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MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO

DE CABOCLOS A BEM- TE-VIS


FORMAÇÃO DO CAMPESINATO NUMA
SOCIEDADE ESCRAVISTA: MARANHÃO
1800-1850
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CJP)
Bibliotecária Juliana Farias Mona CRB7- 5880

AS851c Assunção, Matthias Rõhrig.


De caboclos a bem-te-vis: formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão, 1800 -
1850/ Matthias Rõhrig Assunção. - São Paulo: Annablume, 2015.
474 p.: 16 x 23 cm.
Inclui referências bibliográficas.

ISBN: 978-85-391-0660-3

Originalmente apresentado como tese (Doutorado) do autor.

1. Maranhão - História - Balaiada 1838-1841. 2. Brasil - História - Balaiada.


3. Movimentos sociais - Brasil. 4. Escravos - Maranhão - Insurreição, etc. I. Título.

CDD981.042

Índice para catálogo sistemático:


1. Maranhão - História - Balaiada 1838-1841
2. Brasil - História - Balaiada
3. Movimentos sociais - Brasil
4. Escravos - Maranhão - Insurreição, etc

DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS
FORMAÇÁO DO CAMPESINATO NUMA SOCIEDADE ESCRAVISTA:
MARANHÃO 1800-1850

Projeto, Produção e Capa


Coletivo Gráfico Annablume

Imagem da Capa
View o/São Luís do Maranhão; Joseph Léon Righini

Annablume Editora
Conselho Editorial
Eugênio Trivinho
Gabriele Cornelli
Custavo Bernardo Krause
Iram Jácome Rodrigues
Pedro Paulo Funari
Pedro Roberto Jacobi

ja edição: junho de 2015

© Matthias Rõhrig Assunção

ANNABLUME editora
Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros
05415-020. São Paulo. SP . Brasil
Televendas: (lI) 3539-0225 - Tel.: (lI) 3539-0226
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A maior vulnerabilidade dos seus ecosistemas, provocando a rápida mudança :'.'vegetação existente e aproveitar-se das cinzas para o cultivo." Tal tipo de culti-
das condições naturais de produção, implica que a história agrária do trópico húmido ,j' vo tem sido condenada como "primitivo" e "atrasado" desde os tempos coloniais.

deveria conceder mais peso a esse aspecto que nos climas moderados. Como os ciclos ,. Vérios autores modernos mostraram que a produtividade dessa agrícultura "tradi-
de exploração de um produto costumavam ser mais curtos, as consequências para as cional" depende muito do tipo da vegetação anterior," A quantidade de chuva, sua
respectivas sociedades agrárias tropicais forão necessáriamente mais dramáticas. distribuição durante o ano e a biomassa queimada são fatores tão importantes quanto
Neste capítulo quero examinar o impacto da economia de plantation sobre o • qualidade de solo. Esse, no trópico humido, muitas vezes apenas serve de subs-
meio-ambiente maranhense. As fontes demostram que até o início do século XIX, a trato para a ''fixação mecânica" da vegetação.? Estudos empíricos tem demostrado
floresta amazônica se estendia de fato pelo Maranhão central até a beira do Parnaiba. O aumento dos elementos nutritivos no solo depois da queima, 43o que relativiza o
Impressionados pela exuberância das densas matas, os autores coloniais geralmente julgamento negativo dado pelos estudiosos, no passado, a esse tipo de agrícultura. Ao
sobrestimaram o potencial agrário da região. Só quando os efeitos da devastação contrário, "esse velho sistema de lavoura é adaptado à pobreza do solo em reservas de
começaram a ser percebidos, no início do século XIX, é que se inicia uma discussão autrientes".44 Da mesma forma concluíram outro grupo de pesquisadores:
sobre como remediar os inconvenientes da "grande lavoura". Entretanto, a solução
sempre adotada para enfrentar o problema do desmatamento foi, como em outras "This traditional fonn of shifting cultivation is functional and
regiões do país, sobretudo de expandir a fronteira agrícola. ecologically sound. Shifting cultivation does not substantially
alter the soi! organic matter levels reducing them to about
1.1. "TERRAS POBRES E RICAS MATAS": O POTENCIAL AGRÁRIO MARANHENSE 75% ofthat ofthe forest equilibrium leveI. The burning pro-
cess itself has little effect on the soi! organic matter but does
Essa expressão de um conhecido estudioso para caracterizar a Amazônia pode not volatize most ofthe C, S and N ofthe vegetation"."
ser aplicada também ao Maranhão." Reflete o estado atual dos conhecimentos sobre
solos amazônicos, bastante diferente da percepção vigente na época colonial ou no Para os propósitos da história agrária, cabe indagar-se então não somente so-
Império. A minuciosa análise dos diferentes tipos de terra encontrados no Maranhão, bre a qualidade dos solos, mas também sobre os tipos de vegetações predominantes
efetuado pelo projeto RADAM, mostra que na faixa littorânea do estado há poucos no passado. A flora maranhense é geralmente caracterizada como sendo de transição
solos propícios para a agrícultura: dominam areias quartzosas, solos de mangue e .tre a selva amazônica do Norte, o cerrado do Centro-Oeste e a caatinga do Nor-
de campos inundados (solonchaks e solonetz), dificéis de usar na agrícultura por
serem muito ácidos, ou de alto teor salino. 39No resto do estado dominam lateritas 40. Para um descrição da agricultura itinerante ou shifiing cultivation no Maranhão no século XIX, veja
Gaioso, Raimundo José da Souza. "Descrição do método que actualmente se pratica nesta Província
hidromórficas, podzólicos e latossolos vermelho-amarelos, ou seja, solos de fertili-
dade baixa a média, também de uso limitado para a agrícultura. Solos de qualidade
para a cultura e manipulação dos generos [.. r, BIGHB, cópia manuscrita sem data do original
no Conselho Ultramarino, Portugal; Abranches, João António Garcia d', Espelho crítico-político
encontram-se apenas nos terrenos aluviais, que existem em pequena extensão ao lon- da província do Maranhão, dividido em duas partes: (..) por um habitante da mesma província,
Lisboa, 1822, p. 40-41; Brandão Junior, F. A., A escravatura no Brasil precedida d 'um artigo sobre
go dos rios e riachos.
a agricultura e colonisação no Maranhão, Bruxelas, H. Thiry- Vem Buggenhondt, 1865, pp. 30-31.
Tendo em vista a situação bastante desfavoravel do estado, comparado por 41. Weischet, Wolfgang. Die õkologische Benachteiligung der Tropen. 2. ed., Stuttgart, B. G. Teubner,
exemplo com os famosos massapés do litoral nordestino, cabe perguntar-se como é 1980, p. 48.
que o Maranhão conseguiu - e em parte ainda consegue - ter um papel tão relevante 42. Sioli, Amazonien, p. 54.
43. Ver por exemplo Lüken, Halo, Kemper, Bernhard, Grüneberg, Franz e Lenthe, Hans-Rudolf, "ln-
na exportação de produtos agrícolas como o algodão, o arroz e o açúcar. A resposta
vestigations on the Development Potential of Oxisols of the Chapada Grande", in: Geologisches
reside nas técnicas agrícolas empregadas no passado, e, ainda hoje em uso por parte Jahrbuch, Reihe F - Bodenkunde, Heft 15, 1983, p. 23-29; Kemper Bernhard, "Fragen zur Frucht-
dos pequenos produtores. A agrícultura itinerante ou de coivara consiste em queimar barkeit von Oxisolen in semiariden Gebieten Nordost-Brasilíens", in: Giefiener Beitrãge zur Ent-
wtcklungsforschung, I, 9, p. 37-38, Wissenschaftliches Zentrum Tropeninstitut, Justus-Liebig-Uni-
versitlit, Gie6en, 1983; Jordan, C.F. (ed.), An Amazonian Rain Forest. The Structure and Function
of Nutriem Stressed Ecosystem and the lmpact of Slash- and Bum Agriculture, Paris, Camforth
38. Sioli, Harald, Amazonien, Grundlagen der Õkologie des grôftten tropischen Waldlandes, Stuttgart, (Lancs.), UNESCO & Parthenon, 1989, p. 108.
Wissenschaftliche Verlagsgesellschaft, 1983. ••••. Sioli, Amazonien, p.57.
39. Ministério das Minas e Energia, Departamento Nacional da Produção Mineral. Projeto RADAM 45. Miller, R. H., Nicholaides, J.J., Sanchez, T. A. e Bandy, D. E., "Soil Organic Matter Considerations
Levantamento de Recursos Naturais, Vol. 2: Maranhão/Piauí, Vol. 3: São Luís/Fortaleza, Rio de in Agricultural Systems ofthe Humid Tropics", in: Proceedings ofthe Regional Colloquium on soil
Janeiro, Sudene, 1973. organic matter Studies, Brasil, 1982, 1982, p. 105,.
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deste. Os tipos geomorfológicos e os tipos de solo favoreceram a eclosão de uma 1.2.A AVALIAÇÃO DO POTENCIAL AGRÁRIO MARANHENSE NO SÉCULO XIX
vegetação específica: florestas de mangues nos solos constituidos por sedimentos
não consolidados do litoral, vegetação de restinga nas dunas, vegetação de campo na Em contraste com as avaliações contemporâneas, os autores coloniais ou mes-
baixada Maranhense, floresta tropical húmida e depois babaçual na planicie ao redor mo oitocentistas tendiam a sobreestimar o potencial agrário da região. Participavam
do Golfão Maranhense e no planalto occidental, florestas deciduais nas colinas do assim na elaboração do mito da "natureza exuberante", que viria a ser um dos mitos
pediplano central, e cerrado nos vales dos rios Tocantins e Pamaiba. constitutivos da nacionalidade brasileira."
A quantidade de chuva é o outro fator determinante. No Maranhão, o regime Em geral, usavam-se tres critérios para avaliar o potencial agrário: a fertilida-
de precipitações diminui gradualmente do oeste para o leste e do oeste para o sul. Na de natural dos solos; a abundância d'agua, seja de chuva, ou a proximidade do mar,
área da floresta húmida no oeste, ele chega a 2500 mm, em média, por ano. No Mara- dos lagos, rios e riachos; e a existência de florestas, "boas" ou "menos boas" para a
nhão oriental essa média cai para 1600 mm e no Sul para 1200 mm. agricultura. Estácio de Silveira, autor de um folheto de propaganda do século XVII,
Adotei no presente trabalho os resultados do projeto RADAM como ponto de que tentava aliciar os "pobres do Reino" de Portugal para vir estabelecer-se no Mara-
partida para tentar entender qual foi a cobertura vegetal do século passado. Usar esse nhão, foi um dos primeiros a exaltar a fertilidade da terra:
mapeamento para uma análise histórica resulta em vários problemas metodológicos,
pois muitos fatores diferents podem haver contribuído para mudanças na vegetação. "O terreno desta Província, é geralmente de uma terra golfeira
Mas acredito que pode ser um ponto de partida para elaborar algumas hipóteses. O e muito criançosa, toda cheia de grandíssimos arvoredos, que
RADAM distinguia, em 1973, cinco tipos de vegetações: cerrado, floresta tropical testificam sua fécundia; tambem há nela muitas varzeas de
(húmida e decidual), formações pioneiras (mangues, restingas, e campos inundados), terras grossas, e de massapês, aonde não leva arvoredo, senão
caatinga, floresta secundária, e dois tipos transitórios: a transição floresta decidual/ ervaçais muito fortes, em alguns dos quais são postas canas de
cerrado, e a transição floresta decidual/cerrado/caatinga. açucar, que excedem a todas as mais do Estado do Brasil,'? em
Raimundo Lopes já comentou sobre a complexidade das zonas de transição grossura e grandeza; [...]".50
entre a Amazônia e o Nordeste, destacando a multiplicidade dos tipos de paisagens
e vegetações no Maranhão." Por isso houve muitas divergências na literatura e re- A fertilidade do solo, para esse autor, era provada pela existência de "grandís-
definições na prática na hora de dividir o Estado em ''microrregiões homogêneas", limos arvoredos". Essa concepção, mesmo sendo equivocada a partir dos conheci-
no século vinte. A outra razão é a rápida transformação da vegetação devido a ação mentos atuais, corresponde, no entanto, à experiência dos agricultores da região, que
dos homens: Selva, babaçual e campo são tipos de vegetação que podem succeder-se praticavam a agriultura itinerante, e sempre buscavam os terrenos de mata. O critério
no mesmo terreno em poucos anos. Por outro lado, a natureza foi sujeita à interven- da abundância de vegetação continuou a ser usado até o século XIX para classificar
ções humanas que alteraram a cobertura vegetal muito antes da ocupação portuguesa. a qualidade dos solos. Frei Francisco dos Prazeres Maranhão escreveu por volta de
Historiadores do meio ambiente insistem que as florestas da Amazônia não eram 1820:
''virgens'' antes da colonização européia, mas o resultado de queimadas e interven-
ções das sociedades indígenas." No entanto, apesar das dificuldades e da escassez de "Todo o terreno do Maranhão se vê coberto de plantas e es-
fontes históricas no caso específico do Maranhão, esta tentativa de reconstituição é pessos arvoredos,e da continua resolução de tantos vegetaes é,
necessária para que começemos a entender a dinámica da interação entre sociedade e que provém a grande abundancia de humus que aparece sobre
natureza, e o seu impacto sobre a formação social maranhense.

48. Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro. História de uma ideologia, 3. ed., São Paulo.
Pioneira, 1976 (I. ed. 1969). Ver também Lopes, Uma região tropical, p. 50, e Paxeco, Fran, O Ma-
ranhão: Subsídios Históricos e Corográficos, São Luís, Associação Comercial do Maranhão, 1998,
p. 140, 145.
46. Lopes, Raimundo, Uma região tropical, Rio de Janeiro, Fonfon u. Seleta, 1970, p. 115. 49. O autor se refere aqui a todo o territorio entre o Ceará e a capitania de São Vicente, que formava
47. Denevan, William M., "The Pristine Myth: The Landscape ofthe Americas in 1492", Annals ofthe então o Estado do Brasil, em oposição ao Estado do Maranhão e Grão Pará, administrado separada-
Association of American Geographers, 82 (3), 1992, p. 373; Balée, William, Footprints ofthe Fo- mente.
restoKa 'aapor Ethnobotany - the Historical Ecology of Plant Utilization by an Amazonian People, 50. Silve ira, Estácio da, Relação sumária das coisas do Maranhão. Dirigido aos pobres deste Reino. 7.
New York, Columbia University Press, 1994, p. 122. Moraes, Jomar (org.), São Luís, UFMNSIOGE, 1979, p. 37.
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a terra quasi por toda a parte, e que é causa da exuberante tos refletem a interiorização da economia e o peso cada vez menor da agricultura de
produção deste pais"." exportação na economia maranhense na segunda metade do século XIX.
A oposição fundamental, ressaltada com pequenas variações por todos os au-
o monge utilizava também a abundância d'agua como critério de fertilidade: tores oitocentistas, é a entre o Norte, majoritariamente coberto de florestas, e o Sul do
"A ilha do Maranhão é de grande fertilidade por ser cortada de muitos regatos; [...]".52 Maranhão, onde dominava a vegetação de cerrado. Paula Ribeiro escrevia em 1819,
Como em outras regiões do Brasil, distinguiam-se também as terras de areia, que o Norte contenia "[...] as maiores e mais fecundas matas de toda a capitania", e o
somente próprias para o cultivo da mandioca, e as terras argilosas, que prestavam-se Sul "[...] a referida segunda porção, com o nome de Pastos Bons ou de altos sertões
para a cultura do algodão, da cana de açúcar e do arroz. Joaquim Sabino Faria e Silva, da capitania, [...] e contendo, com parte também de boas matas ainda devolutas, dila-
por exemplo, escreve: "O torrão de toda ela [a Capitania do Maranhão e Piauí], ainda tadas campinas próprias quanto é possivel para uma imensa criação de gados [...]".56
que num clima areento, é fértil cortado de boas águas e sadio [...]" e também: "Ti- No seu mapa da Capitania do Maranhão, do mesmo ano, consta o traçado dessa divi-
rados alguns sítios arenosos, de terra muito solta, os mais todos são capazes de pro- 810 básica (ver mapa), explicado por ele nos seguintes termos:
dução, e estes mesmos não deixam de o ser, lançando-se-lhe análoga sementeira.?"
Os autores da primeira metade do século XIX, se diferiam nos detalhes, com- "Todo o terreno conteudo para o Sul da LinhaA-B,[ ...], con-
partilhavam a mesma preocupação central com a chamada "grande lavoura", e as tém Campos gerais por entre as quais há pequenas Matas que
possibilidades de sua expansão. Abranches e Gaioso eram fazendeiros, Paula Ribei- bastam a plantação substancial dos seus diferentes Distritos.
ro, Sabino e Xavier funcionários da coroa portuguesa, e o autor anónimo do "Rotei- E todo o que lhe fica ao Norte, é composto de grandes matas
ro" o escreveu com o intuito de propor uma exploraração mais racional da colônia. com pequenos Campos em poucas partes"."
Baseava-se nos princípios mercantilistas dominantes na sua época, que preconiza-
vam que as colônias deviam servir unicamente para o abastecimento e a riqueza da Cartas ulteriores de 1838, 1841, e 1854 reproduzem distinções similares. À
metrópole. Por essa razão a lavoura de exportação recebeu toda a atenção e a agri- diferença do mapa de Paula Ribeiro, ressaltam apenas as áreas das "melhores" matas
cultura de subsistência só era mencionada ocasionalmente. Dessa maneira, os crité- para a agricultura, excluindo da definição as florestas do Maranhão oriental ou as
rios de fertilidade se limitavam em geral ao cultivo ou às possibilidades de cultivo florestas de transição para o cerrado, no Su1.58 Essas florestas não eram mais conside-
dos produtos da "grande lavoura". Assim A1cide d'Orbigny ainda insistia, durante a radas então como pertencendo à categora das "melhores matas". Dessa maneira, os
década de 1820: "As terras banhadas pelo Itapicuru estão cobertas de plantações de mapas oitocentistas dividiam a província em zonas segundo dois critérios: O primei-
algodão de incrível fecundidade. "54 ro opunha as terras das "melhores matas" aos campos e cerrados, e o segundo as áreas
Mas como lamentou César Marques no seu famoso dicionário, em 1870, pou- colonizadas às zonas "infestadas pelo gentio".
cos autores intententaram explorar sistemáticamente a fertilidade dos solos mara- Se tentamos nos adentrar um pouco mais nas descrições contemporâneas das
nhenses." Ele mesmo fez as observações mais detalhadas sobre essa questão e dedi- diferentes paisagens maranhenses, ressaltando a avaliação do potencial agrário de
cou mais atenção às culturas de subsistência. O seu critério de fertilidade era mais cada uma, tal como visto pelos contemporâneos, podemos usar este material na re-
amplo, ou seja, zonas que se prestavam particularmente para o cultivo da mandioca construição de microrregiões históricas, ou seja, áreas relativamente homogêneas
já eram qualificadas como fertéis, em contraste com os autores da primeira metade tanto do ponto de vista da vegetação quanto da ocupação humana.
do século XIX, preocupados antes de tudo com a lavoura de exportação. Seus escri- O sul sempre é destacado como fundamentalmente diferente do resto da pro-
vincia. Até o século XIX essa zona era chamada de Sertão de Pastos Bons, indício
51. "Poranduba Maranhense ou Relação histórica da Província do Maranhão (...)"[1820], provavelmen-
do papel preponderante da pecuária. Se todos os autores mencionam os "bons pas-
te da autoria de Francisco de N. S. dos Prazeres Maranhão, in: RlHGB, T. 54, Vol. 83, p. 141, 1891.
52. "Poranduba", p.l28.
53. Faria e Silva, Joaquim José Sabino de Rezende, "Mémoria político-econômica sobre o Maranhão" S6. Francisco de Paula Ribeiro, "Descrição do território de Pastos Bons, nos sertões do Maranhão
[aprox. 1805-07], in: Torres, Milton, O Maranhão e o Piauí no espaço colonial. São Luís: Instituto (1819)", in: RlHGB, T. 12, 1849, pp. 41,42.
Geia, 2006, p. 211, 220. 57. Mapa Geográfico da Capitania do Maranhão, que pode servir de Memória sobre a População,
54. Orbigny, Alcide d, Viagem pitoresca através do Brasil. [1853] Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Cultura, e Coisas mais notaveis da mesma Capitania, por Francisco de Paula Ribeiro, Maranhão,
EdUSP, 1976, p. 89. fevereiro de 1819, manuscrito, Biblioteca Nacional.Rio de Janeiro, seção Cartografia.
55. Marques, César Augusto, Diccionário historico-geográfico da província do Maranhão. Rio de Ja- 58. A Carta Geral de 1854, baseada em grande parte no levantamento de Pereira do Lago de 1819,
neiro, Fon-Fon e Seleta, 1970, p. 441 [I. ed. 1870]. utiliza o critério de "melhores terras e matas".
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tos" do Sul, a maioria destaca também a existência de matas próprias para a agri- "As suas terras são geralmente arenosas e, como tais, próprias
cultura." Gaioso, por exemplo, fala das "[ ...] matas preciosas e famosos campos de para a mandioca e batatas, milho e feijão, e impróprias para
criar gados't'" Não referem-se apenas as matas de galeria dos riachos e córregos a plantação do arroz e da cana-de-açucar, Há contudo, em al-
do cerrado, mas também as matas dos vales do Mearim, Grajaú e Pindaré que se guns lugares desta comarca, terras de primeira qualidade para
extendiam até o sul, e toda a zona sudoeste da província, onde acabavam encontrando- canaviais, como as do Jerijó, [...] onde se acha montado um
se com as matas do vale do Tocantins. Paula Ribeiro, o melhor conhecedor desse excellente engenho a vapor que tem prosperado"."
território, descreveu detalhadamente tanto os seus "dilatados campos" quanto as suas
"excelentes matas", e anotava que mesmo os vales entres as serras de Alpercatas, e As chuvas abundantes, a existência de "matas abundantes" e de muitos rios
do Itapecuru até os afluentes do rio Balsas (Macapá e Neves) eram ''[. ..] compostas fazia dessas duas comarcas uma zona ideal para os cultivos de subsistência ou a
de viçosas várzeas regadas por infinitos córregos"." A comparação de seu mapa de extração de madeiras para construção civil e naval." Guimarães, sobretudo, era con-
1819 com a vegetação identificada pelo projeto RADAM sugere que a mata cobria liderada como a terra da mandioca por excelência: "O distrito de Guimarães é o mais
então zonas qualificadas em 1973 como sendo apenas de floresta decidual, vegetação proprio para a cultura da maniva, [...]".69
de transição ou mesmo cerrado. No entanto, como o mapa do RADAM simplifica Bastante distinto era o litoral ao leste da ilha de São Luís, até o delta do Parnai-
situações mais complexas, e Ribeiro descreve o sul como um mosaico de campos e ba. Raimundo Lopes já salientou o carácter peculiar da zona entre o litoral e os rios
florestas, é possivel que a contradição é mais aparente do que real." Seria necessário ltapecuru e Pamaíba, que ele chamou de Maranhão oriental." Desde a época colonial
identificar de maneira mais precisa a localização das florestas naquela época para todo o litoral oriental era considerado inútil porque a terra era "fraca" e arenosa,"
chegar a uma conclusão mais definitiva. grande parte formada pelas dunas dos Lençóis maranhenses. Mesmo as terras situa-
O autor anônimo também insistia no fato que o todo o terreno do sertão era das mais ao interior eram ainda consideradas inferiores:
"fertilíssimo, e produz todos os gêneros do País".63Se a economia do sul da província
limitava-se à pecuaria e à subsistência, isto era apenas devido à distância e a ausência "O terreno, que se acha desde o rio Pamaiba até a baia de
de meios de transporte: "E a distância que faz que ela não possa adiantar a cultura de São José, está ainda pouco cultivado e mal povoado, por
quanto produz, e a restringa em parte ao necessário para sua subsistência". 64 não ter tantas e tão boas matas como as outras terras da
No norte da província as fontes oitocentistas identificavam várias subáreas província;[...]".72
com potenciais agrários diferenciados. O litoral ocidental correspondia então às co-
marcas de Alcântara e de Guimarães." Apesar das terras de Alcântara ainda serem Somente o Munim e os seus tributarios eram destacados pelo autor do Poran-
consideradas "as melhores" da Capitania pelo autor do Roteiro," a maioria dos auto- duba por serem "[...] muito apropriadas para a cultura de algodão, café e laranjas".
res oitocentistas constatou que a predominância das terras arenosas não fazia dessa Paula Ribeiro não se extendeu muito sobre o Maranhão oriental, área que não
zona uma área ideal para a lavoura do algodão. César Marques fez a apreciação mais conhecia bem - ao ponto de cometer vários erros na localização de povoados e vilas
diferenciada do seu potencial agrário: -, mas descreveu-lá no seu mapa como "terreno muito povoado". Gaioso desclassifou
de maneira similar as terras do vale do Munim: "As suas terras são inferiores para a
cultura do arroz, e algodão; porém por outra parte são muito próprias para a cultura de
farinha." Distinguiu no entanto o vale do seu afluente Iguará, "por causa da melhor
qualidade das suas terras para a cultura dos gêneros do país". Essa foi a apreciação
59. "Poranduba", p. 129.
60. Gaioso, Raimundo José de Sousa, Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Ma-
mais detalhada de um representante da "grande lavoura" na época. Como as terras de
ranhão. Rio de Janeiro, Ed. Livros do Mundo Inteiro, SUDEMA, 1970, p. 113 [1. ed. 1818].
61. Paula Ribeiro, "Descrição", p. 43. 67. Marques, César Augusto, Dicionário histórico-geográfico da província do Maranhão, Rio de Janei-
62. Agradeço as observações pertinentes de Christian Brannstrom sobre este ponto. ro, Fon-Fon u. Seleta, 1970, p. 72 [1. ed. 1870].
63. "Roteiro do Maranhão á Goiás pela capitania do Piauí". In: RIHGB, T. 62, 1900, Vol. 99, p. 64. 68. Ver Marques, Dicíonário, p. 240, 366.
64. Ribeiro, Francisco de Paula, "Roteiro da viagem que fez o capitão Francisco de Paula Ribeiro ás 69. "Poranduba", p. 129.
fronteiras da Capitania do Maranhão e da de Goiás no ano de 1813 [... ]". In: RlHGB, Nr. 9, 1848, 70. Lopes, região tropical, p. 148-51.
pp.64. 71. Lopes, Antônio. Alcântara, subsídios para a história da cidade, Rio de Janeiro, Mec. ,1957, p. 132.
65. O município e ulterior comarca do Turiaçu fez parte do Pará até 1852. 72. "Poranduba", p. 125.
66. "Roteiro do Maranhão", p. 136. 73. Gaioso, Compêndio, p. 102.
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matas propícias para a agricultura de exportação no Maranhão oriental eram poucas também as possibilidades agrícolas da freguesia de Araioses, com ''terras muito pró-
e de dificil acesso, não eram dignos de maior atenção. Somente na segunda metade prias" para a lavoura, e das ilhas do delta do Parnaíba, algumas das quais tendo terras
do século XIX encontramos descrições mais elaboradas sobre o potencial agrícola do "mui fertéis", prestando-se até para a lavoura de "ótimo" algodão." Apesar do cultivo
Maranhão oriental. César Marques confirmou a pouca utilidade do rio Munim para a do algodão concentrar-se no vale do Itapecuru, houve sempre uma produção marginal
"grande lavoura": "As terras á margem deste rio [Munim], que não são próprias para nessas áreas isoladas do litoral e em outras microrregiões. O potencial agro-pecuário
a cultura do arroz e do algodão,[ ...]".74Mencionou as boas matas do Icatu, "com- do Maranhão oriental recebeu, em suma, atenção diferenciada, segundo a importân-
postas de madeiras proprias para a construção". Ressaltou que as matas litorâneas cia que cada autor acordava à agricultura de subsistência ou às áreas secundárias de
prestavam-se mais para o cultivo da maniva, e destacou também as terras do Iguará: plantation.
Em contraste, todos os autores oitocentistas são unánimes em louvar a ferti-
"As matas, que existem de um e outro lado [do Iguará], são lidade dos solos dos vales húmidos do rio Pindaré, Mearim, Grajaú e Itapecuru. O
excelentes, e as terras, que formam as suas margens, são óti- baixo Itapecuru era sempre considerado o mais importante e todos exaltavam as suas
mas para a cultura dos gêneros do país e os seus campos são "belas matas", entendendo-se que essa apreciação estética era, sem dúvida, feita em
os melhores para a criação do gado vacuum"." função do seu potencial para a "grande lavoura"."
Paula Ribeiro atribuia ao alto Itapecuru as melhores possibilidades para a la-
Estabeleceu uma diferença entre os pastos a beira-mar e os do interior: voura:

