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lactis Da IpabE Mépia ao RENASCIMENTO A SERA TS a ec He AA ids ch ri a lec son Nap AP BN Kachin heated mannii phuiiaet i ' | i 3 } siecle sestindnternmatncSantbt A Ipape Mepis. Ascetismo & MUNDANISMO, O LrBro 1 Mor. O CORPO GROTESCO. RABBLAIS. MONTAIGNE E “A CIENCIA DA GOELA”. O RENASCIMENTO. CAMOES, “POETA FEITO DE CARNE E DE SENTIDOS”. CERVANTES, QUIXOTE & SANCHO: COMER PARA VIVER E VIVER PARA COMER. Temente a Deus, ¢ obediente aos seus mandamentos, submete-se o homem medieval aos preceitos da Igreja: observa a vigilia, a abstinéncia © © jejum, cumpre religiosamente os deveres piedosos. Seu ideal de vida? A ascese. A amargura e 0 pessimismo dos modelos ascéticos nao inspiram apenas os textos sacros, destinados & divulgagao da doutrina crista: invadem a literatura profana, vincando-a de insatisfagao ¢ de tristeza. A intemperanga é duramente punida, Na Divina Comédia, Dante reserva para os-gulosos, no terceiro cfrculo do inferno, “eterna, maldita, fria ¢ pesada chuva”. Cérbero, 0 cio de trés fauces, rasga-os, esfola-os e esquarteja-os cruelmente. Alheia a florescéncia latina do século XII, a Peninsula ibérica conti- nuaria a abeberar-se nas leituras em que se fustigam a vileza humana © as sedugées terrenas. Exemplos disso sao a Danza de ta muerte, a Revelacién de un ermitano, 0 Libro de miseria de omne e as digress6 moralizantes do Rimado de palacio, de Pero Lopez de Ayala. A véspera do Renascimento, em pleno século XIV, os autores se comprazem na descrigdo dos sofrimentos dos homens no seu trénsito pela terra e vertem suas. amarguras, como 0 Canciller Lopez de Ayala, ante o aviltamento da sociedade. O anelo de praticas religiosas m: proximas da caridade e da humildade evangélicas parecem a melhor ligao de todas essas obras. Nao foi o que pregou Juan Ruiz, o Arcipreste de Hita, no seu Libro 57 i LLL de buen amor'. Rompendo as ataduras oficiais, que o sujeitavam & regra eclesidstica, o Arcipreste retoma a tradicio popular goliardesca elogian- do do dinheiro e do seu poder, do do e atacando as mulheres, falan “maestrias e sotilecas relaxamento monacal, das fartas comilonas, das enganosas del loco amor del mundo”. Com a forga do scu estilo subver- te o interesse da literatura moralizante e enderega o Libro de buen amor no rumo do Renascimento e da obra de Rabelais. Enxertando versos de Ovidio, textos do fabulério francés e facécias grosseiras As suas paginas, transporta, a essa nova Arte de amar, o fascinante borborinho do finatda Idade Média. Clérigo culio mas, também, “tafiedor de instrumentos y doneador alegre” — como gestava de apresentar-se—, intimo de estudan- tes, bacharéis, cantadeiras, dangadeiras, serranas, monijas ¢ frades, joga- dores, rufides, cavaleiros € escudeiros, ladrdes, mtisicos ¢ jograts, damas ‘po inteiro, integrando-os Asua de escol, judias e mouras, pinta-os de cor galeria de tipos e caracteres. Sobressai-se, nessa multiddo, entre gente de bien © gente de la vida airada, a figura da alcoviteira Trotaconven- tos®, Erradicada do ambiente politico, mitolégico e herdico das comédi- as da Antigiiidade, a alcoviteira limita a agdo as intrigas erdticas, 20s culiar conduta celestinesca, fingida- engontros lascivos, jacom a sua pe mente catélica e piedosa. O desejo de “provar todas as coisas que manda o apéstolo”, leva 9 frade goliardo a tratar, livremente, assuntos cémicos & sérios, Morais & obscenos. Seb a forma de fabulas, contos & refrios, cantigas de serrana, cantigas de escdrneo & parddias de gestas cavalheirescas, ensaia, Com yelha Trotaconventos. moral das graga, “todas juglerias”, como observa a Embora procure convencer 0 leitor do cardter pedagégico- 2 acaba por fazer 0 elogio da vida ¢ dos seus “pois que é coisa humana © suas rimas, Juan Ru prazeres. Vituperando 0 loco amor, declara: pecar, se alguns (0 que nao aconselho) quiserem usar do loco amor, aqui _O que torna 0 loco amor mais encontrardo algumas maneiras para isso” deleitével ¢ muito mais exemplar que © seu antidoto, 0 amor sem 1, Segundo Cédice de Toledo, o livro data de 1330 (Ver Juan Ruiz, Arcipreste de Hita, Libro de buen amor. Edicion, prologo y notas de Alfonso Reyes. Madrid, “Calleja”, 1917). 9. Sobre o, tema da alcoviteira ¢ sua origem, ver Ernst Curtius, Literals curopéia e Idade Média Latina. Trad, Rio de Janeiro, 1957, “Epilogo”, p. 403- 404, n. 18, p. 404. 58 ae eect ae Principalmente aos olhos do frade bonachio que se ampara em rist6teles para justificar as maiores necessidades do homem: comer ¢ fornicar. Diante de to ponderado jufzo, s6 nos resta recitar-lhe os a versos: Como dize Aristételes, cosa es verdader El mundo por dos cosas trabaja: la primera, Por aver mantenencia; la otra cosa era Por aver juntamiento con fenbra plazentera” F eee moralista”, como quer Amador de los Rios, “vitima propi GLEE das culpas do seu tempo, como o pence cada “precursor de Rabelais © livre pensador em Eerie cuaNentil Puymaigre, ou, ainda, “clérigo libertino e taberneizo” a o def a Menéndez y Pelayo, para corrigir-se mais tarde, econ posigh ‘ a See tar i otalegre Acluretinarecatdeverzesde ater ounie cies do seu século, mesela assombiosa de ascstismo e nena __ Sobram no entanto razGes a Eduardo Frieiro para eae iene materialista, sensualista, realista, nada platénico muito a to me co..."* Como pecava para conhecer o bem eo male escolher i a é chegou ao paradoxo de defender-se do pecada depois de bem aes lo e de prova-lo ¢ de rejei : de rejeitar o mundo neie vivend xperi ie vivendo ¢ experime: todos os seus bens. ye No alnats somo) no comer, Juan Ruiz nao distingue 0 homem di brato. E inclui, no mesmo rel, elérigos ¢ jograis, “homens, aves ria ria, tado animal de covil”. Nos dias de Tantioas fatas janie eee que pandar de boda en boda, ciérigos y juglares”. est eae ire —nés te daremos mosteiros honrados, refeitorics mu ate i toalhas bem postas; grandes dormitérios com leitos bem ovu ee 3 nung de suas invengées burlescas, a Pelexa que fea io Cpe inci o tema francés —La bataiile de Caretta : age, mado por Rabelais no seu Quarto Livro. A luta entre o ascetismo e 0 gozo da carne ganha tons satfricos nessa ouctela 3. M. Menéndez y Pel Dioeh re east alas y Pelayo, Antologta de poetas liricos. Santander, 1941, |, 4. “O alegre Arcii iB cipreste”, In C alegre Arcipreste e outr it Es ‘os temas de r espanhola. Belo Horizonte, Ed. da Livraria Oscar Nicolai 1959, Bee 59 alegérica © truanesca, de farsa culindria. Dom Carnal, ou Comevel, com uma vistosa frente de combate, composta de galinhas, perdizes, patos, leitées, coelhos, cabras monteses, 0 gado do vale de Alcudia, que se une as reses de Medellin, Caceres, Trujillo etc. e guerreiros como D. Toucinho, defronta-se com Dona Quaresma que 0 ataca Gon sardinhas, moluscos, enguias de Valencia, trutas de Alberche, cacoes de Baiona, lagostas de Santander, arenques de Bermeu, lampréias de Sevilha, um exército de camardes que navega o rio de Henares © uma baleia que intervém no momento decisivo. Obesos ¢ lentos, os soldados de Don Carnal sao facilmente derrotados pelas tropas ageis de Dona Quaresma que, implacdvel, manda degolar os vencidos. Feito prisioneiro, Dom Carnal é condenado a dieta. Moral da histéria? O vicio nada pode contra a virtude. : , Receptivo a todas as solicitagées dos sentidos, @ Arcipreste capta a realidade de modo risonho: ora travesso, ora malicioso. Isso também ocorre na sua lirica. E 0 que acontece na Céntica de serrana onde a ambigiiidade do didlogo entre a serrana e o andarilho sugere a barganha de comida além de outros dons. “ Conta o andarilho: “Levdme consigo, ediém’ buena lumbre, como es de costumbre de si Didm' pan de centeno, tiznado, moreno; rra nevada, e didm’ vino malo, agrillo e ralo, e carne salada. Didm’ queso de cabras. ~"Hidalgo”, diz, abras ese blazo, € toma un canto de soma, que tengo guardada.” Diz: ~ Huésped, almuerz e bebe e esfuerza, caliéniote e paga; a areas “Quien dones me diere, cuales yo pediere, habré buena cena, @ lechiga buena, que no!" coste nada”. “No hay mercadero bueno sin dinero, ¢ yo non me pago del que non da algo, nin le dé posada, Nunca de homenaje pagan hostalaje. Por dineros face home cuanto I’ place cosa es probada” Como a comida sempre corre parelha com o amor, a Trotacon- ventos recomenda ao Arcipreste que busque para amante a alguna monja pelas gulosinas que certamente Ihe ofereceré. Para abordar 0 tema proibido dos encontros amorosos, Dona Garosa, a monja esco- Ihida pela alcoviteira, recorre a exemplos apologais em Cujas metd- foras comer e comida aparecem como eufemismos, Nessa cadecia de substituigées, armada pelo pudor, a paixao amo rosa, obstdculo A virtude, se resolve na referéncia as fabulas de Esopo e ao apetite dos animais, coisa muito natural.. Neutralizam-se, mediante tal estratagema, os arroubos da Ppaixio © suas danosas conseqiiéncias. PGe-se a salvo a virtude de dona Garosa e, 0 que mais importa, nao se frustram os Propésitos da ‘Trotaconventos. Cinismo? Nem tanto. Asttcia de namorado guloso. Mediadoras da realidade, a comida ea fabula tornain Possivel o que € defeso, conferindo-Ihe Caracleristicas de habito saudavel, corriqueiro, na bem ordenada criago de Deus. Eo que assombra, encanta e desori- enta no Libro de buen amor: 0 sagrado se une ao profano, de modo natural, espontaneo. Por que pensar na condenagao eterna? Por que entregar-se A culpa e a tristeza? rebaixamento do que é elevado <...> A consciéncia de sua forga puramente humana, material e corporal penctra o simpdsio grotes~ co. O homem nao teme o mundo, ele o venceu, ele o degusta.”* Calvino, entre outros pensadores da Reforma, condena essa vulgari- zagéo da Ceia acusando 0s escritores de “libertinagem da mesa” (ou “a mesa”, 0 que parece melhor). i A vista do “corpo grotesco”, imagem cara a Bakhline, convém ressaltar que se deve a Rabelais o seu retrato mais acabado. Consagran- do-se como o mestre do excesso ¢ da hipérbole, versa, deliberadamente, 0 exibicionismo € a fantochada. Tanto pelo estilo como pela linguagem, a sua obra estabelece uma nitida oposig’io entre o cotidiano — na sua fatigada simetria, ea excepcionalidade da festa — na transgressao ao uso, no desafio ao equilfbrio ¢ & medida. Num universo em que a excegao é lei, altera-se 0 conceito das dimensdes. Esquecido 0 conselho de Hord- cio — Nil admirari, aqui tudo incita & admiragao. Nao basta, para exerci- tala, o domfnio do léxico gargantuesco. Quem queira aventurar-se pela selva de Rabelais, deverd passar antes por uma iniciagao. Sera portanto de bom aviso ouvir o conselho que dirige aos Ieitores: “convém usar de sagacidade para farejar, sentir ¢ apreciar esses belos livros de alta gordura, ligeiros na apreensao € astutos na defesa; depois, mediante a ‘io da curiosidade e meditagdo freqiiente, partir 0 osso ¢ chupar 0 tutano substancioso <...> na esperanga de que a leitura os torne ajuiza- dos e virtuosos: entio, haverao de descobrir o gosto sutil e a filosofia oculta que Ihes revelardo altos c terriveis mistérios, tanto no que concer- ne a religidio como no que respeita a politica e & vida econdmica.”* S6 depois de afeigoar os sentidos as extravagancias da realidade recriada — capitosa, estranha ¢ muila vez repugnante, € que estaremos habilitados a apreendé-la. Sem pudor, sem medo 4 censura c sem respei- to humano, os olhos, os ouvidos, © nariz, a boca ¢ a pele, assistidos eficazmente pela fantasia, dirigem-Ihe a lingua e 0 estilo. Ja nas primeiras linhas do Prdlogo ao Primeiro Livro do Gargantua, Rabelais reporta-se ao Banquete de Platio lembrando que os seus livros, 5. Mikhail Bakhtine, L ‘oeuvre de Frangois Rabelais et la culture populaire au Moyen-Age et sous la Renaissance. Trad, Andrée Robel. Paris, Gallimard, 1970, p. 294-295 6. Rabelais, Oewvres completes. Ed. établie, annotée et préfacée par Guy Demerson. Paris, Ed."du Scuil, 1973. “Prologue”, p. 39-40 64 ica i a exemplo das silenas de que fala Alcibfades’, escondiam 1 INET mais do que 0 anunciado na despretensiosa aparéncia Vale dizer, “que as matérias tratadas nao sdio tao frivolas como 0 titulo dei prever”. . Indo mais longe na comparagao, toma como modelos a Homero e & Ovidio cujas obras encerram 0 patriménio dos antepassados. Comendo r e bebendo a seu gosto e prazer, tal como sabiam fazé-lo Homero e finio, “escreve sobre altas matérias e ciéncias profundas.”* Deformando, am- { pliando, corrigindo e recompondo, numa constante e obsessiva repulsilo ao mundo tal qual é, a sua imaginagao integra e prolonga a vida no transbordamento de uma erudigao sem limites, a servigo de uma inesgo- iol tavel alegria de viver. E é a alegria da festa e do ventre satisfeito que preside 0 nascimento do gigante Gargantua. O parto acontece num trés de fevereiro, véspera de carnaval, apés uma grande comilanga = 4 copiosissima dobradinha de trezentos e sessenta e sete mil e catorze bois que seriam salgados para a primavera. Apesar das adverténcias do esposo, 0 bonachio Grandgousier, mamae Gargamelle se em= panturra de tripas e Gargantua nasce em meio a festa, gritando ~ “Beber! beber! beber!”, como se convidasse a todos a celebrar-lhe achegada ao mundo (Garg., IL., c.6). Depois de onze meses no ventre materno, o gigantezinho tem sede. Sede ¢ fome. Para aleité-lo requisitam-se, nos arredores, mil novecentas e treze vacas. E era tamanho o seu apetite que s6 de ouvir o rufdo de tampas, panelas e vidros na cozinha ele se alegrava e sacudia-se de satisfagdo, prelibando o prazer da mamada (Garg.,1L., c.7). Passada a primeira infancia, Gargantua aprende 0 abecedario, os caracteres géticos e toma ligdes de gramatica. A morte do seu primeiro preceptor, Grandgousier contrata o velho Jobelin Bridé para ocupar-se de sua formaciio (Garg.,1L., c.14). Vendo no entanto que em lugar de progredir o filho se tornava “louco, tolo, sonhador e repetitivo”, deci- de-se a mand4-lo a Paris. Na companhia de Ponécrates, seu novo 7. Repetindo o elogio de Sécrates, por Alcibiades, Rabelais retoma a comparagiio com as silenas —caixinhas em que se guardavam perfumes, unguentos, pedras € coisas preciosas (Idem, ibidem, p. 38). 8. Idem, ibidem, p. 39 ep. 40. 