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TEOLOGIA DA LIBERTAGAO E CULTURA POLITICA MAIA CHIAPANECA o Congresso Indigena de 1974 e as raizes do Exército Zapatista de Libertag&o Nacional IGOR LUIS ANDREO. # nc Copyright © 2013 Igor Luis Andreo Grafia atualizada segundo 0 Acordo Ortogratico da Lingua Portuguesa de 1990, ue entrou em vigor no Brasil em 2009 PuatisHers: Joana Monteleone/Haroldo Ceravolo Sereza/Roberto Cosso eDIgA0: Joana Monteleone EDITOR ASSISTENTE: Vitor Rodrigo Donofrio Arruda PROJETO GRAFICO E DIAGRAMAGAO: Gabriela Cavallari capa: Rogério Cantelli Revisko: Dario Galvéo. ASSISTENTE DE PRODUCAO: Juliana Pellegrini/Ana Ligia Martins Este livro foi publicado com o apoio da Fapesp rama. CARLOCACLO A FONTE, SNDIEATO CIOL GOS EDTORES DE LAOS, AS ‘Andre, Igor Luis ‘TOLOGI Dk URERTACAO E CULTURA FOUINCA MAA CHURECA ‘O.concassso molcEA De 1974 € A AZES bo BAGO BAPTA DE lusemagio mo Igor Luis Andieo. ‘So Paul, Alameds, 2013, 320p. Teta bi ISBN788579362108, 1 Mésico ~ Pltica © yovermo ~ 1968-1983. 2. Indios do Mésico — Relasées com o govero. 3 Chispas (México) ~ Hairs ~ Resets amponess 4 Movimentnsocitis~Mesico- Hits Igeja Gaon palzice x Atvidades pliuea. 6 Ejérato Zapatista de Libcrenns Nacional (Mexico) 1 Title 131966 cD: 972.0616 DU: 9472" 1970988" — —— ee ALAMEDA CASA EDITORIAL Rua Conselheiro Ramalho, 694 — Bela Vista CEP 01325-000 - Sao Paulo - SP Tel. (11) 3012-2400 www.alamedaeditorial.com.br Dedico a todas as‘almas que de alguma forma alimentam 0 sonho de um mundo onde caibam todos os mundos capitulo 4 OS MAIAS DE CHIAPAS EO EZLN Os maias vivern, no so fésseis que sornente podemios admirar nos museus. S80 contemporéneos nossos e possuem uma histGria rmilenar com muitas transformagdes 20 longo dos séculos e mifénios. | As sociedades dominantes s80 diviscrias. Hé os que mandam, oS sujeitos, e 08 que obadecem, os objetos. E sao os objetos que tem comagado a levantar Sua voz porque jd no aceite serem objet0s ~ Carlos Lenkersdort © Congresso indiosna desatou as forgas ocultas da realidade chiapaneca Era como o tronco de uma érvore como raizes de 500 anos © cvjos cgahos e folhas comegaram a brotarimediatamente apés... Antonio Garcia de Leén 4.1 Os indigenas mexicanos do século XX % O primeiro paso necessério para construgdo deste capitllo con- siste na reflexdo acerca de quem sao e em que consiste o ser indi- gena do México p6s-revolucionério e, mais especificamenta, quais caracteristicas conformam o ser indfgena de ascendéncia maia em Chiapas de meados da década de 1970. Inicialmente é importante reafirmar que as culturas indigenas, como quaisquer culturas, ndo possuem caracterfsticas absolutas € imutéveis. Portanto, as culturas indigenas do século XX nao so es- qualidos resquicios de culturas pré-hispanicas: Esta visio eoloca as culturas indigenas fora da hist6ria, pois, _ interpreta as transformag6es que inevitavelmente tém expe- rimentado nos tltimos quinhentos anos desde a chegada dos europeus, como negativas e como perda de sua autenticida- de. Assim sendo, nega as culturas indigenas a possibilidade de mudar sem perder sua identidade € por isto a, priva de um futuro proprio. Em suma, concebe aos grupos {ndfgenas como sobreviventes do passado que devem ser valorizados e cuidados quase como pegas de museu, € nao como seres hist6ricos que tem sido capazes de transformar sua cultura € sua sociedade. [..-] muitos aspectos importantes das culturas indigenas atuais. so de origem europeia, ou tem sido produto da criagao cultu- ral dos homens ¢ mulheres indigenas posteriores & conquista. Por isto, a0 privilegiar a tradigao pré-hispanica apresentase um visio parcial e distorcida de sua riqueza cultural. \ Por outro lado, os maias chiapanecos de meados da década de 1970 “ } viviam todavia uma forma de vida tradicional muito } 1 navarnetE, Federico. Op. cit, p. 14-15 ¢ 18. (TLA] 236 ‘gor Luis Andreo parecida a de sues antepassados, falavam suas Iinguas nativas, dedica- vam-se & agricultura e organizavam-se em comunidades muito fortes que definiam sua identidade e sua cultura.”