"Os seus campos [do Icatu] banhados por água salgada, ou "A porção de terra mais importante que ele [o Itapecurú] rege
pouco distantes dela, são muito próprias para a criação do é, comojá disse, aquela ainda hoje inculta que se contém para
gado vacuum, mostrando a experiência que outro tanto não baixo do Alpercatas até perto da vila de Caxias, não tanto por
acontece com os do interior, mormente no lugar Resfriado, maior, como por ser de mais vantajosa cultura; e seriam incal-
onde morre muito."?" culáveis os interesses resultados, se todas se aproveitassem
porque a capitania do Maranhão não tem outra mais própria
A diferença dos autores da primeira metade do século, Marques descreveu até para a agricultura"."
o potencial agrícola dos vales dos pequenos rios Periá, Maparí, e Alegre, que desem-
bocam diretamente no mar: "As margens destes rios são ótimas para a cultura de cana Em 1815, essa parte do Itapecuru ainda não era colonizada, mas habitada por
de açucar e do arroz". 77Destacou a freguesia nova de Barreirinhas, "assentada em diversos grupos de indígenas timbira e gamela, que até então tinham logrado defen-
terreno fertilissimo", sendo "um lugar muito apropriado para a agricultura", e tendo der as suas terras contra a invasão dos fazendeiros. Similares descrições eram feitos
"campos ótimos para criação do gado vacuum, e plantação de cana de açúcar"." a respeito dos rios Mearim e Grajaú:
As terras do vale do Pamaíba foram classificadas de fertéis pelo autor anôni-
mo, ressalvando porém que ''[. ..] não passa a sua fertilidade das vizinhanças do mes- "As margens destes dois rios, seguindo por eles acima, e pelos
mo Rio".79Marques, pelo contrário, escreveu que "as margens do rio [Parnaíba] em secos centros, abundam dessas matas preciosas para a lavoura
toda a sua extensão são chapadas de pouca fertilidade [...)", mas destacou a impor- dos dois gêneros algodão e arroz"."
tância das lagoas adjacentes para a pecuária: "E voz geral que nas margens deste lago
[de João Peres] o gado vacuum e suino engorda despropositadamente"." Descreveu As considerações sobre as terras dos vales do Pindaré, Grajau, Mearim e do
alto Itapecuru eram apenas prospectivas de exploração, já que todas essas áreas ainda
estavam fora do alcance dos colonizadores (ver mapa da fronteira agricola). É inte-
74. Marques, Dicionário, p. 488.
75. Marques, Dicionário, p. 386, 387.
76. Marques, Dicionário, p. 386. 81. Marques, Dicionário, p. 86, 364.
77. Marques, Dicionário, p. 481. 82. Xavier, Manoel Antônio, "Memória sobre o decadente estado da lavoura e comercio ...(1822)", in:
78. Marques, Dicionário, p. 108. RIHGB, 1956, vo1231, p. 306. Ver também "Poranduba", p. 126.
79. "Roteiro", 1900, p. 70. 83. Paula Ribeiro, "Roteiro da viagem", p. 20.
80. Marques, Dicionário, p. 505, 427. 84. Gaioso, Compêndio, p.229.
36 DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 37