65 preceptor, Gargantua segue para a grande cidade. Orientado entretan to pelos sofistas, pouco acrescenta A sua limitada ciéncia. Acordava entre oito e nove horas da manha, saltava, esperneava, penteava o cabelo com os quatro dedos e o polegar, urinava, raspava a garganta, arrotava, peidava, bocejava, escarrava, tossia, solugava, espirrava e assoava 0 nariz como um arcediago e, para rebater 0 orvalho e 9 mau ar, quebrava o jejum com belas tripas fritas, carne assada, presunto, cabrito assado e muitas fatias de pio ensopado. Apés a refeigao mati- nal, ia a igreja © resmungava as oragdes, levando ainda para casa montes de tergos para rezar. Durante longa meia-hora procurava estu- dar alguma coisa. Mas enquanto os seus olhos percorriam as paginas do livro, sua alma estava na cozinha. Sentando-se a mesa, comegava a refeicao por algumas duizias de presunto, linguas defumadas, butargas, chourico e outros anunciadores do vinho. Enquanto isso, quatro cria- dos, um apés outro, Ihe lancavam & boca, sem interrupgao, pas de mostarda. Bebia, em seguida, uma formidavel talagada de vinho bran- co para aliviar os rins. Depois, segundo a estag4o, comia outros pratos, dependendo do apetite, e s6 parava quando o ventre ficava bem estica- do. Em matéria de bebida, nao conhecia fim nem regras porque dizia que as metas e limites do beber estavam nas cortigas das chinelas que cresCiam de meio-pé (Garg. ,1L, c. 21). Quando se excedia, claro. Mas scu regime didrio inclufa ainda, apés jogos e brincadeiras qua- renta e cinco litros de bebida, uma boa sesta ¢ mais vinho fresco ao despertar. $6 entdo estudava uma infeliz meia-hora, montado numa velha mula, que 0 conduzia ao campo para assistir 4 caga As lebres. Voltando a casa, passava pela cozinha para saber 0 que sobrara no espeto. E jantava muito bem, convidando os bebedores da vizinhanca para acompanha-lo, Entre jogos de dama e xadrés ¢ mais pequenos banquetes € colagdes, o jovem gigante terminava a noite, dormindo oito horas até a manha seguin- te (Garg.,1L., ¢.21-22). Empenhade na formagio do disefpulo, Pondcrates condena tal progra- ma, Adota, a partir de entao, diferente pedagogia: elimina, do seu hordrio, 9 recreio € 0 6cio. Todas as horas do dia se destinam ao estudo. E 0 dia comecava cedo: as quatro da manha’, Sequer a higiene matinal os impedia 9. Como se nota, foi abolido 0 vinho matinal, Gargantua observaria ao Frei Joao: “Beber cedo, depois de dormir nao é conforme as leis dietéticas. E preciso, antes, esvaziar 0 estémago de residuos ¢ excrementos” (Garg., IL., ch. 41). O que demonstra a sua conversio a dieta imposta por Ponderates. 66 emittance hindi ta ei iia de ouvir € rever, se necessdrio, as passagens mais dificcis da Santa Escritura. Ao deixar o banheiro, contemplavam o céu para observar as mudangas operadas ao nascer do sol. JA penteado, perfumado e vestido, Gargantua recapitulava as ligGes da véspera, repetindo de cor o que aprendera. Exercicios fisicos? $6 depois de trés horas de leitura. E coma mesma elegdncia com que tinham exercitado o espitito, entr aos jogos. Cansados, e suados, recuperavam-se com uma boa fricgo. avam-se Trocada a camisa, tomavam, docemente, 0 caminho de casa, recitando, ainda, com elogiiéncia e em voz clara, as sentengas retidas na meméria. Enquanto isso, vinha 0 apetite. Sentavam-se & mesa e liar algumas paginas antes do vinho. Se Ihes agradava 0 assunto, continuavam a ler. Se nao, a propria mesa Ihes oferecia novos temas de estudo: discorriam sobre o pao, 0 vinho, a Agua, o sal, as carnes, os peixes, as frutas, ervas, rafzes e a maneira de prepard-los. Buscando o testemnunho dos classicos, consulta- vam, ali mesmo, livros de Plinio, Ateneu, Dioscorides, Heliodoro, Arist6- teles. Discutiam ent&o os textos lidos pela manhi ¢ terminavam 0 almoga por um doce de marmelo. Depois de lavar as mios e os olhos com agua fresca, davam gragas a Deus em belos cAnticos de louvor. Entretiam-se, de sobremesa, com cartas, nao de baralho, mas de jogos aritméticos. Gi ‘agas a esse estratagema, Gargantua tomara gosto pelos niimeros e se divertia tanto como se jogasse dados ou baralho. E nio ficara nisso: também o encantavam as demais ciéncias matematicas — a geomettia, a astronomia e a musica. Ocupavam-se em seguida, durante a digestao, com figuras de geometria © com as leis astronémicas. Como diversao, faziam variagdes vocais sobre um tema, tocavam alatide, espineta, harpa, flauta, viola e trombone. A arte da cavalaria, 0 uso das armas, a caga, a natagio, a canoagem e outros exercicios fisicos preenchiam boa parte da tarde que se. concluia, alegremente, numa coleta de plantas ¢ ervas com vista A inicia- go botinica do aluno.Tanto era s6brio ¢ frugal 0 almogo, quanto abun- dante e copioso o jantar. Valendo-se do ensejo, Rabelais condena com veeméncia (pois era médico) aqueles que faziam do almogo a principal refeigdo. E ao jantar, na sua dieta, que se restauram as forcas ¢ que se garante a subsisténcia. © comer, ¢ comer bem, néio impedia contudo a atividade intelectual. Moderada, mas aprazivel. Reviam-se as matérias estudadas no correr do dia € 0 resto do tempo era dedicado A discussao de temas instrutivos. Ditas as oragées, regalavam-se com musica, jogos ¢ finas iguarias. Isso, quando nfo saiam para visitar cientistas ow viajantes ilustres. Noite alta, observavam o céu e comentavam as posigSes, oposi- 67 ges e conjungdes dos astros. Enfim, ao modo dos pitagdricos, recapitula- vam brevemente quanto haviam praticado Agradeciam ao Deus Criador, adorando-o e confirmando-lhe a fé, glorificando-o por sua imensa bonda- de ¢ rendendo-lhe gracas pelo tempo passado e recomendando-se 4 sua cleméncia para todo o futuro. Feito isso, entregavam-se ao repouso (Garg. ,1L., ¢. 23). A tio dréstica mudanga de pedagogia, nota-se o interesse em conju- gar estudo e prazer, alimento ¢ convivio. A glutonaria sucede a frugali- dade. Ao descaso ¢ a preguiga, 0 gosto pelo saber, a disposigdo para a gindstica e para a vida ao ar livre. As regras desse novo método, talvez iceis no inicio, tornam-se, com o tempo, leves e deleitaveis. E tio do di gosto do aluno que 0 aprendizado se converte, a seus olhos, num passatempo real (Garg.,1L, c. 24). Além disso, para descans4-lo da tensao, Pondcrates escolhia, uma vez por més, um dia claro e sereno para um passeio no campo. Ali permaneciam durante todo o dia, comendo bem, divertindo-se, entre- tendo-se, bebendo a larga, jogando, cantando, dangando, rolando na relva, perseguindo passarinhos, cagando codornas, pescando ris pitus. E embora se abstivessem, nessas jornadas, de qualquer leitura, nao as passavam sem proveito. Porque recitavam, de cor, alguns dos bel@ versos das Gedrgicas, de Virgilio, de Hesfodo, do Rustico, de Policiano, e compunham epigramas em latim para depois verté-los ao francés, em rondés e baladas (Garg. ,1L., c. 24). Fundado em sérios prinefpios de dietética ¢ de higienc, o regime prescrito por Ponécrates determina, criteriosamente, o emprego do tempo. A comida, a bebida, 0 sono ¢ oO repouso, 0 trabalho ¢ 0 divertimento af tém sua hora e lugar. Dominio da gula entre os ra cos, a mesa prestigia o convivio & luz da inteligéncia e do espirito. As refcigdes se incluem entre os habitos do homem civilizado, apto a partilhar, em sociedade, o prazer de comer. Desde o nascimento, quando parece convidar a todos a beber, a beber, Gargantua manifestara, como vimos, inata vocacio social. Nao sabia no entanto us4-la com decéncia. As ligdes do pedagogo humanis- ta — porta-voz de Rabelais, instruem-no eficazmente, habilitando-o & convivialidade, despertando-o para a bona-chira. Seu pai, Grandgousier, sempre a cultivara. E dé prova disso quan- do convoca os amigos para a festa de boas-vindas ao filho © ao seu preceptor. Antes de cuidar da estratégia a adotar na disputa contra 68 ss sc OS eM Ni A eco ‘pilaster cations uatanecesn Picrochole ¢ seus inimigos, encomenda a ceia. Faz preceder & guerra & confraternizagao, a comemoracdo jubilosa. Assam-se dezesscis bois, trés novilhas, trinta e dois bezerros, sessenta e trés cabritos, noventa e cinco carneiros, trezentos lcit6es ao vinho, duzentas ¢ vinte perdizes, setecentas galinholas, quatrocentos capdes de Loudun e da Cornuélia, seis mil frangos e outros tantos pombos, seiscentas galinhas, mil é quatrocentos coelhos etc. Como tudo se fez apressadamente, nao hou- ve tempo para a caca, salvo 0 que se péde encontrar 4 mao ~ onze javalis, dezoito animais selvagens, quarenta faisdos e algumas dtizias de aves de varia espécie, presentes, todos, dos vizinhos e¢ amigos. Dispondo de tantos viveres, os cozinheiros se pdem logo a guisar enquanto os eriados servem a bebida (Garg.,1L,, ¢. 37). . Relatam-se 4 mesa as escaramucgas do combate. E divertem-se. todos, & narragio de tretas ¢ faganhas. Cruentas ou nao. Mas, deveras, o que Os move a participar do banquete nfo é a sanha guerreira mas 0 desejo de confraternizar-se, degustando as mesmas iguarias, falando a mesma lingua, exprimindo-se nos mesmos termos, com igual liberda- de de linguagem. O prazer do convivio transforma © furor bélico em tema de conversa, amenizando a violéncia e desarmando os espiritos. Depois de uma batalha, Pantagruel louva a industria dos compa- nheiros ¢ os exorta a descansar, a comer ¢ beber (Pant., 2L., c. 25). Um belo cabrito assado faz com que sucumbam & gula: “Ao diabo a moderagao! Era um triunfo vé-los empanturrar-se!” (Pant., 2L, c. 26). No mesmo livro, os campos inimigos abandonam a luta deixando a0s gigantes, seus senhores, a responsabilidade do combate. Que fazem os soldados? Banqueteiam-se. Reclama Panurge: “Dai-nos aiguma coisa para comer na vossa companhia enquanto nossos reis se batem” (Pant., DEED 9) Mediadora dos conflitos, a mesa une os contrdrios, estabelece a concérdia, favorece aliangas em nome da civilidade e da boa vizinhan- ga. Extrapolando 0s limites da mera subsist@ncia, afirma-se como cadeia necessdria no sistema de valores sociais: integra a prépria hist6ria do homem alinhando-se no cinon que'rege a ética da paz e da guerra. Se com Gargantua acompanhamos, pari passu, a aprendizagem do codigo pessoal da urbanidade, somos introduzidos, com Pantagruel, nas formas de comportamento comunitario. Na educagio do gigante, Poné- crates busca a armonia do corpo e do espirito. Sua agao pedagégica alcanga o fisico sem descurar-se do intelecto e, muito particularmente, 69 | das artes da palavra. Ao refinamento dos sentidos, 0 dominio da Ifngua junta a fruicdo do léxico pertinente. Cada brinquedo, cada fruta, cada emogiio tem nome préprio, inaliendvel, e é provado e degustado de per si, “na sua tinta”. Com Pantagruel vamos além: 0 territério e a vontade de poder esto em jogo. A margem do humano e das dimensées normais, nfo se pode no entanto negar que a hipertrofia a que assistimos na utopia de Rabelais nao faz sendo repetir, em escala grandiosa, 0 mecanismo social. E a comida, sempre presente, figura como elemento de base, alicerce de consolidagio da energia popular. O que demonstra a importncia do prazer ¢ o equivoco dos defensores de uma moral coercitiva, hostil as exigéncias do corpo, seja individual ou coletivamente Na louvagaio a Gaster, “‘nobre mestre das artes”, Pantagruel observa quanto lhe devemos, desde a arte da forjae da agricultura, passando pela estratégia militar, pela medicina e pela astrologia, pelas matematicas ¢ pela engenharia, pela astronomia e pela meteorologia. Ao contrario de Homero, que impde a Ulisses a atroz tirania do est6mago, insuflando-lhe a consciéncia dessa servidao, Rabelais descor- tina ante Pantagruel o vasto panorama de suas realizagdes oferecendo- lhe infinitos motivos para elogiar-lhe “o zelo” (QL., c. 61-62). Para refutar a mitologia e os enredos fantasiosos da Antigilidade, Rabelais encontra na primeira e mais urgente necessidade corporal 0 seu melhor argumento: é ela o mével das ciéncias e das artes, de todo gesto em prol da sobrevivéncia, da manutengio e do progresso da humanida- de®, Responsavel pelas invengdes, pela obstinagaio no trabalho, pela pertindcia diante dos flagelos e da adversidade, pela disposicao na luta contra os inimigos, o ventre dirige e comanda os atos humanos. Plutarco tinha razdo; sem a mesa, qualquer casa se arrufna. Mas que se guardem os homens de todo excesso: sua gl6ria ou desgraca depende- r4do bom ou mau uso que dela fagam. Pensando nisso, Ponécrates impde ao discfpulo uma série de regras 10. O humanista Stuckius, do século XVI, corrobora a opinitio de Rabelais: “As refeicdes, afirma, ramificam-se em todos os setores da vida humana, expandindo- se a todas as atividades, a tal ponto que nao h4 ocupagio que delas nao se faa preceder, acompanhar ou seguir <...> Outrora e ainda hoje, nada acontece, em piblico ou privadamente, no Ambito doméstico e militar, religioso e profano, sem que intervenha a refeigio” (Jo, Stuckius, Antiquitat um convivialiun libri fll <...> Zurich, J. Wolphius, 1597, p. }2v. Apud Michel Jeanneret, Opus cit., p. 36). 70 i |, odiistnaaiai a l be S lbaianl an nn Et de higiene e dietética. Sem rigidez excessiva e com notavel sabedoria, Informado pela ciéncia da época, dosa-lhe a alimentagao, alterna estudo e repouso, atendendo as necessidades fisiolégicas. Busca, especialmen- te, o equilfbrio dos “espiritos vitais.”!" Muda, nos dias chuvosos, 0 programa didatico: nao saem a passcio para ndo expor-se A umidade, acendem a lareira. Durante toda a manhi permanecem em casa e fre- qientam, & tarde, ambientes fechados. Optam, a noite, por uma alimen- tagdo mais frugal que de costume, dando preferéncia aos alimentos magros e secos a fim de corrigir os males causados pelo ar timido, Qual a chave do éxito de Ponécrates? A moderagiio. O equilibria entre o trabalho intelectual, os exercicios fisicos e a nutri¢ao é a melhor receita para o progresso no aprendizado e garantia efetiva de boa sadde, Foi 0 que sucedeu a Gargantua: viveu bem, e feliz, e teve a ventura de ver assegurada a sua descendéncia. Pantagruel, seu filho, nasce empelicado ~ 0 que € certeza de boa-sorte. Tal como o pai, manifesta, — desde o nascimento, apetite voraz: bebe, a cada refeigio, o leito di quatro mil e seiscentas vacas. Como o pusessem a mamar numa vac! devora-lhe, de uma feita, os dois ubres, a metade do ventre, com 0 figado e os rins, e teria certamente engolido o animal inteiro se nfo tivessem acorrido os criados a seus horriveis mugidos. E embora nilo soubesse ainda falar, o gigantezinho expressava grande contentamento dizendo ~ “Bom! bom! bom!” ~ como se pedisse mais. ,E nao foi essa sua dnica proeza. Um ursinho desastrado nao teye | melhor destino que a sua ama de leite: comeu-o-num abrir e fechar de olhos como se fosse tira-gosto (Pant., 2L, c. 4). Curioso e inquieto, Pantagruei logo substituiu a avidez da comida _ pela avidez do conhecimento. Depois de conhecer as universidades de Poitiers, Toulouse, Montpellier, Valence, Bourges e Orléans!? e de Il. Segundo Aristétcles, Xenofonte ¢ Galeno, citados por Rabelais, os espfritos vitais tinham a sua sede no coragao; cabia-Ihes assegurar as fungdes do organismo; podiam tender para 0 cérebro (éntentio) ow repartir-se pelo corpo (CF Rabelais, Gargantua, 1L., €.10, n. 24, p.71). universidade, depois de deixar, em 1527, 0 priorado de Ligugé: clérigo erral passa por Bordéus, Toulouse, Bourges ¢ Orléans antes de deter-se em Paris, Em setembro de 1530 ja se encontra em Montpellier, matriculado na Faculdade de Medicina, onde Paniagruel pensara estudar mas desistira porque “os médica cheiravam, como diabos velhos, a clister” (Pant., 2L., ¢. 