? Ademais, nenhuma identidade étnica — como qualquer forma de identidade — existe por si, isto €, as caracteristicas que definem um “nés” com o qual nos identificamos sao fruto de relagGes sociais his- toricamente construfdas, somente existindo situadas em um contex- to determinado, no qual sao imaginados e explicitados “outros” dos quais nos diferenciamos, o que nao é meramente resultante de uma imposigao racial ou heranga, mas de uma construgao relacional his- t6rica e negociada, muitas vezes bastante flexivel.? Por meio de sua prépria concepgao do que exclui ou conforma o ser tojolabal, esta etnia nos fornece um exemplo acerca desta questo: Apalava [...] al [..] refere-se.a nao tojolabales que, por sua ‘vez, so opressores, explorados, mand6es, ricos ete. [...] ndo se “trata do “mestigo” [...] mas de pessoas caracterizadas por um tipo de comportamento com os de baixo, {ndios ou no Indios. Por isto, um tojolabal “por nascimento” pode converter-se em jnal e com isso se destojobalizar. Da mesma forma uma pes soa nascida em uma famflia nao autéctone pode se tojobalizar 2 navannere, Federico. Op. cit, p. 18. Mais adiante trataremos das caracterfsticas cul- turais ¢ formas de organizagdo sociopolitica peculiares as comunidades maias de Chiapas. (TLA} 3 Os apontamentos gerais acerca do conceito de identidade foramn construtdos a pastit de uma live apropriagao de reflexdes contidas, entre outros, ein HALL, Stuart. Op. cit. 1997 e HaLL, Stuart. Op. cit 2003, eujas proposigdes jé foram apresentadas de forma mais detalhada na IntrodugZo, ¢ em PRADO, Maria Ligia Coelho. Uma introdu- ‘sd0 a0 conceito de identidade. In: BaRBOSA, Carlos Alberto Sampaio e caRcla, Ténia da Costa Garcia (orgs.) Cadernos de Semindrios de Pesquisa Cultura e Politica nas Américas, Assis: FLC ~ Unesp Publicagdes, 2009, vol. 1, p. 66-71 “Teologia da Libertacio e cutura poitica maia chiapaneca 237 caso se identifique com os tojolabales [...] ninguém € jnal nem tojolabal por nascimento, mas o € por compromisso* Desta forma, para refletir acerca de identidades étnicas mexica- nas € necessArio fazé-lo a partir das relagées interétnicas presentes no México contemporaneo ou independente, onde a definigao da cate- goria® de indfgenas depende de um elo relacional com a categoria de mestigos, fruto de um sistema de relag6es interétnicas que gera “|...] uma tealidade que € construfda pelo mesmo ato de nomeé-la [...]"* Isto no significa que esta realidade no resulte em efeitos praticos para além da busca por compreensio, pelo contrétio, estas classifica- goes em diferentes categorias étnicas contribuem para a organizagio das relagGes sociais por meio da instituigao de tratamentos legais, politicos e econdmicos diferenciados e, outrossim, [...] as disting&es étnicas definidas pelas relagoes interétnicas podem converter-se em um instrumento aproveitado pelos {grupos poderosos para dominar e explorar aos grupos mais débeis, mas também pode ser usado por estes grupos para resistir a esta exploragdo e para defender sua identidade cul- tural e étnica. 