ressante notar que a maioria das terras indígenas eram classificadas como sendo as que se desenvolveu, no mínimo, depois de quarenta anos de uma intervenção humana
melhores da provincia. No mesmo ato, reivindicava- se a necessidade de subjugar (queimada). A floresta secundária de capoeira e a floresta alta constituem dois tipos
os selvagens e permitir o acesso dos lavradores a suas terras. Mas porque, depois de de vegetação fundamentalmente diferentes com relativamente poucas espécies em
dois séculos de colonização, as melhores matas ainda estavam nas mãos do "gentio"? comum. Na floresta de capoeira dominam palmeiras como o babaçu." É a essa dife-
Isso explica-se somente pelas rápida degradação do potencial agrário nas áreas co- rença que os escritores e fazendeiros oitocentistas se referiam quando lamentavam o
lonizadas. desaparecimento da mata ''virgem''.
Em tempos de "boom" de um produto de exportação como o algodão, a des-
1.3.A DESTRUiÇÃO DA MATA PELA GRANDE LAVOURA truição desta mata alta podia ser tão acelerada que desaparecia no espaço de uma
geração, como foi descrito por Brandão:
A floresta tropical úmida, hoje praticamente extinta no estado, se extendia com
poucas interrupções por todo o norte da capitania do Maranhão no periódo colonial. "A vila do Codó, no Maranhão, começou a ser povoada no
Por volta de 1800 o autor anônimo ainda descrevia as margens do baixo Itapecuru ano 1840, e hoje no districto dessa villa, não existem matas
cobertas de mata alta: virgens senão no alto dos morros, que são impróprios à agri-
cultura; tudo o mais foi derribadojsic]!"."
"As margens do Rio Itapecurú subindo-se por
ele até a Cachoeira grande, são por um e ou- o crescimento de uma mata secundária depende não somente do clima (o re-
tra parte cobertas de muito grossa e densa mata. aime de chuvas) e da qualidade do solo, mas também da maneira como o terreno
A parte, que fica ao Norte tem sempre a largura de quatro até foi roçado anteriormente. O tamanho da roça, a temperatura da queimada, o tipo e a
cinco léguas; a que fica ao Sul, de duas até tres; a do Norte duração do cultivo, e finalmente o tempo que o terreno ficou sem cultivo influem na
se termina-se nos Campos do Iguará; a do Sul nos Campos formação da capoeira. Desde a época colonial distinguia-se a capoeira-mirim (vege-
dos Perizes. Da Cachoeira grande até as Aldeias Altas são as tação rala dos primeiros anos depois da queimada) e a capoeira-açu (floresta secun-
ditas margens abertas com campos, e povoados com fazendas dária mais espessa que se desenvolve depois de 12 anos). 90
de gado. Das Aldeias Altas para a Freguesia de Pastos Bons, Contrariamente ao costume atual de cultivar uma roça dois ou três anos segui-
principia outra vez a mesma mata por uma e outra parte total- dos (socas e resocas), a regra dos fazendeiros durante o período colonial parece ter
mente inculta desde a fazenda do seco, tres léguas acima do sido a do cultivo único, acelerando destarte o processo de desmatamento:
lugar de Trezidelas, até a mesma freguesia"."
"Cada um ano semeam 300 a 400 braças quadradas de terre-
Da mesma maneira Paula Ribeiro menciona que o rio Itapecurú "corta varias no; e para ser boa a lavoura, não se deve semear no mesmo
pontas da mata grande ou geral, que vem da Capitania do Pará"." Em outras palavras: sítio, senão pasado 12 anos"."
antes do início do processo colonisatório, as matas do Maranhão oriental constituiam
uma extensão da selva amazônica, ligadas a essa por um continuum de mata. Mas no Nesse sentido escreveu também Joaquim de MeIo em 1767:
final da época colonial já não sobrava muita floresta nas áreas colonisadas: "A mata
virgem ou firme (nunca cortada) já é rara, não falando nas terra dos selvagens"." "Achei que o sítio de Pastos Bons é o melhor de todo o ser-
Mesmo não aceitando o qualificativo de ''virgem'' para toda a extensão da floresta tão por ser mui fresco, ter excelentes águas, e serem boas
maranhense - idéia equivocada, como já foi dita -, não resta dúvida que esses autores todas aquelas terras porque os moradores delas não roçam
se referiam ao que hoje é chamado de 'floresta alta', em contraste com o mato das
capoeiras. A floresta alta, por definição, não sofreu intervenção agrícola pelo menos
88. Balée, Footprints ofthe Forest, p.123, 134, 136; Denevan, "Pristine Myth", p. 374; e Andrade.
nos últimos duzentos anos, enquanto a floresta de capoeira é a vegetação secundária Manoel Correia de, "Dinámica de povoamento e a ocupação do espaço geográfico no Maranhão",
Estudos universitários, Recife, 7, 2/3 (1967), p. 43.
115. "Roteiro", p. 68. 89. Brandão Junior, A escravatura, p. 33-34.
116. Paula Ribeiro, "Roteiro da viagem", p. 18. 90. "Poranduba", p. 141.
117. "Poranduba", p. 141. 91. "Poranduba", p. 126.
38 DE CABOCLOS A BEM- TE-VIS MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 39