5). 71 aprender a danga c a esgrima ¢ ler com muito gosto os textos das Pandectas, decide-se a visitar, sempre na companhia de Epistemon, seu preceptor, a famosa universidade de Paris. B faz ali grande pro- gresso porque “sua memoria era capaz de conter doze odres € tonéis de azeite de oliva” (Pant., 2L., c. 8). E ent&o, num encontro com alguns escolares na Abadia de Santo Anténio, que conhece Panurge, seu amigo dileto. Ladr4o, beberrao, desonesto, parasita mas, “au demeurant”, um bom sujeito. Misto de gracioso e picaro espanhol, Panurge vive de expedientes. Cinico, maldoso, debochado, cabe-Ihe completar a for- magio do jovem universitério. De Epistemon, o gigante aprendera a ciéncia, de pouco préstimo para a vida pratica. Panurge se incumbe de incorporar aos seus conhecimentos o saber de experiéncias feito: é a sua escola do mundo. Tao logo conhece aquele que se tornaria seu protetor, fala de sua necessidade mais urgente — comer. E diz sem ambages: “dentes ponti- agudos, ventre vazio, garganta seca, apetite estridente, tudo esta af. Se quiser que eu trabalhe, ficara pasmado, ao yer-me engolir, Pelo amor de Deus, ordene isso!” (Pant., 2L., c. 9). Como desejasse casar, Pantagruel aconselha-o a buscar no sonho a re@posta desejada. Exorta-o, entanto, a nao comer & noite: segundo Amphiarus, vaticinador antigo, quem desejasse receber em sonho seus oraculos deveria passar um dia sem comer ¢ trés dias sem beber vinho. Fiel as ligdes de Ponédcrates, o préprio Pantagruel confirmaria a sabedoria desse preceito. Repete a Panurge: “Acredito que empanturra- do e cheio de vinho dificilmente 0 homem se torna receptivo as coisas espirituais; nfo estou contudo de acordo com aqueles que depois de longos e obstinados jejuns imaginam entrar mais rapidamente na con- templagao das coisas celestes”. E cita 0 proprio pai, Gargantua, para quem “os escritos dos ermitaos eram tao insfpidos, jejunos e de mau gosto, como eram o seu corpo enquanto os compunham, e coisa dificil era set bom e sereno de espfrito estando 0 corpo em estado de inanigio” (TL., ¢.13). | Usando de bom senso, faz 0 clogio da moderagao e prescreve ao | grande guloso um cardapio adequado aos sonhos premonitérios: nem favas, nem lebres, nem qualquer outra carne, nem polpas (que se cha- | -mam polipos), nem repolhos nem outros alimentos que pudessem ofus- ¢* car-lhe ou perturbar-lhe os espfritos animais <...>, porque 0 espfrito naio i ' i i i i : i i | & | ; i : receberia as formas da adivinhacio pelos sonhos se o corpo, em virtude I da simpatia entre eles existente, fosse perturbado pelos vapores e fuma cas dos alimentos absorvidos”. Eis 0 que Ihe convinha: “peras, uma magi, algumas ameixas secas, cerejas do pomar e Agua da fonte” (TL., ¢ 13). Apesar das precaugdes e do carddpio propicio, 0 sonho nao traz a Panurge o desejado pressdgio: reforga, isso sim, a sua aversdo a toda forma de temperanga. Socorrendo-se de um addgio de Erasmo — “Ventre faminto nao tem ouvido”, opde-se tenazmente a Pantagruel, defensor da frugalidade: “peste! € um erro. E um escAndalo contra a natureza. <...> Ao por do sol ela nos diz docemente: ‘Meus filhos <...>, chega de trabalho! A noite cai: cessem a labuta e restaurem-se com bom pao, bom vinho, boas viandas, € tratem depois de divertir-se, deitar-se e repousar-se, para estarem, amanhi, descansados e alegres, como antes, para o trabalho’ ” (Ciyeds): Para comprazer o amigo, ¢ curar-lhe a febre ndbil, Pantagruel em- preende, com a bengiio do pai, uma longa viagem ao pats da Dive Bouteilte a fim de obter o ansiado augtirio para o seu casamento. Nesse percurso aventuroso aportam & Ilha dos Paios'? onde assistem a uma batalha culindria. Verdadeira odisséia bufa, 0 Quarto Livro aborda satiricamente 0 tema da comida. O primeiro alvo da critica de Rabelais? A glutonaria dos frades'*, 13. Traduz-se freqtientemente andouille por chourigo. Mas quem entende de cozinha, sabe que 0 chourigo é feito do sangue do porco, o que no acontece 4 andouille. A boa andouille francesa, de Vire, por ex., € um enchido de tripas e came de porco em tripa grossa. Nao temos, no Brasil, coisa semelhante. Embora feita com 0 intestino grosso, a andouille nio tem o mesmo sabor do paio, anossa “lingiiiga de padre”. De qualquer modo, a tradugao mais aconselhavel ainda me parece, salvo melhor juizo, paio. Chourigo? Jamais. 14, Sabe-se que a hostilidade entre as ordens ora freqiiente, Curtius da noticia de uma carta de Bernardo de Claraval com duras censuras a gulodice dos ciuniacenses: “Pratos ¢ mais pratos so servidos. Abstém-se de carne, mas, em compensagio, ha duas porcées de peixe... <...> Quem poderia dizer quantas receitas ha (para calar outras coisas) somente no preparo dos ovos, com que diligéncia chegam 4 mesa, escalfados, moles, duros, partidos, ora cozidos, ora fritos, ora rechcados, ora simples, ora misturados com outros ingrediontes? Que direi da Agua potivel, se nem sequer vinho com 4gua é permitido?” (PL, 182, 209. Apud Ernst Robert Curtius, Opus cit., p. 128-129). Rabelais nao limita suas criticas a essa ou aquela ordem:; faz da Igreja caricatura impiedosa. Daf, a censura da Sorbonne - que nao 73 I Personifica-a um certo Bernard Lardon, monge de Amiens, nfo s6 indiferente as belezas de Florenga como furioso contra aqueles que the enalteciam a magnificéncia. Por qué? Porque sua principal preocupagdo era a panga. E n&o encontrando em Florenga os bons assados das tavernas de Amiens, verberava-lhe o atraso (QL., c. 11). Nao é apenas no capitulo “Porque os monges gostam de estar na cozinha”, do Quarto Livro, que se poe em ridiculo a intemperanga dos religiosos. Na sua linguagem irreverente, Panurge lembrara a Frei Jean que monges € conegos observam diligentemente 0 provér- bio claustral — “de missa ad mensam’”, ¢ nem esperam a’chegada do abade para “enfurnar-se & mesa” (TL., ¢.15). Provocado, Frei Jean conta que no seu tempo, depois da higiene da manha, todos “se transportavam A santa capela (pois assim nomeavam a cozinha claustral) e devotamente solicitavam que se pusesse logo a carne de boi no fogo para o almogo dos religiosos irmaos de Nosso Senhor. E eles préprios freqiientemente acendiam 0 fogo debaixo da panela. <...> quanto mais cedo a carne fosse ao fogo, mais cozida mais tenra ficava e menos arruinava os dentes e mais deleitava o palato e menos mal fazia ao est6mago e melhor alimentava os bons religio- sgs. <...> 2 consideragéo de que nada comem para viver, eles vive para comer e nao tém no mundo seniio a propria vida” (TL., c. 15). A gula de Bernard Lardon aduba-se de mais forte tempero: a ignorancia desdenhosa. Indiferente a tudo que nao a satisfaga, Lar- don passeia a sua arrogancia pelas ruas de Florenga. Diante da arquitetura admirdvel, interpela com altivez: “E entio? Que é isso? Casas bonitas. Eis tudo. <...> Andando quatro vezes menos em Amiens, ou trés como fizemos, eu poderia mostrar-lhes mais de quatorze tavernas de assados, antigas e cheirosas. Nao sei que prazer podem experimentar vendo ledes e bichos africanos <...> porcos- espinhos e avestruzes no palacio do senhor Filipe Strozzi. Por Deus, <...> eu preferia ver um bom e gordo gansinho no espeto! <...> esses se prendeu apenas a sua proclamada “obscenidade”. Numa nova edigao de Gargantua e Pantagruel (Lyon, 1541), 0 autor amenizaria consideravelmente os ataques i velha universidade parisiense aos tedlogos. Embora diminuisse, no Terceiro Livro, as criticas aos eclesidsticos, a Sorbonne volta a condené-lo. Assim, no Quarto Livro (1552), dirige, sem qualquer escripulo, farpas venenosas Acorte papal. A reagio nao se faz esperar. Até o Parlamento o denuncia. Obrigado a esconder-se, morre na obscuridade, em abril de 1553 marmores sao belos <.,.> mas para o meu gosto os bolinhos de Amiens sio melhores” (QL., ¢. 11), : Pululam no Quarto Livro, ao lado dessa forma de ironia, caracteriz. des caricalas dos preceitos da Igreja. Sem benevoléncia, Rabelais zg prevalece do grotesco para acentuar-lhes a ignominia Eo caso da guerra entre a Quaresma ¢ os Paios da Ilha dos Paios. Como se confirmara, em 1547, no Concilio de Trento, a obrigatoriedade do jejum quadragesimal, salsichas, paios, lingiigas e chourigos e qual- quer tipo de toucinho tinham sido banidos do cardapio cristo. B previ am-se, inclusive, penas severas aos que 0 quebrantassem. As palavras de ordem de Frei Jean ~ “Bebamos, amigos. E isso, coragem!”, tem inicio a batalha culindria. Seus herdis? “Valentes ane nheiros”. Respondem eles por nomes extravagantes de pratos, condi- mentos, ingredientes, utensiflios de cozinha, ordenados em série como os soldados nas listas de convocagio militar, Sobre alguns deles, o autor inclui noticia especial. Por exemplo: “Mondam, inventor a motho Madame que pela sua invengao passou a ser assim conhecido no jargao dos arqueiros escoceses”. Ou “Robert, que foi o inventor do molho Robert, ao saudavel e necessdrio ao coelho assado, patos, porco fresco. ovo poché, merluza salgada ¢ mil e outros alimentos” (QL., c. 40). A senha combinada? Nabuzardan', se : Sob o comando do capitao, os engenheiros constroem uma enorme porea. A guisa de bandeira, enfeitam-na com um grande copo. Dentro desse engenho formidavel, a imagem e semelhanga do cavalo de Tréia'* embarcam os bravos gucrreiros, dispostos a “viver e morrer” no comba- tc contra os paios. Depois de muitas peripécias, coroadas pelo aparecimento de um porco voador, grande, gordo, bem cevado, cinzento, com asas tao loneas quanto as de um moinho de vento, encerra-se a batalha. A yist0 Go monstro, rendem-se, atemorizados, os paios. Voando c revoando sobre © campo, entre os dois exércitos, 0 porco voador langa mais de vinte ¢ 15. O capitio-general Nabuzardan, que conquistou e saqueou Jerusalém parao rei Nabucodonosor, era cozinheiro. “Mestre-cuea”, segundo Frei leak Em tradug6es antigas da Biblia (nao esté na Vuleata) ha referencias aos seus dotes culinérios (Cf. Ernst Robert Curtius, Opus cit, p.455). ee 16. A eee grotesca da imagem carrega-se, em francés, detom particularmente Ho em virtude da semethanga fonética entre Troie ~ Tréia e truie ~ porca, 75 sete pipas de mostarda e desaparece gritando: “Terga-feira gorda! Ter- ¢a-feira gorda! Terga-feira gorda!” (QL, c. 4 Contra a irritante suficiéncia dos legisladores, Rabelais exercita sua melhor arma ~ a sdtira. Os papimanos, que confundem a religido com o poder — politico © econémico, julgam mais importante ditar regras que seguir os preceitos do Evangelho. Do que resulta a vergonhosa idolatria. Carémeprenant"’ encarna a inanidade dos ritos enquanto Gaster, que Pantagruel compara ao ciclope Polifemo, se transforma em deus de uma humanidade abjeta, cujo fdolo é Manducus"*. Ao epilogo do Quarto Livro, Pantagruel chama Panurge 4 razio, arrancando-o a crendice supersticiosa. Mas é a cle que o autor delega a tiltima palavra: “Bebamos!”, convida pressuroso. E termina af a histéria das suas aventuras®. Situado entre dois mundos, o medieval e o renascentista, Rabelais divide-se entre duas ideologias, opostas em aparéncia, e que a sua fantasia procura conciliar. A criagao de Gaster, ora identificado com o materialismo histérico por grande parte da critica, ora visto camo sfmbolo abominavel do culto de gente desprezivel — “carga inttil da terra”, inscreve-se nessa dupla perspectiva. De um lado, a sua presenga industriosa, idvel de progres- sw; de outro, a sua transformagao em divindade, ventrepotente, respon- sdvel pelo mau uso dos sentidos. Virtude e vicio prendem-se dessarte & sua influéncia. Se a tese fosse - Gaster é o fator preponderante da virtude, porque 17. Caréme-prenant (S. m.) so os trés dias que precedem a quarta-feira de cinzas (0 nosso carnaval). 