não O segundo princípio que ela aponta é que
ousava se dizer capaz de falar sobre geologia suicídio, prisões, casamentos. Ao longo dos produza a pesquisa. o pesquisador deve reconhecer que toda
sem estudo dedicado, não se poderia fazer subcapítulos, ela discorre sobre a importância concepção de virtude ou de vício em uma
afirmações sobre povos inteiros a partir de cada espaço social e como é possível A partir dessa observação, é possível apontar sociedade é o resultado das circunstâncias
de uma breve visita (Martineau, 1838, pag. compreendê-los em sua complexidade e para o primeiro princípio fundamental particulares em que a sociedade existe. De
02). Para evitar esse erro, ela indicava a multiplicidade. Por fim, no último capítulo, da pesquisa para Martineau: a busca pela tal forma, Martineau percebe a moralidade
necessidade de realização de estudos prévios, na breve seção sobre métodos mecânicos, ela imparcialidade. Ao longo do livro, ela volta como algo cultural, e não como algo de
preparação para o campo, assim como o trata sobre questões do dia a dia da pesquisa, diversas vezes ao mesmo ponto: deve-se natureza biológica ou divina. Portanto, a
cuidado com as generalizações e conclusões como preparação para entrevistas e anotações reportar, sem julgamentos, a sociedade que moral deve ser observada como uma criação
precipitadas. ao longo do dia. Meu foco será na primeira se está observando. Outro ponto importante dos homens passível de mudanças. A autora
seção, visto que é aquela que apresenta é que Martineau se opõe a preceitos bastante apresenta grande lista de exemplos para
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ilustrar seu argumento, demonstrando grande Após essas definições, Martineau aponta para simpatia, florescendo nos recintos das cidades O interessante da importância dada por
conhecimento de vários elementos que já a importância da preparação para a pesquisa. e florescendo onde quer que caísse na terra, Martineau à empatia é que ele poderia
percebia como resultado da sociabilidade: Obviamente o acúmulo de estudos prévios mas dobrando quando tocado pelo frio e ser inserido no debate que surgiu após o
a personalidade, as aspirações, a hierarquia naquele tempo é muito menor que o atual, o caindo na escuridão” (Idem, pag. 42 – tradução lançamento de “Um Diário no Sentido
social, a desigualdade, entre outros. que reforça a importância desse ponto. Ela nossa). Estrito do Termo” (1967) de Bronislaw
enfatiza que é preciso conhecer os estudos já Malinowski. Lançado após sua morte pela
Podemos citar Martineu (1938, pag. 22-23 – realizados para se produzir o melhor trabalho E não é possível observar uma sociedade sem sua esposa, o diário de Malinowski revela
tradução nossa) diretamente para justificar a possível. entrar em contato com as pessoas. Embora sua opinião negativa sobre os nativos que
importância dos dois princípios: considere fundamental a observação do que estudava. Embora a ideia da pesquisa não-
ela chama de “Things” (coisas), representadas participante e do observador neutro nunca
“O observador que possui uma crença pelo governo e toda forma de documentação, tenha sido factível, ainda à época muitos
mais filosófica, não só escapa da aflição Requisitos morais as pessoas importam tanto quanto o trabalho acreditavam nela. A resposta de outros
de ver o pecado onde quer que veja a de pesquisa documental e material. Se o estudiosos é que não é preciso ser totalmente
diferença, como evita o sofrimento do No quesito moral, Martineau apresenta o pesquisador não se importar em conhecer isento para ter um estudo aprofundado
desprezo e alienação de sua espécie. conceito de empatia como um dos princípios as pessoas, ele não poderá entender como e não enviesado. Martineau reconhece a
Porém ao estar preparado para o que principais do trabalho sociológico. Ao formam sua noção de certo e errado, impossibilidade de nos despirmos de todos
ele testemunha e consciente das causas, reconhecer que é impossível nos despirmos assim como também não compreenderá as nossos pré-conceitos, mas reconhece a
está livre da agitação de ser chocado
de todo preconceito e viés, precisamos instituições e estruturas sociais essenciais para possibilidade de tentarmos. E a melhor forma
e alarmado, preserva sua calma, sua
buscar uma forma de garantir a observação o convívio humano. É somente ao abrir-se para tal é através do exercício da empatia.
esperança, sua simpatia. E, portanto,
imparcial. A empatia “sem restrições e sem para ouvir e conhecer as pessoas e respeitar
é melhor ajustado para perceber,
compreender e relatar a moral e os
reservas” (Idem, pag. 41) permite que o as suas histórias que o cientista social
costumes das pessoas que ele visita. observador chegue aos corações e mentes das poderá realmente entender como as mesmas
Sua crença filosófica, derivada de toda pessoas. Martineau acredita que as pessoas percebem e interpretam a realidade. Requisitos mecânicos
evidência justa e apenas reflexão, é que respondem à sua forma de tratá-las. Logo, um
todos os sentimentos de errado e de pesquisador que esteja aberto ao observador De tal forma, esse pode ser considerado Martineau dedica tempo considerável à
certo das pessoas, em vez de nascer obterá a mesma abertura em resposta. o terceiro princípio: a empatia. É ela que importância de se realizar o trabalho de
com eles, crescem neles das influências a deve orientar a atitude do observador com observador a pé. A autora explora os benefícios
que eles estão sujeitos. Nós vemos que, A autora reforça constantemente a ideia de relação ao observado. Martineau afirma a e dificuldades de se locomover de tal forma.
em outros casos, no que diz respeito à que sentimentalmente todas as pessoas são crença de que um comportamento amistoso Os detalhes são insignificantes, o relevante é
ciência, à arte e às aparências da natureza, iguais. Ela afirma, poeticamente, que “existe e receptivo, em vez de julgador, é essencial a demonstração do valor que essa prática tem
os sentimentos crescem a partir do o mesmo coração humano em todos os para uma pesquisa sem viés e conclusões sobre o contato com as pessoas, retomando a
conhecimento e da experiência. E há todas lugares, o crescimento universal da mente preconcebidas. importância sobre se abrir para poder conhecer
as evidências de que é assim em relação à e da vida, pronto para abrir a luz do sol da realmente aqueles que são observados.
moral.”
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Para a autora é fundamental conhecer segunda parte, O Que Observar, talvez seja a Como exemplo dos temas que foram compreender a sociedade atual. Hoje em dia
todas as pessoas possíveis. Ela considera que melhor demonstra o poder de observação explorados pela autora é possível listar os reconhecer isso é simples após a construção
inadmissível que alguém que se proponha e raciocínio de Martineau. Já a terceira subcapítulos que ela própria criou. Compõe dos campos de estudos criados a décadas.
a conhecer um povo não busque entrar em parte, Métodos Mecânicos, trata de questões o capítulo sobre Religiões: Igrejas; Clero; Quando lembramos que Martineau defendeu
contato com o maior número e o rol mais rotineiras que demonstram mais uma vez a Superstições e Suicídio. No seguinte, Noções sua importância antes da metade do século
diversificado possível de pessoas. Igualmente profundida da reflexão sobre como fazer a Gerais de Moralidade, há: Epitáfios; Amor XIX temos dimensão de quão pioneiro foi o
importante é conseguir pessoas de classes melhor pesquisa possível com todo tipo de familiar e lugar de nascença; Fala de idosos seu trabalho.
sociais e gostos distintos. Quanto mais amplo recurso. e crianças; Caráter do orgulho prevalecente;
for o escopo de pessoas estudadas, maior Caráter dos ídolos populares; Épocas da Felizmente, Martineau não somente indica
a possibilidade de compreender as ideias A seção O Que Observar foi dividida em sociedade; Tratamento da culpa; Testemunho a relevância desses estudos, mas também
sociais fundamentais, e não somente opiniões seis capítulos: Religião, Noções Gerais de criminosos; Músicas populares, e explora cada um deles. Ela apresenta as
singulares. de Moralidade, Estado Interno, Ideias de Literatura e Filosofia. No terceiro capítulo, razões que a fazem acreditar que importam,
Liberdade, Progresso e Discurso. Ao longo sobre o Estado Interno, ela lista: Solo e como podem indicar características essenciais
Podemos apontar assim o quarto preceito: desses capítulos, Martineau trata de diferentes aspecto do país; Mercados; Classe rural; da sociedade e exemplifica com casos de
diversidade dos entrevistados. Para temas que acredita que sejam essenciais para Classe manufatureira; Classe comercial; alguns países ou regiões. Por isso é incorreto
Martineau, andar a pé porque possibilita um compreender a sociedade. De certa forma, a Saúde; Casamento e Mulheres, e, por fim, afirmar que a autora não contribuiu para
conhecimento geográfico da região e contatar autora trabalhou campos da microssociologia Crianças. No campo de Ideias de Liberdade, a formação de teoria nos seus campos de
o maior número de pessoas possível. A que seriam consolidados apenas nas décadas ela trata da Polícia; Legislação; Classes na interesse. Se consideramos teoria como
variedade de opiniões e crenças fortalecerá seguintes. Além disso, ela entende como esses sociedade; Servos; Limitações da metrópole; conjunto de conhecimentos que procuram
o estudo por oferecer multiplicidade. O campos se relacionam com questões macro, Jornais; Escolas e, por último, Objetos e explicar fenômenos naturais ou sociais, o
pesquisador não deve fugir da complexidade, como política e economia. Para ela, é preciso formas de perseguição. No capítulo seguinte, trabalho de Martineau é um extenso trabalho
e sim busca-la ativamente. Pesquisas compreender o micro para se compreender Progresso, engloba: Condições de progresso; teórico sobre diferentes campos de estudos.
complexas são mais completas e informativas. a influência do macro. Em uma época em Caridade; Artes e Invenções e, finalmente,
que a maioria dos pensadores estavam Multiplicidade de Objetos. O último capítulo, Após discorrer sobre os elementos a serem
buscando explicações universais e conclusões Discurso, é o único que não oferece nenhuma observados, a autora finaliza com seu
grandiosas, Martineau reconhecia a forma de divisão. menor capítulo, Métodos Mecânicos. Nele,
O Que Observar e os Métodos Mecânicos necessidade de entender as questões menores, Martineau reflete sobre o comportamento
que, não obstante, tinham valor sociológico. Ao passar os olhos pela lista é possível do pesquisador ao fazer entrevistas. Como já
Como afirmado, o meu foco aqui é no Embora o termo microssociologia tenha sido reconhecer campos de estudos para cada um foi comentado, o diálogo com os observados
desenvolvimento da metodologia. A cunhado em 1939, não é incorreto afirmar desses temas, sendo alguns deles essenciais é de grande importância para a autora. Em
apresentação breve sobre a parte teórica que ela foi uma precursora do campo. na Sociologia contemporânea. Ninguém razão disso, ela explora formas de entrevista e
e reflexiva do livro é um convite ao pode negar a importância de estudos sobre escrita, a estruturação das perguntas e quando
conhecimento e incentivo a leituras futuras. A Suicídios, Prisões e Jornais, por exemplo, para tomar notas.
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Conclusão Unidos, seguindo os passos da Martineau aparecem diversas justificativas: ela não reconhecimento não é uma dívida com o
Society, criada em 1994, que preserva e estuda era teórica o suficiente, sua escrita não era passado ou com pessoas que já tenham
Se “As regras do método sociológico” (1895) os documentos de Harriet e seu irmão Dr. refinada o suficiente, que ela era intuitiva falecido há décadas, mas um enriquecimento
de Durkheim é considerado um dos trabalhos James Martineau. demais e insuficientemente analítica (Hill, e um benefício para o momento atual. Somos
fundadores da Sociologia, “How to Observe 2003). As formas de desqualifica-la são nós que aprenderemos mais ao reconhecer
Moral and Manners” (1838) de Martineau Por que, afinal, Martineau não é reconhecida? impregnadas de estereótipos de gênero. a contribuição de tantos outros olhares,
não deveria ser considerado importante, se Embora esse artigo seja uma análise independentemente do seu tempo. Que
foi publicado cinquenta e sete anos antes? breve de um material tão amplo, cremos A escolha de quem consideramos fundadores comecemos com Harriet Martineau.
Seymour Lipset (1962), que prefaciou uma que conseguimos apresentar uma defesa e influenciadores na Sociologia é sempre
das reedições de Martineau, afirma que essa do papel de Martineau para a ciência e o imperfeita, parcial e, em alguma medida,
afirmação não é nada absurda. De fato, Lipset conhecimento. A falta do reconhecimento provisória. É construída pelos sociólogos
afirmou que “How to observe morals and não se deve pela falta de qualidade do que têm status no campo o suficiente para
manners” é o primeiro livro metodológico trabalho. O feito de conseguir impressionar fazer valer suas preferências. Raymond Aron Biografia
de pesquisa científica de duas disciplinas que e ter defensores tanto tempo após do seu lutou pelo reconhecimento de Tocqueville
ainda não tinham sido criadas, a Sociologia trabalho, demonstra a intensidade e marca como um autor indispensável para o campo. Viajante e socióloga
e Antropologia. Anthony Giddens, por sua que ela pode causar naqueles que entram Não era preciso que o trabalho dele fosse
vez, denomina, em “Sociology” (2001, pag 14), em contato com o seu trabalho. Também reconhecido pela sociedade na época ou que Nascida em 1802 na Inglaterra, Harriet
Martineau como uma fundadora perdida. não é possível alegar que a sua obscuridade tivesse adeptos anteriores. Bastou que sua Martineau, filha de pais de classe média,
se deva pela falta de produção ou sua total contribuição fosse reconhecida por ter uma teve a infância marcada por doenças físicas,
Há uma luta há anos para que o papel inacessibilidade: embora nenhum de seus voz singular que tenha trazido uma reflexão especialmente a surdez progressiva que
da autora seja reconhecido. Alice Rossi livros ainda tenham sido publicados em única. Portanto, é o nosso dever trabalhar resultou no uso de um ear trumpet, um
(1973, pag. 118-124) busca recuperá-la ao português, é possível encontrar todas as suas para que esse processo de reconhecimento aparelho auditivo disponível na época. Seus
afirmar que ela foi a primeira socióloga obras disponíveis e em domínio público em seja realizado. problemas de saúde impediram que estudasse
mulher. Em 1982, Michael Hill e Susan inglês. fora de casa, exceto por dois anos, porém
Hoecker-Drysdale lançaram uma coletânea É, enfim, preciso reconhecer que a Sociologia não impediram que ela seguisse um regime
chamada “Theoretical and Methodological Portanto como podemos explicar a injustiça é um campo do tempo presente e mesmo rigoroso e autodidata de estudo. Como adepta
Perspectives”. Os autores reuniram número de Martineu não estar no Panteão dos sua Teoria Clássica pode ser modificada. do Unitarismo, uma corrente teológica que
variado de autores para destrinchar a criadores da Sociologia? Possivelmente pelo A realidade mudou e é preciso que vozes afirmava a unidade absoluta de Deus, a família
contribuição de Martineau para diferentes seu gênero. Talvez essa não seja uma resposta distintas do usual sejam reconhecidas, seja Martineau não teve direito a certas liberdades
campos sociológicos. Hill é um professor inovadora ou completa, porém quando se de mulheres brancas, mulheres negras, civis, como votar ou ingressar em uma
que tem estudado há anos sobre a autora, trata da falta de admissão da influência de homens negros etc. Afinal, muitos e muitas universidade. Ao mesmo tempo, sua oposição
tendo criado a Harriet Martineau Sociological uma mulher, usualmente é essa resposta. produziram estudos originais e ofereceram ao Anglicanismo significava participar de um
Society (HMSS) em 1996 nos Estados Ao ler os seus críticos ao longo do século perspectivas singulares. O trabalho de dos meios sociais mais progressistas na época.
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A igreja Unitarista acreditava no informadas. Ela teve dificuldade de convencer “Society in America” (1837) é o trabalho por longo tempo tratada pelo irmão, porém
necessarianismo, linha de pensamento um editor a aceitar a proposta e somente sociológico mais reconhecido de Martineau. diante das dificuldades de obter melhora,
que defendia que até Deus seguia as leis o conseguiu após a assinatura de contrato A autora viajou por dois anos pelo norte e procurou o tratamento de mesmerismo, ou
universais, mesmo tendo criado o universo. desfavorável. sul estadunidenses, acompanhada por uma magnetismo animal, considerado polêmico
Em razão dessa crença, Martineau acreditava ajudante. Ela iniciou a viagem em 1834, três na época. Após uma rápida recuperação,
que as leis naturais e sociais eram fixas e O resultado foi “Ilustrations of Political anos depois de Tocqueville fazer sua famosa ela escreveu então “Letters on Mesmerism”
passíveis de descobertas. A isso se combinava Economy” (1832), nove volumes contendo viagem pela América. Coincidentemente, (1845) elogiando o tratamento. Isso resultou
a convicção na existência do livre arbítrio vinte cinco histórias. Os livros foram um ela percorreu praticamente o mesmo em uma briga familiar, já que seu irmão
e da liberdade de escolha, o que implicava sucesso de vendas e garantiram a liberdade trajeto de Tocqueville pelo sul. Entre outras defendeu que fora seu tratamento prologado
dizer que as decisões humanas estavam no econômica de Martineau para continuar diferenças entre os dois trabalhos, pode-se que resultou na cura.
campo da moral e não no campo espiritual. se sustentando da sua escrita. Um feito apontar a centralidade dada por Martineau à
O Unitarismo, ao acreditar que a ciência difícil para qualquer pessoa na época, mas instituição da escravidão e seus efeitos sobre Depois desse episódio, ela viajou ao Oriente
era complementar, em vez de antagônica à especialmente difícil para uma mulher. a democracia. Martineau aponta a escravidão Médio, viagem que resultou na publicação
religião, permitiu que o interesse científico Apesar do sucesso alcançado, seu trabalho como uma das características essenciais da de “Eastern life, present and past” (1848).
florescesse na vida de Martineau sem nenhum foi diminuído, a qualidade foi questionada democracia norte-americana. Para ela, a A autora tratava nesse livro a religião uma
conflito. Já adulta, a autora questionaria a e criticada por ser “não feminino” (Croker, escravidão e a posição feminina degradavam instituição social como outra qualquer,
religião. Porém, foi em um jornal religioso 1833, p. 136). John Stuart Mill também a democracia e impediam a realização dos sujeita a influências da sociedade em que
que ela iniciou sua vida como escritora aos foi crítico, afirmando de que ela não tinha seus preceitos mais básicos. Após a viagem, está inserida. A partir do trabalho de Conde
dezenove anos. conhecimento o suficiente e que o trabalho Martineau se tornaria uma voz abolicionista de Saint-Simon e Auguste Comte, “Law of
era superficial. De qualquer forma, os livros importante, sendo publicada tanto nos Three Stage”, Martineau apontou a religião
Após um noivado fracassado, o qual ela de Martineau venderam, até 1834, dez mil Estados Unidos quanto Inglaterra. como evolucionária, partindo da magia e
própria admitia que permitiu que mantivesse cópias por ano, enquanto “Principles of superstição para o politeísmo e então para
a liberdade para viajar e escrever, Martineau Political Economy” de Mills vendeu 3 mil Após a volta de sua longa viagem aos Estados o monoteísmo. Embora hoje reconheçamos
fez uma das decisões mais significativas de cópias em quatro anos (Roberts, 2002). Unidos, a socióloga teve um período longo de que não há hierarquia entre as religiões,
sua carreira. Ela insistiu na publicação de uma internamento por doença. Resultado de uma Martineau foi um passo à frente ao perceber
série de artigos sobre economia política em Sua liberdade econômica permitiu que viajasse doença ginecológica, ela teve dores intensas a religião como construção social e não como
linguagem popular, para que pessoas comuns para diferentes lugares, como a África, os Estados nas costas e perdeu sua força em geral. Ela obra divina.
pudessem ter acesso às ideias de alguns Unidos e o Oriente Médio. Suas experiências permaneceu então em casa por seis anos,
dos autores mais respeitados da época. Seu resultaram em diversos livros, como “Society porém continuava a escrever. Nesse período,
objetivo era permitir que as pessoas da classe in America” (1837) e “Retrospect of Western produziu “Life in the Sickroom” (1844), um
trabalhadora e média aprendessem a nova Travel” (1838). “How to Observe Morals and estudo sobre o tratamento dos efeitos da Alguns anos depois, em conjunto com Henry
teoria sobre a sociedade e que utilizassem o Manners” (1838) também foi lançado nessa doença, e sobre aqueles que a auxiliavam, George Atkinson, publicou “The Letters on
conhecimento para tomarem decisões mais época, porém foi escrito antes de sua viagem e do ponto de vista da paciente. Martineau foi the Laws of Man’s Nature and Development”
serviu como aporte para seu trabalho de campo.
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(1851). Considerado um de seus trabalhos e revisões de livros, a autora se dedicou a Referências bibliográficas LIPSET. Seymour. 1962. Introduction. IN
mais polêmicos, ela anunciava que deixou a defender a causa feminina. Escreveu sobre MARTINEAU. 1837 [1962]. Society in America.
Igreja Unitária e se considerava agnóstica e a importância da educação para o avanço ATKINSON, Henry George e MARTINEAU, New York: Garden City
naturalista. As pessoas preferem focar nessa das mulheres, a necessidade de pagamento Harriet. 1851. Letters on the Laws of Man’s
afirmação do que o desenvolvimento do seu igual entre mulheres e homens, e se opôs às Nature and Development. Chapman MARTINEAU, Harriet. 1848. Eastern Life.
pensamento a partir da filosofia positivismo leis de inspiração médica que autorizavam Present and Past; 3 volumes; Edward Moxon
DURKHEIM, Emile. 1895. Les Regles de La
de Comte, pensador em que ela estava policiais a prender e humilhar mulheres sob a
Methode Sociologique. Hachette Livre-BNF ___________________. 1838. How to Observe
muito interessada. Esse interesse resultou justificativa de combate à prostituição.
Moral and Manners. London: Charles Knight and
na tradução de “A Filosofia Positiva” (1842) GIDDENS, Anthony. 2001. Sociology. Polity Co. 22, Ludgate Street
para inglês, a qual ela fez onze anos depois da As doenças que a assolaram durante a vida Press
publicação do original. dificultaram seu trabalho, porém Martineau ___________________. 1832. Illustrations of
continuou produzindo até o fim da vida. Ela HARRISON, Frederic. 1896. Introduction. IN Political Economy; 9 volumes; Charles Fox
O trabalho de tradução realizado por escreveu seu próprio obituário duas semanas COMTE, Auguste. The positive philosophy of
Martineau foi tão aclamado por possibilitar antes de sua morte, em 25 de junho de 1876. Auguste Comte: freely translated and condensed ___________________. 1845. Letters on
a leitura da prosa difícil que foi retraduzido Em setenta e quatro anos de vida, a britânica by Harriet Martineau, with an introduction by Mesmerism. London: Edward Moxon, Dover
para francês, a língua original, e reconhecido escreveu dezessete livros, mais de mil e Frederic Harrison. Cornell University Library Street
como a versão oficial. Comte reconhece seiscentos editoriais e artigos para jornais,
a qualidade do seu trabalho e, em carta, e incontáveis cartas que trocou com outros HILL, Michael R. 1991. “Harriet Martineu ___________________. 1844. Life in the
afirma a ela que o trabalho dela expandirá a pensadores. Harriet Martineu teve a liberdade (1802-1876)” In DEEGAN, Mary Joe. Woman Sickroom
audiência do livro a um número muito maior de se dedicar ao que desejava e ela escolheu in Sociology: Bio-Bibliographical Sourcebook.
do que ele esperaria em vida (Harrison, 1896, destinar a vida à difusão do conhecimento e à New York: Greenwood Press ___________________. 1838. Retrospect of
Western Travel. Saunders and Otley
pags. xvii-xviii). justiça social.
HILL, Michael R. 2003. “Harriet Martineau
and the Sociology of the American South.” ___________________. 1837. Society in
Dois anos depois, em 1855, Martineu Paper presented to the Annual Meeting of the America. Saunders and Otley
novamente adoeceu. Por causa das previsões American Sociological Association, Section on
médicas pessimistas sobre sua recuperação, the History of Sociology, Atlanta Hilton, August ROBERTS, Caroline. 2002. The Woman and
ela escreveu então sua autobiografia, que 16 the Hour: Harriet Martineau and Victorian
somente seria publicada após sua morte, Ideologies. Toronto: U of Toronto
em 1877. Após a recuperação de mais um HILL, Michael Hill e HOECKER-DRYSDALE.
prognóstico negativo, Martineau focou 2001. Theoretical and Methodological ROSSI, Alice. 1973. The Feminist Papers: From
problemas sociais na Inglaterra, especialmente Lorena Miguel é doutoranda em Perspectives. New York: Routledge Adams to de Beauvoir. Columbia University
os problemas de mulheres. Utilizando Press
Ciências Sociais pela PUC-Rio.
formas variadas, como editoriais de jornais
contato: lorenamsmiguel@gmail.com
Algumas notas de pesquisa sobre 31