mais que uma vez na vida, e alí fazem todos os anos as suas a caatinga. Muitas fontes oitocentistas mencionam as densas florestas dos vales do
plantações, [...]".92 Munim, Iguará e Pirapemas. Ao leste da linha demarcada pelos mapas de 1838 e 1841
também havia florestas, mesmo se não cobriam todo o terreno até a beira do Parnaiba.
Sugere assim que os moradores de Pastos Bons podiam fazer uso contínuo dos Os registros de terra de 1854-57 contém expressões como "nas matas do rio Magú"
terrenos roçados, contráriamente aos lavradores do resto da capitania. Gaioso e Bran- que referem-se claramente a florestas numa zona considerado hoje de transição para
dão não fornecem indicações a tal respeito, apenas Garcia d' Abranches menciona o a caatinga." Da mesma maneira a memória oral sempre menciona matas nessa área
duro trabalho de abater a mata e limpar a roça." do Maranhão Oriental, como a "mata do Brigadeiro", hoje desaparecidas." O próprio
O costume atual de roçar dois, três ou mais anos seguidos o mesmo terreno, e projeto RADAM encontrou ainda algumas áreas de areias quartzosas, do tipo que
de diminuir o tempo de capoeira a sete, cinco anos ou menos tempo ainda, tem sua domina na Maranhão oriental, sob vegetação florestal." Isto permite levantar a hi-
origim na redução das terras de mata disponivéis na região. Faltaria apurar com mais pótese que no Maranhão oriental, devido às partcularidades do clima, da qualidade
precisão onde e quando essas técnicas menos ecológicas foram implementadas." Em dos terrenos e da colonização mais antiga, as matas primárias foram substiuidas não
todo caso, as queimadas repetidas e o seu uso para a agricultura levaram a formação por palmeirais, mas por uma vegeteção de cerrado ou mesmo de caatinga. Restaria
dos grandes babaçuais, formados quase exclusivamente pelas duas espécies dessa apurar até que ponto isto foi o resultado da "grande lavoura" unicamente, ou também
palmeira (Orbignya oleifera Burret e Orbignya martiana), característicos da paisa- da pequena produção camponesa, que usava a mata não somente para roçados, mas
gem de várias microrregiões maranhenses até um passado recente (ver mapa). No também para retirar lenha. Estimou-se a uma tonelada de lenha per capita o consumo
entanto, esse tipo de floresta secundário apenas domina na chamada zona dos co- de famílias no campo." Entretanto, a densidade demográfica no Maranhão oriental
cais, e não no pediplano central do Maranhão, caracterizado por florestas deciduais era de apenas 0,3 habitante por quilómetro quadrado em 1798, chegando a 0,8 em
ou mesmo vegetação de transição para o cerrado, zonas que no século XIX ainda 1821 e 1,2 em 1838. Estima-se por outro lado que a agricultura de coivara é ecologi-
eram contabilizadas como pertencendo às áreas das "melhores matas". Aqui também, camente sustentavel no trópico úmido até uma população de 7 habitantes por quiló-
grandes extensões de terra perderam sua vegetação original. O clima mais seco e metro quadrado." Mesmo se as condições no Maranhão eram inferiores às da floresta
possivelmente a qualidade inferiores dos solos resultaram na sua substituição não por amazônica, parece pouco provável que a limitada produção de subsistência fosse a
palmerais, mas por florestas deciduais ou por vegetação de cerrado. única responsavel por tamanha mudança, para não dizer degradação ambiental.
No Maranhão oriental as condições climáticas eram menos favoravéis ainda. Nas áreas mais húmidas do vale do ltapecuru, as derrubadas também resulta-
Enquanto Paula Ribeiro ainda descreveu grande parte dessa área como de floresta, vam em devastações irreversivéis, já percebidas pelos contemporâneos:
o projeto RADAM qualificou em 1973 a maior parte do Maranhão oriental como de
transição para o cerrado ou mesmo para a caatinga. Paula Ribeiro não conhecia bem o "As derribadas tem fatigado o sólo, que em muitas partes não
Maranhão oriental, e por isso sua descrição e seu mapa não são totalmente fidedignos produz senão algumas graminéas somente próprias para o
a esse respeito. Outras fontes, porém, confirmam a existência de grandes extensões sustento do gado; a temperatura tem augmentado, as estações
de florestas no Maranhão oriental. Nos mapas da província de 1838 e 1841 os limites tomaram-se irregulares, as chulvas algumas vezes estragam
da área das "melhores matas" se extendem de Periá no litoral até Caxias no ltapecu- as plantações, e outras faltam de todo; os riachos e alguns
ru, incluindo zonas classificadas hoje de restinga ou de transição para o cerrado ou rios de pouco fundo, como o Itapecuru, tem secado ou qua-
si impossibilitado a navegação, e as madeiras de construcção
92. Citado em Marques, Dicionário, p. 513.
93. Garcia d'Abranches, Espelho, p. 4l.
94. Para as terras de uma área de colonização antiga, a baixada ocidental, Droulers fornece os seguintes
dados: uma roça plantada depois da queimada da mata virgem, e cultivada durante dois anos, pre- 95. Registro de Terras da Freguesia da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Araioses, 1854-57,
cisa de cinco anos para se regenerar. Depois de um segundo cultivo (dois vezes dois anos, chamado registro no. 218. Arquivo da COTERMA, São Luís.
soca), a floresta precisa de oito anos para se regenerar. Depois de um terceiro cultivo (tres vezes 96. Assunção, Matthias Rõhrig, A Guerra dos Bem-te-vis. A Balaiada na memória oral, São Luís, SIO-
dois anos, chamado resoca), a floresta precisa de doze anos para se regenerar. Mas durante este pro- GE, 1988, p. 58-62.
cesse de soca ou resoca extensões inteiras podem virar improdutivas ou estéreis, chamadas então de 97. Projeto RADAM Levantamento, Vol. 2, III, p. 55.
jinjibral oder melozal. Droulers, Martine, Aspectos Rurais. Pesquisa polidisciplinar da prelazia de 98. Dean, Warren, A forro e a fogo. A história e a devastação da mata atlântica brasileira, São Paulo.
Pinheiro, Vol. 6. São Luís, IPEI, 1976, p. 86. Pode-se assumir que o clima mais seco no Maranhão Companhia das Letras, 1998, p. 210.
oriental ou no sul da província prorogava o tempo necessário para a generação de uma boa floresta 99. Richards, P. W., The tropical rain forest. An ecological study, 2. edição, Cambridge, Cambridgc
secúndaria. University Press, 1996, p. 459.
40 DE CABOCLOS A BEM- TE-VIS MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 41