18. Manducus figura nos destiles procissdes da Idade Média (que ostentavam também Tarascas ¢ gigantes). Entre as fontes de Rabelais —para a Antigiiidade, citam-se Coelius Rhodiginus ¢ Pomponius Festus 19. Um Quinto Livro, postumo, veio juntar-se, posteriormente, obra publicada por Rabelais. Apesar de declarar que “desde o fim do século XVI a autenticidade do Quinto Livro écontestada”, Guy Demerson, responsavel pela edigao de que nos servimos, a inctui no volume das Obras compleras de Rabelais, Declara a propésito: “a superioridade evidente que esta colegdo de capitulos apresenta em comparagio com as contrafagdes ¢ pastiches anteriores € mesmo em comparagio com as Grandes crénicas iniciais, justifica uma publicagao que testemunha, pelo menos, a influéncia estilistica de Mestre Frangois” (Opus cit., p.783). Preferimos, contudo, concluir nossa andlise no convite com que Panurge encerra 0 Quarto Livro. i i i £ ; i ; ; — instiga ao trabalho, e sua antitese — G destruir a ultima proposigao de vez que o vicio Corrompe e aniquila a virtude. Mas, haveria ainda a considerar a “razio dos efeitos” — a “gradagéo”. E, nesse caso, submetendo a virtude 2 vontade de Deus, autoridade de que advém, para Rabelais, 0 tinico poder, encontrarfamos uma solugao dialética, favordvel a gaster (com minuscula mesmo). E teriamos também dissipado a perplexidade de um Mikhail Bakhtine para quem existe “uma profunda contradi¢ao interna nessa figura para a qual Rabclais ndo conseguiu encontrar uma verdadeira solugao.”" Pecado € transformar o prazer inocente em glutonaria, desvirtuando os propésitos da criagdo divina: Deus tudo oferece para a nossa alegriae para a nossa salva¢io. Por que contrariar-Ihe os propésitos € converter em fim 0 que € meio? Sao os gastrélatras que, sob a diregdo de Mandu- cus, subvertem a ordem da natureza, sacrificando a Gaster e obedecendo ao seu comande. Endeusado, que faz o ventre? Obriga os seus seguido- res a ver, observar e contemplar a divindade contida nas suas fezes ea filosofar sobre ela. A moral da hist6ria? Escatoldgica e medieval, claro: as obras de Deus sao, também, matéria de discussio filos6fica... As metdforas que associam a comida, a mesa e o Languete as ativida- des humanas estabelecem relagdes de reciprocidade com as fungdes fisiolégicas. Enquanto elementos de representagdo do humano, ainda que “demasiadamente humano”, conformam-se as leis divinas © consti- tuem uma s6lida unidade dentro do universo tabelaisiano. Cristo que era, inteligente, Iticido, Rabelais nfio teme nem as idéias nem as pala- wras. E ndo recua diante de qualquer interdicdo, seja el as 1a eclesiastica ou Iéxi . Por isso, © obsceno nao existe no seu diciondrio, Os similes usados para ilustrar a fome, o apetite, a salacidade alcan- gam excepeional dimensdo porque a amplitude do vocabulério manipu- lado Ihe permite anular a distancia entre os termos da comparacio, criando objetos, animais, emogdes e sentimentos inéditos. A seus neolo. gismos hiperbélicos correspondem outras tantas situagGes hiperbélicas. A fascinacao que sente pelas nominatas, pelas listas, pelas colegdes e desdobramentos vocabulares, apresentados ad nauseam, dio a medida da sua imaginagdo avassaladora. Quando, no mar do Gelo, alguém Propoc a Pantagruel que se conservassem no éleo “les mots de gueule” — 20. Opus cit., p. 299. aster € 0 fator preponderante dy vicio porque leva a idolatria, terfamos, como sintese, a necessidade de as palavras da gocla ou a linguagem gastrondmica, sua recusa define a posigio do autor: “nao o quis, dizendo ser loucura fazer reserva daquilo que se tem sempre a mao, como les mots de gueule entre todos os bons e alegres Pantagruclistas” (QL,c. 56) Nao ha portanto disciplina nem limites a estabelecer. A propria voz do narrador — observa-o Michel Jeanneret ~ adquire novas infle- xOes e tende a animar-se, com todo 0 texto, quando penetra a zona semantica do alimentar. B anota ainda o mesmo eritico: “O campo lingiiistico da alimentag&o convida a numerosos jogos em que a assim, a criagdo neolégica por enxertia, iniciativa cabe as palavras por derivagéo ou por metéfora, As palavras da cozinha prestam-se também a analogias engracadas e a surpreendentes transferéncias a outros campos semnticos: a vida organica <...>, 0 prazer erdtico <...>, a gesta militar <...>, sem contar a atividade literdria <...> € as depreciaga: Certo, Os amigos de Pantagrue! tudo reduzem a apetite acentuan- do a representagao de suas necessidades. E é desse estimulo vital que dependem a unidade e a verve do Quarto Livro: fundem-se nele, metaforicamente, episddios tio diversos como o de Panurge e os Airneiros, 0 de Quaresmeprenant, 0 da batalha culindria, 0 dos papi- manos e o de Gaster, compensando a dispersdo temdtica numa bem travada alianga semantica. A presenga de um idioleto da goela ~ original{ssimo, se bem que, a muitos respeitos, t(pico da época” -, justificaria, no correr dos séculos, a patologia da gula, suscitada pela obra e assacada ao autor. Do nascimento de Gargantua a sua formagdo e maturidade, do nasci- mento e formagao de Pantagruel as suas viagens, quando se perfaz o seu amadurecimento, desdobra-se uma série de variagdes em torno da comida. As analogias gastronémicas multiplicam-se indefinida- mente, a0 modo de leit motiv, orientando 0 enredo ¢ sustentando a narragao. 21. Opus cit., p. 97. 22. As metaforas do corpo ¢ as metdforas alimentares nfo sdo estranhas 4 ‘Antigiidade nem tampouco a literatura européia do Renascimento. (Cf. Emst Robert Curtius, Opus cit., p.140-144). © latim macarrénico, de burla, também conhecido e praticado pelos autores medievais ¢ do primeiro Renascimento, informa em grande parte as criagdes, mesmo em francés, de Rabelais. Mas, por fas ow por nefas, sua obra resiste 4 concorréncia e mantém, intacta, a originalidade. 2B | | | Se Rabelais nao tivesse respirado o ares da liberdade, longe do aristotelismo e da teologia dos sorbonmards”, teria certamente pago tributo ao classicismo ou se deixado enredar nas teias da moral ne reformista (mais do que contra-reformista). Nada disso sconiecet Depois de abandonar o hdbito de monge, fez-se sacerdote secular. médico e professor, freqiientou os circulos intelectuais de Roma are rou-se das mudangas por que passava a sociedade, compartilhou cn oO povo as asperezas e a alegria de viver. Caixa de ressondncia das contradigdes éticas do século, dos confli tos eclesiasticos e das surdas disputas monacais, a parédia dos herdis- gigantes reage satiricamente ao rigorismo e a negacao ascética dos peazeres do mundo. Modus in rebus!, parece proclamar o autor. Indene a escripulos literdrios ¢ religiosos, seu pensamento concilia, como 0 bs escritores espanhéis do século XVI, a tradigao ctistd c a sabedoria da Antigiiidade. Fugindo 4 maquinaria épica, nao deixou contudo de escre- ver a sua gesta popular, colorida e saborosa. No capitulo 27, de po gruel, eon ase uma pequena mostra da habilidade com que desarti- cula o épico. Isso acontece apés a celebracio de uma vitéria des amigos do gigante contra sciscentos e sessenta cavaleiros. im pee de partir, Pantagruel crige, com as armas do combate, um belo troféu. E, para eterna meméria dos seus heréis, escreve o ese vitorial: a “Poi aqui que a coragem apareceu De quatro bravos e valentes campedes, Que de bom senso, nao de arnés vestidos, Como Fabio ou os dois Cipides, Fizeram seiscentos infantes, Poderosos canhées, arder como cortiga Aprendei todos vés, reis, duques, torres e pedes, Que 0 engenho vale mais que a fora Porque a vitéria, Como é notério Nao acontece sendo na hora Do Consistério 23. Adjetivo pejorativo apli a e: ena ji plicado aos estudantes e doutores da Sorbonne (apartirdo 79 {b Quando reina na gloria O alto Senhor, Vem, nao ao mais forte ou maior, Mas aquele a quem clege. como se cré, Para fortuna e honra Daquele que pela {é nele espera.” Mas enquanto © rei compunha a sua ode. Dey Panurge a empenhaya em levantar bem diferente troféu: a caga com ue se linham regalado. Pendura, numa estaca, os chifres, a pele s os pés do cabrito, as orelhas das trés lebres, as costas do coelho, uma garrafa de vinagre, um corn de sal, um espeto, um caldeirio furado, uma escova, um saleiro ¢ um cancco de Beauvais. Depois, & imitagiio dos versos do rei, escreve: “oi aqui que puseram 0 ass Alegremente quatro valentes beberrées, Para banguetcar-se em honra de Baco Bebendo & larga como grandes carpas. Entio af perden o lombo © 0 trazeiro Mestre cabrito, cada um no seu encalgo. Sal e vinagre, ¢ também escorpides, O persigam, porque sofreram contusdes, Porque 0 inventirio De uma defensiva No calor, Nao é apenas beber Direto ¢ certo, Edo melhor, Mas comer cabrito, sem vinagre, E disso ter meméria, é desgraca; Vinagre 6 a sua alma e valor, Lembrai-o em caso peremptério.” O tom pico, edificante, do vitorial de Pantagruel tem, na réplica de Panurge, scu contraponto culindrio. O heroismo_a que se refere € 0 de correr atras da caga. E gloria maior € comé-la bem temperada, bebendoa gosto, 80 hii a aul i cea cat il. "... Ao que se vé, nao se pode contemplar apenas uma face da realidade Ainda que de modo grotesco, Panurge nos ensina a considerar 0 oulrd lado da guerra e dos memoriais, vulgarizando 0 conceito de heroismo, Com recursos heterogéneos, advindos das ciéncias e das artes, Rabe. lais logra unir, sem atrito, 0 g0z0 dos sentidos e o epicurefsmo espiritu- al, o riso desbragado da Idade Média e 0 espirito do Renascimento. Aos assuntos sérios, tratados em jarg4o especial, permeia-se a verba coqui- naria. A ruptura do discurso tradicional, privilégio de letrados, seja pela introdugdo de falas estranhas 4 sua compostura, seja pela adogao de formas hibridas ~ da linguagem oral e vulgar e da linguagem escrita ¢ escolar, criam-se condigdes favoraveis & comicidade Atente-se portanto: 0 cémico de Rabelais nio resulta somente de uma hipertrofia estética; aprofunda-se no campo lingiifstico, langando rafzes na estrutura da fala. Tome-se a arenga de Mestre Janotus de Bragmardo, nos capitulos 19 e 20 de Gargantua. Num jargio filoséfico escolastico, o mestre sofista mescla latim macarr6nico e francés, francés latinizado e Jatim, recorrendo a férmulas pomposas, a silogismos class cos ea frases eclesidsticas. Tudo isso inspirado na culindria. Um turbi- Ihdo de teorias contraditérias, de falas e falares, que se excluem e se aglutinam numa verborragia vertiginosa, serve eficazmente ao intuito do autor: criticar a factindia dos sorbonnistes — doutores da Sorbonne, despertar a comicidade. “OQ corte de cabelo & Cesar, 0 capuz a antiga, e o est6mago bem imunizado com marmelada do forno e agua benta da adega”, Janotus arrota erudi¢do: “Pela minha fé, Domine, se quiserdes cear comigo in camera, pelo corpo de Deus! charitatis nos faciemus bonum cherubin. Ego occidi unum porcum, et ego habet bon vino” (Garg., 6.19). Nio ha negar: Rabelais degusta, prazerosamente, as palayras. Alte~ rando-Ihes as desinéncias, juntando-lhes prefixos ou sufixos raros, vi- rando-as pelo avesso, descobrindo-lhes novas fungGes, escandindo-as, correta ou disparatadamente, consagra-se 4 enunciagaéo de um cédigo especial, acometido de verdadeira volipia filolégica Admitindo-se que o léxico das artes da mesa, corrente no Renasci- mento, provenha das ementas da Antigilidade, deve-se a Rabelais nfo s6 a sua recriagdo como a adaptagao a linguagem da época. Nesse caso, a alianga da filologia 4 gastronomia implica muito mais que simples: apreensdo referencial das duas formas de conhecimento: exige compra- misso efetivo com 0 intelectivel ¢ suas repercussdes no sensivel. Trans- 81 cende-se pois 0 dom{nio do ltidico para alcangar 0 da fruigdo (e fruigdo pura, do verbo). Essa paixao criadora, gulosa e fecunda, inscreve os excessos do logos no mesmo registro da sapidez e das orgias alimenta- tes. E nisso talvez resida a satisfagado gastrondmica, a jubilosa ¢ sadia sensualidade dos regabofes de Gargantua e Pantagruel. Enquanto leito- res, tornamo-nos, de fato, convivas de Rabelais. E partilhamos, com direito & degustagao do cardépio integral, do seu “abundante festim de palavras.”** Os ementérios propostos, nas listas ¢ repertdrios — de bibliotecas, como a de Sao Vitor (Pant., c.7), — de profissdes e fung6es (TL., Prol.), — de oferendas ao Deus Ventrepotente (QL., ¢. 59), — de venenos € pegonhas (QL, c. 64) etc. nfo tém apenas valor de documento. Mais do que repositérios lexicos, constituem um repto ao decoro e as regras de formagao de palavras. Numa yoluntaria transgressfo 4 norma € ao USO, declinam-se, em infinitas variantes, termos chulos, inventam-se pretex- tos para empregd-los em situagdes graves, acentuando-lhes o tom bur- lesco. O inesgotavel apetite verbal de que dé mostra o autor s6 encontra parelha na avidez dos comilées que retrata. A estreita relacao entre o virtuosismo lingiifstico e a sensibilidade gustativa confere A sua obra gapel essencial: inscrevendo-a na tradig’o das artes da mesa, Rabelais abre uma nova era na hist6ria da sensibilidade, argilindo 0 léxico e estabelecendo a necessidade de dominio do campo semantico. Alheio as fulguragGes verbais, cético & ponderado, Montaigne mani- pula conceitos. No empenho obsessivo com que devassa a prépria intimidade, expondo-a sem pudor, inquieta-o particularmente a consci- éncia da oposigdo entre a alma e 0 corpo. Avultam aos seus olhos 0 constrangimento causado por essa dicotomia e arelevancia dos conflitos que determina. Mas ... como entendé-la? E como explicé-los? Censurando os fildsofos antigos que ora exaltavam 0 corpo em prejuizo da alma, ora a prestigiavam em detrimento do corpo, agindo, em ambos os casos, “viciosamente”, declara ser possivel conciliar-lhes as exigéncias tal como fizera Platao. E concede & mesa essa fungao conciliatéria. 2A, Ateneu, Les deipnosohistes. Ed. vilingiie, de A. M. Desrousseaux. Paris, Les Belles Lettres, 1956, I, b. Deve-se portanto a Ateneu o titulo do livro de Jean- Frangois Revel, Un festin en paroles (Paris, Jean-Jacques Pauvert, 1979). Embora veja animalidade no comer € no beber © se recuse a altos yoos do espirito quando tem “o corpo 4 mesa” (III, 13), Montaigne nao. deixa de assinalar que essas necessidades “nao impedem as operagdes ge nossa alma” (III, 5). Nao € para comer beber que se reunem ¢ se festejam as pessoas de entendimento? (II1, 13). Por isso, mais importa com quem se come do que aquilo que se come’. Contrério a todo excesso, tampouco Ihe agrada transformar @ comida em mote de divagagées metafisicas. Ao ouvir um italiano dissertar sobre a “ciéncia da gocla” como se elucidasse uma ques- teolégica, adverte acerca do perigo da elogiiéncia inoportuna, Cada coisa em seu tempo e lugar, na linguagem que Ihe ¢ propria & com o selo que a distingue. Para os males da incontinéncia verbal, que receita o autor dos Ensaios? Boa dose de parciménia. De que nao parecia servir-se 0 criado do Cardeal Caraffa a quem socorrem, para falar de pratos, mothos e ingredientes, as mesmas palavras que se usam para tralar do governo de um Império (LI, c.1). Assim € que ao redigir 0 seu diario de viagem, Montaigne anota, — com propriedade e sem qualquer afetagdo de estilo, as peculiarida- des dos usos e costumes dos paises visitados. “O primeiro dos nossos grandes repérteres”, como o qualifica Auguste Bailly, nio contrapée, aleatoriamente, méritos e defeitos de faci] mengao: estu- dioso do comportamento humano, procura antes satisfazer a prd- pria curiosidade do que aventar teorias e sinteses sociolégicas como € do gosto dos viajantes letrados. A mfngua de um modelo ideal - o pais que sé existe nos sonhos dos turistas, ¢ a que habitu- almente se reportam quando no estrangeiro —, toma a Franga por termo de comparagao, porque, no seu sentir, suscetivel dos mesmos vicios e imperfeigdes das terras que percorre. Da Alemanha, louva os albergues e hospedarias. Chama-lhe a aten= cao a abundancia de sopas, molhos, saladas. Refere-se o seu secretario acolhida que tiveram em Lindau: “Serviram-nos sopas de marmelo ¢, outras, de batatas cozidas, cortadas em rodelas, e saladas de repolho, 25. Montaigne coincide, nesse caso, com Cilon, citado, e com o Arcipreste de Hita, que nos remete a Séneca ca Epicuro, num dos aforismos do Libro de buen amor: “Bem anda Séneca (Ep. 19) a0 louvar Epicuro, quem disse nada menos que devemos prover a mesa de melhores companhias do que de saborosos manjares” (Opus cit, vol. 1, p. 110). sem pio, de diversas espécies, como de Fazem também caldos grosso: arroz, onde cada um pesca, pois todos se servem em comum (porque nao ha servico individual), e tudo isso, de tio grande bom gosto que as cozinhas da nobreza francesa mal se Ihes podem comparar.”””6 Interessa-se, na Basiléia, pelo servigo 4 mesa: as canecas de vinho nunca ficam vazias e as carnes, bem preparadas, vém misturadas, umas sobre as outras. Os lagostins, pelos quais tém os sufcos grande estima, sao acondicionados em prato coberto, passado entre todos. Os pratos de madeira so os mais comuns. Mas h4 quem prefira os de estanho, sendo que o dltimo servigo, o das frutas, € sempre em prato de madeira Surpreende-se ante a prodigalidade da mesa, suntuosamente coberta, ea quantidade de carne, peixes, viveres em geral””. Merece-Ihe a Itélia bem maior atengao que a Suga e a Alemanha Detém-se extensamente na descrig&o dos servicos, fala do conforto, e também do desconforto, das acomodagées, descreve 0 luxo das casas patricias ¢ dos castelos italianos. Conta que “em Roma hé menos peixe que na Franga e principalmente as solhas, que nao valem nada, so consumidas pelo povo. Raramente tém linguados e trutas; os barbos, muito bons e maiores que em Bordéus, sao caros. Os dourados tém pregos altos; as tainhas, maiores que as nossas, tém a carne um pouco gnais firme. O azeite é tio bom que aquele travo que me fica na garganta, quando me excedo no uso, nao o sinto aqui. Comem uvas frescas 0 ano todo... O carneiro nao presta <...