4 LENKERSDORF, Catlos. Op. cit, p. 57. [TLA] 5 Entendemos os conceitos de “identidade étnica” e “categoria étnica” tais como em: pregados por Federico Navarrete: “Las categorfas étnicas sven para defini la identi dad [...] Por otro lado, hay que distinguir claramente entre las ‘identidades étnicas’ y Jas ‘categorfas étnieas. Las primeras se aplican desde adentto ...] Las segundas suelen ser aplicadas desde afuera, para clasficar alos que pertenecen a grupos diferentes que ‘uno, 0 para agrupar distintos grupos étnicos en un grupo més amplio, Esto quiere decir que las ‘categorfas étmicas’ son mds generales, pues se uilizan para clasificar y definir las relaciones entre diferentes grupos étnicos ya constituidos | . |” NAVARRETE, Federico. Op. cit, p. 23 € 26. 6 NAVARRETE, Federica. Op. eit, p. 22. 2S 238 gor Luis Andreo [...] Por isto [...] nfo tem sentido analisara histéria dos indt- ‘genas separada da dos outros grupos da populagao nacional, pelo contrério, € indispensével, antes de tudo, analisar as telagdes de dominaco politica, diferenciagao ¢,segregacdo social, ¢ exploragdo econémica que definem e separam hoje a ambos grupos. ..] a0 contrério da hist6ria oficial que vé a situagao atual dos indios como uma prolongagio da explorago na época colonial, assim tentando explicar sua cultura unicamente ‘com referéncia as culturas pré-hispfnicas, a condigio atual dos indios deve ser compreendida como resultado das re- lagdes de dominagio, segregagio e exploragio as quaig so submetidas no presente e da maneira pela qual sua cultura tem-se adaptado a esta situagao. [...] Ainda que existam continuidades culturais evidentes ‘nos grupos indfgenas e mestigos mexicanos, isto néo quer dizer que suas identidades étnicas tenham a mesma conti- nuidade, pois estas dependem das relagdes interétnicas das quais‘fazem parte.” Para lidar com esta complexa relacao entre a continuidade e as transformagées das identidades étnicas, Federico Navarrete adota 0 conceito de “ctnogéneses”, cuja definigao é resultante do pressupos- to de que os grupos humanos modificam e reinventam constante- mente sua identidade étnica para adaptarem-se as novas circunstan- cias e as diferentes relagdes interétnicas em que se inserem ao longo do tempo. Este processo de (re)criagio realiza um amélgama entre herangas do passado € novos elementos, comumente advindos dos contatos com outros grupos étnicos com quem se relacionam. Posto isso, é importante destacar que no México contemporaneo ~ ao menos desde a década de 1930 ~ o elemento empregado para 7 NavanneTe, Federico. Op. cit, p. 33-35. [TLA} disting ou sej enqua Sei questa dos ps Oo na Int Navar se pro tigage para a cana, que p indige Pa ceder 7 teop 8 No tod bai prs NAY Cor Exc Cor Fuk “| ? ‘Teologia da Libertagio e cuitura politica maia chiapaneca, 239 distinguir as categorias étnicas de indigenas e de mestigos é a lingua, ou seja, os primeiros seriam aqueles que falam Jinguas indigenas, enquanto os mestigos seriam os que falam o castelhano.* Sendo assim, antes de adentrarmos mais especificamente nas questées referentes A cultura étnica maia, abordaremos' detérmina- dos pontos que dizem respeito as relagées interétnicas nofMéxico. O processo de forjamento das identidades nacionais #delineado na Introdug ~ assumiu diferentes formas em cada pats. Federico Navarrete!” denomina como fator essencial para a concretizagio des- se processo em territério mexicano a “ideologia nacionalista da mes- tigagem”, que foi responsével por forjar uma identidade homogénea para a pluralidade socioeconémica ¢ étnico-cultural mestiga mexi- cana, ao mesmo tempo em que excluiu as identidades indfgenas"’ que passaram a ser interpretadas como um problema (el problema indigena) a ser resolvido. Para compreender como surgiu esta ideologia é necessério retro- ceder ao processo de construgio da identidade étnica criolla'? duran- te o perfodo colonial. Com intuito de combater a discriminagao que x No entanto, 20 longo de sua obra Federico Navarrete afirma que esta divsto & fru- to da “ideologia da mestigagem”, por exemplo, demonstrando que no México atv cexistem comunidades rurais definidas como mesticas por dominarem apenas o caste- Thano, mas que apresentam uma “cultura tradicional” e um modo de vida muito mais pr6ximo da identidade étnica das comunidades indigenas do que das elites mestias. navanree, Federico. Op. ct 9 Conferir péginas 35 a 39. 