tomaram-se raras, ou somente existem muito distante das os anos ao meio do rio, aumentando alí a quantidade de areia
habitações".100 movediça, que já existe". 103

Isto acontecia apesar da densidade demo gráfica nunca chegar perto da exis- A rápida destruição da floresta, particularmente da mata alta considerada "vir-
tente na mata atlântica. No Baixo e Médio ltapecuru, a densidade era de aproxima- sem", tampouco escapou às autoridades coloniais e imperiais. Além da preocupação
damente 0,7 habitantes por quilômetro quadrado em 1798, 1,5 em 1821, e 2,3 em geral com a prosperidade da província, necessária para melhores rendimentos fís-
1838, enquanto Warren Dean estimou que na mata atlântica era de 2 habitantes por cais, elas estavam sobretudo interessada na navegação dos rios, e na manutençãodos
quilômetro quadrado em 1700, e 10 em 1800.101 chamados "paus reais", necessários para o abastecimento da marinha. Desde 1652
Como as terras mais cobiçadas por razões de fertilidade e de comodidade • coroa portuguesa mantinha um monopólio sobre todas as madeiras consideradas
(transporte) eram as beiras dos rios, foi aqui que a devastação se manifestou primeiro. boas para a construção naval. As "madeiras de lei" só podiam ser cortadas pelos
Os desmatamentos próximos aos rios acceleravam a erosão nas beiras, provocavam proprietários para seu uso privado, mas não podiam ser vendidos sem consentimento
o assoreamento dos rios e aumentavam o risco de inundações, já denunciado por dos oficiais da coroa, que além do mais se reservava o direito de extraí-los, mesmo
Gaioso por ocasião da enchente de 1788-89 no ltapecuru: localizados em propriedades particulares, Tamanha ingerência por parte do estado
"Quem sabe se acharemos a razão deste pequeno dilúvio, na circunstância de teve o resultado oposto ao desejado: em toda parte derrubavam-se as madeiras de
se haverem abatido os madeiros, que ficam nessas beiradas cujos destroços tirando as lei, em geral sem aproveitamento adequado. Em comparação com outras colônias
barreiras o seu necessário amparo, foram precipitando as areias no fundo do rio, de nas Américas, a política ambiental portuguesa foi assim particularmente desastrosa.
que se originou um menor leito, para receber as aguas do monte. O que é certo, e que Nlo somente resultou na destruição das florestas, mas além disto ném gerou renda
desde então por diante, o rio se tem feito mais inavegável, por causa dos muitos secos correspondente ao valor de mercado das madeiras de lei. 104
que impossibilitam o trânsito das canoas't.!" No final do século XVIII alguns intelectuais, inspirados pelo naturalista ita-
De maneira similar argumentava cinquenta anos depois o engenheiro alemão liano Domingos Vandelli, professor na universidade de Coimbra, e protegidos por
Gustav Dodt, no relatório de sua missão para o governo imperial: Rodriguo de Sousa Coutinho, ministro da Marinha e do Ultramar entre 1796 e 1801,
começaram a refletir sobre a destruição das matas. Iniciaram destarte uma linha de
"[...] pois tendo se derrubado em toda a parte a mata pensamento ambientalista no Brasil. 105 Na mesma época a coroa portuguesa intentou,
na beira do rio, ficam as ribanceiras expostas a ação mais uma vez, conter o desmatamento do litoral e das beiras de rio com a carta régia
dos enchentes, a que elas não podem resistir, visto que do 13 de maio de 1797, ordenando não somente a preservação dos paus reais para a
se compõe de um barro muito frouxo e arenoso. [...] Marinha, mas além do mais declarando propriedade da coroa todas as áreas do litoral.
Ocorre que este estado do rio tende a piorar de ano para ano A intenção era de compensar os proprietários de terras do litoral com terras no inte-
pelo Motivo de que os habitantes das margens do rio costu- rior. Esse plano ambicioso nunca chegou perto de ser implementado.l'" No caso do
mam cortar o mato, que cobre as ribanceiras para plantarem Maranhão, como constatou de maneira lapidar um parecer feito para o presidente da
nestas fumo.As enchentes encontram desta forma as ribancei- província Souza e Meio em 1840:
ras despidas de qualquer vegetação e sendo elas formadas de
uma areia muito fina e pouco barrenta não podem resistir ao "Esta carta régia nunca teve execução nesta Província, por
ataque das aguas e partes consideráveis são arrojadas todos que as matas proximas á costa do Mar, e margens dos rios
já então não existia a maior parte delas: e a unica providên-

103. Dodt, Gustav, Descrição dos rios Parnaiba e Gurupí. Relatórios sobre a exploração dos mesmos,
seguidos de uma memória sobre o porto de São Luís do Maranhão, Belo Horizonte, Itatiaia e São
100. Brandão Júnior, A escravatura, p. 33. Paulo, USP, 1981, p. 35, 65-66 [I. ed. 1873].
101. Os dados sobre o Maranhão foram calculados a partir dos censos demográficos de 1798, 1821 e 104. Miller, Shawn William. Fruitless Trees. Portuguese Conservation and Brazil s Colonial Timber.
1838 e da superfície dos municípios. Esta última se encontra na Sinopse estatística do Maranhão Stanford: Stanford University Press, 2000, p. 1-69.
/980, São Luís, Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, 1980. Para a mata atlântica, ver 105. Para mais detalhes, ver Pádua, "Aniquilando as Naturais Produções", Um sopro de destruição. p.
Dean, Aferro e afogo, p. 94 e 116. 34-129, e Dean, A ferro e a fogo, p. 134-39, 160-63.
102. Gaioso, Compêndio, p. 101. 106. Miller, Fruitless Trees, p. 55-61.
.042 DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇAo .043