> Nao hd menor quantidade de carne que na Franga embora se diga 0 contrario; apesar de néio envolyerem os assados em toucinho, esses nao perdem 0 sabor.””* HA, ainda, anotagdes curiosas sobre a neve que se misturava ao vinho, sobre os vinhos agucarados que Ihe provocaram enxaqueca. Sobre a neve: ja convertida em gelo, para uso durante todo 0 ano, conservada debaixo da terra, sobre um leito de giesta, bem coberta com visgo, em forma de piramide, como uma pequena granja” 26, Michel de Montaigne, Journal de voyage en Italie par la Suisse et l'Allemagne en 1580 et 1581. In Oeuvres completes. Paris, Gallimard, Ed. dela Pléiade, 1962, p.1.146-1.165. i 27. Idem, ibidem, p. 1.130+1.132. 28. Aconselha-se a leitura do diario completo de Roma (/dem, ibidem, p. 1.203-1.241). 29, Idem, ibidem, p. 1.194. Ta Nao Ihe basta contudo o mero registro das notas culindrias. Precay|- do, contratara, antes de deixar a Franca, um cozinheiro. Nao para seryi- Jo durante a viagem mas para familiarizar-se com os pratos tipicos e poder, de volta a casa, reproduzi-los com fidelidade™ Apesar disso, nao se pode dizer que estejamos diante de um gastr6- nomo arraigado. Vitima de doenga renal, que Ihe motivara a peregrina- go as inelhores estagées termais da Europa, dispéptico com certeza, Montaigne nao poderia apresentar-se como grande guloso. Sua gastro- nomia, de diletante de génio, é antes intelectual, excogitadora, que fruto de avidez compulsiva. Francés, gas encarece-Ihe a importancia civilizadora, Porque ensaista—o ensaista por exceléncia, aborda a realidade. Mas “esta realidade deve ser, (do perfeita quanto possivel, uma realidade psfquica, deve ser uma forma”. E viven- do cle “o contetido psiquico de modo indireto ou inconsciente, exprime as formas”™ por que se manifestam os sentidos, Assim sendo, nao poderia ignorar 0 gosto nem deixar de comunicar ao leitor suas observa- Ges sobre essa “paixdio” francesa”, Fonte recorrente de inspiracao, 0 corpo e a fisiologia oferecem-lhe similes e metaforas, afeicoando-Ihe nao sé 0 pensamento mas 0 estilo, Ao falar do que escreve, declara instalar-se, inteiro, nesse projeto de autoconhecimento: “é um skeletos onde, de uma olhada, as veias, os miisculos, os tenddes aparecem, cada um no seu lugar” (L.II, ¢.VI). A maneira de um cozinheiro, prepara 0 seu “guisado” (LI, ¢. 13), com receita prépria, original. Os ingredientes? Secreta-os cle mesmo, tanto que chama os ensaios “excrementos de um espirito velho, as vezes duro, as vezes mole, sempre indigesto” (L.II, c.9). Procura escrever como caminha, ao sabor da curiosidade e das solicitagdes do percurso, Diz: “E preciso que a minha pena ande como os meus pés (L.IMT, c. 9). B 0 passo natural que Ihe regula o estilo: “Quero que vejam o meu passo natural e ordinério” (LI, c.10). A falta 30. Idem, ibidem, p. 1.146. io, € humanista, cultua a mesa e 31. Ver Eduardo Frieiro, “Prestigio do ensaio”, in Torre de papel. Motivos literévios. Belo Horizonte, Imprensa/Publicagdes, 1969, p. 91. 32. Ver Theodore Zeldin, Gottt et corruption, in Histoire des passions frangaises : 1848-1945. Trad. de Catherine Erhel ¢ Michéle Causse, Paris, Ed. du Seuil, 1979, Se bem que essa histéria abarque o periodo de 1848 a 1945, pode-se verificar que a “preeminéncia que os franceses outorgam aos prazeres da mesa e 4 dissertagao desses prazeres” se enxerta na prépria tradigdo do pats. = de destinagdo precisa, uma vez que € 0 caminhar ou gravitar em torno de si mesmo que o move a escreyer, todas as suas reflexdes contém, in nuce, a sua finalidade. Jamais se apressa: desconhece a ansiedade da hora exata, no lugar certo. Ali, onde se encontra, € sempre seu destino. E isso nao acontece apenas nos Ensaios. As demonstragdes de impaciéncia dos companhei- ros de viagem, figis a rotas e itinerarios ja tragados, contesta nao ter em vista outro fim que o de comprazer-se aonde quer que 0 conduza a curiosidade. Avesso a divagagiio inconseqiiente, Montaigne eleva 6s “propos de table” a tema de suas cogitagées furtando-se entanto ao amaneiramento dos aficionados. Filosofa sobre a alimentag&o sem sobrecarregar 0 estilo com 0s artificios comuns a prosa dos gastronomos do Renascimento®, A questo moral — como viver?, os Ensaios nao dao resposta transcendente nem gloriosa. Implicita na sua maneira pessoal, e singularfssima, de comportar-se, ensina a olhar a realidade afinando os desejos as exigén- cias da alma. Contra os médicos, e também contra os moralistas, Mon- taigne defende a legitimidade dos prazeres: “O tiltimo fruto da minha satide — revela ~ é a voltipia”. E explica: “Acho que é mais saudavel gomer bem e menos, e comer mais freqiientemente. Mas gosto de dar importancia ao apetite e A fome <...> Quem me assegura que a disposi- go que sinto nesta manh eu ainda a encontrarei A ceia?” (L.IIL, c. XII). Dispondo com sabedoria a fome e o apetite, a volipia e a virtude, Montaigne logrou realizar a sintese perfeita dos prazeres “intelectual- mente sensiveis, sensivelmente intelectuais” (L.I[I, c. XII). Que mais se pode desejar? Por miiltiplo e variado que seja 0 meio no qual se move o homem, ha constantes as quais nao foge nem pode fugir. Suas reagdes nao sdo por isso diferentes daquelas dos seus contemporaneos embora sujeitos as mais diferentes latitudes e expostos 4s mais estranhas influéncias™. 33. Pratica a “prudéncia soberana de filosofar sem parecer filosofar”, como pregava Plutarco (Le banguet des sept sages, Trad. de J. Defradas, Paris, Klincksieck, 1954, p. 195). 34, Essa limitagiio de respostas, que condicionaa visio do mundo aumcerto nimero de varidveis, parece tio inerente A criatura humana que h quem a identifique, no correr dos séculos, como expressao de uma “situagao historica transposta ao plano dos grandes problemas fundamentais que propdem as relagdes do homem cont os outros homens e como universo”. Vale dizer: o acervo de que dispée o acompanha 86 ite Comprova-se no Renascimento, melhor talvez que em qualquer outra época da hist6ria, essa constdncia. E se empreendéssemos, como quer Lucien Goldmann, 0 estudo da sua “tipologia das visées do mundo”, avultaria a dominante epicurista. Vis&o a que se renderia Rabelais, por obras e artes do sensualismo libertino, e a que nao se furtaria Camées, acometido por uma extremada deleitacdo vital. E Montaigne? Comedi- do, frugal, tampouco escapa a trama em que se urdem as relagdes dos intelectuais renascentistas com a situacdo histérica. Orientados na dire- go das grandes correntes do século, reagem, semelhantemente, os trés escritores. Mas convém precisar: se afeigoam 0 pensamento a um certo ndmero de constantes, preservam, intactas, as diferencas naturais que os distinguem no trato com a realidade. Nao, Camées nao leu Rabelais. E, hoje, isso importa pouco. Jé em 1950, na sua andlise magistral do grande poeta portugués, referia-se Hernani Cidade as coincidéncias encontradas nas obras dos “dois géni- os”. Roger Bismut voltaria a abordar 0 assunto em 197i vendo em Camées um “contempordneo € quase concidadao do nosso Rabelais”, E ambos os professores abordam, no caso, a matéria mitolégica que serve de pretexto (ou mesmo de 4libi) para veicular a visio do mundo dos dois cristdos®. sempre (independentemente do tempo, do meio e do lugar). Mas atengdo: essa constdncias6 se verifica “num certo németo de problemas fundamentais”.provenientes de“situagdes historicas vividas pelo homem, ainda que distintas emiesmo contrérias” (Lucien Goldmann, Le Dieu caché. tude sur la vision tragique dans les Pensées de Paseal et dans le thédtre de Racine. Paris, Gallimard, 1959, p.30). 35. Trata-se da tese do prof. Roger Bismut, apresentada 4 Sorbonne em 197i € defendida sob o titulo Les themes lyriques dans Les Lusiades de Camies. Publicada em 1974, sob o titulo Les Lusiades de Camdes, confession d’un poste, pela Fundagao Calouste Gulbenkian, de Paris, édedicada a memoria de Hemani Cidade (0 que evidencia a posi¢io do autor). 36. O prof. Roger Bismut fala, inicialmente, de “hedonismo” (p. 80). O que, salvo melhor juizo, nos parece arriscado em se tratando de Camées, Nao ¢ o hedonismo a doutrina que toma por principio tinico da moral a busca exclusiva do prazer, com eliminagio da dor, considerada a sua intensidade afetiva e nao as diferengas de qualidade que porventura existam entre ambos? (Cf. André Lalande, Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 6* ed., Patis, PUF, 1951, p.410-411). Refere-se depois ao “epicurismoprofano”(p. 184) do poeta, Entre as duas doutrinas, inconciliéveis no entanto, no parece decidir-se. Uma coisa 6 certa: considera Camies “um humanista e um homem do Renascimento” (p.185). Fiquemos com essa definigao, 87 Declara Hernani Cidade que 0 uso do “mito, comum aos dois génios, da ameaga de superacdo dos deuses pelos homens, ocorreria natural mente a quem, na atmosfera do Renascimento, tinha presente ao espirito o mundo ideal da mitologia, destinado a fazer versos deleitosos, dar,em paginas de literatura de imaginagao, relevo grato — e, por entdo, novo, — a idéias, sentimentos e factos."” No concflio dos deuses, contesta Baco as razées de Jupiter, defensor dos portugueses, advertindo que “esquecerio seus feitos no Oriente / se [4 passar a lusitana gente”. Teme nao so perder a gléria “de que Nisa celebra inda a memé6ria” como “teme agora que seja sepultado / seu tio célebre nome em negro vaso de Agua do esquecimento, se 14 chegam / os fortes portugueses que navegam” (1, 30-32). Ao louyar as maravilhosas virtudes do Pantagruelion®, Rabelais conta que “as Inteligéncias celestes, os Deuses tanto marinhos como terrestres, ficaram atemorizados vendo, mediante 0 uso desse bendito Pantagruelion, os povos articos, com aspecto de antarticos, atravessar 0 mar Atlintico, passar os dois Trépicos, fazer a volta & zona térrida, medir todo o Zodfaco, divertir-se sob © equinédcio, ¢ ter um e€ outro pélo A vista A altura do horizonte.”” Se bem que tanto & novela francesa como ao poema épico portugués As alegorias miticas tenham fornecido excelente artificio para a livre expressao das idéias, justificando a introdugao de temas provavelmente “escabrosos” ou “indecorosos”, no juizo dos tedlogos da Sorbonne ou do seyero clero de Lisboa, a coincidéncia apontada nao alcanga o tratamento da matéria mitica. A identidade a que aludimos, principal- 37. Hemani Cidade, Luis de Camées. 2! ed., Lisboa, Livraria Bertrand, 1953, “O épico”, vol. II, p.130. 38. Rabelais forja’e scu ncologismo & imitagiio dos nomes das ervas milagrosas da Antigilidade ~ Helenion e Prometheion, inspirados nos herdis gregos. Verdadeira panacéia para todos os males, 0 Pantagruelion se confunde com o linho, louvado por Plinio, o Velho, mas parece-se, de fato, pela sua descrigiio, com o canhamo (a. cannabis sativa), oriunda da Asia, aclimada hoje em quase todo mundo ¢ conhecida popularmente como maconha. z 39. Rabelais, Opus cit., Le Tiers Livre, c.51, p.552. Nao hd, no texto de Rabelais, referéncia explicita aos descobrimentos portugueses mas nao é dificil identificar os feitos de Vasco da Gama, Cabral e Magalhaes ai mencionados (sao eles os “Articos de aspeto antartico”). E o medo das “inteligéncias celestes —marinhas e terrestres”, €0 mesmo de que fala CamGes no Primeiro Canto do seu poema. Se non e vero ... 