Flora Tristan: feminismo,


socialismo e viagens
Luna Campos

resumo A trajetória e a obra da feminista e socialista das mulheres e dos feminismos, sobretudo no
O objetivo desse texto é refletir sobre os francesa Flora Tristan não escapam à que diz respeito aos marcos que enfocam suas
cruzamentos históricos entre socialismo e tendência, criticada por historiadoras origens e cruzamento entre classe e gênero
feminismo através do estudo da trajetória de feministas há algumas décadas, de (Bryson, 2003; Moses, 1984; Pilbeam, 2000;
Flora Tristan (1803-1844), cujos ativismos, apagamento das mulheres das narrativas Scott, 1996).
vivências, diálogos, produção intelectual e sobre os processos históricos dos quais foram
experiências enquanto uma mulher viajante partícipes. Neste sentido, esse texto pretende, através da
no século XIX permitem reler uma época exposição de alguns itinerários de pesquisa,
atravessada por lutas e disputas em torno de A vida e o trabalho de Tristan têm, sem iluminar o engajamento de Flora Tristan no
novas noções do direito. Os itinerários de dúvida, sido objeto de interesse em estudos contexto pós-revolucionário francês, valendo-
Flora Tristan permitem iluminar o incipiente monográficos, muito embora de forma se do intercurso entre sua biografia, sua
debate que surgia na Europa nas primeiras intermitente e concentrada na França e nos obra e seu engajamento político. A ideia é
décadas do século XIX ao redor das ideias Estados Unidos. 1 O reconhecimento do lançar luz sobre as raízes de suas meditações
socialistas e feministas, no qual ela viria a entrelaçamento de sua vida com a história socialistas e feministas, sua crítica social
ter papel de destaque com a publicação de do socialismo, no entanto, não tem tido contundente, seu olhar apurado para as
panfletos, artigos de jornais e livros, dos destaque nas narrativas predominantes sobre condições de vida dos trabalhadores e das
quais os relatos de viagem reunidos em o surgimento do socialismo europeu, que mulheres, para o “embrutecimento do povo”,
Peregrinações de uma pária, de 1837, e o livro dão relevo a figuras masculinas, como Owen, para os excluídos da história (Perrot, 1988).
A União Operária, publicado em 1844, são os Fourier, Saint-Simon e Proudhon, atribuindo
mais importantes para essa discussão. um papel nulo ou lateral à militância e
produção intelectual de Tristan (Billington,
1980; Eley, 2002; Hobsbawn, 2000; McMillan, ***
palavras-chave 2000). Guardadas as devidas proporções, o
feminismo; socialismo; Flora Tristan; mesmo pode ser dito em relação à história O processo revolucionário na França (1789-
literatura de viagem; história intelectual 1799), que foi marcado pelo questionamento
1 A literatura sobre Flora Tristan é exten- dos privilégios e das distinções sociais
sa. Ainda válidas são as biografias publicadas por baseadas no status, consolidou o debate sobre
J. Puech (1925) e por M. Desanti (1973). Estudos a igualdade política e jurídica dos cidadãos.
mais recentes incluem S.Michaud (1985); S. Gro- As temáticas da cidadania e da igualdade
gan (1998); M.Cross and T.Gray, (1992); M.Cross,
deram o tom dos debates políticos que se
(1988; 2004); Konder, 1994; Bloch-Dano (2001);
M. Portal (2012). Para uma lista mais extensa sobre seguiram, oscilando entre o problema da
estudos especializados em Flora Tristan, ver as notas igualdade x diferença e da definição de quem
do capítulo 1 de Susan Grogan, “Flora Tristan: life era cidadão, logo, merecedor de direitos e
stories”, 1998.
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sujeito da tal igualdade. A Declaração dos direitos às mulheres, ambas desafiaram os as posições socialistas se colocaram como dos trabalhadores e a necessidade de uma
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, próprios pilares do discurso revolucionário, imaginação política radical, associada “união universal dos operários e operárias”.
que inspirou movimentos revolucionários em conclamando uma igualdade de fato e de ao incipiente movimento operário que Como salientou Varikas (2016:10), “o projeto
todo o mundo, foi um símbolo das aspirações direito para todos e todas. reivindicava boas condições de trabalho, da união operária é duplamente universal:
políticas da época. salários justos e direito de organização por seu internacionalismo e pela inclusão
No que tange ao debate de gênero, os independente (Billington, 1980; Eley, 2002). das mulheres operárias, em geral esquecidas
O grito por igualdade, liberdade e discursos hegemônicos no contexto francês Os principais socialistas do período, como das primeiras tentativas de organização
fraternidade, no entanto, não tardou a ser pós-revolucionário continuavam girando Saint-Simon, Fourier e Owen, nutriam uma dos trabalhadores”. Sua tentativa de inserir
questionado em sua extensão, uma vez que em torno da suposta superioridade moral visão considerada progressista sobre equidade o feminismo como tema prioritário no
não incorporava as mulheres ao tão estimado e intelectual masculina - que justificava sua de gênero, o que levou muitas mulheres socialismo emergente é um dos pontos
lema revolucionário. Mas se, por um lado, posição de poder na sociedade - versus a a aproximarem-se desse campo político, mais inovadores da produção intelectual de
o movimento político revolucionário excluía inferioridade feminina, marcada pela fraqueza fazendo com que o duplo engajamento Tristan (Cross, 1988). Sua atuação como
as mulheres, por outro, preparou o terreno natural da mente e do espírito das mulheres, socialista e feminista não tenha sido incomum militante nessas duas esferas não se restringiu
que permitiu o desenvolvimento de críticas e que servia para justificar sua subordinação e à época (Cross e Gordon, 1996; McMillan, a reclamar direitos iguais para as mulheres no
feministas baseadas na maior visibilidade que exclusão da vida política. 2000; Moses, 1984). sistema político vigente, mas de atrelar essas
adquiriram as desigualdades. A ausência das demandas a uma profunda transformação
mulheres no documento revolucionário foi Certos estudiosos descreveram como As remissões textuais de Flora Tristan a social. Nesse sentido, a instrução e
logo percebida e contestada pelas intelectuais o desenvolvimento do capitalismo e a socialistas franceses e ingleses3 não deixam reconhecimento das mulheres como cidadãs
da época, com destaque para Olympe de reorganização da economia no século dúvida sobre sua familiaridade e inserção capazes de contribuir igualmente na sociedade
Gouges,2 que publicou a “Declaração de XIX modificaram o lugar ocupado pelos no debate em curso nos anos 1820 e 1830, constituía um ponto central.
Direitos da Mulher e da Cidadã” em 1791, trabalhadores na sociedade (Beaud, 1987). no qual ela viria a ter papel de destaque
e para Mary Woolstonecraft, autora de A onda de desarticulação social decorrente com a publicação de panfletos, artigos de
“Reivindicação dos Direitos das Mulheres”, da industrialização na Inglaterra engendrou jornais e livros, sendo “A União Operária”,
escrito na Inglaterra em 1792. Indo contra um renovado debate público sobre como publicado em 1843, o mais importante para Nota biográfica
a corrente do senso comum e dos grandes lidar com o pauperismo e a mendicância. essa discussão. Nesse livro-panfleto, Tristan já
teóricos do iluminismo francês, como Grosso modo, contrapunham-se as posições proclamava o princípio da autoemancipação Nascida em 1803 na França, Flora Céléstine
Jean Jacques Rousseau e Voltaire, que paternalistas tradicionais, baseadas nos Thérèse Tristán y Moscoso era filha do
eram veemente contrários à extensão de estatutos mercantilistas e no auxílio paroquial, peruano Mariano de Tristan Moscoso, oficial
3 Flora Tristan teve contato com as doutrinas do exército espanhol, e de Anne-Pierre
a um reformismo racionalista e liberal,
dos três socialistas, e conheceu pessoalmente Fou-
2 Olympe de Gouges será guilhotinada dois baseado nas novas ciências da economia rier e Owen. No entanto, apesar do diálogo com suas
Laisnay, uma francesa de origem humilde
anos após a publicação da Declaração, e entrará política e da ética utilitarista (Hobsbawn, ideias, a escritora faz questão de declarar que não é que havia emigrado para a Espanha fugindo
para a história como a segunda mulher a ser guilho- 2003). Nos interstícios desse debate, na “nem saintsimonista, nem owenista, nem fourieris- da clima instável da França revolucionária. A
tinada pela Revolução Francesa, logo após Maria busca por ideais de maior equidade social, ta” (Tristan, 2003), apontando para uma construção formalização da união dos dois, realizada em
Antonieta. particular do que entendia como socialismo.
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território espanhol, nunca foi comprovada. também como uma forma de fugir do alcance pois a viajante se apresentou como solteira,4 classe operária, a prostituição e as mazelas
Desta maneira, apesar de a família paterna das perseguições do marido. A partir de sustentando com uma mentira “a falsa trazidas pelo desenvolvimento acelerado
ostentar fortuna e renome em seu país natal, 1825, ela realizou inúmeras viagens, para situação que lhe havia sido imposta pelos do capitalismo. Perpassando a maioria dos
Flora Tristan e sua mãe passaram por grandes várias províncias dentro da França, para a preconceitos da sociedade” (Tristan, 2000:53). seus escritos, o questionamento das relações
dificuldades financeiras após a morte de Inglaterra (1826, 1831, 1835 e 1839) e para o O relato dos três meses em terras peruanas sociais construídas pelas e para as mulheres
Dom Mariano. Sua infância nos arredores Peru em 1833-4. Em sua trajetória, as viagens aparece em 1837 com Peregrinações de uma pária, da época permite indagar sobre as estratégias
de Paris transcorreu em meio a uma situação aparecem como momentos importantes de que pode ser visto como um misto de diário de sobrevivência e autonomia mobilizadas
financeira bem modesta. Flora aprendeu inflexão, sobretudo por terem fornecido a de viagem, autobiografia e manifesto político pelas mulheres num contexto em que sua
a ler e a escrever com a mãe, nunca tendo matéria para uma série de escritos até 1844, (Varikas, 2016). circulação, tanto espacial quanto intelectual,
frequentado a escola. Aos 17 anos, começou ano de sua morte. era constrangida pelos padrões de gênero
a trabalhar no ateliê de litografia do pintor Após algumas viagens à Inglaterra (entre vigentes (Grogan, 1992).
André Chazal, com o qual se casou em 1821, 1828-1831 e 1835-1840), Flora publicou
muito influenciada por sua mãe, uma viúva “Passeios a Londres” (1840) 5 - cidade a Como já salientado pelos estudiosos do tema
de parcos rendimentos. A união, que gerou As peregrinações da pária qual se referia como “la ville monstre” - , no das viagens na trajetória de Tristan (Donato,
2 filhos e 1 filha, se revelou um desastre e qual realizou um estudo crítico da realidade 2010; Foley, 2004; Grogan, 1998; Pratt, 1999;
durou cerca de três anos. Quando estava A trajetória de Flora Tristan contraria, em inglesa, investigando as condições da vida da Schlick, 2012), seus relatos, que podem ser
grávida de sua terceira e última filha, Aline grande medida, as versões mais difundidas lidos na chave de autobiografias, constituem
Marie, utilizando-se da desculpa de que as sobre o surgimento das ideias socialistas, 4 Como o divórcio era proibido na França, um rico material tanto para se familiarizar
crianças precisavam de ar fresco, foi para assim como sobre os papeis sociais ainda que vivendo separada de seu marido, André com as sociedades francesa, inglesa e peruana
a casa da mãe e não retornou mais para a destinados às mulheres na França pós- Chazal, o estado civil de Tristan permanecia o de da época, quanto para se aproximar, em
companhia do marido. Chazal, que não se revolucionária. Tristan foi uma mulher uma mulher casada. Como é possível constatar em primeira pessoa, do pensamento da escritora.
conformava com a separação e com o espírito vivendo sob a égide do Código Civil seus relatos de viagem, Flora Tristan foi levada a es- Ao relatar suas viagens, Tristan se revela
Napoleônico (1804), que, entre uma série conder essa informação em diversos contextos como
livre e autônomo de Flora, passou a persegui- uma narradora talentosa, uma investigadora
uma estratégia de sobrevivência, o que implicava
la incessantemente durante treze anos, e, entre de restrições às mulheres, as proibia de um autocontrole constante para não revelar sua ver- atenta e perspicaz da sociedade de seu
as batalhas legais pela separação e a guarda das viajarem sozinhas para o exterior. Contudo, dadeira situação. tempo e uma sofisticada observadora da vida
crianças, chegou ao extremo de uma tentativa a escritora realizou inúmeras viagens, assim social.6 A partir de sua própria experiência
de assassinato em 1838, quando disferiu dois como escreveu sobre elas. Após a viagem ao 5 Na primeira edição de Promenades dans enquanto filha bastarda e esposa separada,
tiros à queima roupa em sua [ex] esposa. Peru (1833), quando partiu para a América Londres, Flora Tristan recomenda aos seus leitores o
em busca da herança paterna, Flora publicou livro “A vindication of the rights of women” (1792),
Após a separação, Flora deixou os filhos aos
da filósofa e feminista inglesa Mary Woolstonecra- 6 Para Susan Grogan (1997:79), “Tristan’s
cuidados da mãe e passou a trabalhar como sua primeira brochura, “Da necessidade de ft, demonstrando sua afinidade de pensamento e lhe studies of French, English, and Peruvian society can
dama de companhia de uma família inglesa, acolher bem às mulheres estrangeiras” (1833), prestando, de certa forma, uma homenagem. A de- be seen not merely as works of literature, then, but
que, além de a possibilitar realizar algumas destacando a importância da união entre as fesa da necessidade de educar as mulheres, que per- as ventures into ‘social science’, as she sought to ex-
viagens para fora da França, funcionou mulheres. A ida ao Peru, aliás, só foi possível passa o livro de Wollstonecraft, também encontrará pose the ‘facts’ she observed about those societies,
eco anos mais tarde n’ “A união Operária”. and the reforms which were essential”.
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Tristan desenvolve uma acurada reflexão “sujeitos dignos da história” (Gil Lozano; acesso e familiarização com suas reflexões8,
sobre a condição feminina, caracterizando Pita; Ini, 2000). nos obrigando a recorrer à bibliografia
as mulheres como párias, como as últimas secundária produzida majoritariamente em
escravas da sociedade francesa, como a inglês e francês.
proletária do proletário. Neste sentido, os relatos autobiográficos
são um material privilegiado, uma vez que Embora em um primeiro momento a
permitem acessar esferas pessoais da trajetória ausência de estudos e referências a Flora
As experiências de Flora Tristan na viagem da autora, transpondo para o exercício de Tristan possa parecer desanimadora, podemos
ao Peru funcionaram como um gatilho para análise a premissa feminista de que o pessoal utilizar essa escassez como convite e estímulo
um movimento entre a autopercepção como é político. Aplicar a perspectiva de gênero ao para a pesquisa e divulgação sobre suas
pária, informada por sua inadequação em estudo da literatura de viagem tem um grande contribuições. Flora Tristan foi uma figura
uma sociedade patriarcal, e o engajamento potencial analítico, pois contribui para alargar marcante do século XIX, pois reuniu em
ativo na luta operária e feminista nos anos as abordagens tradicionais que universalizam sua trajetória biográfica a original interação
1830 e 1840. Para tentar apreender esse as experiências de viagem sob uma ótica entre feminismo, socialismo e experiências de
movimento, é preciso recorrer a uma história masculina. viagens, aspectos que, combinados, fornecem
das mulheres, o que significa lidar com o novos elementos para olhar e compreender
problema da escassez de registros sobre Bastante conhecida em seu tempo (Cross, toda a efervescência política do contexto
suas vidas, seus hábitos, sua subjetividade 1988),7 Tristan foi de certa maneira esquecida francês pós-revolucionário, além de iluminar a
(Perrot, 1995 e 2006); significa, ainda, no final do século XIX e redescoberta reflexão contemporânea sobre feminismo.
como sugere Michelle Perrot (1995:9), no início do século XX. Depois de outro
“criticar a própria estrutura de um relato longo período de ostracismo, seus trabalhos
apresentado como universal, nas próprias começaram a chamar a atenção de estudiosos
fora do contexto francês (Doris e Beik, 1993). 8 Uma busca preliminar na base de dados
palavras que o constituem, não somente
da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, na
para explicitar os vazios e os elos ausentes, No Brasil, no entanto, apesar da constatação seção de jornais e revistas, nos permite encontrar re-
mas para sugerir uma outra leitura possível”. da circulação de suas ideias, o estudo de ferências à Flora Tristan desde 1841. Ainda que as
Inserir as mulheres na história pressupõe, sua vida e obra é praticamente nulo, o que menções à autora e sua obra sejam escassas e inter-
de um lado, a redefinição dos conceitos e dificulta às/aos leitoras(es) brasileiras(os) o mitentes, nos permitem constatar que seus escritos
noções tradicionais do que é historicamente circularam no Brasil. Não se sabe qual a extensão do
interesse por sua obra em solo brasileiro, no entanto,
Luna Campos é Mestra em Sociologia
importante e a inclusão de outras formas
de experiência pessoal e subjetiva como
ainda hoje existem pouquíssimas análises e mesmo e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ e
traduções de sua obra. A principal referência nacio-
relevantes para a análise histórica, assim 7 O livro “A União Operária, lançado em nal é uma curta, porém essencial, biografia escrita doutoranda em Ciências Sociais na
como, de outro, uma tomada de posição 1843, já contava em 1844 com duas edições, sendo a por Leandro Konder. Ver: KONDER, Flora Tristan: UNICAMP.
política que eleva as mulheres à categoria de segunda tiragem de 10 mil exemplares. Ver: Varikas, uma vida de mulher, uma paixão socialista. Rio de
2016. Janeiro: Relume Dumará, 1994. contato: lunaribeirocampos@gmail.com
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Gênero, racionalidade e escrita


em “O papel de parede amarelo”
Teresa Soter Henriques

resumo O conto “O papel de parede amarelo”, de própria biografia de Gilman, dado que a
Este trabalho é uma análise do conto “O Charlotte Gilman, foi publicado em 1892. autora recebeu tratamento psiquiátrico similar
papel de parede amarelo”, de Charlotte Nele, uma protagonista mulher é levada a àquele descrito no conto.
Perkins Gilman. Sua leitura contemporânea, uma casa de campo para tratar o que seu
sob ótica feminista, possibilita revisitar marido e médico, John, considera ser uma Os debates ao redor da obra se debruçam
esse clássico a partir de questões sociais “depressão nervosa passageira – uma ligeira em torno de temáticas feministas, como
contemporâneas. Dessa forma, o objetivo propensão à histeria” (Gilman, 2016, p. 12). a “histeria” enquanto uma forma de
é estudar a obra a partir de seus diferentes Ela é colocada em um antigo quarto para patologização da mulher e os horrores
aspectos e significados ligados ao gênero e à crianças revestido com um papel de parede dos seus tratamentos à época. Além disso,
leitura de autoras mulheres. Para isso, foram amarelo que a perturba, mas seu desejo de se abordam as formas como o casamento
utilizados tanto o conto em si quanto a obra mudar para outro cômodo é negado. Dessa tradicional, assim como a maternidade, pode
teórica “Women and economics” (Gilman, forma, desenvolve pensamentos obsessivos ser uma opressão para as mulheres. A crítica
1998) e “Um teto todo seu” (Woolf, 1990). sobre o papel, vendo mulheres aprisionadas literária também tratou da a infantilização
Esses textos possibilitam pensar a ficção dentro dele. Nessa casa, convive com Jennie de mulheres, e a própria autora escreve o
a partir de seu aspecto de crítica social, – sua cuidadora – e ocasionalmente com livro como uma denúncia do tratamento que
mas também realizar uma crítica da forma seu marido. O tratamento da mulher inclui recebeu para a sua depressão.
como a ficção produzida por mulheres é privação de suas vontades, como a limitação
do convívio social e a proibição de escrever. O aspecto biográfico de Gilman como uma
comumente recebida. O trabalho trata-se
A despeito disso, a escrita acaba por ser seu mulher que teve piora de sua depressão
de uma tentativa de releitura de um clássico
subterfúgio, resultando na produção do que quando em contato com o marido (Hedges,
da literatura a partir de um viés feminista
seria o texto do conto. A partir do estilo de 2016), seus escritos sobre a condição de
que busca não menosprezar a obra de sua
terror, Gilman desenvolve a evolução do submissão da mulher - que era não só injusta,
autora. Para tal, aborda a forma como a
processo mental da protagonista ao longo da como improdutiva (Gilman, 1998) - e a
noção de racionalidade é perpassada pelos
sua submissão ao tratamento imposto pela sofisticação literária de seu conto, quando
papéis sociais de gênero e instrumento para a
autoridade médica e do casamento. combinados, formaram um texto rico em
opressão.
significados múltiplos.
Desde sua publicação, o texto recebeu
palavras-chave diversas interpretações diferentes. A
Feminismo; literatura; Gilman; loucura; gênero primeira, de que seria um exemplo
fundamental do estilo gótico da literatura de A crítica literária
horror, posteriormente deu espaço a uma
interpretação feminista dos temas ali tratados. As interpretações sobre “O papel de parece
Além disso, muitos associaram o conto à amarelo”, ainda que interessantes, não são
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comumente conectadas umas às outras. A mas, em se tratando de autoras mulheres, sofistica essa análise, argumentando que esse vistas nem traduzidas em números” (Gilman,
leitura da obra do ponto de vista de seu esse aspecto é sempre exagerado. O texto enlouquecimento possibilitaria uma revolta 2016, p. 12).
estilo – as formas como reproduz e subverte é declaradamente baseado na experiência contra o marido – e, mais amplamente, o
o gótico (Johnson, 1993; Ryan, 1988) – não de tratamento da autora, mas foi mediado patriarcado – que a colocou nessa posição Esses polos são, de fato, polos de gênero,
dá o devido valor à particularidade simbólica pela análise e criatividade, e fazer derivações (Treichler, 1984). estabelecendo papéis masculinos e femininos
do texto. Analisar a obra de uma autora diretas da biografia ignora a dimensão fixos. Essa estrutura de poder, desde o
meramente pelo seu conteúdo político intelectual do trabalho. Essas duas análises concordam que há de fato começo, incomoda a narradora, que diz
(Haney-Peritz, , 1989; Treichler, 1984), no uma perda da racionalidade da protagonista. discordar dos métodos de seu marido. No
entanto, a coloca num espaço também isolado “O papel de parede amarelo” é, então, tanto Contudo, embora seja evidente que a entanto, ela oscila entre críticas e elogios a ele,
de interpretação no qual a literatura feminina uma obra importante de seu período, quanto narradora se torna obcecada com o papel de quando, por exemplo, diz que “ele se ocupa
comumente cai. Se algo foi escrito por uma um terreno fértil para interpretações sob parede e as imagens que vê no seu desenho, por completo de meus cuidados, e, portanto,
mulher, é frequentemente tratado a partir perspectivas feministas e contém temas em momentos ela própria se confundindo sinto-me uma ingrata por não lhe dar mais
dos temas femininos – ou mesmo feministas que podem ser encontrados na biografia da com a mulher que acredita estar presa atrás valor” (2016, p. 16). A narradora, no início
– e não do rigor estilístico, da elaboração da autora. Nenhum desses aspectos, isolados, do papel, a evolução da personagem não é do conto, ainda está parcialmente inserida
prosa ou de qualquer mérito literário. Essa é fazem jus à complexidade da obra, que de todo para um estado de irracionalidade. na realidade que seu marido estabeleceu, na
uma forma, ainda que bem-intencionada, de cumpre seu papel – enquanto o clássico que Ao contrário: a forma de ver o personagem qual ele é um cuidador bem-intencionado
invisibilizar a arte feita por mulheres em seu é - de fomentar interpretações crescentes do marido se torna progressivamente mais e ela uma mulher doente que precisa se
próprio conteúdo. Esse tipo de interpretação e diversas com o passar do tempo. Dada a racional ao longo do conto. adequar para que se cure. Ainda que dotado
não acontece com os homens, cujos textos natureza desse texto, serão trabalhadas aqui do poder da suposta racionalidade, é possível
não são vasculhados para que neles se questões ligadas à temática feminista que A temática da racionalidade, aliás, perpassa a perceber que essa estrutura é inerentemente
encontrem temas ditos “masculinos”. perpassa a obra, sem ignorar, no entanto, história em diversos momentos. A narradora irracional. O tratamento se baseia em ignorar
outros aspectos. e seu marido formam um par de oposição no os desejos da paciente, infantilizando-a,
A comparação constante com a biografia é qual, do lado dela, está a doença, a fraqueza, a isolando-a da família e proibindo-a de
também rara entre autores homens. Ainda irracionalidade, e a submissão. John, unindo a escrever. A progressiva revolta quanto à sua
que haja importantes conexões entre a autoridade de médico e marido, representa o condição não pode, portanto, ser vista como
ficção e a realidade, a supervalorização da Gênero e racionalidade tratamento, a força, a racionalidade e o poder. enlouquecimento ou perda da racionalidade.
história de vida de uma autora prejudica A sua tendência racional e cínica é enfatizada
o reconhecimento da criatividade e Há algumas interpretações comuns sobre em diversos momentos e já no início do A racionalidade feminina, no entanto, é
capacidade literária de autoras. Derivando a narrativa do conto. Uma delas coloca a conto a narradora estabelece que “John é subversiva pela sua posição na hierarquia
a obra diretamente de dados biográficos, história como meramente o progressivo prático ao extremo. Não tem paciência para social. Pensar racionalmente é um privilégio
ficam invisíveis os esforços artísticos da enlouquecimento da narradora, cujo questões de fé, nutre um imenso horror à masculino, e a identificação racional de
autora. Toda escrita é, em certa medida, tratamento para sua condição mental é superstição e zomba abertamente de qualquer que as ações do marido pretensamente
autobiográfica, mesmo que simbolicamente, contraproducente. A segunda interpretação conversa sobre coisas que não podem ser cuidadoso são, na verdade, controladoras e
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causadoras da doença é vista como mais um poder derivado da produção científica que de gênero às mulheres, há dois papéis Em “Women and economics”, Gilman
sintoma de loucura. Desse modo, a união era indissociável da opressão das mulheres. possíveis: de criança, ou de cuidadora. Ao coloca centralmente esse aspecto no princípio
marido-médico leva a um ciclo no qual a O tratamento desenvolvido por esse médico falhar enquanto cuidadora – de seu marido, da humanidade, afirmando que “a energia
discordância a respeito do tratamento é vista real, assim como a sua imposição por um mas sobretudo de seu filho –, a narradora é maternal, trabalhando externamente através
como irracional, levando, por sua vez, a mais marido-médico e irmão no conto, dependem condenada a uma regressão à infância. São de nosso organismo elaborado, é a fonte da
tratamento. A narradora identifica que “John da produção de conhecimento por homens duas formas de submissão distintas, uma indústria produtiva, a principal corrente da
é médico, e talvez (…) talvez seja por isso que sobre mulheres, com o objetivo de anulação na qual não se pode decidir sobre a própria vida social” (1998, p. 126, tradução da autora).
não me recupero mais rápido” (2016, p. 12), da sua individualidade. vida, e a outra na qual as decisões se dão em Essa energia instintiva é justamente aquela
e não há nada de irracional nessa percepção. função do outro, da família. Ao ser incapaz de em que a narradora do conto não cumpre seu
Mais importante do que questionar se houve O desenvolvimento progressivo da narrativa cumprir uma delas, a mulher é levada à outra. papel, que representa, para a própria autora,
ou não enlouquecimento da personagem, dá evidências das formas como a inadequação Se torna, portanto, além do estereótipo da o primeiro elo da sociedade. Em “O papel
ou ainda se esse enlouquecimento é da narradora ao seu papel social contribui “mãe ruim” – que é apenas uma metonímia de parede amarelo”, Gilman usa o recurso da
revolucionário, é o fato de que a própria para a sua suposta doença. Quando ela para a incapacidade completa enquanto ficção para colocar em questão a naturalidade
noção de racionalidade imposta é produzida escreve “Queria tanto ajudar John, ser mulher –, o estereótipo da “mulher histérica”. do amor materno do qual ela própria tratou.
enquanto discurso, e não uma condição para ele uma fonte de apoio e conforto, e, Seus desejos são tratados como desejos Para a autora, antes do desenvolvimento da
objetiva como se pretende. no entanto, eis-me aqui, convertida num infantis e as atividades adultas, como escrever sociedade humana, o que fazia das mulheres
fardo!” (2016, p. 20), fica claro que há uma ou visitar pessoas próximas, são proibidas. superiores aos homens seria justamente esse
A autoridade do discurso médico é percepção de sua falha enquanto esposa, e instinto que, apropriado pelos homens, levou
manifestada em três figuras: a do marido, a do uma inversão dos papéis da relação, em que A relação com a maternidade, ainda que não à opressão. Essa associação da opressão
irmão e a de Weir Mitchell. Os dois primeiros a mulher deixa de ser uma cuidadora para apareça centralmente na narrativa em si, pode derivada da maternidade não é linear, mas
são os responsáveis pelo seu tratamento ser cuidada. Quando se percebe que, além ser lida como o que a levou ao tratamento de está presente em ambas as obras.
atual, imposto sobre a protagonista através disso, há um bebê de quem a narradora repouso. Tem, portanto, grande importância.
do poder patriarcal. O terceiro é um médico não cuida, apontando para um caso do que A maneira como ela coloca o bebê na Além disso, na ficção Gilman coloca a
real da época, inventor do “tratamento de seria contemporaneamente chamado de narrativa, em uma escolha de estilo própria questão da dependência econômica da mulher
repouso”, uma forma do que a personagem depressão pós-parto, a ruptura com os papéis do terror, deixa claro tanto uma preocupação e da união sexual entre homens e mulheres
estava recebendo (Poirier, 1983). Gilman tradicionais de gênero fica cada vez mais como um distanciamento. No primeiro como uma união econômica. Em “Women
foi sua paciente, sendo esse o traço evidente. momento em que o leitor descobre que and economics” (1998), ela trata também dos
autobiográfico mais explícito do conto.A ela tem um filho, ela escreve “Um bebê problemas desse modelo para a economia
protagonista é ameaçada de ser levada a A personagem está em um quarto de tão querido! E, no entanto, não posso estar e a indústria, mas não deixa de lidar com as
Mitchell caso não melhore. Dessa maneira, crianças. Além disso, é tratada como incapaz, com ele, fico tão nervosa” (2016, p. 20). A consequências negativas desse modelo de
a autora trata, na ficção, do procedimento infantilizada pelo tratamento do marido. O maternidade é central tanto quanto fator que união para a vida das mulheres no casamento.
real para condições similares na época, ao fato de que ela falha em ser mãe de seu bebê a estressa como quanto justificativa para a E o tema da dependência financeira também
qual ela própria foi submetida, a partir de um não é uma coincidência. Nas atribuições necessidade do tratamento. perpassa “O papel de parede amarelo”, dado
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que a narradora é dependente do marido, que Ver uma mulher presa no papel de parede é cura para a suposta doença da autora é que pelos próprios instintos conflitantes, que
faz questão de enfatizar os gastos que teve um delírio, mas também uma metonímia de ela pare de ter ideias próprias. teria decerto perdido a saúde física e mental”
que realizar para lhe oferecer tratamento. um processo mental lúcido, a busca pela raiz (Woolf, 1990, p. 62), descreve o que tanto
do incômodo sentido sobre sua condição. A A narradora busca estímulos dos quais foi Gilman quanto sua personagem passam.
A crescente obsessão com o papel de parede, narradora percebe, emocionalmente, que há privada durante o tratamento. A escrita é um Uma mulher com talento para um trabalho
ainda que ganhe aspectos fantasiosos e um algo de estranho com a casa, com o papel deles, e o faz escondida, defendendo que intelectual, desencorajada socialmente e,
grau excessivo, pode ser vista não como de parede – detestado até pelas crianças sempre achou que escrever lhe faria bem. posteriormente, diretamente proibida por
um enlouquecimento, mas uma recusa a se que moraram anteriormente no quarto – e Quando trata das visitas que gostaria de uma figura de autoridade de marido-médico
submeter à racionalidade masculina. A razão sobretudo com o comportamento de seu receber, John “(...) diz também que preferiria de exercê-lo, é levada à degradação de sua
é uma exclusividade dos homens, e resta às marido, refletindo sobre como “Às vezes pôr fogos de artifício sob meu travesseiro situação mental. Em última análise, é possível
mulheres se sujeitarem a ela. A percepção imagino que, na minha condição, se tivesse a permitir que eu desfrute de companhias especular que, se não houvesse essas barreiras
de que essa racionalidade e o conhecimento menos contrariedades e mais convívio social tão estimulantes neste momento.” (2016, p. para a sua produção, não haveria a suposta
médico a ela atrelado são injustos e e estímulos...”(2016, p. 13). Dessa forma, a 23) Essa tentativa de retirada de atividades doença de princípio.
ineficientes desperta na narradora um narradora se vê obcecada com compreender e influências externas deixa o vazio que
desenvolvimento obsessivo de pensamentos os seus incômodos, e encontra uma mulher a narradora preenche com observação Algumas possibilidades de interpretação
alegóricos sobre a sua condição. presa tanto no papel de parede quanto dentro minuciosa e reflexão sobre o papel de dependem da confiabilidade da narradora. Ou
de si mesma. parede, o que depois se torna um delírio. seja, de saber se é viável partir de sua visão
Que seja o pensamento obsessivo a forma de O tratamento imposto por John pode ser dos fatos como dados. Se o for, o desprezo
suposta perda da razão da narradora não é A ideia da mulher presa passa a ser a visto, desse modo, como o que deu espaço às reivindicações da mulher se torna mais
coincidência. Pensar é uma atividade reservada explicação do que há de errado com o papel para o agravamento da doença, mas, mais explícita. Para ela, tanto John quanto Jennie
para os homens. A narradora, privada de de parede, e também do que há de errado importante do que isso, a formação da crítica também observaram o papel de parede com
escrever, passa a se apoderar do recurso do com o seu próprio tratamento. A obrigação à sua condição. espanto. John, inclusive, estava disposto a
pensamento e da análise do papel de parede de não pensar sobre a própria condição – e trocá-lo, até o momento em que sua mulher
amarelo. Sua obsessão em “decifrar” o padrão de pensar, no geral – é parte intencional O papel de John, e da sociedade como um parece excessivamente preocupada com
é uma forma de subverter a sua proibição do tratamento. A narradora comenta que todo, na vida da narradora pode ser descrito a ideia. O desgosto estético inicial pelo
de pensar ativamente. Primeiro ela tem um “John me advertiu a não me entregar a da mesma forma que Virginia Woolf trata objeto poderia, portanto, ter sido banal,
desgosto estético e emocional com o objeto, tais devaneios. Ele disse que, com o poder a sua ideia da irmã de Shakespeare (Woolf, ganhando proporção na mesma medida da
mas ela vai gradualmente racionalizando esse de imaginação que tenho e meu hábito de 1990). Ao afirmar que “Pois não é preciso desconsideração dos desejos da narradora.
desgosto, identificando os elementos que inventar histórias, uma debilidade dos nervos muito conhecimento de psicologia para se
a incomodam. O pensamento, símbolo de como a minha só pode resultar em fantasias ter certeza de que uma jovem altamente Num sentido metafórico, a própria ideia
racionalidade, é o que leva a narradora a sair exaltadas, e que eu devo usar a minha força de dotada que tentasse usar sua veia poética do “padrão” do papel de parede do qual
do papel de parede, em um processo que não vontade e meu bom senso para controlar essa teria sido tão contrariada e impedida pelas a mulher se liberta pode ser interpretada
pode ser reduzido a um enlouquecimento. propensão.” (2016, p. 22) Isto é, uma parte da outras pessoas, tão torturada e dilacerada como um jogo de palavras com o conceito
48 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 49

de padrão de comportamento social. Essa A narradora se coloca em contraste com isolamento, todos os aspectos do tratamento as dificuldades do puerpério e formas
padronagem do papel de parede é responsável duas formas femininas diferentes: Jennie e a que efetivamente era proposto na época, são como a restrição da mulher ao lar pode
pela morte de quem tentou sair dele, “Mas mulher – e posteriormente as mulheres – do frutos de uma produção de conhecimento ser psicologicamente negativa. Além disso,
não há quem consiga atravessar esse padrão papel de parede. A primeira é a conformidade de homens sobre mulheres. Quando quando em “Women and economics” (1996)
— ele é asfixiante; acho que é por isso que com os padrões de gênero, no papel de concretizado na prática médica, esse saber trata do poder intrínseco da mulher antes da
tem tantas cabeças” (2016, p. 56). A vida cuidadora da narradora. As segundas são age de forma a incapacitar o seu pensamento civilização, apresenta argumentos que foram,
de uma mulher intelectual, que se interessa justamente o contrário, mulheres rastejantes. crítico e criatividade. de alguma forma, recuperados por feministas
pela escrita e pelo pensamento, na sociedade A narradora chega a se amarrar com uma que reivindicam um feminismo da diferença.
vitoriana, pode ser lida como um contexto de corda para não acabar como elas, resistindo a
padrão imposto inescapável, no qual qualquer ser uma das mulheres do papel de parede. Em A análise aprofundada de “O papel de parede
tentativa de subversão leva à morte. No caso outros momentos, se coloca como tendo ela Considerações finais amarelo” é uma forma de enaltecer a obra
da autora, essa morte é simbólica, uma morte própria saído do interior do papel. Sua relação como um clássico, a partir de seus méritos
de sua vida ativa, da qual foi privada pelo oscilante entre as formas de feminilidade As questões presentes no conto, embora em literários e políticos, raramente atribuídos a
tratamento da doença mental. apresentadas demonstra uma inadequação contexto geográfico e temporal diferentes, mulheres. Além disso, possibilita exploração
aos seus papéis enquanto mulher, e uma permanecem pertinentes. Fica claro, portanto, simbólica que acrescenta ao debate sobre
Quando passa a ver a mulher do papel resistência aos comportamentos das mulheres que a autora captou formas do que chama de a condição das mulheres na época e no
de parede sair durante o dia, rastejando, a que tentaram se libertar do papel de parede. “relação sexual-econômica” (1998) que iam presente.
narradora identifica que “Deve ser muito Em última instância, ela acaba como as além da restrição de sua narrativa. Ao abordar
humilhante ser flagrada rastejando à luz do outras, rastejando. Sua descrição, no entanto, a dependência econômica, a exploração
dia!” (2016, p. 58). No entanto, ela própria deixa sempre claro que essa libertação vem no casamento, a limitação da maternidade
passa a rastejar escondida. Essa forma de acompanhada de grande sofrimento. romantizada e a loucura esteriotípica das
se mover pode ser vista como um recurso mulheres, Gilman traz à luz temas com
de estilo, mas é também claramente um Virginia Woolf (1990) chama atenção para desdobramentos em voga até. Recuperar seus
comportamento inapropriado para uma as formas como homens desqualificam a textos clássicos é, portanto, uma forma de
mulher. A mulher rastejante pode ser vista, possibilidade de mulheres produzirem ficção, trazer inovação para o debate atual.
desse modo, não como simplesmente a e como essa opinião se perpetua. No caso da
própria narradora, mas como ela se vê: presa narradora do conto, há unanimidade entre Ainda que trate especificamente de uma
e incapaz de se comportar de acordo com as os homens – seu marido e seu irmão – sobre forma de lidar com a “histeria” que é típica
expectativas. É nessa mesma fase que Jennie como tratar a sua condição. Para a autora, de seu tempo, as maneiras de isolamento
da mulher inadaptada à realidade doméstica Teresa Soter Henriques é graduanda
passa a ganhar mais destaque na história, “havia uma enorme maioria de opiniões
como cúmplice de John contra a narradora. masculinas no sentido de que nada se poderia permanecem sob outras formas. Esse tema no bacharelado em Ciências Sociais
esperar das mulheres intelectualmente” tem conexões com o debate político atual no IFCS-UFRJ.
(Woolf, 1990, p. 67). A proibição da escrita, o sobre a desnaturalização da maternidade, Referências bibliográficas
contato: soterteresa@gmail.com
50 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 51

GILMAN, Charlotte Perkins. (2016) O papel de Short Story Criticism. Detroit, v.13, ano 1993.
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- (1998) Women and economics: a study of the economic Cure: Doctor and Patients.” Women’s Studies 10
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Charlotte Perkins Gilman: The Woman and Her Work, Diagnosis and Discourse in ‘The Yellow
editado por Sheryl L. Meyering, pp. 95-107. Ann Wallpaper’”. Tulsa Studies in Women’s Literature.
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amarelo. Rio de Janeiro: José Olympio. pp. 71-110.