cia que a tal respeito deram os Capitães Gerais, quando man- desmatamentos. No caso das câmaras do Icatú e Tutóia acima citados, as cartas po-
davam passar cartas de Sesmarias foi logo com a expressa dem ter servido também como desculpa para justificar o atraso na construção ou para
condição de ficarem n'elas reservados os paus reais, [...]. pedir mais verbas. No entanto, a rápida destruição da mata foi registrada por tantos
Nestas novas Sesmarias, que se concederão com a expressa observadores oitocentistas no Maranhão, e de origens sociais tão diversas, que me
condição acima declarada, não foram igualmente poupados parece dificil negar que aconteceu, de fato.
pelos proprietários os paus reais: hoje só muito longe da Ca- O desaparecimento das matas, e o impacto negativo do desmatamento sobre a
pital, nas margens dos rios Itapecurú, Preto, Mearim, Tury e aaricultura de exportação resultou em duas linhas de argumentação. A primeira, de-
outros é onde aparecem com abundancia madeiras para cons- fendido em geral pelas autoridades coloniais ou representantes do governo imperial
truções, [...]"107 na província, lamentava a destruição, que para eles era o resultado da ignorância e da
cobiça sem limites dos fazendeiros, que não ínvestiam na conservação de suas terras.
Em 1825, logo depois da Independência, o presidente da província Costa Bar- Âlsim o magistrado e Ouvidor Geral interino da capitania Bernardo José da Gama
ros deu continuidade à preocupação ambientalista quando assinou uma portaria, re- •• creveu em 1813:
querendo que todas as câmaras municipais da província proibissem o desmatamento
à beira dos rios. As câmaras, talvez para protelar qualquer ação nesse sentido, respon- "O forte da agricultura é o algodão e o arroz, que são alí de
deram que não sabiam como interpretar a medida, se a proibição era de meia légua de uma produção prodigiosíssima. Mas [...] será este prodígio de
cada lado, ou seja, uma légua no total, ou de uma légua em cada beira.'?' Seja como muito pouca dura pela desmarcada ambição dos agricultores,
for, a nova medida tampouco surtiu o efeito desejado, o que confirma o julgamento e, ao mesmo tempo, pela absoluta ignorância da arte; porquan-
de Warren Dean sobre a ineficiência do absolutismo português no trópico, enquanto to fazendo-se infinitas colheitas, e todas elas á custa de matas
a sua capacidade de impôr restrições de caráter ambientalista aos colonos. 109 Ou seja, virgens que fazem derrubar e incendiar todos os anos, para
o Maranhão estava muito distante não somente em termos geográficos das ilhas de perceberem grande quantidade de frutos, que abundam muito
Mauricius e Tobago, onde, desde o século XVIII, implementaram-se políticas de con- mais em terras que ainda não foram cansadas, acha-se a Capi-
servação das florestas nativas.'!" tania já tão despida de seus grandes arvoredos, que os habitan-
Na época da Independência os municipios do litoral maranhense já expe- tes, por seguir este estragado sistema, já se tem afastado cem e
rimentavam problemas no abastecimento de madeiras para obras maiores como a mais leguas distantes do seu berço primitivo, [...]. E, portanto,
construção do quartel, "[ ... ] pela falta que aqui há de madeiradas percizas para ele" naquele país a abundância de terras a causa de sua destruição,
ou da igreja matriz "[ ...] em razão de serem muito longe as madeiras que devem a facilidade de subsistência a causa do ócio, e a riqueza que
vir de seis e sete dias de distância, [... ]".111 Miller argumentou nem todas as queixas hoje parece marcar a base de uma duradoura felicidade, não é
sobre a destruição das madeiras de lei eram de boa fé. Muitos proprietários de matas devida se não á ambição daqueles, que, abandonando terrenos
com paus reais praticavam um "obscurantismo ao revés" que os levava a negarem que podiam ajudar e aproveitar, só avançam novos terrenos,
sua existência para não serem incomodados pelos oficiais da coroa encarregados de para tirar maiores vantagens, ainda que aos olhos do Estado
explorá-los. Mesmo esses oficiais podiam estar interessados em negar a existência de não seja menos que uma direta destruição do País't.!"
madeiras de lei em seus relatórios para melhor aproveitá-los de forma ilícita.!" Por
conseguinte sempre é preciso identificar as motivações dos autores das queixas sobre O autor anónimo do "Roteiro" mostrava através do exemplo de Minas Gerais
como era de uso comum dos lavradores de "procurar como fertéis, as terras cobertas
107. Oficios de diferentes particulares ao Presidende da Província, Maranhão [= São Luís], 03/02/1840, de extensas matas", e denunciava os "dois vícios" dos fazendeiros maranhenses:
APEM. Julgamento similar é feito por Gaioso, Compêndio, pp. 210-211.
108. Oficios das câmaras municipais ao Presidente da Província, Icatú, 15.10.1825; e São Bemardo,
"Aqui há dois VÍCiosque emendar: o primeiro é a escolha, que
19.10.1825, APEM.
109. Dean, Aferro e afogo, p. 60, 99. Para Miller, Fruitless Trees, não se trata de ambientalismo, mas indistintamente fazem das matas, havendo em muitas partes
bém de utilitarismo. Ver p. 52-60.
\\ O. Grove, Green Imperialism, cáp. • 113. Gama, Bemardo, "Informação sobre a Capitania do Maranhão, dada em 1813 ao Chanceller Antô-
tIl. Oficios das câmaras municipais ao Presidente da Província, Icatú, 03.12.1825, Tutóia, 21.02.1839. nio Rodrigues Velloso", Moraes, Jomar (ed.), in: Projeção, Suplemento Cultural, São Luís, Asso-
112. Miller, Fruitless Trees, p. 37-39. ciação Comercial do Maranhão.Ano 11,I, 1981 (março), p. 13.
44 DE CABOCLOS A BEM-TE-VIS MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇÃO 4S

campos de admitir a mesma cultura: o segundo é o estado, em Há outras razões de peso contra o uso do arado: "O uso do arado substitui a
que deixam as terras depois de feitos os roçados. Um terreno IItrutura do solo natural, que permanece adequada (solta) por outra artificial, que se
tão occupado não pode admitir arados: porém se logo no pri- toma compacta demais, se não for artificialmente mantida: Quem usa o arado uma
meiro rompimento, o prepararem melhor: arrancando as rai- vez, tem que usá-lo sempre.'?" No entanto, a elite letrada associou o arado com
zes que no referido País, são tão chegadas a superficieda terra, progresso também no Maranhão oitocentista. No romance Jacy. Lenda Maranhense,
que muitas vezes não sustentam as arvores; com este maior publicado em capítulos na imprensa em 1867, o autor Sabbas da Costa insere uma
trabalho ficando as terras dispostas para o uso dos arados, se discussão entre um fazendeiro de Coroatá, no vale do Itapecuru, e o seu feitor na dé-
diminuiria nos mais anos o número dos trabalhadores't.!" cada de 1840. O fazendeiro, português e progressista, defende o uso do arado porque
permite um uso mais intensivo da terra. Onde é usado "o progresso é palpavel". O
A solução advogado pelos dois autores era o fomento à pecuária, o cultivo feitor, conservador e pragmático, responde que o arado é inutil no Maranhão, porque
dos campos naturais, assim como a introdução do arado, depois de uma limpeza "temos grandes matas" e "os escravos são broncos, não sabem lidar com arados"."?
da roça, livrando-a das raizes das arvores. As medidas eram parecidas às propostas É interessante anotar que os autores que estavam diretamente involvidos com a agri-
por outros ambientalistas, como Baltasar da Silva Lisboa (1786) ou José Gregório cultura da época, como Xavier ou Gaioso, argumentavam no sentido oposto, contra o
de Moraes Navarro (1799), cujas publicações talvez inspiraram os dois autores su- UIIO do arado. Xavier, dono de uma fazenda no alto Itapecuru, escreveu que
pracitados. Foram depois advogadas também pela Sociedade Auxiliar da Indústria
Nacional, constituida em 1825. Sobretudo o arado, praticamente não usado no Brasil "[...] ali [no Maranhão] não é admissivel o uso do Arado não
oitocentista, constituia por isto mesmo "uma espécie de utopia tecnológica distante só em razão da falta de Estrumes para adubar Campos Vastos,
e idealizada't.!" As medidas propostas pelo magistrado colonial se parecem àquelas como porque esses mesmos campos necessitariam de um tra-
defendidas pelos profetas da "modernização" no século vinte, que atribuiam à pecuá- balho incompreensivel par extrair todas as raizes de Madei-
ria extensiva e à agricultura "moderna" (sempre identificado com o arado) um papel ras, o que desanimaria o mais opulento e corajoso cultivador:
fundamental no "desenvolvimento" da Amazônia, mesmo se essas técnicas não cor- Não há pois outro Caminho que o de Lavrar as terras incultas
respondem mais ao estado dos conhecimentos da pedologia tropical. De fato, o uso de Matas existentes debaixo da influência do Gentio Bárbaro
do arado no trópico foi e permanece problemático por várias razões. Na agricultura [ .•. ]".120