88 mente qualitativa, se taduz na postura dos autores enquanto ho Renascimento. Ficis 4 lgreja e 4 Revelacao, mas nao por isso allel prazeres do mundo c &s solicitagdes da carne, comportam-se Gof mismo e confianga. Curiosos, inquietos, apaixonados, encarnan 0 do conhecimento —de opulenta crudigao —, resguardada, entretanto, 4 que professam Condicionado por uma semelhante visao do mundo, esse parentesea nem sempre se cristaliza cm analogias literarias: se Rabelais se entrega 4 gostosamente a salisfagao dos instintos, pintando uma série de polipt- cos ao modo de Breughel, 0 Velho, Camies prefere dar aos seus quadroy o colorido sensual de um Tiziano (na sua primeira fase). Na Hha dos Amores, que nos interessa pelo cardter de festa dos senlidos, a natureza comunga da euforia que o poeta procura transmilir ao Icilor, Deslocando-se sobre as dguas ¢ detendo-se, segundo a vontade de Vénus, a ilha ~ a que Heitor da Silveira chamara “Ilha da Boa Vida’ — serve de descanso e recreio as “lusitdnicas fadigas Vénus dispde ¢ o fero Cupido, seu filho, obedece: og bravos naye- gantes s&o esperados por ninfas amoros: aH res, /Com vinhos odoriferos e rosas, Fermosos leitos, ¢ clas mais fermosas” (X, 41). Tudo respira sensuall de. A vista, a audigao, 0 olfato, o gosto co tato af recebem justo "pret e doce gléria” (IX, 39): s “com mil refrescos © ma /Em cristalinos pagos singulare um yale ameno, que os outeiros fende, Vinham as claras aguas ajuntar-se, Onde hua mesa fazem, que se estende Tao bela quanto pode imaginar-se. Mil arvores estiio ao céu subinda, 40. A ilha tem localizagdo real: 6 Itha de Bombaim, conhecida no séeulo XVI como tiha da Boa Vida. O nome Ihe foi dado por Heitor da Sil veira que, seuundo D. Joiio de Castro, “este nome Ihe pos porque andando d’armada nesta cost, o seus soldados tomavam grandes recreagdes © repouso dentro dela”. Div a Cronica que por ali se encontravam raparigas com indumentdria reduzida e que. no Jardim do parque de Garcia da Orta, havia “drvores frutiferas e flores ¢xdticas, em especial da Europa e da América”. Até o século XVII hi noticias di magnificéncia desse jardim — “o mais encantador de toda a india” (Apind Cunha Goncalves, Bstudos camonianos. Porto, 1947, p a 89 & Com pomos odorfferas e belos: ‘A taranjeira tem no fruito lindo ‘A.cor que tinha Dafne nos cabelOs. Encosta-se no cho, que estd caindo, A cidreira cos pesos amarelos; Os fermosos limbes ali, cheirando, Estdo virgineas tetas imitando. Os does que dé Pomona ali Natura Produze, diferentes nos sabores, Sem ter necessidade de cultura, Que sem ela se dao muito milhores: ‘As cereijas purpuireas na pintura, As amoras, que o nome tem de al © pomo que da patria Pérsia Yor, Milhor tornado no terreno alheio” (IX, 55, 56, 58). mores, se pinta com tintas 6li a pai oriental célico, onde a paisagem™ : ee e sentida. Pano de tomadas a Virgilio, @ natureza é mais (ues BE ere cilla y 4 es a, de Alonso de Er ‘ fundo, como na Araucana, ae ak apenas, para animar 0 quadro em que 0 poeta, complacente, eae suas personagens de carne € 0880, OS herdis portugueses, ocast Pp 8 repouso do guerreiro. merecido bee: ae Como vimos, a mesa foi armada. Mas ..- que se come? Que st Ai chegados, 0S “segundos Argonautas” andam em busca i ae : ai isses tha do Entretanto, mals afortunados que @ tripulagao de Ulisses na Tin sbi das” “alvas carnes, subito mostracas he de caga, encontram = @ : se al Ties ae se avam / nuas por entre 0 “deusas despidas, lavam” e que “se lang: ! ie mato, aos olhos dando / 0 que as maos cobigosas a Le ae 71,12) e logo, cansadas de corer, S© rendiam coaNone SS Ha entio “famintos beijos na floresta”. “afagos suaves, WT f em risinhos alegres se tornava” (IX, 83). “41 Leia-seo Canto XVII, Parte 1L(Alonse de. Ercillay Zufiga, La Araucana.2*ed., Madrid, Aguilar, 1955, p- 396-401. 42. Ver p. 27-28. 90 Se O prémio oferecido por Vénus aos navegantes — “deleitosas honras. que a vida fazem sublimada” —, compensa-os dos longos trabalhos, “Porque dos feitos grandes, da ousadia / Forte e famosa, o mundo esta. guardando / O prémio 14 no fim, bem merecido, / Com fama grande @ nome alto e subido” (IX, 88,89). “J4 conformes € contentes”, passam os amantes as “mesas de allog — manjares excelentes”, “de iguarias suaves e divinas”, de “vinhos odor feros” a que nfo faltam “entre um e outro manjar”, “mil praticas ale- gres”, “risos doces, sutis ¢ argutos ditos”, “despertando os alegres apetitos” (X, 2,3,4,5). i desse “mantimento nobre” que se satisfaz “a corporal necessida» de” (X, 75). Ao definir a festa de acolhida aos bravos vardes como “livre expan= sio de mocidades sadias, no alvoroco de sentidos como regressados 0 liberdade da primeira manhd do Mundo, por influéncia da ética pag que os reabilitava”, Hernani Cidade ressalta-lhe, implicitamente, o tom epicurista. Nao deixa porém de acrescentar que “todas estas express0es de lirismo <..> afirmam 0 Poeta de carne e de sentidos, nao a profundi+ dade espiritual subjacente.”" Parece contudo temeréria a declaraco de que se perfila, na Iha dos Amores, © poeta de carne e de sentidos, excluida a “profundidade espiritual subjacente”. ‘A satisfagdo das paixdes, desejada e pregada pelo epicurismo, tem fim preciso: a felicidade. A moral crista frustra esse desejo: enderegan= doo homem no caminho da virtude, ensina que a felicidade s6 é possivel em Deus. Que faz Camdes? Mostra os navegantes ansiosos por “chegar ag patria cara / A seus penates caros e parentes, / para contar a peregrina rara / Navegagao, os varios céus e genies, / Vir a lograr 0 prémio que ganhara, / Por tao longos trabalhos e acidentes, / Cada um tem por gosto — tio perfeito, / Que o coragao para ele € vaso estreito” (IX, 17). Se temo caminho desviado por Vénus, para contentamento ¢ solaz na Ilha dos Amores, nao se Ihes pode imputar pecado ou vicio. O prémio que buscavam era outro, bem outro. A deusa Cipria decidiu “Para prémio de quanto mal passaram, / Buscar-Ihe algum deleite, algum descanso, <> Algum repouso, enfim, com que pudesse / Refocilar a lassa humanidade — 43. Hemani Cidade, lugar cit., p. 189. 91 (94) 9283-44227 3214-999 I / Dos navegantes seus, como interesse / Do trabalho que encurta a breve idade” (IX, 19,20). Os “mil deleites, nao vulg; am 'a beleza ao prazer, a sensualidade ao requinte do espitito. Para conciliar a virtude dos destemidos vardes e 0 gozo das “necessidades corporais”, 0 poeta junta a deleitagao dos sentidos a deleitagao estética. E isso tanto acontece quando se consomem no fogo da “ira hones- ta” como quando se regalam @ mesa com “nobre mantimento”: dio ingénuo recreio aos “longos trabalhos e acidentes”. E 0 fazem com tamanha inocéncia que parecem incluir o fornicar © comer entre as “cousas que nos foram dadas / nde para ser amadas, mas usadas” (IX, 25). Ai estd: os corpos formosos, sadios e jovens, as divinas iguarias, belamente apresentadas, nfo sugerem transgressio X moral. Sob os auspicios do maravilhoso e a sombra das emogGes estéticas, eximem-se as necessidades corporais da vil concupiscéncia. Os elementos decorati- vos da Ilha dos Amores, pitorescamente bucélica, servem mais 4 forma gue ao contetido. Inspirado na estética cldssica, o seu paganismo justifi- cao mergulho na realidade, artificiosamente desumanizada. Encomendado por Vénus, para favor dos seus protegidos, o festim s4iviria, segundo a deusa, para refocilar-lhes a “lassa humanidade”. Servido apds os jogos amorosos, o banquete restaura-lhes “a cansada natureza”, A mesa, no entanto, nao se manifesta a avidez com que, ac desembarear, se haviam lancado os “fortes mancebos” em perseguigdo as ninfas. O que era imprudéncia, afoiteza, cobiga, fogo, excitagio, fome, troca-se em conversa amena. F, diante dos manjares, em “alegres apetitos”, nenhuma sofreguidao, nenhuma pressa. Caberia perguntar: haveré diferenga entre as duas recepcbes — a que pretende recrear-Ihes “a lassa humanidade” ¢ a que visa a revigorar-lhes “a cansada natureza”"? Parece que sim. Camédes s¢ estende na pintura dos frutos e das piantas da ilha paradisiaca, alonga-se na descri¢o dos embates amoro- S08, recorrendo a similes erdticas de precisio freudiana", mas precipita 44. Leia-se, por ex., a estrofe 74, do Canto 1X: “Qual cio de cagador, sagaz € ardido, / Usado a tomarna aguaa ave ferida, / Vendo 6 rosto 0 férreo cano erguido / Pera.a garcenha ou puta conhecida, / Antes que soe 0 estouro, mal sofride/ salta na Agua e da presa ndo duvida, / Nadando vai c latindo: assi o mancebo / Remete a que nao era irma de Febo”. i isnt sc opi vanities ible ng lia ‘nidbe scott lahlanin deci acena do banquete, dedicando-Ihe apenas ¢ a inco estrofes, B Haag estrofes, 0 de que meno: trata € de comida. a Os Lustadas nao sao, como a Odi éia, 0 poema do estomag moda algum. Mas sdo 0 poema dos descobrimentos e da busca. caminho das Indias, o caminho das ' se & coeréncia de intcresses, nao culindria nem, tampouco, o me: denies especiarias”. E a mend Se justificaria o esquecimento da nosprezo do paladar. Isso nay 00 i sso ndo ocorrel, Resguardou-se nos scus versos 0 papel civilizador da me: “De soberbo e de altivo coragdo”, Vasco da Gama " be usar di hospitalidade. Antes de qualquer didlogo, scu primeiro ea é faz 7 sentar 0 hdspede e dar-Ihe a provar “aquele deleite que tanto anne a tl Epicureia” (VII, 75). Manda por a mesa e recebe, com agrado : que 0 visitam (I, 49-50; 61) Z seita aqueles Outro nao é 0 Comportamento de alguns dos POVvos visitados pelos navegantes. Em Melinde, so recebidos com presentes: “Sao oe i mentos verdadeiros / E palavras sinceras, ndo dobradas, / as atten Rei manda aos nobres cavaleiros / Que tanto mar e terras itn ieee ae Manda-the mais lanigeros, carneiros, / ¢ galinhas domésticas ce / Com as frutas que entao na terra havia /E a vontade a dadiva biccu 4 (IL, 76). E logo festejados “Com Jogos, dangas e outras alegrias aa com banquetes, manjares desusados, / Com frutas, ace carat “ pesca os” (VI, 2). Até erica aureus ona dos” (VI, 2). Até o humilde Mongaide*, que Ja teria o Reino Lusitano “manjar da terra” ao visitante conhecido”, oferece a “sua pobre casa” eo “ (VIL, 27). No episddio dos Doze de Inglaterra, os doze vencedores si recolhidos pelo Duque “Nos seus pagos, com [estas ¢ alesria: / ( in fos ocupa € cagadores, / Das damas a fermosa companhia / Que dere dar aos seus libertadores / Banquetes mil, cada hora e cada ia fe juanto se detem em Inglaterra, / Até tor nar a doce e cara terra” (VI 67), Mee Nao hd, como se vé, abjegao ao gosto. Mas como é cr de armas © vardes as inalados, exalta- essa uma epopéia se preferencialmente a virtude. fe aides tee Xu virtude ; ) qualidades itis que merecem louvor. E essas qualidades nao se ormam “cos manjares novos ¢ esquisitos, / Ndo cos pa wan Hd a los motes e ouciosos, / Nao cos varios deleites ¢ infinito: a s, / Que afeminam os pettos generosos, / Nao cos nunca vencidos apetitos, / Que a Fortuna 45. Ver p. 25 46. E e devemos i tamanhenn cit devemos as'belissimos versos~ “Que alegria ndo pode ser Amanha/ Que achar gente vezinha em terra estranha” (Vil, 27) i tem sempre tao mimosos, / Que nao sofre a nenhum que 0 pass mude / Pera algua obra heréica de virtude” (V1, 96). "A mesa farta, 0 servigo impecdvel, o dever da hospitalidade tém sua hora e vez. E até os deleites da seita de Epicuro sao bem-vindos, desde que oportunos. S6 que nio se enrijecem os bragos nem se fortalece a Mas “vigiando & vestindo o forjado ago, / Sofren- 7 Vencendo 0s torpes frios no regago / Do orrupto mantimento I coragem no seu culto. do tempestades & ondas cruas, Sul, e regides de abrigo nuas, / Engolindo 0 ¢ Temperado com um 4rduo sofrimento” (VI, 97). Alcanga-se a virtude mercé de penas © sofriment “peito um calo honroso”. E dessa experiéncia advém a forga com que o enicndimento comanda “o baixo trato humano embaragado” (VI, 99). Bis o motivo das restrigdes As finas guarias ¢ molicies que ocupam as afeigdes humanas. Nada h4 mais oposto ao ideal de quem aspira ao herofsmo. Cobra enfim sentido a intengdo de Venus de premiar 03 navegantes com uma estada na sua ilha. Depois de “hdrridos perigos “trabalhos graves e temores’’, bem mereciam recrear a “fassa humanida- de”. E nesse recreio ~ sobreleva notar ~, pde-se ainda a prova um dos apds essa prova se fala da inéritos do vardo ~ a virilidade. E somente idade “que a fraqueza restaurem da cansada natureza” id explicado. A humanidade, cansaram-na “em perigos © guerzas dos, / Mais do que prometia a forga humana”, conforme se posigao do Primeire Canto. A nature a? Naquilo que amoradas. O resto? Sie “del{cias, que 0 vil dcio tos, criando-se no anuncia na pro! compete a cavaleiros 0 9 mundo traz consigo” (VEE, 8). Na vida de Camées, vida de poeta pobre © de soldado, a comida nao ver A mesa com os mesmos requintes nem com tanta abundancia como nos Lusiadas. Mas aparece nas suas cartas, concreta ¢ figuradamente. ‘Ao dar noticia de Simao Rodrigues, contra q) ‘ “Ihe tinham cozinhado & morte”, embora pagasse solide aos matado- res. em “talhadas de marmelada e pticaros de Agua fria, com uns debrus da vista da Senhora sua irma‘, Misdégino, demora-se em inconfidéncias: revela que certa Francisca Gomes mudara de amante, pois “j4 nao amassa no forno que sofa’, de uma dama que tinha “a castidade de em se conspirava, explica que, AT. “Carta TV”, in Luis de Camées, Obras completas. Com prefacio ¢ Notas do prof. Hernani Cidade. Lisboa, Livraria Sa da Costa Ed., 1946, vol. If, Autos & Cartas, p. 260, 261. a luxuriosa”’ ee um nariz de mantei a Saeed com “uns olhos de mordifuge* ee ga erua, uma boca de pucarinho de Bstre Cee Peelagsone oe casadas que tém os maridos no Cabo va comem cous ea que jejuam a pao e 4gua, outras Sree algueipadeual nar(enncre inde coamateetc to ta, por ele crismada com o nome de lise toe Acolhei- coz, senhoras que ali serviam — “que se comem mais i: E que si Se nial sq A outras de Lisboa”. E, se Fe ara: . E, sem elas, acrescenta, os pagodes na “da seita de Epi enturanga em comer e beber”, como é See as le cure”. Te * € prépr ae picuro”. Tampouco os religiosos esca ea picuinhas maledicentes: “Também c Ca pam eeues q mene: Sagauene eb acelantany cone pozerd neste forno frades de as Caig. echeados.” caigas desatacadas ¢ os lombos Numa cart stalgi ma carta nostdlgica, escrita na India, emp: foricamente, 0 7 rega, ain eta mo sere ae verbo comer (bem mais forte que Sane it 'recho pungente: “Depois q a sinGni- parti, como quem 0 fazia para o outro mund Ba hae Se esperangas dera de comer até ea A etomando a acepgio com que ee a os attain ition tei teneee raat erate’ nos Lusfa- ago costumado a resi que tendo o “esté fei enforcar a ir as falsidades f i s <> d ; nense, que chia ‘ je uma dana oe e ‘ como pucarinho novo com a agua lisbo- Monet me tenet ealCh aucineaninn ait a, agora amor contudo passa ts de si*. Nio deixz Sea i : Fa ocasitia de criticar as portuguesas ee © maduras” nem de lembrar os fals eye oo ‘dcitava mais pingos na s falsos an Rac ugos cujo édio the Aqueles “que cuidam Si eee " a i que todo mat é ilusées sobre a indi 9 mato € orégano”, fazendo-se Pe angels aapmes tee cee Vienne, aed eae aes. ae sxe mele: 0 caso de um certo Joao Tose re jaa ado, que “ali era su comer las e BD?» cber la viva sangre.” € i$ caries crudas, su Num movi imento instinti i tivo, 0 poeta rec BOMTdn asthe uae , © poeta recorre ao imagindri tS garnered carat aneainttes aie Mea fla ga a conceituara 48. Mordifuge = mo 7 ig rde-e- IIL", Idem, ibidem, p. ee ines at 49. “Carta [1I”, Idem, ibidem, p. 253 ¢ mordem, fixam, ¢ fogem (“Carta 30." i Carta II", Idem, ibidem, p. 243, 247, 244, 246 95 linguagern segundo o sabor, ao censurar os que a empregam “meada de ervilhaca, que trava na garganta do entendimento."