10. navarnere, Federico. Op. ct 11. Exclusfo questionada por comunidades indigenas maias de Chiapas a partir do CCongresso de 1974, uma vez que passaram a exigir 0 acess0 40s ditetos reservados aos Mexicana, o Estado foi (re)convertido no responsével legal pela pro- tecdo das propriedades comunitérias, por meio dos ejidos.® Todavia; 0 Estado revolucionério implantado manteve as caracterfsticas ante- cedentes e possufa como norte um projeto liberal modernizador an- tag6nico a légica da vida comunitéria indigena e campesina. Assim sendo, os ejidos paulatinamente foram sendo transformados em uma ferramenta de controle politico, por meio da qual o Estado poderia telativizar a autonomia local e intervir na vida interna das comuni- dades e, em razao de uma série de medidas modernizantes adotadas por parte do Estado, ocorreu uma lenta e efetiva erosio dos direitos ¢ 25 Acerca das politicas indigenistas, conferir as paginas 58 a 61 deste livio 26 Confenir nota $8 do Capitulo 1, pigina 58. ‘Teologia da Libertago e cultura politica maia chiapaneca 2a9 das condigées de vida das comunidades campesinas ¢ indigenas, em um processo marcado por contradigdes: [...] pode-se dizer que ainda que a Revolugio tenha pactu- ado com as comunidades indfgenas e camponesas, também as tratou como obstéculo para seu projeto modemizador, uma vez que muitas de suas polfticas agrérias, econdmicas ¢ sociais atacaram as bases de sua identidade ¢ sua forma de subsisténcia, além de que as submeteram a governos autoritétios € personalistas para subordindlas ao regime politico. Apesar destas agressies, a existéncia de caminhos legais para a defesa da propriedade comunititia, assim como os mecanismos politicos que permitiam que os indigenas ¢ camponeses participassem da vida politica, ainda que fosse de maneira limitada, por meio de suas autoridades ejidais, dos poderes locais e das estruturas corporativas do regime, contribuiram para manter uma relativa paz social.” Podemos perceber como esse quadro geral mexicano afetou o es- tado de Chiapas recorrendo a José Luis Escalono Victoria, para quem as politicas indigenistas e.a reforma agréria implantadas pelo Estado p6s-revoluciondrio nao podem ser interpretadas como uma ruptura no que se refere a realidade social chiapaneca, mas apenas como uma adaptacéio das elites 4 nova conjuntura nacional do México: [...] Falase, por exemplo, de uma reforma agréria seletiva, que nao afetou o regime das fazendas em lugares importan- tes, ou de um indigenismo que somente substituiu os grupos locais por outros grupos no controle do governo local (...) 27 NAVARRETE, Federico, p. 107. [TLA] \ i) \ | 250 Igor Luis Andres. Inclusive fala-se de zonas nas quais a “revolugdo” ainda nao havia chagado muito adentro do século XX.* Por outro lado, para Escalono Victoria, foi a partir da implanta- 40 dessas politicas que foi consolidada no imaginério sociopolitico de Chiapas a dicotomia — produzida no século XIX — “indiofladi- no” em termos de oposi¢ao, com os primeiros ocupando um espa- go subordinado, ou seja, caso empreguemos os termos de Federico Navarrete, podemos afirmar que foi quando se consolidarami em ter- rit6rio chiapaneco as novas relagGes étnicas orientadas pela ideologia da mestigagem e pela concepgfo de “cidadania étnica”: . [...] Em vérias etnografias sobre os povos de Chiapas [...] os primeiros [indfgenas}, aparecem como rurais, iletrados, de baixo nivel escolar, ligados & tradicao, atrasados e pobres; os segundo [ladinos], como urbanos, letrados e com experién- cia escolar, ligados & “cultura nacional” e em uma posigio econémica e politica mais vantajosa (,..] Nestes trabalhos propunha-se que essa oposigao tinha sua base em uma di- ferenga “cultural”, ¢ de distintas formas vérios antropélogos pronunciavam-se pela superagao dessa situago ¢ a favor da aculturagdo [...] O indigenismo [...] pretendeu alcangar esse fim. [..