de coivara as raizes das arvores permanecem na terra. Assim, uma vez que a roça
não é mais usada para a agricultura, podem brotar de novo e garantem uma mata Gaioso também refere-se a carta régia de 1797, cujos dispositivos nunca foram
secundária boa, o que não é o caso quando se usa o arado. Além do mais, a queimada compridos. Limita-se a sublinhar que sém o desmatamento contínuo de novas terras
reduz temporáriamente as pragas no roçado. Warren Dean argumentou mesmo que nlo seria possivel a agricultura de exportação e pergunta ao leitor:
a voracidade das formigas saúva "obstavam, inexoravelmente, a transferência dor
regimes agrícolas europeus e africanos" e foram "uma causa importante da persistên- "[...] como poderã então continuar a lavoura sem esses incen-
cia da agricultura itinerante". 116 O testemunho mais impressionante sobre o impacto dios, e destruição das matas, uma vez que sem esses destro-
negativo desses insetos no Maranhão é, sem dúvida, o processo movido pelos reli- ços, que formão o unico estrume das terras, não podem as
giosos do convento de Santo Antônio contra as formigas a redor dos anos 1712-13, plantas fructifícar".'!'
acusando-as de furto qualificado e dano ao seu imóvel. Foram condenados a viverem
em lugar distinto e pretendeu o piedoso primeiro copilador do processo que "sairam
a toda a pressa milhares daqueles animalejos, que, formando longas e grossas fileiras,
demandaram em direitura e sinalado campo, deixando as antigas moradas [...]"117
118. Comunicação pessoal do Dr. Bernhard Kemper, da Bundesanstalt für Geowissenschaften und Ro-
hstoffe, em Hannover, Alemanha, na década de 1980.
114. "Roteiro do Maranhão", p. 98. 119. Sabbas da Costa, "Jacy (Lenda Maranhense)". Capítulo 11,Semanário Maranhense, 8.9.1867, p. 3.
115. Pádua, "Aniquilando as Naturais Produções', nota 13. Ver a reedição fac-sirnilar organizada por Jomar Moraes, São Luís: SIOGE, 1979.
116. Dean,Aferroeafogo,p.124-27. 120. Xavier, Memória, p. 309-310.
117. "O processo das formigas", introdução e edição de Jomar Moraes, Projeção do Nordeste, Suple- 121. Gaioso, Compêndio, p. 211. De fato não são as raizes que constituem o estrume da terra, mas as
mento Cultural, São Luís, Ano 11,2, 1981 (abril-maio), sem paginação. cinzas da queimada.
DE CABOCLOS A BEM- TE-VIS MATTHIAS ROHRIG ASSUNÇAo 47
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Diante do problema da produtividade descrecente da agricultura em terras can- barra do rio Alpercatas, e em algumas áreas do baixo Mearim. Mas várias tentativas
sadas, sem possibilidades de investir na intensificação da produção, aparentemente de integrar áreas mais amplas ao domínio colonial e de fundar vilas novas como Leo-
só sobrava uma solução aos lavradores: desmatar novas áreas de floresta. Essa era a poldina ou Príncipe Regente fracassaram.
lógica inerente à produção colonial, da qual os fazendeiros não conseguiam escapar. Podemos estabelecer, então, algumas diferenças fundamentais entre o Mara-
Se roçavam "terrenos já cansados", isto exigia maior investimento de mão de obra, nhão e outras regiões de plantation. No Maranhão a grande agricultura de exportação
que não seria recompensada por safras melhores: Inicia-se muito mais tarde do que no Nordeste. Se tormarmos em conta esse aspecto,
• densidade mais baixa da população e o fato que a floresta tropical úmida cobria
"Foi crescendo a lavoura, e foram também dilatando-se as dis- uma parte maior do território, surpreende a rapidez com a qual a mata foi devastada
tâncias, de tal sorte que presentemente, ou as produções hão- no Maranhão. Dado o uso de técnicas agrícolas similares, podemos buscar uma ex-
-de ser mais diminutas, por se ver o lavrador obrigado a culti- plicação no fato do Maranhão ser mais amazônico que nordestino, ou seja, rico de
var terrenos já cansados, e para que se necessita muito maior matas mas pobre de terra, não dispondo de massapês como o litoral nordestino. Mas
beneficio para fazê-los produtivos, e maior número de braços, no Nordeste açucareiro - da Paraíba ao Recôncavo baiano - as áreas de plantation
ou deve recorrer-se aos terrenos infestados de gentio bravo, limitavam-se a uma estreita faixa litorânea. Os pequenos produtores do Agreste e do
que é o estado a que se acha hoje reduzido o agricultor,[...]".122 Sertão, e os fazendeiros de gado foram responsável pelo avanço da fronteira depois
da fase inicial de conquista do litoral, no século XVI. Na parte septentrional do Ma-
Xavier argumentou de maneira similar em relação à produção de arroz: ranhão, pelo contrário, grande parte da fronteira agrária coincidia com os limites da
zona de plantation até meados do século XIX (ver mapa). Não quero negar o papel
"Por olvidação não tratei em devido lugar do Artigo Arroz, relevante do campesinato na fronteira agrícola em áreas e períodos específicos. Como
sobre o qual somente direi que a sua produção naquela Pro- veremos a seguir, grande parte do Maranhão oriental foi ocupado por camponeses de
vincia já foi muito maior quando os Lavradores o cultivavam diversas origens desde pelo menos a primeira metade do século XIX, e esse movi-
em Matas, e agora o não podem fazer, por Lavrarem terras mento extendeu-se ao Maranhão central e occidental no século XX. Na fase crucial
Cansadas de Capoeiras, é a Colheita deste genero muito mes- dos anos 1800-1840, no entanto, muitos grandes fazendeiros do algodão estavam
quinha, e só tomará a aumentar-se quando tivermos a fortuna usentados literalmente em terras de fronteira, num arco que se extendia de Viana até
de ver desinfestados do Gentio as preciosas Matas e terras que Caxias, passando pelo Mearim e Codó.
ocupa".123 No Sudeste, a mata atlântica também occupava faixas mais largas, mas o aces-
10 estava sendo dificultado pela topografia: a Serra do Mar constituia uma barreira
o dilema dos fazendeiros explica a reivindicação de novas terras para a "gran- natural durante a primeira fase da colonização. Ulteriormente houve aqui também
de lavoura", sempre reiterada durante o século XiX. As terras novas só poderiam ser fazendeiros assentados na fronteira, preocupadas em "limpar a sua área" e extermi-
as terras do interior da província, ainda sob domínio do "gentio". A "falta de terras nar os "bugres", mas essa tarefa de honra duvidosa já havia sido realizada em grande
por causa do gentio" constituia-se, segundo Gaioso, num dos cinco "entraves" que parte pelos bandeirantes caçadores de ouro e de escravos. Quando o café ocupou o
levavam os fazendeiros e a "grande lavoura" a falência. 124 planalto paulista, teve que expulsar não o "gentio", mas os posseiros e sitiantes.!"
A veemência das reivindicações pela colonização das matas do Maranhão cen- A rigidez da fronteira agrícola na primeira metade do século XIX reforçou os
tral resultou do impasse da agricultura de exportação na primeira metade do século problemas da "grande lavoura" no Maranhão e, possivelmente, também aumentou a
XIX. A erosão crescente dos solos nas zonas antigas não foi compensada pela inte- pressão sobre o incipiente campesinato em outras áreas. É significativo, a tal respeito,
gração de novas terras, porque a "fronteira", ou seja, a fronteira entre a sociedade que a abertura dessa fronteira se produz nos anos imediatamente posteriores a Balaia-
colonial, logo nacional, e as sociedades indígenas avançou muito pouco nesse perío- da, revolta cuja área principal é constituida por microrregiões de ocupação antiga e
do. A comparação entre os mapas de 1819 e 1838/41 revela apenas duas pequenas com maior incidência de terras cansadas.
alterações no traçado da fronteira: a colonização progrediu no rio Itapecuru até a

122. Gaioso, Compêndio, p. 228.


123. Xavier, Memória, p. 316. 125. Ver por exemplo Dean, Warren, Rio Claro. Um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920.
124. Gaioso, Compêndio, p. 228. Rio de Janeiro, paz e Terra, 1977, capítulo I.

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