JOHNSON, Greg. (1993) Gilman’s Gothic Allegory:


Rage and Redemption in ‘The Yellow Wallpaper’. In:
53
Uma brasileira ilustre: Nísia
Floresta e a luta por liberdade
e direitos.
Vaneza de Azevedo

resumo O ano é 1858. Uma mulher detém-se na Grécia” (Trois ans em Italie, suivis d’um Voyage
A obra da escritora brasileira Nísia Floresta janela de um expresso que liga Paris a em Grèce) publicado em 1864, Nísia começaria
fora em grande medida investigada a Marselha. Ela está a admirar a paisagem. Ao a narrar sua jornada nas terras dos clássicos,
partir do seu papel enquanto educadora e vislumbrar o Mediterrâneo “tão profunda e ao acompanhar o movimento de unificação
diretora do Colégio Augusto, relegando-a viva impressão” percorre seu corpo, e dele italiana.
ao esquecimento no que se refere à história emergem as lembranças de inúmeras histórias
intelectual, e à Literatura de Viagem. Este das nações que abriram caminho pelo mar Durante a viagem que está por começar, a
artigo pretende refletir sobre um de seus e do impulso humano que o explorou. A partir do Porto de Marselha, Nísia definiria a
relatos de viagem, focalizando na narrativa de paisagem mediterrânea também suscita si mesma como “dédalo no exílio”. Desde a
sua visita à cidade de Marselha. A análise das a memória da terra natal banhada pelo primeira estadia na Europa – com a desculpa
correlações entre a experiência na Europa e Atlântico, com suas palmeiras, mangueiras e de sarar uma suposta queda de cavalo sofrida
no Brasil – uma constante em seu trabalho - e jaqueiras; o Brasil. por Lívia, sua filha – Nísia resolvera residir
a ênfase dada, principalmente, às descrições em Paris. Aos seus olhos, Paris era uma
da vida de mulheres compõe a paisagem dos Do mirante da Igreja de Notre-Dame de “Atenas moderna” (Lucio, 1999) para a qual
relatos de Nísia, dando-nos um panorama de la Garde essa mulher observa Marselha, retornara no ano anterior, depois de uma
sua trajetória pessoal e intelectual. uma cidade mercantil e dada ao trabalho, e rápida viagem pela Alemanha.
vê o Castelo de If, uma das muitas imagens
formadas em sua alma pelas narrativas No entanto, não era de Paris que nossa
palavras-chave europeias lidas ao longo dos trinta e nove viajante teria precisado sair às pressas, mas
Nísia Floresta; Relatos de Viagem; Séc. XIX; anos vividos no Brasil.1 Ela se lembra, sim, do Rio de Janeiro. Devido à grande
Direito das Mulheres; História Intelectual sobretudo, de “O Conde de Monte Cristo”, repercussão do livro “A lágrima de um
romance escrito por Alexander Dumas. Caeté” – obteve duas tiragens seguidas em
maio e junho de 1849 – sobre a Revolução
A figura da viajante, legada a nós por seus Praieira, ocorrida em Pernambuco no ano
diários e demais publicações e que se prepara anterior. O poema de 712 versos correlaciona
para em breve dar início a mais uma de o massacre contra os índios promovido pelos
suas longas viagens, é a da escritora Nísia colonizadores, com a morte dos insurgentes
Floresta Brasileira Augusta. No livro “Três nas mãos das tropas monárquicas.
Anos na Itália seguido de uma viagem à
Quando pôs os pés pela primeira vez na
1 A primeira viagem de Nísia para Europa Europa, na Paris de 1849, nossa viajante
ocorreu no dia 2 de novembro de 1849. Especula-se encontrou um clima conturbado, que ainda
que devido à repercussão de “A lágrima de um Cae- reverberava os desejos da Primavera dos
té”.
54 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 55

Povos (Hobsbawn, 2004). Quase dez anos determinada cidade, país e paisagem visitada. extremamente sobrecarregadas, fatigadas e visto do porto de Marselha é a ruína marcada
depois, ao visitar Marselha, deseja ouvir Muitos desses guias apresentavam passagens desnutridas3. pela presença de inúmeras figuras históricas
entoarem a Marselhesa2. Os movimentos de romances com as descrições – feitas pelos e literárias, presas devido às reviravoltas
revolucionários, testemunhados a princípio personagens – ao longo dos territórios de E ainda sobre a insegurança sentida em meio políticas resultantes de cada tentativa de
no Brasil, foram alvo de seu interesse e países abordados pelo livro. ao porto de Marselha, vislumbrando todo revolução.
ainda que mal fadados, trouxeram- lhe a o itinerário a ser percorrido na viagem pela
esperança vitória dos ideais republicanos. A busca por tais referências demonstra a Itália, Nisia decide voltar-se para o passado Desta forma, o itinerário de Nísia persegue a
produção de uma narrativa, cujo ponto de republicano. A cidade de Marselha, reavivada senda dos ideais românticos e republicanos de
partida se dá pela inserção em um campo pelos ouvidos de Nísia que a cada esquina liberdade. Marselha será um ponto de inflexão
A lembrança do hino heroico da 1° literário reconhecido e extremamente ouvia tocarem a Marselhesa, retorna assim – como o fora para Edmond Dantés – na
Internacional lhe aguça os sentidos, a difundido no século XIX. Tal perfil, no aos áureos tempos de cidade romana, cidade senda dos espíritos que não se domam frente
imaginação; Nísia deseja entusiasmar entanto, somente corresponde a mulheres cujos fundamentos políticos são republicanos, às injustiças e prosseguem em sua jornada,
também as ruas de Marselha e revelar-lhe como nossa Nísia Floresta, pertencentes às universalistas, igualitários. O Castelo de IF apesar de grandes adversidades e em meio à
os encantos republicanos de cidade romana classes altas da sociedade brasileira. Como perda de seus entes queridos.
há muito perdidos. Remete-se para tanto evidencia em sua passagem pela Alemanha
3 No artigo “A mulher” (1997), original de 1857, Nísia fala de sua
às figuras de Brutus e Platão, as figuras ou no interior da França, as mulheres viagem ao interior da França. Acompanhada de uma senhora de suas relações,
a autora visita uma aldeia a 20 léguas de Paris. A amiga não identificada parte
simbolicamente virtuosas e dignas que pertencentes às classes mais baixas da em busca do neto enviado ao interior, pelos pais, no intuito de ser aleitado
povoavam o imaginário republicano, visto sociedade – respectivamente, operárias e no campo. O que encontram é um cenário devastador, uma criança esquálida,
que aos três anos tem dificuldade de andar e vive no ambiente impregnado de
Sobre Nísia Floresta:
sua oposição aos governos autoritários. camponesas – trabalhavam duro nas fábricas miasmas do celeiro. Uma curiosidade tão grande quanto a pena sentida, frente
ao padecimento da inocente criança e do horror do abandono deste pelos pais,
e nos campos. Elas tinham direito a expor- faz Nísia desejar estudar esse hábito francês de enviar crianças para serem Nísia Floresta Brasileira Augusta foi uma
amamentadas no interior. Continua sua estadia conversando com as mulheres
se publicamente e fazer uso de suas próprias dos arredores da casa da pastora, na qual fica hospedada pelo asseio das insta-
escritora e educadora oitocentista, nascida
A narrativa de Nísia é construída através economias. lações. Vê então, uma imensa quantidade de mulheres trabalhando enquanto em 12 de Outubro 1810 na Vila Imperial
amas de leite, ao mesmo tempo, em que acumulam as funções de trabalho na
de um processo de criação, muito em voga roça. Critica de maneira enfática as famílias – fazendo longas ressalvas no caso de Papari, província do Rio Grande do
das amas da roça, visto a necessidades materiais que as fazia aceitar a função –
à época, que consistia em citar e descrever Nísia – no Brasil ou na Europa – esteve que enviam seus filhos para o interior, explorando as necessidades das campo- Norte. Foi fundadora e diretora do “Colégio
nesas e suas condições de vida miserável, enquanto gozam do luxo e se gabam
– seguindo o modelo dos guias de viagens preocupada em registrar a vida das mulheres de sua modernidade. Comenta a existência de creches para filhos de operários
Augusto” para moças, no Paço Imperial,
– os acontecimentos que se passaram em comuns. A autora traça paralelos entre as nas áreas urbanas, enfatizando o recorte de classe daqueles que utilizam esse no Rio de Janeiro. No colégio eram
serviço, ou seja, os pobres. Nísia vê no envio das crianças para creche, uma
experiências europeias e brasileiras dando solução possível para o fim do abandono dos pequeninos e a exploração das ensinados, além das prendas, o português,
moças da roça. No entanto reconhece que devido ao orgulho e vaidade das
2 Ao longo do século XIX, La Marseillas fora ênfase ao deslumbre vivido nas cidades classes mais abastadas, o envio para creche seria um entrave social. Deste estu- o francês, o italiano e geografia. Nísia ficou
apropriada e resignificada por vários movimentos com o aparente progresso da civilização. do específico, a autora extrapola o espaço do acontecimento e passa a analisar
amplamente conhecida por ter acompanhado
a modernidade, o progresso, os congressos científicos e literários que em sua
revolucionários conforme os apelos de liberdade.
Fazendo com que uma parte da alta sociedade opinião eclipsam a sujeição, as vítimas, os inocentes que padecem por trás de as preleções de Auguste Comte sobre o
Sendo muito entoado pelos revolucionários de 1830 tamanha ostentação. Concluindo ser a causa de tal desigualdade a falta de uma
e 1848. Durante o Império de Napoleão II, o hino delegue seus afazeres, suas responsabilidades educação capaz de fortificar o espírito na execução do dever e na razão em método positivo. Posteriormente, tornaria-
benefício do outro. Sendo tal processo educativo possível somente através da
foi banido em todo o território francês, como afirma as serviçais. Explorando-as de maneira capacidade natural das mulheres para a caridade. Desta forma, sem uma edu- se próxima ao filósofo, com quem passaria
cação ampla que ofereça abertura para as mulheres trabalharem seu intelecto e
Nísia em Três anos na Itália seguidos de uma viagem que estas sejam, descritas por Nísia, como oferecerem ao mundo dos homens um saber completo que reúna razão – cultu-
a se corresponder. Dentre suas obras mais
à Grécia. Vol I Pp. 7. ra – e emoção – caridade –, não há possiblidade de extinção das desigualdades.
56 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 57

conhecidas estão: “Direitos das mulheres e Referências bibliográficas


injustiça dos homens” (Recife,1832) – uma
tradução livre de “Vindication of the rights FLORESTA, Nísia. (1997) “A mulher”.
of woman” de Mary Wollstonecraft –, In: Cintilações de uma alma brasileira.
“Conselho a minha filha” (Rio de Janeiro, Introdução de Constância Lima Duarte.
1842), “A lágrima de um Caeté” (Rio de Florianópolis: Editora Mulheres. p. 83 à 159.
Janeiro, 1849), “Opúsculo Humanitário”
(Rio de Janeiro, 1853) e “Scintille d’un’Anima HOBSBAWM, Eric. (2004) “A Primavera dos
Brasiliana”(Itália, 1857). Povos”. In: A Era do Capital. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2004. p. 27-50

LUCIO, Maria Valéria Marinho (1999). Uma


viajante brasileira na Itália do risorgimento:
tradução comentada do livro Trois Ans
En’Italie Suivis d’um Voyage en Gréce (vol.
I – 1864; vol II – s.d.) de Nísia Floresta
Brasileira Augusta/ Sônia Valéria Marinho
Lúcio. Campinas: [s.n.].

Vaneza de Azevedo é mestranda


na área de Teoria e Historiografia
no Programa de Pós-graduação em
História Social da Cultura, da PUC-Rio.
contato: vanezadeazevedo@gmail.com
O que é uma mulher? 59

Versões e contraversões do
essencialismo feminino
Anita Guerra

resumo Século XVIII, França e Inglaterra: Gouges mães mais prudentes – em uma palavra,
Essa pequena cronologia procura apresentar e Wollstonecraft melhores cidadãs.” (Wollstonecraft, 2014:
algumas das principais respostas a uma 179).
pergunta sempre crucial para o feminismo: o
que é uma mulher? Através da seleção de Nos primórdios do feminismo ocidental, É verdade que a mesma autora também foi
autoras-chave, busco familiarizar as leitoras Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft, uma das primeiras a defender que as mulheres
com diferentes formulações produzidas autoras de “Declaração dos direitos da não são inferiores aos homens e a tentar
para essa questão em diferentes tempos (do mulher e da cidadã” e “Uma reivindicação desnaturalizar características normalmente
século XVIII ao XXI) e espaços (da França dos direitos das mulheres”, respectivamente, atribuídas ao gênero feminino tais como
pós-revolucionária à América Latina do revolucionaram a visão sobre o papel delicadeza, docilidade e infantilidade, indo
pensamento decolonial). intelectual e social ocupado pelas mulheres diretamente contra grandes filósofos da
até então. Suas obras, realizadas no contexto época, como Rousseau. Mas Wollstonecraft
Longe de pretender ser exaustiva, essa breve da queda dos Antigos Regimes na Europa e não explicita, em sua obra, uma noção
introdução busca demonstrar que olhar para da ascensão do liberalismo político, foram as de igualdade entre os dois sexos; o que
as mulheres que se encontram fora do padrão primeiras a questionar o lugar feminino e a entende-se é que, apesar de terem os mesmos
branco, eurocêntrico e heterossexual é um tentar subverte-lo. direitos e deveres, mulheres e homens são
movimento crítico dos mais produtivos: ele essencialmente diferentes – o que explica
permite desfazer concepções essencialistas de Porém, seja por uma questão de construção a insistência dela e de Olympe de Gouges
“mulher” e colabora para a construção de um de argumento – de convencimento dos em referirem-se às mulheres como esposas,
feminismo que engloba o local, o regional, o leitores homens de que a desigualdade de irmãs, filhas e mães; sempre a mulher em
racial e o sexual. gênero é prejudicial à toda a humanidade função do homem: “As mães, as filhas, as
– ou de uma visão ontológica do feminino, irmãs, representantes da nação, pedem para
ambas autoras defendem uma ideia de constituir-se em assembleia nacional”, clama
palavras-chave mulher essencialista; a mulher como mãe, de Gouges em sua “Declaração dos direitos
feminismos; interseccionalidade; cronologia como filha e como esposa e, assim, como da mulher e da cidadã”.
biologicamente destinadas ao cuidado
maternalista. Wollstonecraft afirma, em “Uma Na mesma obra, a autora se refere às
reivindicação dos direitos das mulheres”: “Se mulheres como “o sexo superior em
os homens rompessem com generosidade beleza e em coragem, nos sofrimentos da
nossas cadeias e se contentassem com a maternidade”; Wollstonecraft, por sua vez,
parceria racional ao invés da obediência servil, defende que “o cuidado dos filhos na infância
iriam encontrar-nos filhas mais obedientes, é um dos grandes deveres unidos ao caráter
irmãs mais afetuosas, esposas mais fiéis e feminino por natureza” (Wollstonecraft,
60 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 61

2014: 181). Essas duas afirmações mostram Século XIX, Alemanha: Karl Marx e Qualquer semelhança com o papel atual da psíquico, econômico define a forma que a
claramente a postura essencialista das autoras Friedrich Engels mulher na sociedade não é mera coincidência. fêmea humana assume no seio da sociedade;
em relação às mulheres, com um feminino Apesar de o autor declarar que a primeira é o conjunto da civilização que elabora
maternalista “por natureza”. Além disso, Em 1884, Friedrich Engels publica o opressão de classe, que perdura até hoje, foi esse produto intermediário entre o macho
ambas as autoras tratam de mulheres brancas importante texto “A origem da família, da a opressão do homem em relação à mulher, e o castrado que qualificam de feminino.”
e heterossexuais; fatores sociais e políticos propriedade e do Estado”. Baseado em ao definir como “espontânea” essa divisão (Beauvoir, 1967: 9).
que invariavelmente influenciam qualquer pesquisa e em escritos deixados por Marx, do trabalho em que o homem é o provedor,
questão ontológica. Engels produziu uma análise histórica das o bruto, o agressivo; e a mulher, cuidadosa Ao negar um suposto “destino” pré-
sociedades humanas que analisa o papel social e pertencente ao lar, Engels está afirmando determinado pela natureza, Beauvoir rompe
das mulheres em diferentes épocas e colabora uma pré-disposição dos seres humanos de com o mito da feminilidade eterna, inata e
para desnaturalizar a família, demonstrando ocuparem um ou outro papel exclusivamente imutável; com o essencialismo do feminino
que o modelo nuclear e monogâmico a pelo seu gênero ao longo da história. Essa que a tradição científica masculina tentou
Século XIX, Estados Unidos: Sojourner que estamos habituados é uma invenção hipótese é reiterada em diversos momentos provar por séculos, como ela mostra no
Truth recente. No entanto, apesar de colaborar no livro. Um exemplo é a afirmação que primeiro volume de O Segundo Sexo. É
para desestabilizar a ideia de “família “o providenciar a alimentação fora sempre clara a referência teórica existencialista em
Sojourney Truth, em seu célebre discurso natural”, Engels demonstra ainda uma visão assunto do homem” (Engels, 2015: 58. Grifo sua tese, uma vez que uma das bases do
intitulado “E não sou eu uma mulher?”, essencialista de gênero: nosso.), colocando esse lugar masculino existencialismo é a afirmação que a existência
proferido em 1851, critica justamente essa de prover à família como algo natural dos precede a essência (Röd, 2008). A autora
noção branca e burguesa do feminino ao A divisão do trabalho é absolutamente homens - e, consequentemente, reafirmando critica explicitamente o que ela chama de
mostrar que a ela, mulher negra nascida espontânea: só existe entre os dois sexos. O a imagem feminina como essencialmente “teoria do eterno feminino” (Beauvoir, 1967:
sob escravidão, era negada a ideia de homem vai á guerra, incumbe-se da caça e dependente do sexo masculino. 7) ao fazer a seguinte afirmação “Quando
fragilidade feminina e do seu lugar de mãe, da pesca, procura as matérias-primas para emprego as palavras “mulher” ou “feminino”
demonstrando assim como essas concepções a alimentação, produz os instrumentos
não me refiro evidentemente a nenhum
de mulher não eram universais. Truth afirma necessários para a consecução dos seus fins.
arquétipo, a nenhuma essência imutável; apôs
A mulher cuida da casa, prepara a comida e
que sempre foi tratada da mesma forma que Século XX, França: Simone de Beauvoir e a maior parte de minhas afirmações cabe
confecciona as roupas: cozinha, fia e cose.
os homens na lavoura, arando e plantando, e Cada um manda em seu domínio: o homem Monique Wittig subentender: “no estado atual da educação e
reivindica seu papel social de mulher negra ao na floresta, a mulher em casa. Cada um é dos costumes”. Não se trata aqui de enunciar
questionar “e não sou eu uma mulher?”. Sua proprietário dos instrumentos que elabora Em 1949, Simone de Beauvoir revolucionou verdades eternas, mas de descrever o fundo
fala poderosa subverteu e colocou em questão e usa: o homem possui as armas e os o pensamento acerca do feminino com comum sobre o qual se desenvolve toda
a ideia de um feminino inato e genérico. petrechos de caça e pesca, a mulher é dona a clássica frase “Ninguém nasce mulher: a existência feminina singular” (Beauvoir,
dos utensílios caseiros. (Engels, 2015: 56). torna-se mulher” (Beauvoir, 1967: 9) que 1967:7).
abre o segundo volume de O Segundo Sexo.
Ela explica “Nenhum destino biológico, É bem verdade, porém, que Freud – a quem
62 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 63

a autora critica veementemente em sua obra, dedica-se a essa tarefa. Até mesmo na “Por sua própria existência, a sociedade ANNA RÜLING
diga-se de passagem – já havia afirmado esfera da vida sexual humana, os senhores lésbica destrói o fato artificial (social) da
que os papeis de gênero são socialmente logo verão como é inadequado fazer o constituição das mulheres como um ‘grupo O embrião da reflexão acerca do papel
construídos décadas antes. Afinal, ao afirmar comportamento masculino coincidir com natural’. Uma sociedade lésbica revela das mulheres lésbicas na teoria feminista e
que «a psicanálise não tenta descrever o atividade e o feminino, com passividade. pragmaticamente que a divisão dos homens social surgiu com Anna Rüling, jornalista
(Freud, 2006: 78). alemã considerada a primeira ativista
que é a mulher - seria esta uma tarefa difícil da qual as mulheres são o objeto é política
de cumprir -, mas se empenha em indagar e mostra que nós fomos ideologicamente lésbica da História. Em 1904, Rüling fez o
como é que a mulher se forma, como a reconstruídas em um ‘grupo natural’.” discurso “Que interesse tem o Movimento
Assim, Freud, como Simone de Beauvoir, das Mulheres em resolver o problema
mulher se desenvolve desde a criança dotada (Wittig, 1993: 103).
subverteu a ideia de comportamentos inatos homossexual?”, extremamente inovador,
de disposição bissexual” (Freud, 2006: 79),
correspondentes a um ou outro gênero, Wittig critica veementemente as feministas em que discutia, entre outras questões,
não estaria ele dizendo que não se nasce
seja biológica ou psicologicamente falando, que acreditam que a base da opressão as especificidades das homossexuais e
mulher, mas torna-se? Ele estaria justamente
ao reconhecer a questão do feminino e do feminina não é só histórica, mas também questões enfrentadas por elas ao longo da
descaracterizando uma análise essencialista
masculino como desconhecida e não restrita à biológica. Para ela, não se pode assumir pré- vida tais como prostituição, a descoberta
da mulher para investigar, em suas palavras,
anatomia (Freud, 2006). disposições biológicas quando se faz um da sexualidade e seu lugar no mercado de
como a mulher “se forma” e “se desenvolve”.
Freud escreveu isso em 1933 – 16 anos antes approach lésbico da opressão feminina, pois trabalho.
Contemporânea de Beauvoir, Monique
da célebre frase de Beauvoir. significaria afirmar que a sociedade sempre
Wittig usa seu referencial materialista e Para Rüling, os Urninds – denominação
se constituiu tendo a heterossexualidade
antiessencialista no texto “One is not born vitoriana alemã das pessoas LGBTs cunhada
Nesse mesmo texto, que compõe as “Novas como base. «O matriarcado não é menos
a woman”, de 1981 - intitulado numa clara por Karl Heinrich Ulrichs, citado diversas
Conferências Introdutórias sobre Psicanálise” heterossexual que que o patriarcado: só o
alusão à sua conterrânea e antecessora. vezes pela autora em seu discurso – seriam
e trata especificamente da questão da sexo do opressor que muda» (Wittig, 1993:
Wittig reafirma que a visão materialista uma espécie de terceiro sexo, diferenciado
feminilidade, Freud contesta a ideia de uma 104).
do feminismo permite a análise de que as dos homens e das mulheres, que teriam
pré-disposição biológica da mulher de ser
mulheres não constituem um grupo natural, características de ambos os gêneros. Na
maternal e cuidadosa. Ele afirma:
mas são “culturalmente imaginadas” como época ainda não havia a distinção entre
tal. Em 1990, Judith Butler publica Problemas orientação sexual e identidade de gênero, e
Mesmo as funções de criar e de cuidar de gênero e se coloca em uma posição pode-se perceber que essas duas questões
do filhote, que temos na conta de Para a autora, a maior prova prática de que as veementemente contrária a Beauvoir, Wittig e se mesclam e se confundem nos primórdios
papel feminino par excellence, não estão mulheres são um produto da cultura patriarcal Freud. Para ela, a divisão dos gêneros das teorias sexuais, como por exemplo nos
invariavelmente ligadas ao sexo feminino, é a existência das lésbicas. As lésbicas,
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
nos animais. Em espécies animais bem embora também culturalmente construídas,
de Freud, em que ele investiga como se dá a
superiores, verificamos que ambos os sexos subverteriam a “conexão heterossexual” entre
sexualidade de pessoas de “sexo contrário”
dividem entre si o trabalho de cuidar do gênero e sexualidade porque seu significado
ou “invertidos” (FREUD, 1976: 3), categoria
filhote, ou que o próprio macho, sozinho, não seria construído em termos do erótico.
64 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 65

que atualmente interpreta-se como referente No trecho citado, poderia-se compreender Século XX e XXI, Estados Unidos: Judith investigando justamente a construção social
a pessoas LGBT. As mulheres Urninds são, que a autora estaria referindo-se a pessoas Butler das mulheres e a associação delas com a
nesta concepção, mulheres com características transgênero – afinal, dizer que alguém não erotização, colocando, assim, as lésbicas
psíquicas masculinas e, assim, com atração imita um homem, mas é condicionado como Em 1990, Judith Butler publica Problemas em outra categoria de gênero, não parece
sexual direcionada a outras mulheres. Essas um seria, hoje, a definição de um homem de gênero e se coloca em uma posição epistemologicamente viável. Assim como não
características masculinas fazem com que, trans. Consideremos, porém, que mulheres veementemente contrária a Beauvoir, Wittig parece justo com Beauvoir Butler afirmar
para Rüling, as mulheres homossexuais se lésbicas estejam incluídas nessa definição e Freud. Para ela, a divisão dos gêneros que, para a francesa, a compulsoriedade
distingam essencialmente das mulheres psíquica de mulheres Urnind do trecho, seria uma forma ontológica de reproduzir cultural do tornar-se mulher "claramente não
heterossexuais: uma vez que Rüling se refere à sexualidade o sistema heterossexual – concepção que vem do 'sexo'" (Butler, 2016: 29), uma vez
de personalidades como Catarina, a Grande Wittig claramente denuncia ao afirmar as que Joan Scott nos mostra claramente que a
As mulheres homossexuais têm muitas explicitamente como bissexual ao falar de lésbicas como fora desse sistema de gênero e divisão epistemológica entre gênero e sexo
características, inclinações e habilidades suas relações tanto com homens quanto sexualidade. Butler, porém, critica a posição como construção social e dado biológico,
que normalmente consideramos válidas com mulheres (RÜLING, 1904). Dessa de Wittig ao escrever que ela "parece não respectivamente, foi algo que começou a ser
para os homens. Elas têm muito menos forma, entendemos que Rüling distingue entrar em disputas metafísicas com os utilizado na década de 1970.
interesse na vida emocional que a mulher modos hegemônicos de significação ou
ontologicamente os gêneros ao caracterizar
comum. Enquanto que para a mulher
os homens – e as lésbicas – como portadores representação" (Butler, 2016: 47) - modos, Butler faz críticas inteiramente cabíveis ao
expressamente heterossexual o sentimento
de uma “clareza e razão aguçadas”, seres mais estes, que a própria Butler não explicita de movimento feminista de seu tempo – e, em
é quase sempre – até aqui exceções provam
a regra – dominante e decisivo, a clareza objetivos, energéticos e menos emocionais que natureza seriam. A autora também afirma parte, do feminismo atual – como a ideia
e razão aguçadas predominam na Urnind. que as mulheres “normais” (RÜLING, 1904). que de uma mulher universal como sujeito a
Ela é, como o homem comum, normal, Seguindo essa lógica, a autora defende que ser representado politicamente, claramente
mais objetiva, energética e orientada a seus as mulheres homossexuais são adequadas uma questão muito presente nas discussões
objetivos que a mulher feminina; ela pensa para exercer profissões científicas por sua Em sua essência, a teoria feminista tem de então, levando em conta que o termo
e sente como um homem; ela não imita maior “objetividade, energia e resistência, que presumido que existe uma identidade "feminismo interseccional" foi utilizado
os homens, ela é condicionada como eles; frequentemente faltam nas mulheres muito definida, compreendida pela categoria de pela primeira vez em 1989, por Kimberly
esse é o ponto decisivo que os odiadores e femininas” (RÜLING, 1904), apesar de deixar mulheres, que não só deflagra os interesses Crenshaw, na tentativa de criar uma vertente
caluniadores do chamado “homem-mulher” e objetivos feministas no interior de seu
claro que considera a ideia de que o cérebro que justamente analisasse a partir de um
sempre ignoram, porque eles sequer tomam próprio discurso, mas constitui o sujeito
feminino é mais fraco que o masculino uma ponto de vista interseccional os diversos
o tempo de fazer uma pesquisa básica sobre mesmo em nome de quem a representação
“loucura” – como temos visto até agora, a política é almejada. (Butler, 2016:17). sujeitos femininos, com destaque para as
o homossexual. (RÜLING, 1904). mulheres negras que a construíram.
questão de Rüling, Wollstonecraft e Engels
não se dá a partir de uma hierarquização dos
O fato de não haver a distinção entre
gêneros, mas sim de uma suposta diferença Afirmar que a teoria feminista se baseia
pessoas transgênero e homossexuais na
ontológica entre eles quanto a seus interesses em uma categoria identificada e definida de
época dificulta um pouco a análise de qual
e habilidades. mulheres, quando Beauvoir e Wittig estão
tipo de Urnind a autora está se referindo.
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Anita Guerra é graduanda em
Paulo: Ed. Boitempo.
Comunicação Social - Jornalismo na
FREUD, Sigmund. (1976). Três ensaios
ECO/UFRJ. sobre a teoria da sexualidade. In: Obras
Contato: anita.rg@hotmail.com
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As noivas de Satã: bruxaria,
misoginia e demonização no
Brasil colonial
Carolina Rocha Silva