-] No perfodo pés-tevolucionario (...] as mediagdes no imaginério sociopolitico dominante inci ram na constru- ¢0 do étnico [...] subordinado ao mestigo-nacional.” Até aqui procuramos apresentar em que consiste o ser indfgena mexicano a partir dos elos relacionais que contribuem para moldar 28 EScALONA vicroRtA, José Luis. Construceién de la etnicidad y transformaciones del Estado en Chiapas, In: Congreso de LASA, 1998, Chicago (EUA). [TLA} 29 Idem. (TLA] Tecioga da Libertago e cutura politica maia chiapaneca wua identidade i - i sua identidade étnica no contexto do México pés-rfvolucionario. Posto isto, passaremos a apresentar aspectos que contideramos re- levantes acerca das especificidades étnico-culturais contempordneas dos maias que habitam 0 territ6rio de Chiapas. 3 4.2 Os maias chiapanecos do século XX Segundo Carlos Lenkersdorf - fildsofo especialista na lingua e cultura das comunidades tojolabales de Chiapas — apesar das diferen- as entre si, existem diversas evidéncias que comprovam a existéncia de uma convergéncia cultural entre todas as etnias de ascendéncia maia. Esta unidade é gerada por uma cosmovisio compartilhada, que cria um elo cultural: [...] Ao estudar a cosmovisdo dos maias vamos encontrar novamente a particularidade de sua cultura, marcadamente politica e democratica, [...] No total so cerca trinta povos ou nagées com idiomas relacionados, mas diferentes. Derivam-se de um tronco co- mum, denominado protomaia que nao mais falado ¢ que foi em parte reconstrufdo por alguns linguistas.” A primeira caracterfstica da cosmovisao maia apresentada por Lenkersdorf consiste em um sistemdtico rechago a qualquer tipo de litismo, isto 6, a qualquer identificagdo com o modo de vida dos fazendeiros ladinos que constituem parte majoritéria das elites chia- panecas. Para realizar tal afirmagao o autor parte de um exemplo da etnia tojolabal, cujos membros sobreviviam como peones aca- sillados até 0 perfodo da presidéncia de Lazaro Cardenas, quando foram criados os primeiros ejidos entre as comunidades tojolabales 30 Lenxesporr, Carlos. Op. cit, p. 10. {TLA] omen 282 igor Lus Andreo chipanecas. Algumas destas terras transformadas em ejidos inclufam “casa grande” —suntuosa moradia dos antigos fazendeiros. Segundo Lenkersdorf, até hoje os tojobales nunca ocuparam qualquer casa grande como moradia: [...] Este género de casas representam um tipo de socieda- de até as raizes diferente da vida maia-tojolabal ¢ oposta a ‘mesma [...] Obviamente causa repudio porque implicaria identificarem-se com os patroes, moradores anteriores € ex- ploradotes, op¢ao inaceitiivel [...] Em resumo, os maias no sio elitistas e tampouco querem viver nas casas das elites. Seguem mantendo esta opgo até 0s dias de hoje. Nao sto nem querem ser elite [...]}" A parte central da argumentagao de Carlos Lenkersdorf acerca da caracterizagao da cosmovisio maia é construfda a partir de uma an4- lise comparativa do castelhano com a Iingua tojolobal que, como jé teferido, possui uma estruturago compartilhada com todas as lingyias maias. A justificativa para o emprego de tal abordagem é a seguinte: [...] Por meio da linguagem nomeamos a realidade (...] [...] Nomeamos a realidade segundo Ihe percebemos. [...] Por pertencer a diferentes culturas ¢ nagées, nem todos possufmos a mesma percepcao da realidade. {...] Por isto, nos relacionamos de modes diferentes com a mesma realidade [...