*! Nessa apropriagdo do intelectivel pelo sensivel, o apetite reforga o realismo das imagens. Particularmente as de ambigua salacidade, ‘Tudo se da a degustar. Fo poeta se diverte nesses jogos filolégicos. ‘Tanto que compae, em tempo de grande pobreza, o “Banquete dado na {ndia a fidalgos seus amigos”. Iguarias? Nao hd. Servem-se trovas & mesa. Nessas oito estrofes, em redondilhas, prope, aos convivas, em vez de vinho e pratos finos, papéis € poesia. Erasmo, em alguns dos Coléquios, procederia de igual forma Nos seus cinco convivios — poético, religioso, profano, fabuloso sébrio, dispatatado - ora a palavra, ora a comida respondem as necessidades dos convidados. No banquete religioso, frugal como a Santa Ceia, pontifica o espfrito; no profano, o vinho propicia a eloqiiéncia. No disparatado, reina a desordem de Babel. Mas € no banquete sdbrio que os Convivas se nutrem de citag6es literdrias e¢, no poético, declamam poemas, escandem versos e discutem sobre mé- trica e ritmo. Em boa verdade, mesmo nos banquetes em que se consomem os “bens do mundo”, a retérica condimenta o prazer de comer™, ‘Aos convivas de Camées atribui-se a tarefa de tudo converter em trovar ou, entdo, contentar-se com a leitura do cardapio de negativas: “Tendes nem migalha assada, / Cousa nenhuma de moiho, / E nada feito.em empada, / E vento de tigelada; / Picar no dente em remotho; / De fumo tendes tassalhos; / Ave da pena que sente / Quem da fore anda doente; / Bocejar de vinho e de alhos, / Manjar em branco excelente”. Nessa poética alimentar, gulodice se satisfaz no jogo de pala- yras. O tempero usado? A imaginacao. E 0 anfitrido se esforga por aliciar os convivas, procurando convencé-los da exceléncia do car- dépio. Posando de magico, lula contra a fome, a gulac a impaciéncia da pequena platéia. Finge, pergunta, responde e conclui afinal a sua 51. Idem, ibidem, p. 247. 52. Consultem-se: Erasmo, Le hanguet poétique. Trad. de V. L. Saulnier. Melun, Librairie d’ Argences, 1948; Cing banquets. Trad. de J. Chomorat et D. Ménager. Paris, Vrin, 1981. 96 rs) us Francisco de Melo: "De mir i apostar / Que faga cousas mais novas / De quanto podeis culdan # ceia, que € manjar, / Vos faga na boca em trovas.”* Nem sempre, porém, as trovas satisfazem. E 0 nosso poeta costuma trocd-las por alimento mais consistente. Acontece que, muita vez. sai logrado, Como se 1é no seguinte epigrama: “Cinco galinhas e meia / Deve o senhor de Cascaes; / E a meia vinha cheia / De apetite para as mais”. De outra feita, por uma carta de amor the mandaram quatro frangos. Furioso, reclama: “Moscas, abelhas e zangdes / Me comam bofes . baco, / Se outra como esta fago / A troco de quatro franges” Também 0 Duque de Aveiro se torna alvo de chacota por premeter- Ihe galinha ¢ mandar-Ihe uma posta de carne de vaca: “I4 eu vi tavernei- to / Vender vaca por carneiro; / Mas nao vi, por vida minha, / Vender vaca por galinha / Seno ao Duque de Aveiro”. Diante dessa humorada, o Visconde de Juromenha conclui que “o poeta era excessivamente guloso de galinhas”. Guloso de galinhas ou credor frustrado? Protesta contra o calote. Com espitito. Que mais poderia fazer? a Reservou-se aos Lusiadas 0 papel civilizador, hospitaleiro e restau- rador da mesa. Nas cartas € nas redondilhas, e também no Auto de El-Rei Seleuco, CamGes se isenta da defesa da virtude e aborda livremente o tema da sore ei A despeito das restrigdes impostas pelo conceito de herofsmo, inerente 4 epopéia, e da liberdade com que redige as cartas ¢ comple os versos de ciccunstancia e as tiradas das personagens, © poeta mantém a coeréncia. As evidéncias epicuristas nic fogem, nes citcunstancia, & linha-mesira do seu pensamento sobre a “seita epi- curéia”. S6 que o tom € outro, Francamente sarcdstico na correspondén- cia, alegremente satirico nas redondithas e facecioso no Aulo de El-Rei Seleuco™. encenagao com graga divna de a varia __0 dado biogratico vem em abono de sua postuta seja no géncro 6pico seja no lirico, Enquanto trata de modo libertine a relagao entre os sexos, tripudiando sobre as damas, mulheres casadas ou nao, viivas senhoras, “damas de aluguer?é as que inclui na categoria de “dama ae 53. “Banquete dado na india a fidalgos ; i 53. °E Igos scus amigos”, in Luis de Camées, O, cit. 2" ed., 1954, vol. I, Redondilhas e Sonetos, a 91,92 vicina es 54. Cf. Lugar cit., vol. HI, “Autos e cartas”, p. 89. i i i | i t g&tanga, recorda-lhe, sempre, a mesa copios dama”, de Portugal ou da India, tende a sublimar a necessidade alimento e a buscar-the compensacdes. Nao € 0 que se vé na Ilha dos Amores? Ainda que wansfigurado pela estesia pag, 0 recreio amoroso afesté e af se inscre, com vivacidade prdpria, sensual e sedutor. Satisfei- to esse desejo, que faz o poeta? Oferece aos fortes mancebos iguarias mais raras que a ambrosia e vinhos superiores ao Falerno. Tao requinta- do quanto artificial, o cardapio se situa além do humano, vindo a confirmar que a inveng&o verbal ultrapassa a esfera do desejo. Elevada a matéria poética, subtrai-se a comida a avidez da fome. Dessarte, nada mais natural que encontremos, guisado pelo mesmo Camées, o banquete da India, Fora dos limites dos sentidos, a criag&o preside o s Embora complementar, essa pequena mostra de virluos u festim mo fortalece sua visio do apetite (no sentido amplo). Mais inclinado ao culto de Vénus que ao de Gasterea, 0 poeta transfere & fornicacio o vocabulario da cozinha, aplicando-o, também, a situagdes morais ¢ sociais. Heliogé- balo do verbo, sacia, nesse prédigo exercicio, a prépria fome e a dos seus leitores. Contemporaneo de Camées, e soldado como ele, Cervantes também provaria os rigores da pobreza. Assiduo na miséria e na fome, apreciava (por isso mesmo) o bom passadio. O servigo militar, feito na Italia e na © vinho & discrigao do cliente. Cativaram-no a acolhida e€ a liberdade que af desfrutavam os militares espanhdis®’. A exemplo de Rodolfo, personagem de La fuerza de la sangre, haviam de soar-lhe como miisica nos ouvides as palavras “Ecco li buoni polastri, picioni, presuto e salcicie” e “outros nomes desse jaez, dos quais os soldados se lembtam quando daquelas partes vém a estas e passam por estreiteza e incomodidades nas vendas e tabernas da Espanha’’*. Conheceu, con vista de ojos, tal como 0 licenci- ado Vidriera, a abundancia de Milao, os festins da Lombardia e as espléndidas refeigdes ali servidas, Conheceu, e provou, “la suavidad def Trebiano, el valor del Montefrascén, la fuerza del Asperino, la genero- 55, Nem sempre, contudo, esses militares se mostravam dignos da generosa acolhida italiana. E 0 que conta Cristébal de Villalén no “Coloquio II” do seu Viaje de Turquia (Apud “El licenciado Vidriera”, in Novelas ejemplares, Madrid, Espasa-Calpe S. A., Clasicos Castellanos, 1933, t. II, p.15, n. 2). 56. Miguel de Cervantes, “La furerza dela sangre”, Novelas efemplares, in Obras compleras. \2* ed., Madrid, Aguilar, S. A. de Ediciones, 1962, p. 894. | : j ‘ & cided de tos dos griegos de Candia y Soma; la grandeza del de las fias, la dulzura y apacibilidad de la sendra Guarnacha, la Cinco V rusticidad de ta Chéntola, sin que entre’ todos estos sefores osase parecer ta bajeza del Romanesco”’, Grande auditivo, guardaria, de cor, 0 vozerio das ordens de servica: “Aconcha, patron; pasa acd, manigoldo, venga la macatela, li polastri, e li macarroni.”™ ‘A miséria em que vivia explica a insisténcia com que se refere & estada nas cidades italianas: seja ao agasalho recibido em Luca, seja a prodigalidade de Mesina, “granero de /talia” ou d “maravilbosa abundancia de todas as coisas & vida necessdrias.” So outros, bem outros, os costumes € 0 trem de vida na Espa- nha, Ainda nas Novelas ejemplares, em Rinconete y Cortadillo, ussiste-se a um almogo da confraria dos ladrées, em casa da velha Gananciosa. Em redor de uma esteira, um lencol por toalha, a velha serve aos convivas “ de Jaranjas e limes e logo uma cagarola grande, cheia de postas de bacalhau frito; trouxe logo meio qucijo de Flandres, e um caldeiraio de famosas azcitonas, e um prato de camarGes, e grande quantidade de caranguejos, com o seu acompanhamento de alcaparrées afoga- dos em pimentoes, c trés pies branquissimos de Gandul.” No Quijote, valha a verdade, ha lugar para tudo: desde a refeigaio rustica, em torno da esteira, até o banquete cm palacio, que constrange o bom Sancho. A primeira saida do Cavaleiro da Triste Figura na companhia do escudeiro, delineia-se, jf, a relagio de ambos com a comida (I, X). ; Quando D. Quixote pede “algo” para comer, Sancho Ihe responde: “Aqui trago uma cebola, e um pouco de queijo, e nao sei quantas cddeas de pao <...>; mas nao séo manjares préprios para tao valente cavaleiro como vossa merc”. Ao que replica 0 amo ser “h um molho de rébanos, e cerca de duas diizias onra dos cavaleiros 57. “El licenciado Vidriera”, Novelas ejemplares, in Obras completas, cit, p 878. A propdsito dos vinbos italianos mencionados por Cervantes, veja-se a edigao do Licenciado Vidriera, anotada por Narciso Alonso Cortés e publicada em Valladolid para comemorar terceiro centendrio da morte de Cervantes (1916). Alonso Cortés declara quais so esses vinhos, citando nomes e origem 58. “El licenciado Vidriera”, ugar cit., p. 87 59. Idem, ibidem, p. 878 60. “Rinconete y Cortadillo”, lugar cit., p. 844 99 andantes no comer durante um més, e, se comem, é daquilo que encon- tram & mao”, Mais avisado, & sens{vel aos reclamos do est6mago, 0 escudciro se avia para oferecer-Ihe 0 que ditam as regras da profisstio cavalheiresca. Isto é, todo género de fruta seca, enquanto reserva, para Sst mesmo, “coisas yolateis e de mais substancia”. Como andam ao Deus dard, nem sempre encontram pousada. B seu regime alimentar sujeita-se aos azares das circunstancias ¢ & generosida. de de andarilhos, pastores e fidalgos que dividem com eles suas meron das ou 0s recebem em suas casas. Mas se comem é gragas ao faro de Sancho: nenhum odor Ihe eseapa. Sente, de Longe, o cheiro que exalaum cozido de cabra ¢ logo se faz convidar pelos pastores que 0 preparam d, XI). Posto que sébrio, D. Quixote tampouco se faz de rogado. E enfren- ta, como 0 seu escudeiro, “con mucho donaire y gana”, um belo pedago de carne. Atento a tudo, e principalmente as necessidades do amo, Sancho sabe que, apesar de suas allas aspiragdes, também 0 incomoda a fome € também precisa de comer. Por malicia, mais do que por ideais de cavalaria — € 0 que pensa o escudeiro — declara-se indiferente as coisas do mundo. Convencido de que representa sua pequena comédia, consegue, com _ggndezas, pegd-lo em contradig&o. Poe entio a prova a alardeada superi- oridade dos cavaleiros andantes. Depois de ver que se rendem, como todos os mortais, 8s mais vulgares necessidades, indaga: “Venha aqui, senhot, poderia negar 0 que comumente se costuma dizer por af quando uma pessoa esta de ma vontade: ‘N&o sci o que tem Fulano, que nem come, nem bebe, nem dorme, nem responde a propésito do que the perguntam, que parece estar encantado’? De onde se tira que os que néo comem, nem bebem, nem dormem, nem fazem as coisas naturais que eu digo, esses tais estao encantados; mas ndo aqueles que tem a vontade que vyossa mercé tem, ¢ que bebem quando the dao alguma coisa e comem quando tém, respondem a tudo aquilo que lhe perguntam” (I, XLIX). Por tudo isso, ¢ porque temia pela satide do amo, resistira a yoltar a casa. Perguntara-lhe apreensivo: “Que 6 que ha de comer vossa mercé, enquanto eu volto?” (1, XXVD D. Quixote exproba-lhe © apetite, acusa-o de glutonaria' mas nao G1. As censuras A voracidade do seu apetite sio constantes. Mas num dos capitulos finais, D. Quixote chama-o “o maior glutio do mundo” (El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, in Obras completas, ll, LXVI, p. 1-502) 100 i deixa de comer o que Ihe traz. A ele, glutéo, cabe velar para que” morram, ambos, de fome. Dos alforjes pobres, mas sempre abast i 4 ee a tecidos, retira o suficiente para o sustento do amo ¢ para o prdprio sustento. Alienado as valorosas facanhas, D. Quixote negligencia as imposi. ges ae apetite. Ante a impaciente gulodice do sant eee ‘ie que nao se rele pelos mesmos principios: enquanto ele, Guise, nascera para “vivir nueriendo”, Sancho nascera para “morir contendo’: Entretanto, “a mais cruel das mortes” é, ao seu ver, “deixar-se nee de fome”. Confissio que, embora nao o reconcilie com a vida, to manifesto o seu temor de sofrer téo grande pena, mesmo se 5 se expde. Sancho, é claro, opta por deixar “a vida comendo até é ue i a o fim que Ihe tem determinado o Céu” (IL, LIX). ey sr Preocupadlo com a conduta do escudeiro, nomeado governador, D. Quixote exorta-o em carta: “Nao te mostres, ainda que parent 5 sejas — no qual nao creio —, ambicioso, mulherengo nem glutao” (I, Lb Logo, Es reiteradas criticas que Ihe dirige nao resultam de en inabaldvel; traduzem, téo somente, o desejo de corrigir-Ih flo, nao um vicio. 7 Pn EB provavel que assim o fosse. A um taberneiro, a quem encomenda, uma ceia, declara Sancho Panza: ‘“<...