resumo palavras chave Introdução. e de todos os sentimentos ligados ao seu


Durante toda Idade Média e Moderna o feitiçaria; misoginia; escravidão; inquisição inconsciente e à sua condição social.
tema da natural inclinação feminina para os
comportamentos desviantes fazia parte do A maior parte das fontes disponíveis sobre O surgimento da demonologia no mundo
programa educacional de padres e religiosos a feitiçaria na Época Moderna – tratados cristão e o desenvolvimento do conceito de
das mais variadas ordens. Os médicos demonológicos, processos de execução dos bruxaria.
também reafirmaram em seus escritos a condenados e os processos contra os réus nos
tribunais seculares, episcopais e inquisitoriais O contexto do século XV/XVI europeu,
inferioridade física e moral das mulheres, e os
– foram produzidas por homens, que com guerras civis e religiosas, a miséria nos
juristas, igualmente, deram sua contribuição
condenavam a bruxaria e estavam dispostos campos, a peste negra e o abalo na Igreja
para reforçar a inferioridade estrutural do
a perseguir as feiticeiras, o que gera uma provocado pela Reforma protestante, gerou
sexo feminino. A produção literária e a
atitude comum de descrédito com as fontes. um ambiente de medos e incertezas que levou
iconografia da Renascença foram da mesma
No entanto, as distorções também indicam aos os homens modernos a procurarem bodes
forma hostis à condição feminina. Esse
estudiosos a natureza das crenças construídas expiatórios para os seus problemas. O Diabo
artigo resgata a história de duas escravas
em torno da feitiçaria. Através dos supostos cristão, principalmente a partir da Alta Idade
mestiças, Joana e Custódia de Abreu, que
erros de interpretação de magistrados e juízes Média, foi considerado o agente universal
assumiram participar de encontros noturnos
é possível encontrar a mentalidade de uma de todo mal sobre o mundo. E mais que
firmados por pactos diabólicos no Piauí
época, que enquadrava as crenças acerca da isso, ele foi visto como o principal aliado de
colonial. Mulheres mestiças, descendentes
feitiçaria e dos poderes do demônio em um todos os opositores, efetivos ou imaginários,
de escravos africanos e indígenas, pobres e
sistema próprio de crenças religiosas. da Igreja cristã. A visão de mundo dualista
imersas numa sociedade misógina, opressora
do Cristianismo procurou estigmatizar os
e extremamente híbrida, com interconexão de
No Brasil, tanto para os colonizadores grupos dissidentes ao longo da história
cultos e culturas diversas, de origem africana,
como para os colonos, as práticas mágicas (Minois, 2003). E tornou herético e diabólico
indígena e europeia. O uso da “feitiçaria” era
assumiram uma função social. Para os todo sagrado não oficial. Assim fizeram
constante no Brasil colonial, seja para resolver
colonizadores elas eram a fonte de todo com os judeus, com os muçulmanos, com
problemas práticos do dia-a-dia, seja para
mal, a prova da influência do Diabo sobre as mulheres, doravante transformadas em
conquistar benesses materiais ou ainda como
aqueles povos, que impedia a conversão bruxas, e com todos os grupos de possíveis
forma de resistência ao sistema escravista e
dos indígenas e corrompia a fé dos colonos. inimigos (Delumeau, 1989).
a dominação portuguesa. O artigo analisa
Para os colonos, as atividades com o mundo
historicamente a segunda metade do século
sobrenatural permitiam o alívio das tensões Foi nesse processo que se transformaram as
XVIII, mas os temas são totalmente atuais:
inerentes do sistema escravista, da miséria, visões acerca do Diabo, que se tornou capaz
misoginia, demonização de práticas religiosas,
das angustias e incertezas, dos desamores e de quase tudo, e das feiticeiras, vistas, a partir
pluralidade religiosa, escravidão, dentre
desafetos, das pulsões sexuais, das doenças, de então, como heréticas ameaças sociais.
outros.
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Durante a Idade Média, a Igreja condenou profundos, por vezes inexplicáveis. Por Por isso, serviu como roteiro primordial de As crenças mágico-religiosas na América
as práticas maléficas dos feiticeiros, mas eles consequência, ao longo dos séculos o inquisidores, juízes e magistrados em seus Portuguesa.
não foram alvo de perseguições sistemáticas e elemento paterno representou a história, tratados e processos contra as feiticeiras.
sangrentas. Na Época Moderna, no entanto, enquanto que o elemento materno foi As instâncias de poder portuguesas não
o mago, gradualmente, transformou-se em representante do poder biológico e da O tema da suposta inclinação natural empreenderam uma loucura persecutória
bruxo, ou seja, tornou-se servo do Diabo natureza, instintiva e indomável. Assim, feminina para os comportamentos desviantes contra as bruxas, como feito noutras partes
(Levack 1988). Assim, mesmo as receitas a mentalidade masculina cercou a mulher fazia parte do programa educacional de do continente europeu, mas, nem por isso,
de cura, os conjuros de amor e os amuletos de uma ambiguidade basilar, ora ligada ao padres e religiosos das mais variadas ordens. deixaram de se preocupar com as práticas
protetores, que continham orações católicas e pecado nocivo e ora ligada à virgindade Os médicos também reafirmaram em seus supersticiosas do povo comum, eivadas de
preces aos anjos e santos de Deus, passaram maculada. escritos a inferioridade física e moral das magismo, e com a possibilidade do pacto com
a ser vistos como pecado mortal (Delumeau, mulheres, assim como os juristas deram sua o Diabo (Paiva, 1997).
1989). O medo da mulher não foi inventado pelo contribuição para reforçar a inferioridade
Cristianismo, mas foi desde cedo integrado estrutural do sexo feminino, utilizando Muitos cronistas e eclesiásticos descreviam
Por conseguinte, a possível apostasia e alimentado em suas doutrinas. A mulher, como sustentação teórica as leis do direito as práticas mágico-religiosas americanas
das bruxas se tornou muito mais grave e como um ser mais próximo da natureza e da romano. A produção literária e a iconografia utilizando como parâmetro as concepções
intimidadora para a Europa durante esse matéria, responsável pela procriação da vida, da Renascença foram igualmente hostis à e as terminologias demonológicas que lhes
período. Esse processo foi deflagrado com a mas também pela morte, juiz da sexualidade condição feminina. eram familiares: “Sacerdotes maias, incas ou
publicação da obra “Malleus Maleficarum”, masculina, dona de uma impureza fatal e de astecas, xamãs, caraíbas e pajés tupis, enfim,
de Kramer e Sprenger, em 1486. Para os uma força misteriosa, impedia, segundo a Assim, a longa tradição misógina ocidental todos os responsáveis pelo espaço sagrado
autores, a bruxa não era apenas uma pessoa mentalidade da época, os homens de realizar transformou, em meados do século XV, a foram quase sempre chamados de bruxos
que realizava magia prejudicial, mas era uma sua espiritualidade. mulher em um poderoso agente de satã, e feiticeiros (...)” (Souza, 1993a). Assim,
mulher que também fazia um pacto diabólico, na forma de bruxa. A perseguição às os rituais heterodoxos dos índios e dos
no qual se colocava como serva do mal. O “Malleus Maleficarum” reforçou as teorias feiticeiras de Satã foi uma das bandeiras e negros africanos foram reduzidos, muitas
misóginas produzidas ao longo da história e causas do Estado absolutista. A repressão vezes, ao seu potencial para o mal, sendo
defendeu a tese de que as mulheres estavam inquisitorial tratou de cuidar delas, baseando- criminalizados e classificados como heréticos.
A demonização da mulher. diretamente ligadas ao “crime” da bruxaria. se na construção da feitiçaria e da bruxaria
A obra, baseada em um vastíssimo conjunto como formas de heresia e no sabá como o Para os africanos escravizados, muitas vezes,
Segundo o historiador Jean Delumeau de autores cristãos e pagãos, enuncia todos ritual de consagração do pacto demoníaco. usar ritos e ícones de sua religião matriz
(1989), ao longo da história da humanidade os possíveis vícios e defeitos das mulheres: Dilaceradas moralmente, as bruxas na África era uma forma de se proteger
a visão masculina sobre as mulheres oscilou patrocinadoras do pecado no mundo; donas sucumbiram, na fogueira ou na forca, a uma nas relações escravas, como prevenção
entre a exaltação e o medo. A fisiologia de uma sexualidade desenfreada; fracas e perseguição arbitrária. ao ataque de seus senhores: “Impostos a
feminina e processos como a maternidade e débeis por natureza e, por conseguinte, degradação física, moral e psicológica pelo
a menstruação foram envoltos de mistérios mais suscetíveis aos propósitos de Satã. sistema escravista, sua difícil condição
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de sobrevivência era de, algum modo, Livramento, o missionário jesuíta Manuel da “gentia”, Custódia, na Freguesia de Nossa sacramento, que ali havia de bater com as
compensada com práticas mágicas” (Caldas, Silva escreveu as confissões da mestiça Joana Senhora do Livramento. As mestiças foram partes prepósteras assim nua umas três vezes
2006). A resistência ao sistema escravista no Pereira de Abreu, com 19 anos na época, e da compradas pelo Capitão José Bacelar e logo na porta da Igreja indo sempre para trás, e
mundo colonial se deu de diversas formas, índia Gueguê Custódia de Abreu, batizada, trazidas como escravas para as Cajazeiras. havia no mesmo ponto de chamar por este
desde manifestações explícitas, como fugas, com 18 anos, ambas, escravas do capitão-mor Assim que chegou, Josefa mostrou-se muito nome e vocábulo: Tundá, o qual vocábulo
revoltas e formações de quilombos, até José de Abreu Bacelar. amiga de Custódia e lhe contou alguns nem eu lhe sei bem decifrar a significação
as mais sutis e cotidianas, como suicídios, segredos, como as torpezas que cometia com inteira e cabal, mas julgo ser nome do
roubos, assassinatos e feitiços. As práticas Joana Pereira de Abreu era solteira, com um homem – que assumia a forma humana, Demônio. E que dali havia de endireitar nua
mágicas eram, portanto, necessárias e 11 anos de idade e escrava de Antônio da mas não era humano – na vila da Mocha. para (...) o Enforcado, (...). E que ali me havia
essenciais nesse mundo escravista, como uma Silva dos Santos, por alcunha chamado O Assim, prometeu ensinar tudo o que havia de aparecer um moleque e que eu pondo-me
alternativa de combate, “muitas vezes a única Pitomba, residente na vila da Mocha, capitania aprendido com o sujeito à índia, pois ele na postura de quatro pés, ele me havia de
possível” (Souza, 1993b: 272), ao sistema do Piauí, quando conheceu uma mestiça poderia trazer muitas vantagens a ambas. O conhecer pela prepóstera2.
colonial. Entretanto, a compreensão dessas forra, da mesma vila, chamada Cecília. A ritual que Josefa propagou nas Cajazeiras foi
práticas não perpassou apenas a dimensão da “Mestra Cecília”, como Joana a caracteriza muito semelhante ao que a “Mestra Cecília”
resistência. no documento, foi responsável, juntamente ensinara, anos antes, à própria Josefa e à Joana chama a “Mestra Cecília” de mãe
com sua ajudante, Josefa Linda – mestiça e Joana Pereira de Abreu, na vila da Mocha. no fragmento selecionado do texto. Essa
escrava da mesma fazenda - por lhe ensinar é a única hora que aparece a palavra mãe
O Sabá do Sertão: entre práticas mágicas, o dito “comércio com o demônio” 1. Oito para designar Cecília no documento, todas
calundus e descrições sabáticas. anos depois, precisamente em 19 de abril de Joana Pereira de Abreu descreveu como foi as outras vezes ela aparece como a grande
1758, Joana confessou suas culpas ao padre seu primeiro contato com o demônio, às Mestra. A ideia do mestre que ensina seus
A fiscalização inquisitorial do comportamento Manuel da Silva, que tratou de encaminhar vésperas do dia de São João. Assim começou discípulos estava presente nos tratados de
religioso das populações no ultramar poderia o acontecido ao Santo Ofício. Na ocasião, a mestiça: demonologia europeus. “Mãe” talvez seja a
ser realizada por instâncias diversas, tais devido à morte do seu antigo senhor, a forma como a escrava realmente chamava
como: pela própria Inquisição, através das mestiça era moradora das Cajazeiras. (...) me contou a dita Mãe Cecília, que o Cecília, enquanto que “mestra” pode ter
Visitações do Santo Ofício e da vigilância Demônio tinha torpezas com as mulheres. sido a palavra encontrada pelo jesuíta, já que
dos comissários e familiares; pelo poder Alguns anos depois do acontecido em E que se eu queria falar e ter com ele, ela Cecília cumpria o papel de doutrinadora.
eclesiástico; e pela Companhia de Jesus, Mocha, os destinos de Joana de Abreu e me ensinaria. Aceitei eu, como rapariga Da mesma forma, ela chamava Josefa
já que os jesuítas eram, muitas vezes, os Josefa Linda (não há a confissão dela, apenas de nenhuns miolos e por outra parte de Linda de “irmã mais velha”. Os escravos,
representantes religiosos mais próximos das referências constantes nas confissões de Joana costumes de pouca ou nenhuma boa retirados de suas terras natais, distantes
populações sertanejas. e Custódia) cruzariam com o da pequena educação (...). Então me disse ela que eu dos seus parentes e amigos, reconstruíam
havia de ir nua à porta da Igreja da mesma suas identidades e redes de sociabilidade na
Em 1758, na fazenda Cajazeiras da Gurguéia, 1 O termo é usado no próprio documento. vila de Moucha, em que vivíamos, e na qual a
localizada na Freguesia de Nossa Senhora do ANTT, IL, Caderno do Promotor n.121. Torre do Igreja da vila se conserva sempre o santíssimo 2 ANTT, IL, Caderno do Promotor n.121. Li-
Tombo. Livro 313, f.125. vro 313, n.125.
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colônia, encontrando, muitas vezes, com fantástico feminino, uma espécie de “duende” blasfêmias. Isto foi sempre pelos anos do E logo diante de mim, apontando para o
outros escravos, ou com as demais pessoas que espalha terror entre as crianças, fazendo meu infame comércio e ensinos de Mestra Cristo, disse que aquele era o Moleque e
que conviviam, a sua projeção de família. travessuras e pregando peças (Lopes, 2004). Cecília3. que este mesmo era para ela. E que aquela,
Joana tinha 11 anos em 1750. Quando o apontando para a virgem Senhora, era a
sabá aconteceu, era possível, portanto, que Manuel da Silva caracteriza Joana e Custódia Chamando o diabo de “meu Senhorzinho, Negrinha (palavra que nestas partes nomeia
chamasse de mãe uma mulher mais velha, como frágeis e tolas durante o texto. De minha vida, meu coração”, Joana reflete, senhores e senhoras tudo o que é escrava
com quem convivia diariamente e que se forma geral, a mentalidade cristã misógina segundo Luiz Mott, a onipresença do fêmea) e que esta mesma era para mim, isto é,
propôs a lhe passar ensinamentos. Josefa da época Moderna acreditava que essa escravismo no imaginário colonial e utiliza a minha escrava. Bati logo no chão com elas
Linda, nesse contexto, era a “irmã mais fragilidade feminina deixava as mulheres mais expressões carinhosas, frequentemente, ambas, com fúria de senhora, com desprezo e
velha”, com 14 anos, que esteve ao seu lado propensas às ações do demônio. Padres, dirigidas ao sexo oposto, como era desdém, dizendo que aquela era o Moleque e
mesmo quando ambas foram vendidas para monges e demais religiosos depreciavam o feito nas cartas de tocar (Mott, 2006). que aquela era a Negrinha.
as Cajazeiras. sexo feminino, principalmente, por causa das Concomitantemente, chamar o diabo de senhor
tentações da carne que ameaçavam seus votos também indica uma relação de vassalagem Chamar Jesus Cristo de moleque e Nossa
A palavra moleque, para designar o Diabo, de castidade. comum nos pactos estabelecidos com satã. Senhora de negrinha escrava pode revelar
indica uma interferência da cultura africana: o grande sentido do ritual praticado nas
“Negrinho; por extensão, menino de pouca É possível observar no documento da O depoimento de Custódia se assemelha Cajazeiras. Transferir para o Cristo e para
idade. Do quimbundo muleke, garoto, filho” confissão que, conforme o tempo passou, muito com o de Joana. A índia foi levada a Virgem, símbolos máximos da catequese,
(Lopes, 2004: 444). O vocábulo tundá também Joana aprofundou suas relações com o ainda pequena para o sítio das Cajazeiras denominações que serviam para caracterizar
encontra significação no quimbundo, língua demônio, tornando-o cada vez mais íntimo da pelo capitão José de Abreu Bacelar, como sua os escravos, como as expressões moleque e
banto falada em Angola, como imperativo sua vida e desprezando tudo que vinha do seu escrava. Em 1758, após a lei da liberdade dos negrinha, aponta a liberação de uma tensão
do verbo sair, sai! (Mott, 2006: 6). Para o maior opositor, Jesus Cristo. Entregava não índios, ela ainda era escrava na dita fazenda, o causada pela escravidão na vida dessas
historiador Luiz Mott, a palavra parece só seu corpo ao Senhor das trevas, mas também que demonstra que a lei não era cumprida de mulheres.
referir-se ao termo acotundá, presente em a sua alma: fato. Segundo ela, Josefa Linda, que chegou às
cerimônias de matriz africana no arraial de Cajazeiras dois anos antes da sua “irmã” mais Da mesma forma que os escravos repudiavam
Paracatu, na região de Minas, em meados nova, Joana, mostrou-se muito sua amiga e os senhores brancos que os colocavam no
do século XVIII. Os integrantes do rito Não mais cria que havia Deus, nem inferno, “camarada”. Logo, Josefa contou toda sua tronco para apanhar, também identificavam,
participavam de uma dança, considerada nem cousa alguma da fé. Entregava- vida à índia, inclusive as torpezas realizadas muitas vezes, o cristianismo, a religião
diabólica pelas autoridades, em que adoravam lhe a alma e o corpo. Chamava-o meu com um “Homem” e pôr-se a ensiná-la, oficial desses homens, como uma doutrina
um boneco e pareciam entrar em transes, Senhorzinho, minha vida, meu coração. pedindo segredo: hostil. Assim, a relação dos escravos com o
Cria e dizia-lhe que só ele me daria o céu.
caindo no chão e dançando freneticamente catolicismo era ambígua e podia tanto passar
Que só ele me criou, me remiu, e que não
ao som de atabaques e tambores. O termo pela esfera da incorporação, visto como uma
outro criara o céu, nem a terra, nem a
também possui significação entre os negros mim. Que Jesus Cristo era um corno, um forma eficaz de devoção e proteção, como
do Equador, representando um ente 3 ANTT, IL, Caderno do Promotor n.121. Li- podia gerar repulsão.
filho da puta e outros nomes e tremendas
vro 313, n.125.
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Em contrapartida, no meio de todo esse Considerações finais. identificar as crenças dessas mulheres. Em Carolina Rocha Silva é mestre em
sistema complexo de interações, existia muitos aspectos ele assemelha-se com o história pela UFF e doutoranda em
a figura do Diabo, elemento criado pelo As escravas Joana e a Custódia refletiam arquétipo do sabá de bruxas difundido pela Sociologia no IESP/UERJ. Faz parte
próprio cristianismo, antagônico à existência as tensões da sociedade escravista à qual cultura erudita na Idade Moderna. Contém: da Coordenadoria Experiências
de Deus. Um Diabo onipresente, que era pertenciam, canalizando para os símbolos do as reverências típicas usadas para adorar o religiosas africanas e afro-brasileiras,
amplamente divulgado pelos discursos cristianismo toda fúria que sentiam pela sua demônio e estabelecer um pacto com ele;
racismo e intolerância religiosa,
políticos e eclesiásticos. Desse modo, condição, chamando a Virgem de negrinha a metamorfose do diabo em animais; o
escrava e Cristo de moleque, e exercendo a vinculada ao Laboratório de História
os conjuros de Josefa e de Joana e, sua possível “voo” noturno, imaginário ou real;
consequente aproximação com o Diabo, capacidade de puni-los, tal qual deviam ser a doutrinação da bruxa mestra; a abjuração das Experiências Religiosas (LHER-
podem ter significado, também, uma forma punidas pelos seus senhores. A inserção dos dos sacramentos cristãos e a renúncia de UFRJ) e do Coletivo Feminista
de resistência frente à cultura dos senhores componentes sabáticos pode ser creditada toda fé católica; as cópulas sexuais com o Virginia Leone Bicudo. Esse artigo
brancos, católicos, que elas desejavam negar. à mentalidade erudita e cristã do padre diabo, reproduzindo, inclusive, os atos carnais está relacionado à sua dissertação
Manuel da Silva, doutor em teologia e ciente nefandos; e o aspecto coletivo da seita. de mestrado, que originou o livro “O
José Pereira de Abreu Bacelar, dono das dos discursos intelectuais da sua época. O Existiram outros componentes europeus, Sabá do Sertão: feiticeiras, demônios e
Cajazeiras e das escravas mestiças, foi descrito Tundá identificado com o demônio pode todavia, que não foram mencionados, como, jesuítas no Piauí colonial (1750-1758) ”,
pela documentação como um homem rico estar ligado às cerimônias de matriz africana, por exemplo, o banquete coletivo, a utilização publicado pela Paco Editorial em 2015.
e violento, que matava e apresava índios, conhecidas como Acotundá, praticadas na de danças e músicas; o infanticídio, o uso de contato: carolinarocha18@gmail.com
principalmente os Gueguê que viviam região das Minas no século XVIII. Alguns unguentos mágicos, a realização da missa às
atacando suas propriedades (Medeiros, vocábulos como moleque e senhorzinho, avessas e a marca da bruxa.
2009, p.354). Não se sabe como tratava suas também indicam pistas sobre as crenças
escravas, especificamente, mas presume- cotidianas populares. O documento possui O documento não foi fruto de uma invenção,
se que não fosse da melhor forma, como, duas dimensões de veracidade, uma ligada da mesma forma que o sabá europeu
aliás, faziam grande parte dos senhores à mentalidade do jesuíta, e outra ligada também não foi uma mera criação de mentes
de engenho. As práticas mágico-religiosas ao conjunto amorfo de crenças e rituais temerosas da presença do Diabo. Acredita-se
foram, frequentemente, o reflexo das relações praticados por Joana e Custódia de Abreu no apenas que ele possui uma leitura e um filtro
sociais travadas na colônia, principalmente no Piauí colonial. particular, realizado pelo jesuíta, mas que não
convívio entre senhores e escravos. esconde as tensões sociais que o originaram.
Pode-se concluir que a cerimônia ocorrida no O Homem, o demônio e o Tundá adorado
Piauí fez parte do amplo conjunto de crenças pelas mestiças foram representantes das
e práticas mágico-religiosas da América suas crenças, em contraposição à ortodoxia
colonial. Não é possível saber com absoluta católica.
clareza o que de fato ocorreu. No entanto,
o documento deixa brechas que permitem
78 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 79

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LEVACK, Brian P. A caça às bruxas na Europa XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras,
Moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988. 1993.
81

O grito de independência das


mulheres latino-americanas
Lília Maria Silva Macêdo

resumo Os processos que culminaram com a permanências e transformações. O mesmo entre o exército realista e o chamado exército
As interpretações historiográficas independência das colônias espanholas e se deu na esfera cultural. De acordo com libertador se estendeu durante anos com
frequentemente ignoram a participação das portuguesas na América entre o final do Leopoldo Zea (1964) o período de luta pela avanços e recuos, êxitos e fracassos para
mulheres nas lutas sociais e políticas. O século XVIII e início do século XIX foram independência corresponde ao alvorecer do ambos os lados. Até que finalmente culminou
objetivo deste ensaio é evidenciar o papel decisivos em muitos aspectos. Ainda que as que se convencionou chamar posteriormente com a vitória definitiva das forças patriotas.
feminino nas lutas por independência na enormes desigualdades da estrutura social de pensamento social latino-americano, uma Destaca-se nesse aspecto o sucesso das
América Latina. Para tal, começamos com tenham sido mantidas (e, em alguns casos, até produção intelectual devotada a compreender campanhas militares coordenadas por Simón
um breve panorama histórico dos processos aprofundadas), inúmeras regiões deixaram de e solucionar os dilemas próprios dessa Bolívar ao norte e por José de San Martin
conflituosos na região. Em seguida, relatamos ser reconhecidas como colônias e finalmente realidade social. ao Sul. Dois líderes que se converteram em
casos de experiências de mulheres e suas começaram a se constituir como nações. verdadeiros ícones da independência na
contribuições às dinâmicas de insurgência. Esses processos ocorreram ao menos em As Reformas Bourbônicas implementadas América Latina.
Por fim, discutimos como esses exemplos, termos políticos formais, já que externamente pela coroa espanhola na tentativa de
fomentados por um olhar feminista sobre essas nações ocupavam uma posição de reestabelecer o controle sobre as colônias, Considera-se que, apesar da mobilização
a história, enriquecem as visões sobre o dependência no sistema capitalista mundial que havia sido abalado devido às graves de vários outros grupos sociais, foi uma
passado e a construção de nossas memórias. enquanto uma nova forma de colonialismo se crises internas pelas quais a Espanha fração da elite chamada de “criolla” (grupo
configurava internamente. Assim, iniciava-se atravessava, acabaram produzindo um composto pelos descendentes de espanhóis
outra etapa no longo processo de construção enorme descontentamento que impulsionou nascidos na América) que assumiu a liderança
palavras-chave da ordem na América Latina, como chamam os movimentos pela emancipação. A isto se da luta. Muitos autores/as argumentam que
Mulheres; revolução; América Latina; atenção Ansaldi e Giordano (2012), o que somaram, alerta Lynch (1991) uma série de o engajamento desse grupo se originou da
independência não deixa dúvidas quanto a relevância de tal tensões que já permeavam as relações entre contradição que marcava a sua condição
momento histórico. a colônia e a metrópole desde longa data. social: os/as criollos/as desfrutavam de
Acrescenta-se ainda a influência das ideias um enorme poder econômico, já que eram
A luta pela conquista da independência gerou iluministas e os exemplos da independência proprietários de terras e bens, mas estavam
enormes convulsões sociais. Em muitos dos Estados Unidos em 1775 e da Revolução desprovidos de poder político no que
casos, irromperam em sangrentos conflitos Francesa em 1789, o que situa tal processo diz respeito a participação nas principais
armados e se prolongaram em guerras (com como uma das Revoluções do Atlântico. instituições políticas coloniais. Não
a notável exceção do Brasil nesse ponto). podiam ocupar cargos altos na burocracia
As dinâmicas econômicas (sobretudo no A deposição do rei Fernando VII do trono administrativa ou comercial e também
que diz respeito ao comércio), as instâncias espanhol após a investida napoleônica encontravam muitas limitações na carreira
jurídicas e políticas, as novas estruturas do aumentou a instabilidade política nas colônias religiosa e militar.
Estado, as instituições religiosas e as forças e logo se formaram juntas de governo que
militares sofreram alterações mais ou menos reivindicavam maior autonomia política e Não é surpreendente que em muitas obras
profundas, conforme ritmos variados, entre administrativa. A partir de então o embate clássicas sobre o tema a atuação dos setores
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populares seja alvo de pouca atenção ou data privilegia, portanto, os antecedentes alguma forma relacionadas como mães,
seja tomada como meramente auxiliar à criollos e oculta as outras vertentes e formas irmãs ou esposas. Ou seja, quando não
atuação de outros setores. Assim, ao fim e assumidas pelo movimento anticolonial. As foram completamente eliminadas dos relatos
ao cabo, as interpretações historiográficas iniciativas que impulsionavam a luta em um históricos, elas foram incluídas neles de
mais difundidas acabaram forjando uma sentido mais radical, visando a transformação maneira secundária e conforme uma série
narrativa sobre a independência que das estruturas sociais foram duramente de estereótipos e enquadramentos sexistas.
resulta limitada em muitos sentidos. Ela é reprimidas. Isso não significa, entretanto, Note-se ainda que as poucas mulheres que
geralmente retratada como uma luta em que que elas não devam ser analisadas. Como obtiveram algum reconhecimento são em
os principais atores são os homens brancos alerta Fernando Mires (1989), ainda que a sua maioria brancas e oriundas das classes
das camadas sociais mais abastadas que foram independência tenha se mantido, por fim, altas, o que revela novamente a importância
influenciados pelas ideias iluministas e liberais nos limites de uma revolução política, esta do recorte étnico e socioeconômico na
europeias. Desconsidera-se em boa medida tinha como função barrar ou prevenir uma constituição desses olhares sobre a história.
toda a tradição das lutas populares contra o revolução social.
domínio colonial que vinha se desenrolando Leona Vicario, por exemplo1, é um dos
desde o início da colonização pelos povos Em meio a este grupo de excluídos da nomes que alcançou certa visibilidade. Sem
originários, pelos escravos africanos e afro- história é patente o apagamento das mulheres, dúvida ela é uma referência importante
americanos e pela população empobrecida que se entrecruza com a discriminação racial quando se trata da independência Mexicana.
que habitava o campo e a cidade e que, nos e socioeconômica. Note-se que os chamados Vicario colocou sua fortuna à disposição da
momentos decisivos, engrossaram as fileiras “próceres da independência”, aqueles que revolução e atuou passando informações
do exército libertador, garantindo o triunfo da são lembrados e celebrados como os heróis para os insurgentes. Acompanhava as Autor desconhecido, Retrato de Leona Vicario, século
“revolução”. da pátria, são em geral homens, apesar de os tropas e reportava os acontecimentos da XIX. Óleo sobre tela.
estudos historiográficos recentes constatarem guerra em periódicos, desenvolvendo assim
Nesse sentido como propõe Gargallo que o engajamento das mulheres no um trabalho pioneiro como jornalista. Foi
(2010) cabe questionar por que se considera movimento independentista foi muito além presa e enfrentou situações adversas não só
o ano de 1810 como o marco do início de casos isolados ou excepcionais. durante a guerra como também após ela, já
da luta emancipacionista - ano que foi que até o final de sua vida teve de lidar com
usado como base para determinar a data Com todas as adversidades, algumas dessas diversas tentativas de rebaixar sua imagem
das comemorações do bicentenário da mulheres lograram preservar os seus nomes publicamente em função de sua condição de
independência - e não o levante dos indígenas ainda que estes só sejam conhecidos por gênero, defendendo-se obstinadamente dos
na região do Peru e Alto Perú (atual Bolívia) um público restrito - sobretudo estudiosos ataques machistas dos quais era alvo.
ou a rebelião dos escravos que culminou ou pesquisadores deste período histórico
com a libertação do Haiti na segunda - e sejam frequentemente associados ao 1 Neste exemplo e nos seguintes nos basea-
metade do século XVIII. A escolha desta nome dos homens com quem estavam de mos nos relatos biográficos elaborados por Ana
Belén García López (s/d).
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Outro nome de relevo foi o de Manuela Já Policarpa Salavarrieta, conhecida como La Mais ao sul nos deparamos com a história O breve relato da trajetória de cada uma
Sáenz. No Peru, ela participou das reuniões Pola, teve um destino trágico que a converteu de outra aguerrida combatente: a mestiça dessas mulheres já evidencia muitos aspectos
conspiratórias dos patriotas agindo em favor em uma mártir para os patriotas colombianos. Juana Azurduy que liderou ao lado de seu do engajamento feminino e mostra que tal
destes e colaborando para propagar as novas Nascida em meio a uma camada social mais companheiro, Manuel Padilla, as guerrilhas experiência política configura um fenômeno
ideias. Foi posteriormente condecorada por desfavorecida, ela trabalhava como costureira contra os realistas na região do Alto Peru bem mais amplo e complexo. De fato, nas
San Martin junto a outras mulheres com e por isso frequentava a casa de diversas (atual Bolívia). Por sua atuação de destaque últimas décadas, historiadoras e historiadores
o título de “Caballeresas del Sol”, pelos famílias em Santa Fé de Bogotá. Por meio em diversos confrontos ela, assim como têm alertado com maior eloquência para
esforços em prol da causa. Em seguida da rede de contatos que estabeleceu com as Manuela, galgou diversas posições militares a participação expressiva das mulheres de
ingressou no exército libertador e atuou mulheres dessas casas ela obtinha e transmitia até atingir a patente de Coronela. Em distintos segmentos sociais na luta pela
em várias batalhas como a Batalha de informações que favoreciam aos patriotas. determinado ponto de inflexão das lutas a sua independência das colônias situadas no caribe
Junín e a Batalha de Ayacucho. Trabalhou Ao ser descoberta foi detida e fuzilada pelos sorte mudou radicalmente (outra semelhança e no subcontinente latino-americano. Essas
incansavelmente pelos ideais da emancipação, realistas em 1817 e morreu conclamando o com Manuela) e ela passou os seus últimos incursões em batalhas assumiram diferentes
mesmo após ter sido desterrada de duas das povo para unir-se à causa revolucionária. anos de vida na pobreza, sem contar com formatos que tiveram impactos decisivos no
jovens nações que contribuiu para libertar. o justo reconhecimento pelos inúmeros processo independentista.
Apesar disso, Manuela costuma ser lembrada sacrifícios e trabalhos prestados à causa.
apenas (ou principalmente) como a amante Diferente dos trabalhos historiográficos
do “grande libertador” Simón Bolívar. mais antigos, os estudos feministas
contemporâneos (dentre os quais podemos
citar Carosio, s/d; Ciriza, 2000; García
López, 2011; Gargallo, 2010; González,
2010 e Londoño López, 2009) realizam uma
investigação histórica mais abrangente, que
procura preencher a ausência de olhares
específicos sobre a experiência das mulheres
no processo de conquista da independência.
Nessas perspectivas, a vivência feminina
é o foco prioritário de análise cujo
desenvolvimento ressalta a importância
política da participação das mulheres
e reivindica o reconhecimento de suas
contribuições na história latino-americana.