} [...] Em conclusao, as linguas nos permitem captar as distin- tas comovisdes de culturas diferentes (...] [..-] que nos fazem ver fendmenos dos quais os falantes mui- tas vezes nem sdo conscientes porque nao esto habituados 31 LeNKesponr, Carlos. Op. cit, p. 8. [TLA] ‘Teciogia da Libertagao e cultura politica maia chiapanoca 253 arefletir sobre o idioma que falam [...] por isto, as estruturas descobertas {...] esto livres da manipulagdo daqueles que queiram enaltecer a cultura de seu povo € desqualificar ade outros porque os consideram bérbaros, incultos, ahist6ricos, analfabetos, de ragas inferiores etc. Dito de outro modo, as linguas albergam mistérios, os misté- rios das visdes de mundo dos povos que as falar.” A partir deste ponto apresentaremos uma sintese dessa argumen- tagdo. Lenkersdorf ini zemos: — Te dije. uma expressio ou frase que corresponde em to- jolabal a: — Kala awab’i, melhor traduzido como dije, escuchaste.”” Partindo deste ¢ de outros exemplos, o autor realiza a andlise pro- com o seguinte exemplo: “Em espanhol di- posta ¢ apresenta, grosso modo, as seguintes consideragdes: enquan- to na frase em castelhano existe um sujeito, yo, que é quem executa a agdo expressada pelo verbo decir, e um objeto indireto, te, que recebe a aco passivamente; em tojolabal existem dois sujeitos ¢ nenhum objeto, isto €, 0 sujeito yo, que executa a ago de decir, ¢ 0 sujeto (oculto) tz, que também executa uma ago, a de escuchar. Sendo assim, em castelhano, essencialmente, a ago se dé pela relagio verti- cal entre um agente ativo, o sujeito do qual parte a agao, que por sua vez é transmitida por meio de um verbo a outra parte da equagao, um agente passivo, 0 objeto que recebe aquilo que Ihe foi comunicado. Em tojolabal a comunicagao € horizontal, complementar ¢ bidire- cional, uma vez que ela somente existe caso haja ago ativa e miitua por parte de ambos agentes: 32. Lenxespore, Carlos Op. cit, p. 32-34. (TLA] 33. Ibidem, p. 25. (TLA] 284 Igor Lus Andreo A intersubjetividade € um dos sinais distintivos da estn ra lingutstica do tojolabal ¢ demais idiomas maias que os linguistas costumam denominar como Iinguas ergativas [...} Aintersubjetividade, caracterizada pela pluralidade de sujci- tos € auséncia de objetos, tanto diretos como indiretos, ter a implicagdes fundamentai: Para explicar essas implicagdes, Lenkersdorf inicia sua argumen- tagGo afirmando que para 0s tojolabales, como também para o res- tante das etnias maias e algumas outras etnias aborigenes, nao existe nada que nao possua ‘altizil, que pode ser traduzido como “alma”, “coragao” ou “princfpio da vida”. Sendo assim, os tojolabales pos- suem uma cosmovisao animista, onde tudo esté vivo —o que inclui os mortos, que so denominados como altizilal, sendo que o sufixo al serve para generalizar e desindividualizar — ¢ todos os seres vivos s0 abarcados pelo cosmos, que constitui um elo universal: [...] n6s humanos somos sim particulares com fungaqs espe- cfficas, mas no somos os tinicos: Somos uma espécie entre outras, Por conseguinte [...] nos convém respeitar aos de- mais que também vivem e que nos acompanham [...] Esté aqui a intersubjetividade em nivel extralinguistico, é a comunidade césmica ¢ a intersubjetividade biocésmica [...] A cosmovisio intersubjetiva esté intimamente ligada com uma cosmovivéncia correspondente. A percepgao do mundo ¢ 0 relacionar-se com 0 mesmo representam os dois Iados de uma s6 moeda 34 enKespoxe, Carlos, Op. cit, p. 37-38. [TLA] 35. Ibidem, p. 4043. (TLA] Teclogia da Libertagdo e cutura poltica meia chiapaneca 255 Por fim, Lenkersdorf