> com um par de frangos que nos assem teremos o suficiente, porque 0 meu senhor é igelicaus ect pouco, e eu ndo sou tragantén em demasia” (II, LIX). A comer bem e regaladamente, sofrendo embaracos, prefere a mesa modesta, onde n&o neem regras de polidez. Assegura ao amo que mais fhe radaria. sustentar-se a secas com pao e cebola do que, como eee n perdizes e capdes” (I, XLUI). a Cnegee a ocasiao, comprova, por experiéncia, que ndo se enganara No'exercicio do Gare de eovernador'da lian Barntaria. as ineerdicoes 4 mesa eram tao grandes que “maldizia 0 governo ec aqucle a quem o devia” (II, LI), suspirando por “alguma coisa de peso e substancia, ann que fosse um pedago de pao e uma cebola” (II, XLVI). Um oe ran Tirteafuera, encarregado de velar pela sua satide, submeteu-o a Rood regime. Sob a sua vigilancia, inspirada nos aforismos de Hipdcrat ‘ Snch acreditara morrer de fome (II, XLIX). Revoltado. aaa ee o “mal médico, verdugo da Republica” e exige, aos Gace “déem-me ee comer ou, se n&o, fiquem com o seu governo, porque oficio que nao da de comer a seu dono nao vale duas favas” (II, XLVII). : Votado ao culto da liberdade, D. Quixote nao sofreria menos que o 101 ie) oe TT companheiro esfomeado. Na abundanei degustaya “banquetes bem temperado the estar “metido nas estreitezas da fome, porque ni ia se fossem ”. deu um pedago de pio, decé-lo a ninguém mais que ao tudo aquilo> com a liberdade de que gozar exclama; “Venturoso aquele & quem o Céu sem que lhe fique & obrigacdo de agra proprio Céu” (i, LV). Deplora-se, num € now padece o rude escudeiro, imp gos, livre de qualquer tutcla governador, diz aos que 0 cer deixai-me voltar & minha antiga gazpachos que su) mate de fome” (i, LIV). diferentes razdes. Habituado & temperanga, protestar gratidao pelo acolhimento Tr ser aceito como é? Homem do povo, sim| Msofisteria’, o apetite Quanto obriga em casa alheia fere-lhe o orgu compete render gragas mas recebé-las daqueles Ao antagonismo entre essas dui uma identidade comum: 2 preservagao, dividas de gratidao Confrontem-se, para com| cabreros (I, XI), com o escudeiro | \ i | , 0 intuito de favorecer 0 pobre Basilio, com 0 “limpa, abundante ¢ saborosa”, em casa de Explica-s critas por Cervantes: se gratulatérias ou festivas, cm Quixote, apds suas faganhas, ganham todas em jubilo e efusao, ao sucedendo a pelejas nem aventuras meramente sociais, ou formais, 1 a do castelo do duque, onde s © bebidas geladas”, parecia- fa gozava prefiro fartar-me com pertinente que me las fungdes de jeitar-me & miséria de um médico im ote. Se bem que por e instrufdo nas normas pala- ge-o, sim, reconhecer & E também de liberdade de que carece © Quix! cianas, nfo se contrange em cumpri-las; constran, ecebido. Que deseja Sancho senao plério, quer satisfazer, sem a D. Quixote, a subserviéncia 4 que se Tho de cavaleiro andante: nao the a quem presta servigos. ag formas de conduta, interpoe-se custe o que custar, da propria liberdade, aqui simbolizada no palo que se come a vontade ea salvo das prova-lo, @ satisfagao das merendas com os do Cavaleiro do Bosque (I, XILV,com Ricote, o mouro (II, LIV), ea alegria pletérica das bodas de Camacho (il, XX-XXI), de que parlicipam os dois herdis, porque D. Quixote tinha comedimento da refeigao D. Diego de Miranda (i, XVIID, onde imperava 0 siléncio, ou, entdo, com as celas no palacio do duque e na ilha Barataria (i, XLIV; Hl. XLVU-XLIX). a diferenga pelo motiyo & finalidade das recepgGes des- homenagem a D. bem sucedidas, nao se nota, da parte dos convivas (e em especial da parte de D. Quixote) o mesmo entusiasmo. E isso se reflete, t bé ‘ parte 0 ‘ . B isso s e, também, na relagao oS convivas entre si, na relagio com os criados e, final na relagdo com as iguarias. ; a Ook eee por exemplo, as bodas de Quitéria e Camacho. Ja na véspera, a alguns quilémetros da aldeia de Quitéria, se ouven ‘confusos & suaves sons de diversos instrumentos” coon se lumina rias ¢ gente que, em quadrilha, canta e danga. A alegria, contagiante, Peat pela estrada. Na madrugada do dia do casamento 0 Bae oe eactteis assados chega ao campo anunciando a comin a. Sal exclama: “ i ; 5 au : ma: “ <...> bodas que por tais odores comegam, pela minha See lever ser abundantes e generosas”. Quando D. Quixo f ee ae a festa, para ver o que faria o desdenhado astlio, Sancho toma-lhe a diantei fi ira e depara-se, logo, ci Sea 5 , com uma ae onde se aney num espeto, um novilho inteiro e onde cozi- n on a seis caldeirdes, carneiros inteiros. Nos ramos das arvores pent a as, lebres € galinhas aguardavam 0 momento de sepullneata nos caldeirdes enquanto diversas aves e cagas se resfriavam ao al Sancho conta mais de sessenta odres, de mais de duas arrobas cada um, todos cheios de generosos vinhos; montes de pies beanauil mos, queijos a 0 i vam pecans aos Hee e duas caldeiras de azeite onde fritavam coisas de massa c de onde as retiray, am para mergulhé-l i da, numa caldeira de inhei oeeeaveinll bi aca mel. Os cozinhciros ‘inhei ri se cozinheiras passa’ de cinqienta: todos limpos, dili rie alee fs gentes e contentes. No v i pn ae 5 entre dilatado La weston nae tenros € pequenos leitées que, cozidos por a, Ihe davam sabor e maciez. A: jari i : . As especiarias, comprad ts > pradas por ee ea Re grande arca. O aparato da boda, oneal slico, era tio abundante que i 5 podia sustentar um exérci i de tudo admirar com dvi voce een olhos avidos, San ai i : . cho nao resiste: pede lic on a : pede licengaa Dee para molhar um pedago de pao num do caida all olicito, responde-Ihe 0 cozinhei a i 4 i cozinheiro: “Irmo, este di foe s 2 fio, este dia, gragas rico Camacho, nao é di ‘0 tO ts laqueles sobre os quai, j igdo a fe 8 s is tem jurisdiga ea ; q jurisdicfo a fome. a se hd por af uma conch i ae retirai uma galinha S. ¢ bom proveito vos fi y, a s fagam”. Supondo é ; es ® porém que Sancho, por timi- zn servis: és gali Cees aes ee ele mesmo, trés galinhas e dois gansos de a ndo-Ihe que quebrasse o jej 4 S jejum com aquela es: -alé que chegasse a hi i ate jora do jantar. Como S ao di ¢ , Z ancho nao d: 2 ane : ispunha de qualquer vasilha para recolher o lauto desjejum, 0 cozinheiro ofere: ce-lhe 0 caldeirio © o conteddo. E remata: “Pois levai-os <. >a colher e tudo, que a riqueza e 0 contentamento de Camacho tudo supre”. Bendizendo o anfitriao, Sancho mostra ao amo a espuma @ agarra logo uma galinha comendo-a “con mucho donaire y gana” (I,XX) N&o podendo participar “da espléndida comida e das festas, que duraram até a noite”, 0 caldeirao que levava representa, no seu sentir, “a gloria e a abundancia do bem que perdia” (1, XX1) Ao partilhar a bota de vinho e as gulodices que trazia um colega de officio, o escudeiro do Cavaleiro do Bosque, sobressai, & sua vista, a parciménia com que vivia andando a servico de D. Quixote. Comenta com humildade: “Vossa mercé, sim, que € escudciro fiel ¢ legal, corriente y moliente, magnifico e grande, como o mostra este banquete <...> € ndo como eu, mesquinho e mal-aventurado, que s6 trago nos meus alforjes um pouco de queijo, tio duro que podem destrogar com ele um gigante, e a que fazem companhia quatro dizias de algarobos ¢ outras tantas de avelas ¢ nozes, mercé da estreiteza do meu senhor, € da opiniao que tem e ordem que guarda de que os cavaleiros andantes nao se deyem manter e sustentar sendo,com frutas secas e com ervas do campo” (II, XIV). Suas queixas, contudo, nao denotam o menor ressentimento; resig- hago, vale-se de qualquer ensejo para satisfazer seu pecadillo. Enquanto © amo € 0 Cavaleiro do Bosque se batem valentemente, que sugere cle ao cologa? Que comam e bebam em paz. A adverténcia de que em solidariedade aos cavaleiros, deveriam, também eles, desembainhar ar- mas e lutar, Sancho se opde com determinacao: “Isso nao — ; Nao serei eu téo descortés nem to desagradecido que com quem comi ¢ bebi trave questao alguma, por minima que seja” (II, XTV). Acabam os dois escudeiros por entender-se & maravilha e tanto falam, ¢ tanto bebem, que o sono lhes ata a lingua. Essa cordialidade, temperada pelo apetite ¢ selada pelo vinho, con- sagra as relagdes espontineas em que a simpatia inicial se isenta de compromissos de serviddo e de reconhecimento, a excegio daquele a que se refere Sancho ~ de travar questo alguma, por mfnima que seja. Do convivio nao resulta apenas esse vinculo afetivo. Em circunstin- cias propicias, suas virtudes se patenteiam, revelando novos tragos que, €m situagao distinta, nao teriam ocasiéo de manifestar-se, Na compa- nhia de Ricote e dos seus companheiros, movido pela simpatia, Sancho w sy iL ads copia-lhes os modos, ¢ sente o mesmo prazer que cles ao empinar 4 bal para beber. Em obediéncia ao rifio — “Quando fores a Roma faz come vires”, toma por modelo os eregrinos, age como eles e com eles se alegra, repetindo-Ihes as exclamagdes dz amizade: “Bon compano, jura Di!” (H, LIV) A mesa dos paldcios, na intimidade do poder e da riqueza, a conten- g4o ¢ as boas manciras nao favorecem a auséncia de cuidado: 0 Se soltam aio riso nem a lingua. O convivio perde a sua forga efusiva. As regras a observar impedem a descontracgao, a palavra facil, 0 gesto franco e impetuoso. Ao experimentar, no exilio, esse constrangimento, Dante diria: “sabe a sal 0 pao de outrem” (Par. XVI, 58-60). A alegria 6, por conseguinte, uma criagfio moral ¢ depende das concessdes que The faca 0 meio. A submissao A autoridade de um superior, a necessidade de ajustar-se aos seus principios, a penosa consideragao da dependéncia desviam a mesa e a comida de sua principal virtude—a convivialidade®, Notoriamente infenso a toda censura, “mais limpo que guloso” (II, LXID), Sancho nao deixa, sem embargo, de policiar-se em meio estra- nho. E sao as suas reagdes que nos ajudam a compreender o sistema da comida na obra de Cervantes. As cenas de maior efeito, em que as iguarias despertam e desvanecem 0 apetite, sao vividas por gente do povo que, como 0 ingénuo escudeiro (e como o préprio autor) conhe cem a pentiria © sentem prazer em comer. O Quixote, que come para viver, € 0S ricos € nobres para os quais o alimento é coisa habitual, nao experimentam & mesa igual satisfacao. No episddio do reencontro com Ricote, vizinho e amigo de Sancho, arefeigdo modesta toma ares de banquete, tal a viveza de sentidos com que € descrita e, particularmente, tal a voltipia com que é degustada: o Pao, ae nozes, os pedacos de queijo, os ossos mal cobertos de presunio— que nao se mastigavam mas chupavam-se, com um manjar negro®, feito 62. Neologismo criado por Ivan Illich. 63, Ea primeira referéncia que encontramos, na literatura da época, ao manjar prto. O manjar braneo, a que Sancho era feicoado, segundo acdigao apcerify ty Guijote, comentada por Cervantes (Il, LXII), tem mais longa tradigio. Lo menjat Pranc ou manjar blanco que a Espanha impés a toda a Europa, Conheside ec, \dade Média, aparece, de inicio, como eomida de cuchartt - para comer-se com colher. Seus ingredientes? Peito de galinha ou de frango, arroz, améndoce eagiicar. Mencionado por Rabelais, 0 mangier blanc & incluide por Taillovent ag seu Le viandier. Oreceituario inglés, The form of Cury, chama-o white dish Nevt Mang, nas secus, sem qualquer tempero, nis oi ova de peixe, as azelto muito principal, as ordas botas saborosas & bem conser yadas €, 0 que & de vinho. A nota sensual, deleitosa, aparece NO Comenta 0 autor “Comegaram a comet com grandissimo gosto © muito Jentamente, saboreando cada bocado, que tomavam com a ponta da faca, muito pouquinbo de cada coisa, & depois, pontualmente, de uma vez, levantaram 0S brazos e as botas a0 ar: 0S olhos no céu, parecia que punham nele 4 pontaria; e dessa maneira, meneando as cabegas de um Jado a outro, sinal que confirmava 0 gosto que sentiam, estiveram um bom tempo transportande ao est as entranhas das yasilhas” (1, LIV). Nada disso acontece & mesa palaciana. O pr fisica do palato nao parecem combinar com a €} requinte dos belos cardapios. B nas tabernas, nos P Ss, na companhia de soldados, palafreneiros, bancos, mercadores, pastores, camponeses, escudeiros ¢ nobres empobrecidos que se aprende a estimar, a seu justo prego & valor, 0 bocado que s& come. Nao siio 0s grandes senhores que tém a ciéncia do vinho & reconhecem, & degustagio, a sua idade € pfocedéncia. H Sancho. Ble mesmo. E esse instinto 6, nele, coisa t80 natural que se mostra capaz de, pelo odor, acertar “a patria, a linhagem, o sabor, a duragao € as voltas que ha de dar, com todas as circunstancias ao vinho atinentes” (i, XIV). Essa sensibilidade aguda, que se manifesta na sabores, ruidos, formas © contornos, to marcante nas personagens de. Rabelais, caracteriza, também no Quijote, © homem do povo. Regido pelos sentidos, mais do que pela razao, © instrufdo pelo saber de experi- éncias mais do que pela ciéncia livresca, suas reagoes, imediatas © espontineas, informam-no sobre 0 mundo de modo eficaz ¢ direto. Das trés formas de conhecimento — pela razio, pela fé e pelos sentidos, € sempre a tiltima que recorre. B desde que a fé também pode passar pelos comportamento dos convivi azer da comida, @ fruigio Jcgfincia nem com © ousos de estrada, frequientados por Cervantes andarilhos, pfcaros, saltiml apreensio de odores, blancmange, Nos Contos de Canterbury, de Chaucer, é 0 blankmenger @ 00 “Anbnimo Toscano, bianco mangiari. NaS redondilhas do seu banquete poetico, Ci nos fata de “manjar em branco excelnte (Para maiores informagdes, leit-Se, de Néstor Lujan, “El regalo del manjar blanco”, in Historia de ta gastronontia Barcelona, Plaza y Janés, 1988, p- 86-87). & hom lembrar: o atual manjar branco faz parte das sobremesas. 106 sentidos ~@ en a In ainditic de Paseal — sho eles que confor sud 10 do mundo como a sua visio de Deus. Daf, se . Daf, a constante intromissdo divina nos oO8 assuntos huma ey es) eer nanos e, especialmente, no pao de A morte, ‘a Descarnada”, figura-se em Fea Seiad: voraz devoradora ee a DL ii els como Sancho a descreve: Ga tafe See ee pas Be na Desearnada, digo, na Morte, a Aa com igual pé pisava as st asco ree te cae ae s iss dos reis como as humildes chogas dos. ee aoe mais poder que melindre; e no é aaa eS eilicis eke Ter toma, de toda espécie de gente, idades ean s seus alforjes <...> e nao parece are eee ata eS gua Ihe surge pela frente, porque tem: et eee pole ae que nfo tenha barriga, dé a entender Sat ah iene er i e beber todas as vidas de quantos vivem le Agua fria” (II, XXI). Reduz-se 0 mundo a uma rclacio estrei ecto ieee 2 cdo estreita com os sentidos Pe ntek ne anes tudo quanto se vé, se come, se cia eises aneaniaers e leia ee interesses, de elos vitais, a orden de ettiie Gut HE nar t oe oo a comida. Deus é quem prové feeceapacarincuera a comme) oO amigo? Aquele com quem se come. ‘ Fe aera ee miciaay: eulda do foro poenes ae digno uncanny eoueenin: com prodigalidade. A sobrinha de D comer” (IL, 1), nee i 0 se as ilhas de que falava cram “coisa do pee eee gee a concomda com 0 marido: “os eseudeiros Cabe 2 comida Gata sat fae da Reece eae ‘car tanto as necessidades como as aspirag6es ae cone une ee : possibilidades. Sendo 0 objeto ear : , 0 centro em torno cave i z Coe a ee elemento de compar: Oe i foie fgrdads dee earn as Ja nao dizia a Celestina que ' Rar ouseets Eas 3 lautbaea ia, de talentos”? E nio vooonhl Pozinha, Saiicho Sra Z hae ristica, lardeada de termos de Nenhum outro itor logrou, como Cervantes, com tamanha gama uum outro escri de recursos, integrar : ida d ae ocean preservan- ‘ oe 5 e! 1 comida a vida das s! si r , preserv: 64. Asqueroso: squeroso: propenso a ter asco. thes, as mais puras virtudes. Bm vez de zainas, seu itinerario culindrio nos tes servidos pela sabedoria popular. falar do comer, como nao desvincu- honestamente, da mesa ¢ dos seus do-lhes, ¢ mesmo acentuando- um mergulho na gula © nas come: convida a. uma sucessao de banque! essa sabedoria nao desvincula 0 la, lampouco, 0 amar ¢ 0 viver — prazeres.

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