Pedro Durante, Retrato de Manuela Sáenz, 1825, José María Espinosa, La Pola en capilla. 1857, óleo Quadro de Juana Azurduy localizado no Museu
Óleo sobre tela. sobre tela. Histórico Nacional da Argentina.
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É difícil mensurar a presença das mulheres trabalho) oferecido pelas mulheres às forças de ruptura do mesmo, outras representavam ideais da ilustração também impulsionaram o
nesta luta em termos quantitativos. Porém, a militares independentistas. Além de doações uma subversão mais radical destes. Se por um debate a respeito da cidadania das mulheres,
julgar pelas múltiplas formas que ela adquiriu, em dinheiro, elas forneceram alimentos, lado, algumas funções eram desvalorizadas embora tal luta por direitos estivesse apenas
é possível que tenha atingido proporções roupas, abrigo e transporte para as tropas (e além disso tomadas como auxiliares ou começando e houvesse ainda um largo
consideráveis. As mulheres foram agentes patriotas e eventualmente acolheram aqueles/ assessória em relação as dos homens) por caminho a ser trilhado.
fundamentais, por exemplo, nas atividades de as que sofriam perseguição política. serem consideradas “atividades de mulher”,
conspiração pois elas eram responsáveis por outras eram consideradas “inadequadas para Com a fundação das novas Repúblicas as
ativar os espaços de sociabilidade em que isto Além disso, não obstante a oposição de a mulher”. Nesse último caso, ao serem mulheres foram novamente afastadas do
ocorria. Elas organizavam em suas casas as alguns generais, era bastante comum que as postas em prática por elas, despertavam ódio espaço público, impelidas a assumirem
tertúlias nas quais se discutiam as questões mulheres, na condição de esposas ou parentes e perseguição, tornando as mulheres alvo de papéis tradicionais de gênero e recolhidas ao
políticas correntes, difundindo-se as ideias dos soldados, acompanhassem as tropas em ofensas e maus tratos. espaço doméstico ou religioso. O período
que formavam o ideário independentista. todas as campanhas da independência. Às excepcional das revoluções parece ter dado
Desempenharam também o papel de espiãs. vezes elas se adiantavam ao exército para a Desse modo, como argumenta González abertura às transgressões que, por sua vez,
Por não levantarem muitas suspeitas, elas preparação dos acampamentos de guerra, (2010), ainda que o movimento não perduraram como perspectiva possível
podiam penetrar nos círculos realistas para nos quais providenciavam alimentos e independentista não estivesse comprometido após a restituição da ordem. Em resumo,
tomar conhecimento de suas ações e planos. acomodações e se mantinham nos arredores com o combate à desigualdade e as opressões as mulheres permaneceram desprovidas de
Associada a essa tarefa estava a de transmitir ou na retaguarda para socorrer os feridos e de gênero, no ser e agir dessas mulheres direitos, aspecto ainda mais grave para as
as informações obtidas para as forças enterrar os mortos após os combates. Por tais reivindicações estavam presentes de integrantes das classes populares (Carosio,
patriotas. Elas podiam atuar diretamente outro lado, ainda que as tropas libertadoras modo implícito, por assim dizer. Na medida s/d; Ciriza, 2000; García López, 2011;
como “correios” ou articular redes de tenham sido compostas majoritariamente em que elas se colocavam como sujeitos Gargallo, 2010; González, 2010 e Londoño
comunicação para fazer com que a mensagem por homens, algumas mulheres também políticos, as suas ações já se delineavam López, 2009).
chegasse até o seu destino. foram combatentes, ocupando diferentes como contestadoras de injustiças sociais.
posições na hierarquia militar. Por fim, não As mulheres afirmavam e reivindicavam
No campo da “propaganda ideológica” podemos deixar de mencionar aquelas que se constantemente o seu direito de participação Entretanto, mesmo que profundamente
deram igualmente contribuições muito converteram em líderes políticas, ou seja, que na “revolução”. Ao fazerem isso, tinham desolador, esse quadro não pode ser
relevantes, atuando por exemplo nos jornais detinham autoridade e poder para influenciar muitas vezes que questionar, desmistificar tomado para invalidar a importância daquela
alinhados com a causa e fortalecendo com e mobilizar grupos sociais mais amplos. e denunciar os preconceitos associados ao experiência histórica. Como afirma Ciriza:
isso a imprensa alternativa. Elas também seu gênero. Essa luta interna ao movimento
tomaram as ruas e organizaram protestos A partir deste apanhado de distintas formas para que as mulheres fossem reconhecidas
e manifestações, o que fazia ainda mais de engajamento político podemos perceber como atores políticos com legitimidade Se a revolução não deixou um saldo
importante a sua presença no espaço público. que enquanto algumas atividades estavam é, por exemplo, uma das possíveis vias imediato de conquista de direitos para
Foi fundamental o apoio material (na forma associadas aos papéis tradicionais de gênero, para pensarmos no caráter feminista de tal as mulheres, inaugurou um tempo em
de recursos e no emprego da força de ou pelo menos não implicavam algum tipo experiência. É importante lembrar que os que a diferença sexual já não podia
ser abertamente convocada, instalou o
88 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 89

espaço no qual podíamos, com avanços e Lilia Maria Silva Macêdo é doutoran- Referências bibliográficas GONZÁLEZ, Judith. Re-imaginando y re-
retrocessos, colocar a questão dos nossos interpretando a las mujeres en la independen-cia:
da em Sociologia pelo Programa de
direitos (2013, p. 154, tradução da autora). ANSALDI, Waldo; GIORDANO, Verónica. historiografía colombiana y género. Procesos
Pós-Graduação em Sociologia do In- “América Latina. La construcción del or-den. De Históricos, núm. 17, enero-junio, 2010, pp. 2-18.
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reconhecidas como cidadãs com plenos encuentro Las Independencias: Un Enfoque Mundial.
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As considerações aqui apresentadas indicam América Latina (NETSAL). Acesso em 20 de jun. 2017. de la Revolución de Quito, 10 de Agosto de 1809.
apenas alguns dos contornos de uma questão contato: liliamaria.sm@gmail.com Quito, 27 al 31 de julio de 2009.
muita mais profunda, e apontam para alguns CIRIZA, Alejandra. “La formación de la conciencia
social y política de las mujeres en el siglo XIX LYNCH, John. Los orígenes de la independencia
dos dilemas e debates que a envolvem. É hispanoamericana. BETHELL, Leslie (ed.). História
latinoamericano: mujeres, política y revolución: Juana
preciso seguir explorando esses caminhos de América Latina, Tomo 5, La independencia.
Azurduy y Manuela Sáenz.” ROIG, Arturo (Comp.).
e ir colhendo os rastros desses capítulos El pensamiento social y político iberoamericano del Edito-rial Crítica. Barcelona, 1991.
esquecidos, porém fundamentais, da história siglo XIX. Madrid: Trotta (2000): 143-168.
latino-americana, com a finalidade de desvelar MIRES, Fernando. La rebelión permanente: las
o significado dessa experiência para as GARCÍA LÓPEZ, A. B. Las heroínas calladas de revoluciones sociales en América Latina. Siglo XXI,
la Independencia Hispanoamericana. Disponível 1989.
mulheres e para a sociedade de modo mais
amplo. Mais do que um exercício de revisão em: <http://cvc.cervantes.es/literatura/mujer_
independencias/garcia.htm>. Acesso em 20 de jun. ZEA, Leopoldo. Antología del pensamiento social
do passado, acreditamos que a abordagem 2017. y político de América Latina, Unión Panamericana,
desse tema implica uma verdadeira Washington, 1964.
reestruturação do olhar historiográfico e GARCÍA LÓPEZ, Ana Belén. (2011). La
sociológico que questiona e rompe com participación de las mujeres en la indepen-dencia
o androcentrismo presente nas ciências hispanoamericana a través de los medios de
humanas. comunicación. Historia y Comunica-ción Social, Vol.
16, páginas 33-49.

GARGALLO, Francesca. Las mujeres, sus ideas,


sus escritos y sus actos en la indepen-dencia
nuestroamericana, ponencia presentada en el
Coloquio Políticas de la Alteridad, organizado por la
Universidad Autónoma de la Ciudad – Plantel Del
Valle, Ciudad de México, 22 de abril de 2010.
91