explicita com um exemplo comparativo con- creto quais so as implicagdes dessa “cosmovisdo intersubjetiva”. O autor afirma que nas sociedades capitalistas contempordneas a terra 6 uma mercadoria, sujeita A propriedade privada, enquanto para os maias—e também para outras populagées aborigenes — a terraé viva, € a “Madre Nuestra”, que fornece alimentagZo e a quem se deve a vida, portanto devendo ser respeitada, isto é, lavrada e protegida, o que torna sua venda algo considerado como um grave erro para com a comu- nidade césmica. Mesmo outras concepgies, como as socialistas, que consideram a terra no como mercadoria, mas como meio de produ- go que deve ser socializado, também sao incompativeis com a cosmo- visio maia, uma vez que nessas concepgées a terra ainda est sujeita as disposig6es sociais dos homens. Por olitro lado, os‘ejidos sao terras comunais que nao podem ser vendidas ou compradas, 0 que os tornam perfeitamente compativeis com o universo étnico-cultural maia. Acreditamos que a partir destas caracteristicas da cosmovisdo maia € possivel vislumbrar que as comunidades indfgenas de Chiapas seriam avessas a tomada do poder politico-administrativo da sociedade, uma vez que, ao mesmo tempo em que rechagam o modo de vida da elite ladi- na, néo visam impor-se a toda sociedade, mas apenas viver segundo sua cultura-étnica e conviver de maneira respeitosa com as outras formas de vida e vivéncia existentes na comunidade césmica. Isto poderia explicar, em parte, as incompatibilidades de objetivos sociopoltticos entre os di- versos grupos orientados por idedrios maraistas que chegaram a Chiapas a partir de meados da décadade 1970 e a maior parte das comunidades maias chiapanecas, o que teria contribufdo para frustrar a consolidagao de grandes movimentos sociais na regiao.* 36 Mais adiante retornaremos a essa ¢ outras questbes referentes as incompatibilida- des sociopoliticas entre comunidades maias de Chiapas e grupos rarxistas, alémn das 256 90 Luis Andreo Para finalizar esta parte onde procuramos tratar de aspectos ét- nico-culturais, apresentaremos alguns costumes e caracterfsticas or- ganizacionais compartilhadas Por todas as etnias indfgenas que habitam os estados de Oaxaca Chiapas e que, aparentemente, também esto Presentes na vivéncia cotidiana de comunidades indi- genas por todo o México. Em seguida encerraremos com uma ané- lise espeeifica de caracteristicas étnico-culturais de uma das etnias maias de Chiapas. (maias) Laura Carlsen?” adota cincos itens como definidores daquilo que Constitui uma comunidade indigena®® no México: um espaco territo- Hal demarcado ¢ definido pela posse coletiva; uma histéria comum transmitida oralmente através das geragées; um idioma autéctone; ‘uma organizagao definidora do politico, cultural, social, civil, eco- nOmico e religioso; € um sistema comunitirio de administragao da justiga. Para além desses definidores minimos, a comunidade indi- gena, como qualquer construgao histérica, esta sujeita a constantes modificagées impulsionadas tanto Por forgas externas, quanto por sua dinamica interna. O funcionamento de uma comunidade indfgena autonoma € orga nizado e integrado a vida municipal por intermédio de um sistema de cargos. Como parte integrante da cultura-étnica de comunidades indi: genas mexicanas atuais, o sistema de cargos consiste em um resultado Peculiandadestrilhadas pela célula chiapaneca da FLN ~ também orientada pelo mar- xismo ~ que contribufram para a gera¢o do movimento insurgente iniciado em 1994. 