mãe! (2017) e o mito


da mulher eterna
Lolita Guimarães Guerra

resumo Introdução desordem das visitas causa o rompimento da


Este trabalho discute mãe! de Aronofsky tubulação hidráulica e, com o vazamento, a
(2017) a partir da perspectiva do Mito e seu De acordo com sua sinopse oficial, o longa- anfitriã consegue expulsá-las. O faz casal faz
potencial de denúncia da História. Eivado metragem mãe!, lançado este ano e escrito sexo em meio a uma briga e, no dia seguinte,
de elementos míticos provenientes da e dirigido por Darren Aronofsky, é uma a mulher anuncia estar grávida. O marido,
tradição bíblica, de contextos literários e orais narrativa sobre ‘um casal cuja existência que até então vivia um bloqueio como
mesopotâmicos e gregos, e de reformulações tranquila é perturbada quando hóspedes não escritor, põe-se a escrever. Tempos depois,
contemporâneas de temas da antiguidade, convidados chegam em sua casa’1. Como quando a protagonista está prestes a parir,
o filme convoca ao questionamento de obra de arte, o filme extravasa os interesses ele termina sua obra. A casa é invadida uma
estereótipos de gênero em torno dos conscientes e os sentidos declarados por terceira vez, agora por uma multidão ainda
conceitos de ‘mãe’ e de ‘musa’. Aronofsky seu autor. Quando observados e sentidos mais turbulenta de fãs, os quais formam
constrói uma narrativa exemplar, típica dos pela audiência, os termos de composição do um culto em torno do poeta envaidecido,
mitos antigos sobre divindades femininas, enredo mostram-se como sua camada mais enquanto a mulher se desespera. Cada vez
mas o faz de maneira a provocar sua superficial, sobre a qual desdobram-se em mais numerosos e agressivos, os invasores
ressignificação pela audiência. Desta maneira, proporção geométrica elementos de ordem instauram um ambiente de violência e levam
como seus interlocutores privilegiados, nos mítica e de implicações políticas. a casa à ruína. A mulher, depois de ser muito
munimos de ferramentas interpretativas com machucada, consegue se refugiar em um
o potencial de recuperar a historicidade e cômodo isolado para dar à luz, mas o marido
Os visitantes logo se tornam hóspedes toma o bebê de seus braços. Entregue por ele
o caráter arbitrário dos discursos antigos e
inconvenientes e a mulher perturba-se com à horda, a criança é morta e canibalizada. A
contemporâneos sobre a mulher.
seu comportamento, enquanto o homem se mãe irrompe em ira e provoca a explosão da
entusiasma com eles. O primeiro hóspede é casa. Descobrimos então que, graças à ação
um homem de meia idade. No dia seguinte, do poeta e à maneira como usa a mulher, essa
palavras-chave se juntam a ele sua esposa e os dois filhos. narrativa tem a característica de se repetir
mãe!; Darren Aronofsky; mito; gênero Um dos rapazes fere mortalmente o outro ciclicamente e ao infinito.
e o anfitrião segue com a família para o
hospital, deixando a mulher sozinha em casa.
Quando o casal está novamente reunido em A relação entre o homem e a mulher é
casa, os hóspedes retornam, junto a muitos assentada sobre uma dinâmica de dominação
convidados, para fazerem ali o velório. A masculina e submissão feminina, que se
desdobra em negligência sexual e afetiva
1 Segundo a sinopse oficial do filme (http:// como silêncio ativo perante o desejo e a
www.imdb.com/title/tt5109784/, acessado em dedicação. Poeta narcísico, mas que não
19/11/2017).
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consegue escrever, ele cerca-se de visitantes entre autonomia, iniciativa e memória. Apesar O mito judaico da criação e as deusas deus que cria e expulsa a humanidade do
fanáticos. A protagonista é a reconstrutora de dependente dela para existir como sujeito femininas do Oriente Próximo paraíso3. Cercado por um culto exclusivista e
do lar anteriormente incendiado, e passa toda com agência, ele conserva caráter de ‘pessoa’, violento, seu sacerdócio é também masculino.
a história ocupada em atividades domésticas. enquanto ela é restrita aos traços gerais de um É o pai que abandona o filho à morte e se
Para seu desespero, paulatinamente o arquétipo. É uma escolha a manutenção do Uma narrativa bíblica da criação autoidentifica como faz o deus judaico a
trabalho construtivo cede espaço à penosa ciclo narrativo a partir do cristal descoberto Moisés4: Eu sou Eu. A expressão lhe confere
e finalmente inútil tarefa de manter inteira por ele no núcleo do coração carbonizado Aronofsky declarou seu filme como uma autossuficiência e desligamento do mundo,
a casa enquanto os hóspedes a espoliam e da mulher. Essa assimetria é explicitada no denúncia, a documentação dos horrores do nosso como se prescindisse de qualquer relação
depredam, e o marido faz pouco de suas monopólio do dano e do custo emocional mundo e de como deve sentir-se a Natureza com ele. Porém, quando ‘mãe’ o questiona
queixas, entusiasmado com a multidão. da tragédia pela protagonista, enquanto continuamente violentada pela espécie sobre si mesma, a chama de ‘casa’, ou seja,
Mesmo quando sofre violência, a mulher o marido, ao acolher com entusiasmo os humana (Miller, 2017). São empregues o contexto fora do qual ‘Ele’ não pode
não é tomada como merecedora de cuidado. invasores, é responsável pelo crescente caos tópoi bíblicos e estereótipos de gênero que existir. Essa dependência é escondida dela e
Em todo o filme, o destinatário de todas as e pela destruição de sua casa, esposa e filho. sustentam a abusiva assimetria do casal e sua identificação só ocorre quando já está à
atenções é o poeta. A situação transforma-se Suas ‘propriedades’ são violentadas, enquanto associam a terra à mulher e a humanidade beira da morte. Eivada de elementos ligados
quando ele decide proteger a esposa prestes ele sempre sai ileso. Ao destacar as escolhas ao homem. Esses dois aspectos se articulam à maternidade e à divindade feminina, a
a parir, a fim de defender sua paternidade do protagonista e suas consequências, mãe! ao longo da narrativa. A família de hóspedes narrativa amplifica os sentidos do conceito
iminente. Nesse momento, ela o enfrenta pela mostra como a aparência de circunstância acolhidos pelo protagonista atualiza o de ‘mãe’. São constituídos dois discursos
primeira vez, em defesa do bebê. Apavonado incontornável dada à narrativa e seus papéis modelo criacionista: o médico e sua esposa antagônicos: um sobre os eventos desde
e ansioso por expor o filho à multidão, o pai é ilusória. A história contada não seria parte representam Adão e Eva, seus filhos Abel a criação do mundo até sua destruição (a
causa sua morte. A mulher se vinga de todos de um ciclo de repetições infinitas caso ele e Caim2. O cristal tem lugar como o fruto história ‘dele’), outra sobre o violento ocaso
por meio de uma grande explosão. se decidisse por posicionamentos e atitudes proibido do conhecimento do bem e do mal da personagem principal em meio a esses
diferentes. Principalmente, esse ciclo seria (depois de quebrado ocorre a expulsão do acontecimentos (a história ‘dela’). Mesmo
quebrado. Mais do que isso, centrado em um escritório e o fratricídio). Porém, a narrativa protagonista, a ‘mãe’ ocupa um não-lugar, e
Este é um pequeno recorte de uma realidade poeta e sua musa, cercados por sua audiência, é centrada numa mulher anônima, a quem o essa contradição é fruto do emaranhamento
cíclica e de extensão desconhecida. Três o filme questiona discursos e modos de marido identifica como ‘casa’ e os créditos entre esses dois discursos e a dinâmica dos
diferentes atrizes interpretam a protagonista: operar no mundo naturalizados por seus finais como ‘mãe’. O emprego da inicial seus silêncios, que mutuamente chamam
Sarah-Jeanne Labrosse, Jennifer Lawrence próprios expectadores e não muito diferentes minúscula no nome faz dela a personificação atenção para si. Aí reside o caráter acusatório
e Laurence Leboeuf. O protagonista é dos sustentados pelos personagens. de uma ideia, e não uma pessoa. Apenas ‘Ele’ do filme.
sempre vivido por Javier Bardem. Ela é tem nome próprio, com inicial maiúscula.
repetidamente encarnada para viver uma A sequência bíblica destaca seu caráter
única narrativa de criação amorosa e autoritário, demiúrgico e fanático. ‘Ele’ é o
destruição vingativa e incendiária. Já ele 3 Gênesis 1.26, 3.23.
constitui sua identidade a partir da associação 2 Interpretados por Ed Harris, Michelle Pfeif-
fer, Brian e Domhnall Gleeson. 4 Evangelho de Mateus 27.46; Êxodo 3.14.
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Um dos sinais mais interessantes dessa Deusas soberanas mesopotâmicas e A Inanna suméria tem seus mitos monoteísmo radical do séc. VI a.E.C.8. Apesar
dubiedade é o surgimento de ‘mulher’. Na levantinas entrelaçados com os da Ishtar semítica de seu culto bastante difundido na Palestina,
noite anterior à sua chegada, ‘mãe’ vê o desde as épocas mais remotas. Na famosa inclusive em meios aristocráticos e voltados
médico passando mal, amparado por ‘Ele’. O mito judaico da criação foi majoritariamente narrativa de ressurreição de Inanna, a deusa ao culto do deus único, o Antigo Testamento
Em suas costas há uma ferida aberta. O definido em sua forma canônica por volta envia para o inferno seu consorte Dumuzi não as identifica como deusas, mas como
marido tenta escondê-la e, quando a esposa do século VI a.E.C. Seus traços gerais faziam por ele não a ter pranteado enquanto estava males a serem combatidos com violência9.
pergunta o que é aquilo, retruca dê-lhe parte de narrativas politeístas conhecidas morta6. A versão acádia do relato não é A documentação hebraica elogia os reis
privacidade! Constrangida ela sai, fechando a desde o terceiro milênio, quando, a partir clara sobre suas motivações, mas os mitos responsáveis pela expulsão de seus sacerdotes
porta. ‘Mãe’ é relutantemente alheia à Criação, de tradições orais antigas e seguindo junto a de Ishtar a enfatizam como um perigo para e sacerdotisas e a destruição de suas casas,
inclusive de ‘mulher’. Ela é um estorvo. Como elas, inscrições e relatos míticos surgem na seus companheiros. Em Ele o Abismo Viu, assim como pela profanação, derrubada e
as deusas combatidas pelo monoteísmo Mesopotâmia e no Levante. A região estendida ela deseja o rei de Uruk, mas ele a rejeita queima de seus santuários, estátuas e objetos
radical dos antigos seguidores do deus desde a Palestina, o Líbano e a Síria, até as por medo do fim trágico que acompanha religiosos10. Seu culto é sempre associado
único em contexto Palestino, essa consorte terras do Eufrates e do Tigre foi o território de seus amantes, e lembra o caso de Dumuzi7. às mulheres. Asá retirou de sua avó o título
divina deve ser subjugada e destruída. Após divindades femininas na posição de soberanas Incapaz de escapar do destino, os temores de rainha-mãe por ela ter feito uma imagem
insistentes tentativas em chamar a atenção supremas, amantes e mães. Ubíquas, elas eram de Gilgámesh se confirmam. Ishtar envia para Aserá, queimada pelo rei11. Prostitutas
para si, como se competisse com o culto ao reverenciadas marcadamente como mulheres. contra ele o Touro do Céu, e este destrói a que teciam vestes a Aserá tiveram seus
deus, incendeia a casa e morre queimada. Inanna é um dos casos mais constantes nessa cidade e seus habitantes. Junto a Enkidu, ele aposentos no Templo de Jerusalém atacados
Causado por iniciativa própria, seu fim literatura antiga. Em um de seus hinos, ela o aniquila, e os deuses decidem pela morte do a mando do rei Josias12. A associação entre
conclui a narrativa em tom de lenda cautelar é identificada ao planeta Vênus e aclamada companheiro, causando um luto desesperado
contra o politeísmo. ‘Mãe’, por se contrapor como a ‘Rainha do Céu’ venerada por todas no herói. 8 Os nomes ‘Inanna’ e Ishtar’ são encontra-
à monarquia divina masculina e celibatária, é as terras5. Como autocrata, pune os maus e dos em inscrições de Mari (Síria, nas proximidades
culpada de sua própria indignidade. Se apenas recompensa os bons, e profere juízo ao lado O Levante estava intimamente conectado do Eufrates) anteriores ao séc. XXIV a.E.C. ‘Ishtar’
pode ter derivado de formas como Attart e Ashtart,
um determinado deus é deus, então o espaço de Enlil, deus associado aos destinos. Como ao território mesopotâmico no que diz
atribuídos a divindades femininas cultuadas também
restante às outras divindades é o de engodo consorte divina ela surge ao lado de potestades respeito a essas deusas do desejo sexual e da na Síria (Mari e Ugarit) e em contexto hebraico e
maléfico. A morte da diaba é mero efeito como An e Ama-ushumgal-anna, identificado geração e destruição da vida. Na forma de fenício. Ver Pope (1965, 249-252) e Wiggins (2007).
de seu caráter diabólico. O filme sutilmente ao rei. Destinatária de vultosos sacrifícios de Astarté e Aserá, elas foram combatidas pelo
questiona esse discurso de exclusão. A alimento e bebida, sua sexualidade é exaltada 9 Juízes 2.3, 3.7, 10.6; 1 Samuel 7.3-4, 12.10;
primazia da deusa em relação ao demiurgo por meio do destaque dado ao prazer e 2 Reis 21.7, 23.4-13.
masculino é sinalizada nos créditos finais: satisfação que seus parceiros a proporcionam.
10 1 Reis 15.12-13; 2 Reis 23.4-13.
‘mãe’ é a primeira personagem listada, apesar 6 Descida de Inanna ao Mundo Inferior,
de Lawrence só aparecer depois de Bardem. 1900-1600 a.E.C. 11 2 Reis 15.12-13, relato repetido em 2 Crôni-
5 Šir-namursaĝa a Ninsiana para Iddin- cas 15.16, onde Maaká é mãe e não avó do rei.
Dagan, composto em sumério entre os sécs. XXI e 7 Mais conhecido como a Epopéia de Gilgá-
XX a.E.C. mesh de Sin-léqi-unnínni, séc. XIII a.E.C. 12 2 Reis 23.4-13.
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a religião proibida e as mulheres e ao sexo enfrenta o marido para defender a vida do A divindade aprisionada idiota14. Dick usará a redundante expressão
também aparece na narrativa sobre Salomão. filho, responde seu Eu sou o pai dele com um ‘objeto involuntário’ para descrever-se ante à
Seduzido por estrangeiras, com as quais o severo Eu sou a mãe. Ele recua. O conflito até obsessão do casal por ele, perplexo, invadido
contato sexual era um tabu, o rei voltou-se a então estava oculto para ela. Evidenciado à e incapaz de reagir à ação de Chris e Sylvère.
Astarté e favoreceu suas sacerdotisas13. Essas audiência do filme, segue em segredo para a A musa Em benefício do talento literário dos dois,
narrativas transmitem violências no seio de multidão dos hóspedes. sua privacidade havia sido sacrificada (Kraus,
conflitos políticos entre grupos privilegiados Em 1990, como parte da série de quadrinhos 1997, p. 260).
à época do estabelecimento do cânon Ao contrário da rivalidade entre o deus único The Sandman, Neil Gaiman publicou a história
hebraico. Nessas disputas contrapunham-se bíblico e as deusas do Levante, cuja disputa de Calíope, uma musa duas vezes aprisionada O papel da musa é marcadamente feminino e
um politeísmo de destaque para divindades é mais pública que privada (a ver pelo seu por homens no intuito de assim disporem subalterno. Mesmo em sua versão masculina,
femininas e o monoteísmo masculinista. caráter aristocrático e familiar), o embate do seu poder de inspiração. Estuprada por é ‘objeto’, involuntariamente, do desejo
entre os cônjuges é velado. Ele ocorre no eles, ela é retratada como uma personagem e da ação de outros. Usada pelos sujeitos
interior do antigo escritório do marido, passiva, liberta por Morfeu, seu antigo autênticos para fazerem-se a si mesmos, é
interdito ao público de fãs. A audiência o amante. O protagonista de Gaiman, uma sempre o ‘outro’ numa brutal relação de
Um conflito invisível identifica exclusivamente por brigas ocasionais, potência onírica eterna, sintomaticamente poder. Ser uma musa é ser violentada. Esse
quando estão a sós, e pela interpretação chama a musa de ‘criança’ (Gailman, 1990, p. tópos já surge na Antiguidade latina, quando
mãe!, ao chamar atenção para o mito do atenciosa das dinâmicas da relação. Quando 23) Ovídio narra como um rei tentou confinar
deus único como uma narrativa sobre ‘mãe’ impõe sua soberania sobre o filho, e estuprar as musas abrigando-as de uma
gênero e abuso, nos faz questionar o silêncio estabelece a consciência de si como parte Alguns anos mais tarde, Chris Kraus publica chuva em sua casa, mas elas saíram voando15.
sobre a divindade da protagonista e sua resistente em uma relação de poder. A partir um romance, I Love Dick, sobre uma mulher, Capaz de salvar-se em uma situação perigosa,
essencialização em um feminino doméstico de então se desenvolve um jogo a ser vencido seu marido e um homem por quem ela está ali a musa é protagonista, como em suas
e submisso. A mulher conformada e culpada pelo cansaço, e cuja revanche catastrófica apaixonada: Chris, Sylvère e Dick. Nesse
pelas agressões sofridas e a deusa-diaba a é consequência da tragédia causada à triângulo, o casal escreve a Dick e, quanto
14 No original, dumb cunt (Kraus, 1997, 59).
ser banida é parte fundamental da ancestral protagonista. mãe! recupera o tópos do feminino mais o fazem, mais o objetificam, e isso os ‘Dumb’ é uma forma pejorativa para ‘vagina’, equi-
propaganda monoteísta. Elas são construtos submisso para transformar-se em uma impulsiona a escreverem ainda mais. Sylvère valente a ‘puta’. ‘Dumb cunt’, portanto, qualifica a
históricos, não realidades fundamentais. Não narrativa cautelar exógena ao discurso bíblico, reconhece o alheamento de Dick nesse imbecilidade como questão de gênero. Para Sylvère,
têm a ver com a natureza, mas com escolhas mas que reverbera preocupações muito mais processo e comenta com Chris: Nós tomamos ele e Chris colocaram ‘Dick’ (personagem / pênis),
de indivíduos e instituições como agentes antigas: a consorte do soberano é uma deusa a decisão por ele. Decidindo sobre seus pensamentos. em uma posição inadequada, da qual ele deve ten-
políticos. O filme denuncia e nos conclama (...) Nós temos tratado Dick como uma puta tar sair. Sylvère já havia admitido essa objetificação
e tem primazia sobre ele, mesmo se não o
ao próprio Dick: Essas cartas incluíam você, como
a contestar esses modelos, chamando vence definitivamente. Por ele depender dela você mesmo e como um tipo de objeto de, você sabe,
atenção à silenciosa e inconclusa disputa de como ‘mundo’, toda a vida lhe está submetida. sedução ou desejo ou fascinação, ou algo assim
poder entre os protagonistas. Quando ‘mãe’ Brutalizá-la e sequestrar sua agência trará a (1997, 48).
destruição de toda existência.
13 1 Reis 11.1-8,33. 15 Metamorfoses 5.274ss. Séc. I E.C.
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mais antigas referências literárias. A Ilíada e exagerada e incoerente com suas ações. o cristal de seu peito e aguardar sua nova se perfeitamente arrumada com vestido e
a Odisseia são cantadas por ela, invocada pelo Lançada como migalha de atenção encarnação. Quando ao início do filme ela penteado de explícita inspiração clássica.
poeta16. A Teogonia de Hesíodo aprofunda o privilegiada, está em um contexto de se levanta e o busca pela casa, pensa estar Ela se mostra como as deusas das estátuas
tema: as Musas, que sabem dizer mentiras total alienação. Porém, desde o funeral, a sozinha. Porém, ele surge atrás de si, do lado e cerâmicas greco-romanas, e da pintura
como se fossem verdades e também proferir aclamação está ligada à produção criativa por de dentro da construção. Ele mente ao dizer de Botticelli. Aclamada, a turba e o caos se
revelações, ensinaram e impeliram o poeta meio da invasão à casa e do epitáfio ao jovem que saíra para, sozinho, encontrar inspiração. multiplicam.
a cantar17. Destacam-se aqui seu poder morto (repetido pelo sacerdote do poeta). A Na verdade, apenas aguardava o despertar
decisório, seus conhecimentos e talentos. musa inspira o discurso e a criação de todos da musa em nova forma, cuja existência
Não é possível submetê-las às vontades de os personagens do filme, identificados nos pregressa ela ignora. Ao perguntar se as ideias Humilhação, contaminação, estupro
outrem e fazer delas objetos de inspiração. Mas créditos por termos com inicial minúscula: fluíram e ouvir uma impaciente negativa,
tantos séculos depois, Ovídio expressa outra ‘homem’, ‘mulher’, ‘irmão mais novo’, ‘filho tenta acalmá-lo: elas virão. Sim: virão ‘ideias’ As aclamações são de grande mau gosto
forma do mito e tenta dar-lhe coerência: se mais velho’, ‘adúltero’, ‘zelote’. Como formas em suas formas personificadas e narrativas. para quem a vê como uma mulher em
a musa é uma mulher, ela é objeto, tanto do discursivas, eles são projeções às quais o uma relação abusiva. Ela se parece com a
desejo quanto da ação masculina. Ali ela já é público pode atribuir outros estereótipos: ‘Minha Deusa’ e ‘Inspiração’ (assim a editora Calíope aprisionada de Gaiman e com o
destacada como personagem apenas reagente. ‘médico de meia idade’, ‘esposa intrometida’, chama a musa) aparecem no filme como Dick efeminado de Kraus, meras fontes
Gaiman e de Kraus privilegiam esse aspecto. ‘filho inocente’, ‘irmão enciumado’, aclamações performáticas, teatrais. No de criatividade para quem não as vê como
Aronofsky o entrelaça com o da deusa criativa ‘assediador insistente’, ‘sacerdote canibalista’. escopo das referências culturais gregas, o pessoas. Um dos sequestradores estupra
ancestral. Essa (des)harmonia é evidente nas Sem nome próprio, as identidades tornam-se teatro é um fenômeno fundamentalmente Calíope justamente dizendo para si: Ela
expressões usadas pelos personagens do filme circunstanciais e dependentes da audiência. religioso. Tragédias e comédias eram nem sequer é humana, ela tem milhares de anos
quando falam à protagonista anônima. Essas fantasmagorias jamais se constituem encenadas na Atenas clássica durante os (Gaiman, 1990, p. 8). Calíope, pelo contrário,
como ‘pessoas’. festivais dionisíacos, quando se celebravam lembra-se de um tempo em que as musas eram
vários aspectos do deus da vida indestrutível ainda buscadas e cortejadas e necessárias (Gaiman,
As cenas finais de mãe! mostram um poeta (Kerényi, [1976] 2002). mãe! é uma 1990, p. 11). Se na contemporaneidade,
A apropriação da musa inativo sem a musa. Poderíamos dizer, narrativa trágica perante sua audiência, mas os homens sequer se privam de estuprá-
até ‘suposto poeta’, pois sua identificação internamente há também comicidade. Os las, certamente qualquer reverência a elas
‘Ele’ exclama ‘Minha Deusa!’ em dois como tal vem sempre de si e dos outros personagens riem, debocham da protagonista. desapareceu. Hoje, ser uma musa é indigno
momentos: na segunda invasão, durante o personagens do filme. Apenas o episódio Para eles, há comédia. As aclamações vão e isso é tipicamente feminino. A adaptação
velório, e na terceira, quando vem a multidão do poema comemorado na terceira nesse sentido: são encenações para um televisiva de I Love Dick sintetiza esse
de fãs para venerá-lo. Trata-se de uma invasão atribui-lhe a identidade ‘poeta’. público. Ao mesmo tempo, elas explicitam processo de submissão feminilizante ao
encenação de respeito, descuidadamente Seu trabalho não existe sem a musa e sem o caráter religioso da narrativa. Na última qual o personagem é submetido. Sylvère
seu envolvimento material (corpóreo e invasão da casa, quando a musa, grávida, fala a Dick sobre as cartas escritas por Chris
16 Ilíada 1.1; Odisseia 1.1. Séc. VIII a.E.C. fisiológico) com ela, concretizado pela prepara um faustoso jantar para comemorar o (publicizadas a toda a cidade) como algo
gravidez. Após a explosão, a ele resta tomar lançamento da obra do poeta, ela apresenta- justo, pois homens usam mulheres há séculos
17 Hesíodo, Teogonia 22-34. Séc. VIII a.E.C.
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como fonte de criatividade. Ele o provoca da musa consigo. Ela literalmente constrói as falta de autonomia da mulher sobre o próprio encontrado após o incêndio da casa, admite:
perguntando se Dick não gosta de ser ‘um condições para sua existência e suas histórias, corpo e remete ao estupro e à gravidez e então eu a conheci, e ela expirou vida sobre todos
muso’. O outro responde: Quer a verdade? É ergue o ‘cenário’ onde atuam. A criatividade é indesejada como questões de ordem política. os cômodos. Ela ‘expira’. Ele ‘inspira’, a toma,
humilhante18. um atributo dela, que o poeta apenas saqueia A audiência sabe que sim, há um problema. a faz ‘sua’ deusa, uma divindade particular
quando a aprisiona no ciclo de ressurreições. a seu serviço. A veneração pretendida está
Enquanto ele negligencia afetiva e Por isso, quando ‘Ele’ cria, suas criaturas são O saque e a destruição da casa durante invertida. O poeta não a cultua, mas ouve dela
sexualmente a mulher, os personagens, majoritariamente imperfeitas e até vis. a terceira invasão traz o tema da falta de as mais sofridas súplicas enquanto impassível
invasores da casa, monopolizam a atenção domínio da mulher quanto ao próprio corpo. ascende como ídolo. Porém, semelhante
do poeta. Sua chegada ganha inclusive Não é tolerável dividir a casa com os Os invasores roubam objetos, pedaços da às deusas levantinas, há sim devoção em
um caráter somático. Uma contaminação personagens, pois sendo a musa também a construção, a usam e a refazem como bem torno dela. Quando nasce o bebê, ela recebe
adoece a protagonista. Logo a musa age casa, não é suportável ser compartilhada com entendem. Essa intromissão já é sinalizada uma cesta de ‘presentes’ e depois roupas,
como se estivesse enciumada, por meio eles. Seu corpo reage. Já durante a primeira anteriormente, quando os convivas do como oferendas19. O poeta as recebe da
de pequenos boicotes aos pertences dos conversa do poeta com o médico, ela deixa funeral pintam as paredes da casa à revelia da multidão e as deposita ao seu lado, como um
visitantes, como o isqueiro do médico, que cair uma xícara, sinal da destruição de seu ‘mãe’. A penetração de pessoas indesejadas intermediário entre a deusa e os homens.
ela propositalmente derruba atrás de um corpo e da casa, provocada pela chegada dos não é apenas uma metáfora para o estupro, Porém, é um sacerdote ímpio, que a aprisiona
móvel. Este será reencontrado mais tarde hóspedes. O ‘adúltero’, durante o velório, mas também da alteração involuntária do e a chantageia. As oferendas ganham tons
quando ela decide explodir a casa. Seu é um sinal desse perigo, confirmado pela próprio corpo. Após essa segunda invasão, de suborno: a multidão quer a criança. O
incômodo destruirá toda a criação do poeta abordagem sexual agressiva do poeta sobre a protagonista engravida. Há aqui uma escritório parece um refúgio intocável, um
e a si mesma. Ela ressente-se da criação, ela: a musa é repetidamente violentada, interseção entre o mito da Musa e o da Mãe. santo dos santos, mas é cárcere para a musa.
apesar de ter criado suas bases. Inclusive, ao partilhada entre desconhecidos. Tudo Esta musa não gera por iniciativa própria, A semelhança entre proteção e prisão é
contrário dela, ‘mulher’ parece uma musa acontece à sua revelia. Quando o médico mas do homem. A protagonista lembra a explícita: este é o lugar onde era mantido
bem-sucedida, capaz de manter o interesse chega, ela questiona o poeta: ele é um estranho, Gaia hesiódica, dolorosa, estirada sob um Céu o cristal proibido. Além dele lhe esperam a
do marido sobre si. Mas essas criaturas vamos simplesmente deixá-lo dormir em nossa casa? que continuamente a viola e a impregna. Elas brutalidade e o assassinato do filho. Criada
são meros arremedos, fora de controle do Ele responde em um tom intimidador: você não têm como se livrar deles. pelo poeta, a intransponível fronteira entre o
próprio poeta, dispersas e inacabadas. ‘Ele’ quer que eu o peça para sair? O diálogo, ou sua quarto e o fora da casa mantém aprisionada a
não ‘sabe’ tudo sobre elas: tem curiosidade descontinuidade, aponta suposta obviedade deusa a serviço de seu captor.
a respeito das histórias do médico, ignora a própria à retórica hegemônica sobre o Uma dependência incontornável
existência de sua esposa e de suas verdadeiras estupro. Se uma mulher ‘dá espaço’ a um Em diversos momentos é escondida e
intenções (como ‘fã moribundo’ que quer homem, não pode mandá-lo embora. Esse As aclamações ‘Inspiração’ e ‘Minha invertida a dependência do poeta em relação
conhecer seu ídolo antes de morrer). Esses ‘estranho’, o ‘outro’, já se apropriou dela. Deusa’ também fazem da protagonista uma
personagens só aparecem graças à existência Quando chega a ‘mulher’ e a protagonista propriedade do poeta. Inspirar é consumir o 19 O conteúdo da cesta lembra os sacrifícios
novamente reclama, ‘Ele’ chega a dizer: Não ar necessário à vida. O poeta a consome, pois oferecidos a Inanna em Šir-namursaĝa a Ninsiana
18 I Love Dick, Temporada 1, Episódio 6, ‘This pensei que fosse um problema. O filme fala da depende dela. Quando fala sobre o cristal para Iddin-Dagan, 150-162: ghee, tâmaras, queijo,
is not a love letter’, 2017. frutas, cerveja, pastas, bolos, mel, farinha, vinho.
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à musa, e sua necessidade de mantê-la grávida. Até então, ele não é um poeta. Sua reconstruída segundo o que era antes do Ao contrário da inspiração compreendida
prisioneira. Ela mostra sentir-se descartável e performance de autor com bloqueio criativo é incêndio. Porém, ela escolhe como acontecerá como algo vindo ‘de fora’, a musa é a própria
dependente dele. Quando o poema fica pronto um engodo. Ele se utiliza dela para sustentar a essa restauração. A cada uma das repetições habitação, como corpo e como residência.
e ela o lê, chora e pergunta se vai perdê-lo. fantasia sobre si mesmo e sobre a natureza da da história, a ‘casa original’ (também um mito, Ao final do filme, o poeta auto-identificado
Ele diz ‘nunca’ e faz a palavra soar como uma produção criativa. O trabalho da protagonista uma existência meramente narrativa) surge como deus diz a ela: você era casa. ‘Ele’,
declaração de amor, porém, trata-se de uma é extenso, lentamente executado, mas ela está de acordo com a musa presente. Essa casa como os personagens, é um ocupante da
impossibilidade prática. Na maior parte do o tempo todo envolvida nele, o que garante existe para ela, não como pressuposto a ser realidade material da casa-útero de onde
tempo, ela mostra-se ignorante a esse respeito. seu progresso. O homem, por sua vez, espera confirmado, mas como devir de perfeição não é possível sair. Não o vemos além da
Quando ocorre o fratricídio, ela aterrorizada que o poema surja independe de labor, quase paradisíaca concretizado no decidir-se. Se porta ou em qualquer outro cenário. A única
pede para não ser deixada sozinha, mas o automática ou naturalmente. Aqui está um em boa parte do filme a musa parece alijada exceção ocorre quando, ao ler o poema, a
marido mesmo assim sai com o casal de elemento muito interessante da narrativa: o de agência, é porque sua ação diz respeito às musa imagina-se junto a ele no exterior da
hóspedes para levar o rapaz ao hospital. mito da criação ex nihilo, no qual o próprio condições para a criação (seus fundamentos, casa incendiada. Ao darem as mãos, trazem
Durante a briga após a inundação, quando poeta acredita. Esse é também o mito do desprezados como mero ‘cenário’), não aos de volta à vida a terra e a construção. Esse
‘Ele’ defende sua decisão de fazer o velório útero mágico, do corpo feminino como uma efeitos de sua apropriação pelo poeta. acontecimento é uma ficção, um falso
na casa porque os visitantes ‘precisavam cornucópia de onde tudo pode advir. O poeta presságio de harmonia. ‘Ele’ nunca esteve
de um lugar’, ela retruca: E quanto ao que eu não abre mão desse mito e, por isso, invoca ‘lá fora’, lugar sem via de acesso à casa. Para
precisava? Um rapaz morreu aqui hoje. Eu limpei e aprisiona a musa. A necessidade de repetir onde eles iriam?, diz ‘Ele’ à musa, quando ela se
seu sangue e você me abandonou! O conjunto de o ciclo carcerário indica algo de errado. Ele prontifica a expulsar os primeiros hóspedes
sua fala, porém, não nos permite falar nela é sempre o mesmo, enquanto ela muda de O Mito da Mulher Eterna da casa, logo depois da quebra do cristal. O
como efetivamente dependente: Acha que isso forma. Mesmo na posse de cada uma de suas que todos fazemos aqui, certo?, responde, irônico,
o ajudará a escrever? Nada ajuda! Eu reconstruí essa versões, ele tem dificuldade de criar e de fazer ‘casa’ o ‘filho mais velho’ quando ela questiona sua
casa toda, parede a parede! Você não escreveu palavra da criação algo que ela não precise destruir. presença. ‘casa’ se dispõe a ser a realidade
alguma! Não há alternativa à ‘mãe’. Ela é o único ‘mãe’ e ‘casa’ são uma. Ao tocar pela primeira material inescapável, e apenas os cataclismos
contexto material da existência do poeta e vez em ‘si mesma’, ela muda de ideia sobre a removem dela as multidões.
A musa é a força necessária às condições suas criaturas. cor de um aposento. Ela está entusiasmada e
da vida. Suas ações e gestos, desde o início, decidida, seu corpo não a aflige. Ela produz ‘mãe’ toma consciência de si também com a
sugerem força, especialmente física, inabalável Apesar de seu completo descontrole sobre um tom de amarelo, o aplica na parede e se morte do filho: Está na hora de saírem da porra
na gravidez e após o parto. Além disso, as criações do poeta (refugos de sua própria satisfaz com o resultado. Por efeito do toque, da minha casa! Afirmada como ‘sua’, ‘casa’
literalmente, ela ergue a casa ‘parede a parede’, criatividade), a musa tem absoluto poder de decisão e autoconsciência se confundem, machuca o protagonista pela primeira vez,
enquanto ele não trabalha. Complacente até decisão sobre as condições prévias de seu pois não há ‘Eu’ imaterial. O toque sempre arranhando seu rosto. Após ferir e matar
então, ela havia dito ao início do filme, para surgimento. Materializadas na casa, elas são remete a imagens pulsantes e cardíacas, como algumas pessoas, ateia fogo em tudo. ‘mãe’
confortá-lo: você tem trabalhado tanto! Porém, decididas por ela sem qualquer influência um corpo todo coração onde abriga-se outro, assume as formas arquetípicas de geração e
só o vemos escrever quando ela se anuncia do poeta. Supostamente, é a casa ‘dele’, frágil e cristalino. destruição, esta última, madrasta de si e do
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poeta, cujos entretenimentos recreativos da protagonista só devém como poeta e como Mito e denúncia da História a outro, de um verso a outro, há diferenças.
criação ela remove. Os abusos contra ‘mãe’ deus em meio e por meio dela, habitando seu Elas não são meras inconsistências, mas
expostos no filme nos impedem de empatizar ventre, nutrindo-se dela. Esse devir não se Mito é uma narrativa fora do tempo. escolhas individuais e institucionais que
com ele. ‘Ele’ não é um inocente herói cujo cumpre como saída, mas ‘volta ao princípio’, Enquanto a História é referenciada na invisibilizam e remarcam outras escolhas.
reino é destruído por uma górgona má. O enquanto intromissão. ‘Ele’ traz consigo toda realidade imediata, cuja dinâmica suposta Mas por dizer respeito a modelos ideais,
caráter punitivo de madrasta não a destitui da a criação, vinda ‘de fora’, exógena à musa, é a da linearidade e do princípio da não- a mitologia resiste à soberania do tempo.
identidade materna, mas a reafirma e amplia, mas como supõe ser a inspiração. Não é. contradição, o Mito vai em direção oposta. Por isso, quando nos deparamos com essas
tanto a cada narrativa, quanto ao longo de Somente a gravidez, ‘criação por dentro’, Nele, as relações entre os acontecimentos narrativas, temos a impressão de ver e ouvir
suas eternas repetições. é acolhida com alegria, e apesar do espólio frequentemente se contradizem e não se algo de inconteste e natural. Como sua
e das violências contra ela. Nesses termos, autorreferenciam. A História é fenômeno expressão é condicionada pela História, elas
a afirmação do mito maternal é nauseante do provisório e do esquecimento, enquanto nos soam familiares. São do nosso contexto
apenas para a audiência. o Mito é uma dimensão de memória e e assim nos parecem fundamentais. Por
‘mãe’ conservação. A História, como campo repetição e a cada variação circunstancial,
Há uma ferida, literal, na casa. Resultado de saber, é ciência do particular. O Mito fazem parte de um imaginário sobre como as
Como ‘mãe’ é uma mulher eterna, o da morte do ‘irmão mais novo’, ‘mãe’ resguarda o inespecífico ao condensá-lo em coisas ‘são e sempre foram’.
protagonista é um filho eterno. Egocêntrico repetidamente a confirma. De forma vaginal, modelos exemplares, porém extremamente
e mimado, jamais parido, sempre cuidado, ela demarca suas causas e consequências plásticos: o ‘mito da mulher’ subsiste em e mãe! opera com claros estereótipos de
ele, como um feto, só consome. Logo como questões que dizem respeito às por todas as suas formas narrativas possíveis. gênero. Ele tem história, ela é natural. Ele
após a exibição do título, é dita a primeira mulheres. Quando a olha, a toca e a expande, está no campo das propriedades. Ela, no da
palavra do filme: ‘bebê’20. mãe! é portanto, parece até impedi-la de cicatrizar. Ela tenta Em sua posição de alteridade radical à existência21. A Existência, como totalidade,
uma invocação à protagonista, respondida escondê-la de seu brutal captor, mas a revela História, o Mito faz-se privilegiado para é anterior a qualquer escolha individual.
com o chamado e a procura pelo filho. O para nós. Para não ser ouvida pelo poeta, criticá-la enquanto dimensão política. ‘Mãe’ não tem lugar na História. Ela é um
título não se pressupõe apenas sobre o bebê a musa canta somente a nós, sussurrante, a Conhecemos o Mito apenas pela mitologia, arquétipo. A mulher que existe de acordo
despedaçado, mas também sobre ‘Ele’. O denúncia sobre si mesma e sobre o mito do sua contraparte ‘dita’, organizada em com os valores apresentados no filme, como
filho amado de deus. O fratricídio explícito núcleos discursivos mais ou menos restritos. algo autêntico e atemporal, é uma construção
20 Baby, também traduzível por ‘querido’, evoca o fratricídio implícito do bebê por ‘Ele’. Como práticas sociais, imagens e narrativas mitológica. Também o é a ideia de que essa
‘amor’. Em mãe!, a expressão tem implicações sérias mãe! enfia o dedo na ferida do mito materno dispersas, até formas padronizadas, as mulher subsistirá para sempre. O mito da
demais para ser usada deliberadamente e limitar-se e diz: ‘é nisso que ele implica, nada de bom mitologias trazem o Mito para a História
ao contexto de uma relação de amantes. Da mesma como resultado das decisões no tempo. Como
poderá vir dele’.
forma, durante o funeral, o ‘homem’ enlutado excla- 21 Além disso, ela é marcada por sua beleza,
ma Oh, deus! após ouvir o epitáfio pronunciado pelo
humanas (e, portanto, de diversidade infinita), passividade, generosidade, privacidade, domestici-
poeta. Também nesse caso, as implicações em torno essas escolhas criam miríades narrativas em dade, menoridade, desejo, sofrimento, maternidade
da palavra, dentro da narrativa do filme, impedem uma rede cheia de nós górdios e pontas soltas. e vingança. Ele é associado a ideias de civilização,
que ela tenha sido empregue de maneira inocente, Mesmo de uma pintura a outra, de um texto intelecto, publicidade, consumo, direito, maturida-
apenas como uma interjeição de dor. de, racionalidade e agressividade.
106 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 107

mulher eterna é um refugo do tempo. Ele está de barganha a ser feita por Ishtar a fim de uma grande macieira, a deusa lança sobre como narrado em um hino arcaico27, faz do
na base dos estereótipos que não dão conta voltar à vida, e o luto por Tammuz. Porém, ele um malefício. Dumuzi tentará escapar retorno sazonal de Perséfone uma dádiva
da realidade ‘mulher’, mas justificam todas o contexto é ambíguo, pois não é possível da morte, mas será capturado pelos agentes celebrada. Seus elementos angustiantes
as violências materiais e simbólicas contra dizer se ele está em luto pela morte de Ishtar, do submundo. Inanna, por sua vez, chora limitam-se ao estupro cometido por seu
as mulheres. Todas elas. Como à miríade se o encontro com as prostitutas é parte de em profusão, arranca os próprios cabelos tio contra ela (e consentido pelo pai) e
heterogênea das mulheres que ele põe em um rito fúnebre, ou se o contexto festivo tem e grita a sua procura: onde está meu esposo (...) à busca e o luto de sua mãe. O ciclo de
risco, tem sido naturalizado e adaptado a outro sentido23. onde está meu filho? Onde está meu homem?25. A ressurreição e morte não é caracterizado
infinitas versões, e resiste, apesar das variantes deusa causa a morte de seu amado, mas não sequer como cansativo. Em mãe!, seus
críticas ao próprio modelo. Na documentação suméria, os textos sobre pode abrir mão de chorar por ele26. Como aspectos mais perversos vêm à tona. Quem
Dumuzi detalham sua morte violenta, a Dumuzi e Tammuz, as antigas deusas se beneficia da mulher eterna, se não o
pranteada principalmente por personagens mesopotâmicas eram capazes de aniquilar próprio cônjuge / filho e seus asseclas? O
femininas24. No mito de Descida de Inanna seus consortes em grandiosos rompantes de mito, com seu final conciliatório, nos impede
A deusa ressuscitada ao Mundo Inferior a deusa, ao voltar da ira. A morte desses personagens pode parecer de perguntar à própria Perséfone, retornada
morte, encontra seu amado em um uma injustiça, de acordo com a perspectiva temporariamente para desfrutar da vida
Uma das variantes do mito da mulher eterna ambiente de opulência, ao contrário dos das narrativas conhecidas. Mas elas salientam sob o sol, quando será a hora de parar. Só
é a deusa que morre e ressuscita, e consigo a muitos indivíduos enlutados. Quando o vê o caráter de perigo em torno de Inanna e de poderíamos ouvir sua versão primaveril,
fertilidade da terra. A deusa mesopotâmica entronado e magnificamente vestido sob Ishtar, deusas cujo amor não-correspondido própria do mundo dos vivos, renascida e
é conhecida por uma narrativa de descida se expande em destruição. esquecida do drama pregresso. Mas a cada
ao mundo dos mortos, do qual escapa subida do Hades, segue-se nova descida a ele,
após intervenção divina. Na versão acádia 23 Na tradução de Benjamin Foster, a passagem parece
uma ordem de Ereshkigal, ou uma orientação ritual: Se acaso
O mito da deusa ressuscitada é bastante com toda a violência que isso implica. Disso
do mito, Ishtar atravessa sete portais para ela não pagar o resgate, traga-a de volta. Tammuz, o amado conhecido pela história de Perséfone, sabem os mortos, que a recebem lá embaixo.
chegar ao reino de sua irmã, um lugar sem de sua juventude, banhe-o em água pura e o unja com fino forçosamente casada com Hades após ser
óleo. Vista-o em trajes vermelhos, e que ele inicie a música da
Aqui em cima, esquecemos o peso dessa
volta e privado de luz22. Lá em baixo ela flauta de lápis lazúli [... um anel de cornalita]. Que prostitu- estuprada por ele, e continuamente retornada eternidade involuntária.
morre, atingida por uma praga enviada tas modifiquem [seu] humor (vv. 126-129). A interpretação de à sua companhia no mundo inferior após
Stephanie Dalley faz de Tammuz o resgate de Ishtar, enquanto
por Ereshkigal. Enquanto estava morta, o banho, a vestimenta, a música e as mulheres seriam parte de
alguns meses por ano junto à mãe. O mito, Perséfone, como Inanna e Ishtar, é uma deusa
a humanidade e os animais deixaram de um ritual fúnebre (2000, 160-162). da morte. Após o assassinato do bebê, ‘mãe’
copular. Após a ressurreição da deusa, ‘o irrompe em fúria e mata diversas pessoas
amor de sua juventude’, é morto e pranteado. 24 Sonho de Dumuzi, Dumuzi e suas irmãs, em torno de seu corpo canibalizado. A turba
Uma passagem curiosa do mito fala de Dumuzi e Geshtinanna, compostos entre 1900 e
a ataca violentamente. Resgatada por ‘Ele’,
1600 a.E.C. O hino helenístico Lamento a Tammuz, 25 Descida de Inanna ao Mundo Inferior, 348-
Tammuz em companhia de prostitutas. O composto em babilônio no século III a.E.C. destaca 393. Destaca-se, aqui, também o tema do amante-fi- em prantos o acusa: você matou o meu bebê.
verso está localizado entre a declaração as práticas rituais sobreviventes nesse sentido. Em lho. Quando o marido fala em perdoar a multidão,
contexto palestino, Tammuz era também conhecido
22 Descida de Ishtar ao Mundo Inferior, 911- como um deus moribundo pranteado por mulheres: 26 Seu lamento também ocorre em Inanna e 27 Hino a Deméter atribuído a Homero, mas
612 a.E.C. Ezequiel 8.14 Bilulu, da mesma época. composto entre os séculos VII e VI a.E.C.
108 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 109

o modelo do feminino de plena doação mãe! descreve um discurso segundo o qual Referências bibliográficas HOMERO. Odisseia. Tradução de Trajano Vieira.
é posto em xeque. ‘mãe’ olha incrédula e a mulher é dádiva. Ela deve doar tudo: seu São Paulo: Editora 34, 2011.
ANÔNIMO. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: JACOBSEN, Thorkild. The Harps that Once.
finalmente parece percebê-lo como quem talento, seu amor, seu corpo, todas as suas
Paulus, 2000. Sumerian poetry in translation. New Haven: Yale UP,
ele realmente é: Eles assassinaram nosso filho! forças, até o fim. Deve doar a si mesma, 1987.
Você é insano! Enquanto ‘Ele’ repete a fórmula sem restrições. Nada disso bastará ao
ANÔNIMO. Hino Homérico II, a Deméter.
do perdão absoluto, ela tem uma última destinatário masculino. O deus demiurgo, o Tradução de Ordep Serra. São Paulo: Odysseus, 2009. KERÉNYI, Carl. Dioniso. São Paulo: Odysseus,
visão do coração pulsante, agora totalmente homem criativo, de vida pública, não pode [1976] 2002.
carbonizado. ‘mãe’ grita um vasto e poderoso prescindir dessa figura feminina e garantirá ARONOFSKY, Darren. Mother! New York:
não, e a casa se rompe sob si. Quando já está sua sobrevivência eterna. Nada nunca é Protozoa Pictures, 2017. KRAUS, Chris. I Love Dick. Los Angeles:
no porão, prestes a explodir a casa, o poeta o bastante. Mil mulheres violentadas e BOTTÉRO, Jean. No princípio eram os deuses. Semiotext(e), 1997.
tenta impedi-la. ‘Ele’ diz que a ama, mas ‘mãe’ queimadas, mil filhos canibalizados, nada Lisboa: Edições 70 (2004) 2006.
MILLER, Julie. Mother! Mastermind Darren
retruca: você nunca me amou. Você só amava o será, nunca, o suficiente. Resiste o mito da Aronofsky explains his disturbing fever dream. In:
DALLEY, Stephanie. Myths from Mesopotamia.
quanto eu amo você. Eu te dei tudo. Você se desfez mulher eterna, tão arcaico e tão atemporal. Oxford: Oxford UP, 2000. Vanity Fair, 15/09/2017. https://www.vanityfair.
de tudo. A casa explode. A destruição é tanto Segundo ele, nas condições de esposa, deusa, com/hollywood/2017/09/darren-aronofsky-
uma vingança quanto uma desistência, mas musa e mãe, devem as fêmeas se adequar, ELECTRONIC TEXT CORPUS OF SUMERIAN explains-mother, acessado em 25/11/2017.
ela será impedida de definitivamente desistir. residir e resistir, nem que pela brutal máquina LITERATURE. Oxford: University of Oxford,
Moribunda, ‘Ele’ a levará ao princípio. masculina da ressurreição desse arquétipo. Faculty of Oriental Studies, 2003-2006. http://etcsl. OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Domingos
orinst.ox.ac.uk/, acessado em 25/11/2017. Lucas Dias. São Paulo: Editora 34.
Mas nada é tão coerente. As esposas são
também amantes e adúlteras. A musa mente, POPE, Marvin H. ‘Atirat’. In: Hans Wilhelm Haussig
FOSTER, Benjamin. Before the Muses. An
manda e enlouquece. A mãe é madrasta, é (ed.). Wörterbuch der Mythologie I. Stuttgart : Klett-
anthology of Akkadian literature. Bethesda: CDL
também irmã e filha de outra mãe, neta de Press, 1996. Cotta, 1965.
Conclusão outras mães protetivas. A deusa... a deusa é
uma deusa da morte. GAIMAN, Neil. ‘Calliope’. In: The Sandman: Dream SERRA, Ordep. Hino Homérico II – A Deméter.
‘Ele’ continuará a recriar a deusa, sem Country. New York: DC Comics / Vertigo, 1990. São Paulo: Odysseus, 2009.
piedade. Quando à beira da morte ela lamenta
nunca lhe ter sido suficiente, o poeta mostra GUBBINS, Sarah; SOLOWAY, Jill. This is not a love SIN-LÉQI-UNNÍNNI. Ele o Abismo viu: epopeia
letter. I Love Dick, temporada 1, episódio 6. Santa de Gilgámesh. Tradução de Jacyntho Lins Brandão.
que jamais abrirá mão do ciclo ganancioso Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
Monica: Amazon Studios, 2017.
de suas ressurreições: Nada nunca é o bastante. Lolita Guerra é professora de História
Eu não poderia criar, se fosse. Eu devo. É o que eu Antiga da Universidade Estadual do HESÍODO. Teogonia. Tradução de JAA Torrano. WIGGINS, Steve. A Reassessment of Asherah, with
faço. É o que eu sou. Agora tenho que tentar tudo de Rio de Janeiro (Uerj). Doutora em São Paulo: Illuminuras, 2003. further considerations of the Goddess. New Jersey:
novo. Ela suplica para partir, mas ‘Ele’ escolhe História pela Universidade Estadual de Gorgias Press, 2007.
tomar o coração carbonizado de seu peito, e Campinas (Unicamp). HOMERO. Ilíada. Tradução de Haroldo de Campos.
de dentro dele o cristal. São Paulo: Arx / Benvirá, 2013.
Contato: lolitagg@gmail.com
Retomando o debate 111

igualdade vs. diferença a


partir de autoras clássicas:
um argumento intermediário
Nicole Midori Korus

resumo A partir de uma perspectiva de gênero urge uma análise acerca das formas como
Este trabalho retoma o debate entre igualdade como categoria de análise (Scott, 1995), é as quais essas categorias foram e estão
e diferença a partir de uma perspectiva de possível verificar que o conceito do que é sendo utilizadas pelas teóricas feministas.
gênero, sob uma abordagem em que se “mulher” encontra-se em disputa entre as Ainda que estas perspectivas coincidam em
considera a ambivalência da posição de várias vertentes dos estudos contemporâneos. aceitar que a neutralidade valorativa seja
autoras clássicas. Ao enfatizar a materialidade Embora as convenções de feminilidade e uma falácia histórica e filosófica, elas se
em seus discursos, buscarei argumentar que masculinidade sejam construções sociais, diferenciam quanto às propostas políticas –
essa ambivalência pode ser útil ao feminismo é importante reconhecer, por um lado, a sobretudo quando vistas sob a égide de seus
como ferramenta de estratégia retórica, incompletude destas construções e, por determinados contextos.
empregada com a finalidade de interpelar as outro, compreender que a forma como
mulheres como grupo social historicamente elas são articuladas sempre corresponde Se, como salienta Joan Scott, a diferença
situado. às necessidades e aos contextos de sua sexual foi o ponto de partida para a exclusão
conjectura social e política. das mulheres do processo democrático, foi
essa mesma diferença que fora reivindicada
palavras-chave Parte-se, neste trabalho, da premissa de como condição precípua de igualdade. Essa
Estudos de gênero; igualdade; diferença; que se a diferença dos sexos é construída e ambiguidade de propósitos é tão forte que,
teoria política clássica reconstruída culturalmente, na história e na ainda hoje, as feministas se dividem entre
relação efetiva das mulheres, é na experiência reafirmar a diferença ou lutar para reduzi-
dessa relação material que reside a expectativa la, minimizá-la, ou até se possível suprimi-la
de emancipação política, social e identitária (Frota, 2012).
da mulher. Por esse motivo, o feminismo
crítico deve resistir à tentativa de se construir Conforme os escritos de teóricas como
um modelo epistemológico que promova Mary Wollstonecraft (1759-1797), e Olympe
um sujeito global e abstrato – uma “mulher” de Gouges (1748-1793), a narrativa clássica
única. Recupera-se Simone de Beauvoir do feminismo origina-se a partir de uma
(1906-1986) quando afirma que “não se nasce ambivalência entre os princípios iluministas
mulher, torna-se”, significando que “mulher” saudados pela Revolução Francesa e o
em si mesmo é um termo em processo, uma contexto social em voga à época. As
categoria não originária e não finalizada. bandeiras levantadas de liberdade, igualdade,
fraternidade, racionalidade e objetividade
Considerando que isso é inferido possuíam um caráter meramente pretenso
diretamente no debate essencialismo vs. de universalidade. Em um contexto em
antiessencialismo, igualdade vs. diferença, que as mulheres ainda eram estritamente
112 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 113

veiculadas ao domínio doméstico, renegadas entre igualdade e diferença, entre direitos reflexões acerca da opressão sofrida pelas relações de gênero que ocorre no espaço
ao acesso à educação e à vida pública, o ideal individuais e identidades grupais, é o que mulheres. A autora foi uma das primeiras de intimidade e reverberaram na exclusão
desta universalidade limitou-se ao gênero possibilita encontrarmos resultados (Scott, escritoras reconhecidas em vida e possui um da mulher do espaço público e político.
masculino – construído como o racional, o 2005). pensamento transgressor e libertário tanto As características até então tidas como
político, o objetivo. Por isso, a formulação em relação a sua época quanto a feministas “essenciais” da mulher, como passividade,
ambígua de razão instrumental relegou à Desta forma, trabalhar-se-á na chave de que posteriores. Seus principais pleitos eram sensibilidade e irracionalidade acabaram por
esfera da abstração o sujeito de direitos a o reconhecimento de diferenças sempre se corolários da razão iluminista: demandava limitar a esfera feminina ao âmbito privado.
que a Declaração de 1789 se referiu. Diante fez presente, mas muitas vezes fora utilizado autonomia e educação às mulheres, igualdade
desse quadro, houve uma insurgência das justamente para evidenciar que as diferenças no casamento e enfatizava a importância Na construção do pensamento moderno, o
mulheres como grupo, a fim de questionar essa meramente biológicas não são confiáveis para do trabalho reprodutivo. Um ano antes, de racional exige a imparcialidade e, ao passo
universalidade e se pensarem como parte do perfazer os papéis diferenciados forjados às Gouges publicara a “Declaração dos Direitos em que essa imparcialidade exige a separação
corpo político social. mulheres. Outras versões no emprego dessa da Mulher e da Cidadã”, indicando, com entre razão moral, afetividade e sensibilidade
retórica, a partir da perspectiva das autoras os argumentos levantados pela Revolução (valores designados como femininos), uma
Se a base estratégica das primeiras autoras socialistas Clara Zetkin (1857-1933) e Flora Francesa, que a Declaração dos Direitos consequência da expulsão do cuidado e do
clássicas a discutir a reivindicação dos direitos Tristán (1803-1844) serão trabalhadas, para do Homem e do Cidadão, em verdade, sentimento da razão moral foi taxá-los de
das mulheres leva a uma interpelação pela então concluir que, no contexto atual de não concedia direitos às mulheres e que irracionais e inferiores (Hita, 1998). A ideia
coletividade feminina através do discurso pela dissipação do sujeito dentro das estruturas o “homem” sozinho não representaria a do discurso pela igualdade foi justamente a de
igualdade, procurarei demonstrar, ao longo da linguagem, tão em voga nos círculos pós- humanidade. des-diferenciar as esferas da justiça e o reino
deste trabalho, como esse discurso revelou- modernos (Costa, 2002), a construção de pessoal doméstico a fim de incorporar no seu
se uma retórica estrategicamente informada positividades ou negatividades femininas com Na mesma linha, Harriet Taylor Mill mesmo nível de definição de racionalidade
a fim de garantir visibilidade em meios até base na sua experiência material situada deve (1807–1858) foi pioneira em articular uma universal os aspectos objetivos e afetivos.
então unicamente masculinos. Considerando caminhar em conjunto com a materialidade ideia acerca de construção de gênero em Argumentou-se neste sentido que, seguindo
que, atualmente, ainda há alguma tensão entre de seu discurso – contextualizado e coletivo. “Enfranchisement of Women”, de 1851. o princípio de que a razão permeia todos
os enfoques essencialista e antiessencialista Posteriormente, a compilação de escritos da os seres humanos, uma concepção de
dentro do movimento feminista, podemos autora com os de John Stuart Mill acerca da razão normativa não deve se impor a uma
encontrar tanto as raízes desta tensão questão feminina resultou no livro “Essays parcialidade da espécie, sobretudo com
quanto suas possíveis saídas com base nos O debate on Sex Equality”. Demonstra a autora base no questionamento ao pressuposto de
textos destas autoras. Para isso, se seguirá que há uma série de interesses impostos e que essa mesma razão deva ser universal
o argumento de Joan Scott, no sentido de A obra “Reivindicação dos direitos modeladores da personalidade feminina a (Wollstonecraft, 2015; de Gouges, 2008).
que posicionar os conceitos de igualdade e das mulheres”, publicada em 1792 por partir da reimpressão contínua de estereótipos
diferença em polos opostos significa perder Wollstonecraft, é um marco para a que projetam a subordinação. Há, portanto, Ao pluralizar o que era singular,
o ponto de suas interconexões, enquanto primeira fase do feminismo e se constitui uma matriz de assimetria insidiosa no que Wollstonecraft, de Gouges e Mill buscaram
reconhecer e manter uma tensão necessária na primeira elaboração sistemática das se concebe às relações de poder dentro das enfatizar a igualdade entre os sexos,
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elencando o acesso à educação, a igualdade no Retificar o ideal de universalidade para que questionar a discriminação contra as entre homens e mulheres. O que se faz
casamento, o direito ao voto e a reconexão da as mulheres fossem incluídas, no entanto, mulheres, era necessária uma demarcação necessário é reduzir à parcialidade o elemento
vida privada das mulheres ao que é esperado não significava negá-lo. Para as iluministas do grupo “mulheres” para que se pudesse masculino considerado como universal e
delas na vida pública como elementos centrais europeias, bem como para as sufragistas estender o pretenso universalismo. buscar equivalência valorativa (Hita, 1998),
de seus argumentos (Scott, 1989). De forma norte-americanas como Elizabeth Cady outorgando ao feminino um referencial
similar foi o ponto da militante abolicionista Stanton (1815-1902) e Susan B. Anthony Em segundo, a apreensão das diferenças ontológico próprio.
Sojourner Truth (1797-1883), em seu discurso (1820-1906), trabalhar numa chave da observáveis entre os sexos como algo
“Ain’t I a Woman?”, proferido como uma igualdade limitada à estratégia do discurso foi artificial já era incipiente e, neste sentido, a A problemática levantada na perspectiva da
intervenção na Women’s Rights Convention, fundamental para construir uma categoria igualdade almejada resultaria necessariamente chave da diferença é que, ao propor uma
em 1851. Em uma reunião de clérigos analítica – mulher – como sujeito de direitos na concepção de que todas as diferenças valorização do feminino, acaba-se recaindo
onde se discutiam os direitos das mulheres, a quem se devia estender o conceito de culturalmente configuradas representariam novamente no binarismo atribuidor de valores
Sojourner levantou-se após ouvir de pastores cidadania. Para essas pensadoras, o golpe desigualdade material. Se a diferença implica e características diferenciadas para cada
presentes que mulheres não deveriam ter fundamental na construção do processo em desigualdade, seria necessária uma sexo, o que remonta ao essencialismo que
os mesmos direitos que os homens porque democrático foi a exclusão das mulheres assimilação entre os gêneros, que restaria as iluministas lutaram para se desvencilhar.
seriam frágeis e intelectualmente débeis. da vida pública, do mercado de trabalho e, pensada, inevitavelmente, como identificação Ou seja, volta-se à possibilidade do status de
por consequência, da representação política. ao modelo dominante. Sob o pretexto desse justificação de opressões a partir da atribuição
De forma tão coerente quanto radical à época O primeiro passo para a emancipação das universalismo, a mulher apenas se torna de características essencialmente femininas
e cada uma a sua maneira, essas mulheres mulheres residia na percepção do direito ao plenamente humana ao tornar-se Homem estigmatizadas como inferiores, enquanto
buscaram demonstrar que os obstáculos voto como grande força niveladora do campo (Hita, 1998). que, quando se universalizam essas diferenças,
para a emancipação das mulheres consistiam político (Frota, 2012). obscurecem-se outras possibilidades de
em obstáculos para a emancipação de toda Como saída a essa falta de subjetivação homens e mulheres se diferenciarem dos
a humanidade e, a fim de se incluírem Uma análise atenta percebe que essa chave da feminina, teóricas posteriores levantaram a modelos rígidos e estereotipados. Igualmente,
nessa universalidade, era necessário pensar igualdade gera dois impasses. Em primeiro questão de se o ideal de igualdade se fundaria seria redutor fundar todas as diferenças
o lugar da mulher dentro do novo ideário lugar, a fim de pleitear o sufrágio feminino, de fato na assimilação, por mulheres, ao na decisão sobre o que é constitutivo do
moderno. Wollstonecraft utilizou-se do era necessário demarcar o grupo a quem neutro-masculino. Considerando a falácia feminino e do masculino, estabelecendo-
ideal de “mães patrióticas” do contexto esse direito deveria ser, prioritariamente, da imparcialidade, Carol Gilligan e Lucy se uma concepção estática, ainda que
revolucionário francês em seu benefício: concedido – as mulheres. Surge o paradoxo, Irigaray militam sobre a ênfase no elemento diferenciada, da categoria mulher. A luta
como é possível as mulheres serem as mães debatido posteriormente por Scott (2005): sexuado positivo: a diferença entre mulheres por categorias sexuadas acabaria por fundar
esperadas pelo contexto revolucionário se são para essas teóricas da igualdade, as únicas e homens existe, ainda que resultado de um imperativos categóricos determinados pelo
privadas de educação? Como a humanidade diferenças existentes entre homens e histórico de opressões. Essa diferença passou gênero (Araujo, 2005), removendo-o de sua
pode desenvolver-se plenamente se a essas mulheres são as biológico-sexuais, das que a ser reivindicada como categoria central de articulação história, geográfica e cultural.
mulheres, esposas e mães, não é permitido o não se derivam qualidades inatas distintas análise e na elaboração de estratégias de ação,
desenvolvimento intelectual? entre ambos os sexos (Hita, 1998). Para sobretudo por rejeitar a aspiração à igualdade
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Uma posição intermediária Tal tática fora, justamente, a utilizada de A formulação ambígua da razão universal um agir dos diferentes, tais quais eles são aqui
forma incipiente pelas autoras clássicas, a cedeu espaço para uma interpelação em e agora. (Hita, 1998:114)
Apresentadas as chaves de igualdade e fim de se construir a autonomia individual que as mulheres passassem a se pensar
diferença e seus limites, passa-se a argumentar feminina a partir de sua coletivização. como grupo social. Se a potência da ação No entanto, o feminismo deve ser político,
que a questão a ser colocada não é tanto Se se não analisar a dicotomia igualdade política é mitigada quando unidimensionada estratégico e inclusivo. Por isso mesmo,
sobre de qual lado desse debate a tomada vs. diferença como perspectivas opostas, no individual, é interessante uma leitura encarar a questão da igualdade vs. diferença
de posição seria mais vantajosa, o que seria estáticas, mas como chaves complementares, em que importa menos se a categoria como um binarismo antagônico pode levá-
reduzi-lo a um fator binômico e cindi-lo em o aparente paradoxo se aplaca. Enquanto mulher resguarda um caráter essencial – ou lo a duas armadilhas. A primeira consiste em
polos opostos. A partir do reconhecimento Wollstonecraft, de Gouges, Mill e as antiessencial -, e mais com a identificação da engendrar políticas de identidade baseadas
de que existem diferenças biológicas e sufragistas reconheciam as diferenças (não mulher com esse coletivo, que se configura em uma coletividade singular e fechada, que
históricas entre os sexos, deve-se partir para raras vezes os estereótipos), utilizavam-se como parte de um projeto político maior. pode ter como corolário o perigo de se cair
a prerrogativa de manifestá-las e reivindicar o dessa retórica para pleitear em nome de um Isso porque, em um fundamentalismo ou um imperialismo
direito a elas sem, no entanto, perder de vista grupo, informando-o que essas diferenças da identidade. Ao priorizar o estritamente
que a escolha política do signo deste produto não eram suficientes para promover uma A diferença dos sexos, que foi secularmente “feminino”, recai-se na obstrução das demais
deve resultar de um ato de vontade coletivo, discriminação coletiva. Nesse pleito, o substantivada, na prática e na teoria, está opressões estruturais que se encontram
situado e não de uma simples afirmação estabelecimento para a unidade analítica do colocada em jogo não só de acordo com os imbricadas ao patriarcado, como raça, classe e
ontológica (Hita, 1998). grupo possuía como vertente a opressão deslocamentos impostos pela história mas por sexualidade.
feminina, o que significa dizer que, dentre as um agir que, se é sempre majoritariamente
Se à mulher não foi permitida a condição mulheres pertencentes ao grupo insurgente, o agir das mulheres — obrigando-as muitas Isso porque a possibilidade de transformação
de sujeito na modernidade, dado que ela já não havia diferenciação. Não houve uma vezes a se movimentarem unilateralmente — não deve ser proposta com base em uma
foi definida pelo patriarcado como o lugar convocação prévia ou um questionamento é potencialmente e de fato um agir comum. identidade coletiva – e sim, novamente,
do “outro”, positivá-la como signo já é uma sobre a ontologia feminina conforme Um coagir onde os atores não estão mais na forma de identificação (Hita, 1998),
forma de transgressão (Costa, 2002). Daí características impostas. assegurados dos seus papéis, onde nada que não negue a realidade material de
que a insistência quanto a uma especificidade permite jamais afirmar nem que não existe a tais especificidades. Desconsiderar essa
feminina também repousa na tática contra Da mesma forma, quando perguntada sobre diferença entre os sexos nem que existe uma materialidade reduz o grupo a uma única
a dissipação dela dentro dos círculos pós- sua definição do que o feminismo deveria diferença insuperável. Ao contrário, tudo leva coletividade, por vezes, inflexível. Tal
estruturalistas. Dessa forma, o que aparenta conquistar, a psiquiatra e ativista Madeleine a afirmar que não existe e que existe uma desconsideração encontra respaldo histórico
um paradoxo – a concomitância entre Pelletier (1874-1939) respondeu que ele a diferença, ao mesmo tempo e indistintamente. na relação (inicialmente conflituosa e
a positivação de valores e o rechaço de auxiliaria a “não ser uma mulher do modo que Assim se efetua a saída de toda a metafísica efetivamente racista a posteriori) das sufragistas
estereótipos – sempre é, em verdade, a base a sociedade espera”. E mesmo assim, foi como dos sexos, não pela afirmação de sua norte-americanas com a questão da abolição
de uma estratégia de mobilização política mulher, e em nome do grupo – mulheres –, que indiferença, substituindo a velha afirmação da escravatura (Davis, 2016). Perder de vista
contextualmente situada. Madeleine Pelletier e outras feministas travaram de dois diferentes localizáveis, nem pela a interseccionalidade do feminismo, quando
suas batalhas pela igualdade. (Scott, 2005:20). determinação de seus novos lugares, mas por visto como parte de um sistema maior de
118 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 119

opressões, acaba por relegar prejuízos a infinidade de diferenças de identidade em de opressão são vistas com certa equivalência Clara Zetkin, autora da proposição da
identidades com pautas de lutas distintas, mas um grupo tão plural não é algo que poderia (Hita, 1998) e interconexão, não se incorre na celebração do Dia Internacional da Mulher
mutuamente entrelaçadas. ser um dia representado em sua totalidade, armadilha do essencialismo de um grupo em no II Congresso das Mulheres Socialistas
bem como não poderia a pluralidade ser relação a outro, tal como ocorrido no caso em 1910, proferiu o discurso “Apenas junto
A segunda armadilha é o ceticismo singularizada sem um viés de parcialidade. das sufragistas norte-americanas e a questão com as mulheres proletárias o socialismo
nominalista que esvazia o sujeito mulher de abolicionista. sairá vitorioso”, em 1896, convidando as
sentido e des-diferencia a diferença sexual Para Scott, a ênfase na coletividade mulheres à consciência de classe. Estabelece
ao ponto de se levar à negação da história da engendra uma problemática semelhante ao Em “A União Operária”, publicado em que, enquanto as mulheres burguesas buscam
opressão e resistência política das mulheres e da essencialização pela diferenciação. Isso 1843, Tristán estabelece a prerrogativa desenvolver sua individualidade na luta por
da contribuição epistemológica do feminismo porque a identificação com um determinado de uma união duplamente universal: por direitos e contra o patriarcado, as proletárias
para a redefinição da subjetividade feminina. grupo por um sujeito necessariamente requer seu internacionalismo e pela inclusão das possuem uma luta distinta, mas mutuamente
A aposta pós-moderna de desconstrução a existência de determinados padrões de mulheres. De caráter propositivo, tal como entrelaçada: com os proletários contra o
total do sujeito teria como consequência um comportamentos ou características. Na visão o “Manifesto Comunista”, publicado por capitalismo.
coletivo sem indivíduos, um “feminismo sem dessa autora, tudo o que é social não é, por Marx e Engels em 1848, a autora inicia uma
mulheres” (Costa, 2002). De diversas formas, isso mesmo, “naturalmente” diferenciado leitura igualitária e progressista do socialismo A propaganda socialista visava à incorporação
esse argumento sustentaria a proposição (Scott, 2005). utópico para então distanciar-se dele e trazer a das massas e, com o espaço cedido na forma
utilizada para coibir as próprias mulheres consciência de classe. Estabelece uma retórica de mão de obra barata para as mulheres
de pleitear políticas em favor de um grupo Neste argumento, distancia-se de Scott para semelhante a de Wollstonecraft, voltando-se na indústria, o que era dirigido a elas foi
chamado “mulheres”, uma vez que o conceito retomar o trabalho das teóricas socialistas para o homem (operário) e argumentando o fato de serem duplamente impedidas
fragmentado e disperso não seria passível de que, ao visar a combater o patriarcado que somente através da emancipação de desenvolver sua individualidade, seja
qualquer generalização. dentro de um sistema maior, o capitalismo, das mulheres operárias será possível a no âmbito da família, seja no trabalho.
pleitearam um devir coletivo e não emancipação da classe como um todo. E, ao Novamente, pelo ideal da coletivização, as
A fim de comportar as temporalidades e sucumbiram, igualmente, ao antagonismo mesmo tempo em que reforça os atributos da autoras utilizaram-se da retórica de reforçar
exigências políticas de cada conjectura, friso igualdade vs. diferença, sobretudo ao propor mulher de mãe, esposa e gestora do lar, o faz que as mulheres precisam de melhores
que, para uma posição intermediária neste um rearranjo das estruturas sociais como um consciente de que forjar uma universalidade condições, inclusive condições de realizar
debate, insta pensar o feminismo mais como todo. A ideia aqui é reforçar a imbricação seria mitigar as diferenças sem lidar com elas. tarefas domésticas para manter o bom
o resultado de lutas materiais e menos como recíproca entre as estruturas de opressão, Nesse ponto, argumenta que a inferioridade funcionamento do lar, para, então, a classe
uma consequência da diferenciação ou contra a qual a única solução é a tomada histórica feminina, outrora proclamada como emancipar-se como um todo.
negação de valores identitários. Conforme de consciência de forma interseccional, em um princípio, não possui validação lógica no
vimos nas autoras citadas, as lutas materiais detrimento de uma visão de grupos formados novo pensamento moderno. A sua proposta é Ainda que tais abordagens sejam limitadas
surgem a partir de um devir coletivo, bottom- com base em uma relação de alteridade. de promover as diferenças como prerrogativa nos dias de hoje, elas reforçaram o argumento
up, contextualmente informado a ocupar A partir do momento em que as diversas de conquista de direitos iguais de fato, sem de que, quando se pensa em termos de
novos espaços de forma estratégica. A vertentes de luta contra as diversas formas particularizar as mulheres. coletivização, o antagonismo entre identidade
120 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 121

vs. diferença é falso, já que as perspectivas se As condições de possibilidade de Referências bibliográficas artigos-e-boletins/arquivo/socialismo-em-
complementam para compor o discurso em emancipação feminina, que autorizam uma discussao/%E2%80%9Cdeclaracao-dos-direitos-
benefício do grupo, sem perder de vista as política e prática feminista, derivam das ARAUJO, Maria de Fátima. (2005) Diferença e da-mulher-e-da-cidada%E2%80%9D. Acesso em
opressões interseccionais. positividades e também das negatividades igualdade nas relações de gênero: revisitando o 17/06/2017.
inerentes à posição interseccional e debate. Psicol. clin., Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p.
estrategicamente informada que seu sujeito 41-52. HITA, Maria Gabriela. (1998) Gênero, ação e
sistema: a reinvenção dos sujeitos. Lua Nova, São
ocupa tanto na teoria quanto na prática
BEAUVOIR, Simone de. (1970) O segundo sexo. Paulo, n.43, p.109-130.
Considerações finais das lutas mais amplas (Costa, 2002). A
Volume I. Fatos e Mitos. 4ª Edição. São Paulo:
materialidade no discurso das feministas Difusão Europeia do Livro. Tradução de Sérgio MIGUEL, Luis Felipe. (2015) Mary
A mulher, na construção da Era moderna, clássicas condiz com a perspectiva de um Milliet. Wollstonecraft e as origens do feminismo.
foi concebida como o outro do homem, agir constantemente reativado por uma Disponível em: https://blogdaboitempo.com.
tendo lhe sido negada sua constituição como emancipação conjunta. Trata-se de pensar as CASTELLS, Manuel. (1999) A era da informação: br/2015/04/27/mary-wollstonecraft-e-as-
indivíduo. O reconhecimento da identidade mulheres como grupo social que efetiva e re- economia, sociedade e cultura – volume II: O poder da origens-do-feminismo/. Acesso em 14/06/2017.
como um lugar de posições múltiplas e efetiva sua base ontológica estrategicamente, identidade. São Paulo: Paz e Terra.
variáveis dentro do campo social (Costa, em conformidade com o que lhe é MILL, Harriet Taylor, (1970) “Enfranchisement
2002) leva, por isso, à guisa da conclusão representado e em contraponto ao que lhe é COSTA, Claudia de Lima. (2002) O sujeito no of women”. In: MILL, Harriet Taylor, MILL,
de que se, por um lado, há a necessidade imposto pela dominação secular, analisada de feminismo: revisitando os debates. Cad. Pagu, John Stuart. Essays on sex equality, Chicago: The
de um agenciamento coletivo por parte das forma material. Essa chave auxilia a escapar Campinas, n. 19, p. 59-90. University of Chicago Press. Pp. 91-121.
mulheres, por outro, há a inevitabilidade da da armadilha dos binarismos identitários,
ambivalência entre princípios de negatividade da sedução aos apelos pós-modernos e do DAVIS, Angela. (2016) Mulheres, Raça e Classe.
ou positividade que levem essas mulheres à Tradução Heci Regina Candiani – 1. Ed. São
conceito de um grupo isolado das múltiplas
ação. Paulo: Boitempo Editorial. SCOTT, Joan W. (2005) O enigma da igualdade.
opressões interconectadas.
Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 13, n. 1, p.
FROTA, Maria Helena de Paula. (2012). 11-30,
A grande contribuição do retorno às clássicas
“Igualdade/diferença: o paradoxo da cidadania
é perceber que essa ambivalência pode ser
feminina segundo Joan Scott”. In: O público e o SCOTT, Joan W. (1995) Gênero: uma categoria
útil ao feminismo, já que sua força política privado - Nº 19 - Janeiro/Junho - 2012, pp. 43-58. útil de análise histórica. Educação & Realidade.
deve-se ao fato de que tal projeto tem sido, Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-
por um lado, sua construção com base ENGELS, Friedrich. (1985) A origem da família, 99.
na materialidade das experiências que as da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro,
mulheres têm do social, e, por outro, por Civilização Brasileira. SCOTT, Joan W. (1989) French Feminists and the
Nicole Midori Korus é mestranda em
submeter essas experiências ao escrutínio Right of ‘Man’: Olympe de Gouges’ Declaration.
Teoria e Filosofia do Direito no PPGD-
teórico-crítico (Costa, 2002). GOUGES, Olympe de. (2008) “Declaração History Workshop. No. 28 (Autumn, 1989), pp.
UERJ. dos Direitos da Mulher e da Cidadã”. 1-21. Disponível em: http://www.jstor.org/
Contato: nicolekorus@hotmail.com Disponível em: http://csbh.fpabramo.org.br/ stable/4288921?origin=JSTOR-pdf. Acesso em:
122 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 123

17/06/2017.

TAYLOR, Barbara. (1999) Feminism and the


Enlightenment: 1650-1850. History Workshop
Journal, No. 47, pp. 261-27

TRISTÁN, Flora. (2008) The worker’s union.


Urbana, University of Illinois Press.

TRUTH, Sojourner. (1781) “E não sou uma


mulher?” Tradução: Osmundo Pinho.

Disponível em: https://pt.scribd.com/


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Acesso em 15/06/2017.

WOLLSTONECRAFT, Mary. (2015) Reivindicação


dos direitos das mulheres: O Primeiro Grito Feminista.
1ª Ed. Edipro.

ZETKIN, Clara (1896). Apenas junto com as


mulheres proletárias o socialismo sairá vitorioso.
Clara Zetkin: Escritos Selecionados, ed. Foner.
Disponível em: https://www.marxists.org/
portugues/zetkin/1896/10/16.htm. Acesso em
15/06/2017.
125
Resenha do livro União Operária, de
Flora Tristán. Proletariado, socialismo
e feminismo na França do século XIX
Felipe da Silva Santos

“Flora Céléstine Thérèse Tristán y filhos “ilegítimos” ou sem direitos. Sua Sobre a classe operária luta por melhorias nos quadros de trabalho
Moscoso (1803-1844) é uma das mais identificação com a causa operária teve nada e de vida. A falta desta união dispersava e
fascinantes personagens da história do mais nada menos que uma origem prática, “Ouçam! – Há 25 anos os homens barrava as possibilidades de transformação
movimento operário. Precursora do pois ela mesma trabalhou como operária na mais inteligentes e mais devotados das condições de penúria da classe operária.
socialismo, da igualdade entre os sexos indústria têxtil e visitou Londres acessando consagraram sua vida à defesa de sua
e do internacionalismo proletário, ela as condições em que os trabalhadores santa causa; eles, por meio de escritos, Como constituir uma união operária de
semeou um impressionante conjunto de se encontravam. Antes mesmo de Marx discursos, relatórios, memórias, modo eficiente para combater os desafios
sementes subversivas durante sua vida e Engels, Flora falava da autoemancipação pesquisas, estatísticas, assinalaram, que estão diante do(a)s trabalhadore(a)
(...)” (Varikas, 2016: 7) operária no início do século XIX, somando constataram e demonstraram ao s? Falando de dinheiro, oito milhões de
à ideia de união que, diferente do que antes governo e aos ricos que a classe operária operários contribuindo teriam um montante
Escrito em 1843, o livro “União Operária” se pensava, não deveria excluir as mulheres. está, no estado atual das coisas, material de recursos satisfatório para formar uma
foi possível graças àquilo que Flora Tristán Como se não bastassem as difíceis condições e moralmente em situação de intolerável associação. Tristan postulava que reivindicar
chamaria de união: literalmente fruto de nas quais as mulheres também estavam miséria e dor” (Tristán, 2016: 65). o direito ao trabalho e a organização do trabalho
financiamento coletivo, que contou com incluídas como operárias, a posição feminina eram ações possíveis aos operários, desde que
doações de pessoas de distintas classes sociais. de exclusão e “obrigações matrimoniais” “(...) fala-se muito dos operários, mas fosse eliminada a dispersão e o isolamento
A elaboração de ideias como igualdade, as deixava num lugar subalterno no espaço ninguém ainda tentou falar aos operários”, existentes entre eles. A formação de comitês
direitos e autoemancipação marcavam um público. As questões proletária e feminina, disse Flora Tristán (2016: 72). Creio que locais seria o primeiro passo para uma
sentimento de sério incômodo com as separadas conceitualmente, se encontram não seja necessário alongar a discussão em representação de todos os membros do
realidades do trabalho e da mulher que a necessariamente unidas na obra de Flora torno da condição proletária de trabalho operariado e, após isso, uma representação
cercavam, e numa tentativa incessante de Tristán. Fica evidente sua posição simbiótica, na Europa dos séculos XVIII e XIX, pois a nível estatal, um “defensor” dentro
demonstrar os problemas e as desvantagens na medida em que só a emancipação são praticamente unânimes o(a)s autore(a) de um comitê central, aquilo que outras
desse modo de organização social, Tristán proletária masculina não seria suficiente para, s que sobre ela escreveram. Palavras como forças unidas já continham e que auxiliaria
descreve os aspectos da vivência de operários como ela descrevia, o “bem-estar geral”, e miséria, ignorância, sofrimento e trabalho dando peso às reivindicações necessárias e
como miseráveis e de mulheres como a exclusão feminina desse processo tornaria excessivo podem resumir a visão de Flora reforçando a posição proletária solidamente
“servas” num contexto que os desfavorecia os resultados menos favoráveis a todos – (como também de outros, como Marx, por dentro da nação.
completamente. incluindo claro, os homens. (Tristán, 2016) exemplo) quando se remetia à causa na
França e dizia, em tom firme, que somente A interpretação do que é ser “operário”,
Nascida na França em 1803, Tristán foi filha a própria classe operária poderia mudar os na visão da autora, deveria estabelecer o
de uma pequena burguesa e de um peruano rumos que as coisas seguiam: autoemancipação. simples critério de entendê-lo como alguém
oriundo da aristocracia. Não obteve êxito O número de operário(a)s, como sempre, que utiliza as mãos como meio de trabalho
ao tentar ser reconhecida pela família de era muito superior ao de proprietários, e a e sobrevivência, mesmo que não fossem
seu pai no Peru, e retornou com o título união se fazia necessária para que eles se empregados das indústrias. O trabalho manual
de pária, uma alusão àqueles considerados constituíssem e mantivessem sua posição na só se distanciaria de algo visto como inferior
126 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 127

e desonroso quando a união operária se A condição feminina na sociedade europeia “Na vida dos operários a mulher é tudo. – direitos é para ela a causa de todos os males
solidificasse e instruísse a todos dentro de era mais um retrato da constante inferioridade Ela é a única providência – Se ela lhe falta, do mundo: o reconhecimento da igualdade de
uma lógica diferente, reconhecendo sua na qual estavam submetidas as mulheres lhe falta tudo. Assim dizem: é a mulher direitos, por si só, já acabaria com as relações
importância e estendendo-o aos ricos; “Todos ao longo da história: em aspectos sociais, que faz ou desfaz uma casa” (Tristan: assimétricas entre mulheres e homens, bem
trabalharão e só por isto a abundância reinará econômicos, morais, e até jurídicos. Os 116). Como poderia educar e trabalhar como com o desrespeito. Diferentemente dos
para todos. Não haverá mais miséria; tendo supostos “defeitos”, ou características bem o desenvolvimento de seus filhos, ricos, que têm professoras, governantas, e
acabado a miséria, a ignorância também pessoais negativas atribuídas ao sexo feminino cuidar do matrimônio e contribuir para todo aparato necessário à boa educação e ao
acabará. O que é então que produz o mal eram disseminados e naturalizados na um bem-estar no lar se dela retira-se todos conhecimento, os proletários têm somente a
que sofremos hoje? Nada mais do que este sociedade - e como disse Tristan, sensibilizava os direitos e oportunidades? A mulher figura da mãe para tal: “(...) a lei que submete a
monstro de mil cabeças, o EGOÍSMO! Mas as massas. A realidade mostrava um déficit de operária era submetida a uma cobrança, mulher e a priva de instrução oprime a vocês, homens
o egoísmo não é a primeira causa, a miséria contribuição social feminina - não por culpa uma tarefa materna que nem ela própria proletários” (Ibidem: 127).
e a ignorância é que produzem o egoísmo” das mulheres, claro - e isso trazia resultados teve condições de aprender ou receber
(Tristán: 166,167) negativos para todos e todas, na medida em que quando criança, impondo-se uma expectativa O pioneirismo das ideias de Tristan é
“educá-las” para servir ao homem e a casa as de comportamento padrão que deveria identificado na geração que a procede: anos
transformava em pessoas “não-úteis”, e isso ser seguido. As relações familiares num depois, Clara Zetkin, outra importante
resultava em prejuízos principalmente para lar proletário desembocavam então em representante do feminismo socialista,
Sobre as mulheres aqueles que diretamente delas dependiam: as precariedade: a condição servil da mulher, salienta a necessária participação das mulheres
famílias. o alcoolismo do marido, agressões físicas, para a transformação sistêmica da sociedade
“Até o momento a mulher não contou tudo isso criando um clima nada favorável (Zetkin, 1896).
para nada nas sociedades humanas A vida familiar estava mudando ao longo da aos filhos que, por sua vez, arrumavam “más
– Do que isto resulta? Que o padre, história, como apontou Alexandra Kollontai companhias” e se submetiam a condições até
o legislador, o filósofo a trataram em seu texto “Comunismo e Família” mesmo criminosas. “Repito, a mulher é tudo na
como uma verdadeira pária. A mulher (Kollontai, 1920). As relações capitalistas vida de um operário: como mãe tem influência sobre
(é a metade da humanidade) foi modificaram as relações sociais a partir ele durante a infância; (...) Como amante ela tem Considerações Finais
colocada fora da Igreja, fora da lei, do momento em que a mulher ingressou influência sobre ele durante toda a juventude (...);
fora da sociedade. Para ela nada de no trabalho operário, e isto não amenizou Como esposa, tem influência sobre ele por três quartos “1. CONSTITUIR A CLASSE
representação frente à lei, nada de os clássicos afazeres domésticos que lhes de sua vida. – E por fim, como filha tem influência OPERÁRIA por meio de uma UNIÃO
funções no Estado. O padre lhe disse: eram impostos, fazendo a figura da “mãe de sobre ele durante a velhice” (Idem: 121,122). compacta, sólida e indissolúvel. 2.
– “Mulher, tu és a tentação, o pecado, família” se desdobrar sobre a rotina de cuidar Fazer com que a classe operária seja
o mal; representas a carne – isto é, a da casa e dos filhos, após uma jornada diária Ao explicar a necessidade de direitos para representada frente à nação (...) 3. Fazer
corrupção, a podridão” (Tristán, 2016: de trabalho. as mulheres, Tristán aponta que elas, na com que seja reconhecida a legitimidade
110,111) qualidade de instrutoras das crianças, devem da propriedade dos braços. (...) 4.
antes de tudo ser instruídas. Esta ausência de Fazer com que seja reconhecida a
128 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 129

legitimidade do direito ao trabalho buscar o conhecimento – de preferência povo. Ele pagaria e sofreria pelos danos.
para todos e todas. 5. Fazer com que livros que relatavam as condições operárias
seja reconhecida a legitimidade do ao redor do mundo. “Milagres” seriam Como indicação última, ficava o alerta às Referências bibliográficas
direito à instrução moral, intelectual, possíveis se estivessem unidos: “Unam-se e consequências perigosas de não instruir e
profissional para todos e todas. 6. então vocês serão ricos” (Tristán: 173). Aos incluir o povo em um sistema de direitos: TRISTAN, Flora. (2016) União Operária. São
Examinar a possibilidade de organizar burgueses a crítica se dava em torno do forte milhões de operários sem condições Paulo: Fundação Perseu Abramo
o trabalho na sociedade atual. 7. sentimento individualista e egoísta que não sustentáveis de vida, garantias de direito e
trabalho se revoltariam brutalmente contra KOLLONTAI, Alexandra. (1920). Comunismo
Construir (...) PALÁCIOS DA UNIÃO os permitia se integrar na discussão em torno
e a Família. Carlos Henrique (trad.) Barcelona:
OPERÁRIA onde os filhos da classe dos direitos necessários à maioria do povo; à sociedade, gerando desordem social
Editorial Marxista. P.1-17. Disponível em:
operária serão instruídos intelectual estes eram os chamados burgueses surdos, cegos e conflitos odiosos com aqueles que os
https://www.marxists.org/portugues/
e profissionalmente – e onde serão e aleijados, uma metáfora para indicar sua forte menosprezam. Tristan chamava atenção ao kollontai/1920/mes/com_fam.htm
admitidos operários e operárias passividade na sociedade. Existiam, porém, os fato de que a paz e a liberdade deveriam ser
acidentados no trabalho bem como burgueses visionários, uma categoria emergida para todos e todas, caso contrário, a violência ZETKIN, Clara. (1896). Apenas Junto com as
os doentes ou idosos. 8. Reconhecer das classes baixas na qual a própria Tristán se era o caminho resultante. Mulheres Proletárias o Socialismo Será Vitorioso.
a necessidade urgente de conferir às encontrava e que fundamentalmente se vale Disponível em: https://www.marxists.org/
mulheres do povo uma educação moral, de uma importante simpatia e preocupação portugues/zetkin/1896/10/16.htm
intelectual e profissional de modo que com a justiça e bem-estar para todos.
elas se tornem agentes moralizadores
dos homens do povo. 9. Reconhecer por “Quero que saibam que não sou uma
princípio a igualdade de direito entre revolucionária, uma anarquista, uma
o homem e a mulher como sendo o sanguinária” (Tristán: 177). Assim se
único meio de constituir a UNIDADE posicionava a autora se antecipando às
HUMANA” (Tristán, 2016: 169,170) críticas que certamente receberia por conta
dos “pré-conceitos” e estereótipos dados
Um conselho de Tristán é lançado aos ao seu comportamento político-social.
proletários e aos burgueses, numa espécie de Totalmente contra o uso da força, ela
pedido e alerta pela tomada de consciência acreditava numa conquista de direitos a partir
que não só transformaria a vida destes de reivindicações políticas na câmara, e não Felipe da Silva Santos é graduando
primeiros mas sim a de todos, a um nível por meio de revoluções: estas só provocavam em Ciências Sociais no IFCS-UFRJ
universal. Instrução e união, para os desordem, terror e desestabilizavam os países, e membro do Núcleo de Estudos da
proletários, era essencial para se afastar da indo no caminho contrário à liberdade e
Cidadania, Conflito e Violência Urbana
miséria e caminhar para um novo rumo, atingindo sempre o lado mais fraco (social
(NECVU).
investindo principalmente em livros para e economicamente) da sociedade, que era o
contato: silvasantosfelipe@outlook.com.br
131
Resenha de “Calibã e a bruxa:
mulheres, corpo e acumulação
primitiva”, de Silvia Federici, 2004
Mariane Silva Reghim

Fruto de boa vontade coletiva, o livro “Calibã O livro é uma análise da transição do femininos e masculinos, sempre atentando do autor, Federici preenche as lacunas das
e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação feudalismo para o capitalismo, remetendo para as nuances em relação a classe e raça. análises marxistas demonstrando como
primitiva”, de Silvia Federici, lançado em a uma variável pouco tratada pelas obras Nesse bojo, como veremos adiante, os corpos corpos femininos foram violentados no
inglês em 2004, foi traduzido pelo coletivo clássicas: as mulheres. A autora foca femininos vivenciam processos de violência, processo de consolidação do capitalismo,
Sycorax e contou com a presença da autora principalmente em duas questões pouco dominação e controle que corpos masculinos além de terem sido deslocados para o
em seu lançamento no Brasil, em julho de problematizadas: primeiro, sobre o fato de não passaram. ambiente doméstico ao mesmo tempo
2017 no Rio de Janeiro e em São Paulo. o capitalismo ter se constituído com o uso e em que o trabalho realizado nesse espaço
O lançamento no Brasil foi um momento não pagamento do trabalho das mulheres e, deixou de ser reconhecido enquanto trabalho
propício para debater sobre a atual situação segundo, sobre o caráter de classe e misógino A obra, resultado de um trabalho de três produtivo.
do capitalismo a partir das questões da caça às bruxas e sua indissociabilidade décadas, é dividida em cinco capítulos
levantadas pela obra, bem como estabelecer do capitalismo. Ao contrário das análises que partem de uma contextualização dos
diálogos com outras vozes e saberes a fim de tradicionais, que dedicam apenas um problemas que assolam e assolaram as A centralidade de eventos imprevisíveis,
avançar nesse debate tão pertinente. parágrafo, um capítulo ou uma menção mulheres em diferentes contextos, bem como a peste negra e seu impacto na vida
rápida a algum ou outro acontecimento como das resistências por nós efetivadas; os da sociedade em geral, é também abordada
Silvia Federici é italiana de nascença, específico pertinente às mulheres, a autora capítulos que seguem focam em momentos a partir da perspectiva do povo. Uma vez
mas teve uma trajetória transnacional, de deixa evidente em suas análises a inerência da históricos e acontecimentos sociais, que grande parte da população foi dizimada
modo que viveu e experienciou a luta das presença das mulheres na história, para além econômicos e políticos, sempre apresentando pela peste, o poder de barganha do servo
mulheres em diferentes contextos, como da história das mulheres. uma outra interpretação possível. Federici aumentou de modo que, a partir de então,
a Luta pelo Salário na década de 1960 nos coloca feminismo, Marx e Foucault em ele pode experimentar o poder de escolha
Estados Unidos e a luta na Nigéria na diálogo, tecendo análises críticas que ampliam ou se dar ao luxo de escolher onde e sob
década de 1980, enquanto era professora Podemos identificar uma análise e vão além das interpretações dos autores em quais condições gostaria de trabalhar. No
nesse país. Federici é feminista autonomista macroeconômica, social e política, uma vez questão. entanto, da mesma maneira, a necessidade
e escreve principalmente sobre mulheres, que atenta para a passagem do feudalismo de mais trabalhadores disponíveis aumentou,
sobre a luta pelo bem comum e faz análises para o capitalismo e aos fatores estruturais alterando, assim, a correlação de controle e
anticapitalistas. O título calibã e a bruxa que foram fundamentais para essa passagem. Partindo de uma análise marxista do domínio sobre os corpos femininos.
são referências à peça “A Tempestade”, de Ao mesmo tempo, é também uma análise capitalismo e reconhecendo a história
Sheakspeare, na qual calibã incorpora em si sobre os corpos que foram transformados enquanto a luta de classes, a autora
os processos de colonização na sua totalidade, em máquinas nesse mesmo contexto. Os reflete, principalmente, sobre as mulheres A autora, se baseando na noção de
assumindo o papel de rebelde anticolonial, e corpos ganham destaque, tanto enquanto trabalhadoras, uma vez que, segundo ela, acumulação primitiva de Marx, aponta a
a bruxa, sua mãe Sycorax, representa o corpo sujeitados pela violência do capitalismo, Marx não se preocupou em diferenciar o lacuna deixada pelo autor, uma vez que
feminino que exerce a atitude revolucionária, como também enquanto generificados, impacto e a importância das/os sujeitas/os este não se preocupou em esmiuçar as suas
mas não adquire o protagonismo e se torna racializados e descobertos. As análises levam generificadas/os em sua obra. Ou seja, apesar relações com o trabalho das mulheres. Todo
um elemento secundário. em conta a diferença da sujeição de corpos de concordar com a análise macroeconômica o processo de surgimento do capitalismo,
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mas principalmente os cercamentos e Paralelamente aos cercamentos das terras, moeda. A conivência da igreja e do Estado se que devem ser protegidas e as mulheres que
privatização da terra, incidiram de maneira os corpos das mulheres também foram transformaram em perseguição e proibição. devem ser perseguidas.
diferente nos homens e nas mulheres cerceados de sua liberdade de escolha, de Os corpos e a sexualidade foram politizados e
trabalhadoras. O cercamento da terra alterou cuidado, de prevenção da gravidez ou da normatizados
a rotina e a dinâmica entre os proprietários manutenção da mesma. Além de serem A Caça às Bruxas foi um acontecimento
e os trabalhadores no sentido de que a confinadas em casa e ter seu trabalho não misógino responsável pela perseguição,
separação entre público e privado, tal qual valorizado, as mulheres foram reduzidas a Mais uma vez os corpos das mulheres, bem mutilação e assassinato de milhares1 de
concebemos hoje, começa a aparecer; o reprodutoras de mais força de trabalho, ou como o domínio sobre eles, é muito mais mulheres em um longo espaço de tempo,
trabalho no mundo público passar a ser seja, foram transformadas em incubadoras de compreensível se analisado no contexto principalmente na Europa. O período entre
valorizado monetariamente, através do salário, gente e responsáveis por repor o estoque da social ao qual está inserido. Se num primeiro 1580 e 1630 foi o mais radical e violento,
e esse é ocupado pelos homens. As mulheres mão de obra masculina e feminina. momento as mulheres heréticas tinham um mas com reminiscências que foram até
trabalhadoras, que até então participavam certo poder de decisão sobre seus corpos, 1980 em partes da África e no Brasil, por
da dinâmica na propriedade comunitária, bem como conhecimento acerca de métodos exemplo. Além de seu caráter de gênero, a
são confinadas em casa e o trabalho que elas Ou seja, o cercamento e a acumulação contraceptivos e abortivos, como no caso das autora chama a atenção para o recorte de
exercem entre quatro paredes, como não primitiva teve um impacto duplo para as trabalhadoras dos feudos, a peste negra e a classe presente nesse acontecimento, uma vez
pode ser visto ou não produz mercadorias, é mulheres trabalhadoras, pois, uma vez preocupação com o equilíbrio demográfica que as mulheres vítimas eram notoriamente
destituído de valor. que não recebiam por seu trabalho, eram da população dela decorrente, impactaram as mulheres pobres e camponesas sendo
dependentes financeiramente de seus mulheres de maneira muito mais aguda. Seus perseguidas por homens brancos e ricos.
maridos, que também eram trabalhadores, corpos, enquanto reprodutoras, agora não
Em contrapartida, essa foi uma transição mas que tinham seu serviço reconhecido lhes pertencia. O direito do feto passava a se
conturbada e não passou despercebida. enquanto produtores de mercadoria. O sobrepor ao direito da mulher em escolher Os argumentos para tal empreendimento
Enquanto os homens começaram a “patriarcado do salário”, conceito cunhado querer ou não parir. são elaborados no plano esotérico, enquanto,
ocupar seus cargos no espaço público, as pela autora, delineia de que modo as no plano racional, na mesma época, o
mulheres, por estarem vivenciando essas mulheres foram submetidas a uma relação Iluminismo e o racionalismo dominavam
transformações de forma mais aguda, foram de dependência com os homens por não O processo de desvalorização econômica da enquanto doutrinas ideológicas. A autora nos
também as principais opositoras ao novo terem seus trabalhos valorizados, no caso das mulher é concomitante aos processos legais convida a entender essa aparente contradição,
sistema. Elas se organizaram, realizaram mulheres trabalhadoras, e de não poderem e culturais de sua degradação, propiciando uma vez que, em sua linha de raciocínio,
motins, e protagonizaram a luta a fim de possuir bens ou heranças, no caso das um ambiente para a sua infantilização e não podemos deixar de considerar que havia
defender a manutenção de suas vidas e seus mulheres abastadas. Da mesma maneira, o bestialização e criando uma dicotomia que um projeto político machista de desmonte
corpos sob seu controle. No plano individual, domínio sobre os corpos femininos e sua classifica algumas mulheres enquanto puras e
muitas mulheres tentaram a sorte partindo redução a uma máquina reprodutora opera de frágeis e outras como bruxas. Assim, além das 1 Federici explica a impossibilidade em cunhar a
quantidade exata de mulheres que foram vítimas, devi-
para as cidades, no entanto nem de uma maneira diferenciada conforme a classe social, diferenças hierárquicas criadas entre homens do, principalmente, ao descaso com o tema e à (quase)
maneira, nem de outra tiveram muito sucesso. mas sempre como duas faces da mesma e mulheres, também se produz as mulheres inexistência de estudos que procurem fontes confiáveis e
averíguem as quantidades.
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e perseguição da oposição ao sistema envenenar o marido, patrão entre outras. ordens masculinas. Ou seja, nem às bruxas mulheres.
emergente, bem como do proibicionismo Além disso, o crime de infanticídio é também era concedida a ideia de que as mulheres
do conhecimento das mulheres sobre seus reiteradamente alegado, principalmente agiam por si. O fim da caça às bruxas, ao menos de
corpos e suas decisões quanto à reprodução. no que se refere a mulheres que atuaram maneira estrutural na Europa, ocorre
enquanto parteiras ou curandeiras ou as que Esse é um elemento curioso que, se com o estabelecimento do Estado-nação
foram acusadas de cometer aborto. Mais analisado num espaço de tempo maior e da racionalização enquanto instituições
Ainda de maneira paralela estavam sendo uma vez, como podemos notar, o domínio fica mais evidente, uma vez que a magia hegemônicas, de modo que a magia, a partir
empreendidos os projetos coloniais que sobre os corpos e saberes das mulheres está não é invenção dessas bruxas; a magia de então, não oferece mais risco para a ordem
partiam dos mesmos pressupostos de associado à sua capacidade em gerar vida que, já existia anteriormente, mas uma vez vigente. Os saberes das bruxas e curandeiras,
bestialização e, portanto, perseguição ou para os capitalistas, não passavam de mais que o capitalismo precisa de corpos que agora “substituídos” pela ciência moderna e
salvação, dos povos “descobertos”. Além, força de trabalho e, portanto, criadores de funcionem como máquinas e não como seres pelos doutores se limita a manifestações locais
é óbvio, da desconsideração por todos os mais – valia e riqueza. transcendentais o processo de racionalização e limitadas. No entanto, a menção a “crimes
saberes sistematizados desses povos. Ou masculina, que visa esse domínio e controle normais” tiveram uma alta considerável.
seja, de um modo ou de outro, são homens, de corpos femininos e proletários, opera de
brancos ricos, fazendo uso de seus poderes A diferença e a hierarquia estabelecidas modo a erradicar a magia subjugando-a.
econômicos, legais, burocráticos e religiosos entre homens e mulheres, elaborada pelos Por fim, a autora argumenta que as crises
para “proteger” ou perseguir os outros. letrados da época (a autora menciona capitalistas atuais continuam sendo utilizadas
A escravidão também pode ser explicada nomes como Descartes, Hobbes e demais Aqui cabe lembrar a crítica de Federici a como justificativas para empreendimentos
nessa chave, salvas especificidades de tripla filósofos mecanicistas) e reiterada por Foucault, que é elaborada em dois níveis. colonizadores, protagonizados por
ou dupla violência que incidiram sobre as juristas, homens do Estado e da igreja em Primeiro, pela ausência da menção à caça às instituições como o Fundo Monetário
pessoas negras – que, mais do que não terem geral, operam a fim de manter os homens bruxas em sua “História da Sexualidade”. Internacional e o Banco Mundial, que se
seu trabalho remunerado, não eram sequer no poder e negar às mulheres, às pessoas Segundo, pelo fato de os discursos utilizam de seus status, aliado aos interesses
reconhecidas enquanto pessoas. do Novo Mundo e aos escravos qualquer repressivos, para além de serem entendidos de Estados e elites econômicas e políticas,
racionalidade, reduzindo-os a corpos enquanto alternativa à repressão, estarem roubando violentamente terras comunitárias
ou seres que agem apenas pela paixão. aliados a todos procedimentos violentos e exterminando modos de vidas locais ao
As acusações de bruxaria que podem ser A dependência da mulher com relação de domínio e controle dos corpos e da impor seu modo de conhecimento. A busca
encontradas nos arquivos da época eram ao homem é afirmada de maneira muito sexualidade das mulheres. Ou seja, o autor, por “acumulação primitiva”, a partir do
baseadas, geralmente, em crimes como magia enfática, mas por vezes opera de maneira ao elaborar a História da sexualidade fazendo saqueio de outras terras, que não as Europeias
e pacto com o demônio, com a intenção de sutil. Quando se alegava que para a mulher usos de conceitos como controle, dominação ou Norte Americana, ainda é uma prática
dominar os homens ou mulheres libertinas, ser reconhecida enquanto bruxa ela deveria e política, não menciona a caça às bruxas existente e faz parte de um continuum de
promíscuas, respondonas e rebeldes; ter um pacto com o demônio, representado enquanto parte desses mecanismos de toda a história apresentada até agora.
em alguns casos as acusações eram mais como um homem, isso significava dizer controle dos corpos, nem se aprofunda nas
específicas, como maldizer a vizinhança ou que ela não possuía agência e que agia sob formas como o domínio é exercido sobre as
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De modo geral, a autora se preocupa em Referêncis Bibliográficas:


atentar para os recortes de gênero, classe, raça
e nação, algumas vezes com mais sucesso FEDERICI, Silvia. (2017) Calibã e a Bruxa:
e outras com nem tanto. A relação entre mulheres, corpo e acumulação primitiva.
maternidade e mulheres negras e indígenas, Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo:
por exemplo, apesar de estar sempre sujeita Elefante
ao controle de homens muitas vezes ocorre
de maneira oposta à da mulher branca,
como demonstram a história da eugenia no
Brasil e todos os experimentos com a pílula
anticoncepcional na América latina, por
exemplo. No entanto, acredito, trata-se de
uma obra de valor inestimável, um suspiro
de esperança no que se refere à produção
acadêmica. “Calibã e a bruxa” tem tudo para
se transformar uma obra exemplar ao lado de
outros clássicos.

Mariane Silva Reghim é doutoranda


em Sociologia no Instituto de Estu-
dos Sociais e Políticos – IESP/UERJ e
feminista. Atualmente pesquisa sobre
epistemologia feminista, sociologia do
conhecimento, movimentos sociais,
produção e circulação de conhecimen-
to.
contato: marianesreghim@gmail.com
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AS EDITORAS: ASSISTENTE EDITORIAL: sobre a capa:

Marcia Rangel Candido Mariane Silva Reghim Para essa primeira publicação, o
Doutoranda em Ciência Política no Doutoranda em Sociologia pelo Instituto conceito da capa para Clássicas foi o de
Instituto de Estudos Sociais e Políticos da de Estudos Sociais e Políticos (IESP-Uerj). desabrochar uma semente, assim como o
Universidade Estadual do Rio de Janeiro É pesquisadora do Núcleo de Estudos de livro é.
(IESP-Uerj), pesquisadora associada Teoria Social e América Latina (NETSAL). Uma semente que vai germinar e florir
do Grupo de Estudos Multidisciplinares contato: marianesreghim@gmail.com para xs leitorxs e também para as futuras
da Ação Afirmativa (GEMAA) e do edições da coleção com mais mulheres
Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera teóricas.
Pública (LEMEP). ARTISTAS GRÁFICAS: Assim como nos ensina Cora Coralina: “eu
contato: marciarangelcandido@gmail.com Ana Bolshaw sou aquela mulher que fez a escalada da
Mestranda em Design na PUC-Rio, em montanha da vida, removendo pedras e
Veronica Toste Daflon que pesquisa identidade visual de cidades. plantando flores”.
Doutora em Sociologia pelo Instituto de É graduada em Comunicação Social As mulheres que estão aqui rompem
Estudos Sociais e Políticos (IESP-Uerj) com habilitação em Cinema na mesma as sementes. Que as ideias cresçam e
e mestre em Sociologia pelo IUPERJ. É instituição. floresçam nesse mundo cada vez mais
bolsista de pós-doutorado do Programa contato: anabolshaw@gmail.com temeroso.
de Pós-Graduação em Sociologia e www.anabolshaw.com
Antropologia (PPGSA, IFCS-UFRJ). Atua
como pesquisadora associada do Núcleo Sophia Pinheiro
de Estudos de Sexualidade e Gênero Mestre em Antropologia Social pelo
(NESEG, IFCS-UFRJ) e do Global Race Programa de Pós-Graduação em
Project Antropologia Social na Universidade
contato: veronicatoste@gmail.com Federal de Goiás (PPGAS/UFG). É
graduada em Artes Visuais e bacharel em
Design Gráfico pela mesma universidade.
Atua como pensadora visual, interessada
acompanhe no youtube o Sobre Elas
nas poéticas e políticas visuais, gênero,
(www.youtube.com/sobreelas), dirigido
processos de criação, na antropologia e/ por Emy Lobo, o canal veicula inúmeras
da arte, culturas e representações das entrevistas com mulheres, além de
imagens. apresentar uma série de curtas com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3686998218403865 pesquisadoras sobre autoras clássicas.
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