37. CARLSEN, Laura. Autonomfa Indigena y usos e costumbres: la innovaci6n de la tradici- 4n. In: Revista Chiapas. México: Era, n°7, p. 45-72, 1999, p. 45 38 importante deixar claro que, no México, comunidade ¢ municipio ndo slo sindni- mos em termas geopoliticos ou culturais, podendo exisir diferencas de composigl0 Etnica, praticas religiosas ¢ organizagao politica entre comunidades assentadas dentio de um mesmo muniefpio. “Teologia da Libertagao e cultura pottica maia chiapaneca 257 dindmico de um longo e complexo processo de hibridizagio entre ca- racterfsticas extemas introduzidas — sobretudo através dos contatos € imposigdes do universo cristo europeu — desde 0 perfodo colonial, com continuidades referentes 4 cosmovisio indigena pré-hispanica, principalmente no que diz respeito a insepardvel ligagdo entre o politi- co € 0 religioso — que por sua vez também é formado por um proceso de hibridizagao entre 0 catolicismo e 0 tanscendentalismo animista pré-colombiano. Apesar da existéncia de uma grande variedade de for- mas e praticas, € possivel identificar caracteristicas fundamentais do sistema de cargos: existéncia de um determinado niimero de cargos ou responsabilidades comunitérias no remuneradas e rotativas, contudo reconhecidas e respeitadas, desta forma convertendo-se em prestigio dentro ¢ fora da comunidade, cujo cargo de mais alto respeito ¢ con- sequente prestigio € 0 de principal ou pasante, somente alcangado por alguém que j tenha assumnido todos os outros cargos, em um processo que leva de trinta a trinta e cinco anos.” , Todavia, a autoridade méxima do sistema nao sao os principales, mas a assembleia comiunitéria, na qual as decisbes so tomadas por consenso. Os tojolabales de Chiapas, por exemplo, possuem duas palavras para diferenciar suas autoridades internas e as autoridades “Iadinas” a nivel local, estadual ou federal. Os primeiros sao denomni- nados como iaitijum, que significa “trabalhadores da comunidade”, enquanto os segundos so chamados de mandaranum, o que pode ser interpretado como “aquele que dé ordens” ou “mando”. A incessante busca por tomadas de decis6es consensuais (acuerdos) por meio de assembleias — que, para os olhos e ouvidos 39. canisen, Laura. Op. cit, p. 5). 258 Igor Lus Andreo ocidentais, parecem contraproducentes ¢ intermindveis" ~ constitui- -se como reafirmagao ¢ reforgo da coesao e identidade comunitérias: [...] Nestes processos, a meta principal € a coesio da comu- nidade em seu conjunto, assim sendo, faz-se todo o possive) para integrar a postura minoritéria. Os servidores piiblicos, que nao recebem nenhuma remune- ragio por seus servigos e que consideram a honra de servir compensagiio adequada para um ano de seu labor, traba- Tham desde uma perspectiva radicalmente distinta & grande maioria dos funciondtios governamentais. Esta € a raiz do “andar obedecendo”. Lande de ser um ideal imposto' por uma visio ut6pica, 6 uma realidade ~ diffcil de levar a cabo ~ para as autoridades indigenas nas comunidades." Por fim, apresentaremos uma andlise mais especifica referente as comunidades chiapanecas. O foco do artigo de Antonio Paoli” so praticas cotidianas ~ que em sua maioria sao idénticas ou possuem equivalentes semelhantes em todas as etnias maias chiapanecas que tegracao moldam a organizagao social e propiciam solidariedade e 40. Segue um trecho do telato de Jesis Bermiidez Morales acerca de como eram firma- dos os acuerdos nas assembleias durante o Congresso Indigena de 1974: “En medio de un munnullo permanente, mientras un expositor principal discurte, se exponen pareceres y diferencias y progresivamente se llega a lo que se llama el acuerdo. En el acuerdo se busca congregar el asentimiento de todos los participantes o miembros, smas no ocurre de manera coctcitiva, Tampoco se dirime a través de la votacién. Es tuna conftontacién de pareceres en la que se sopesa las razones de quien tiene diferen- las, porque puede ocurrir que, habiendo una generalidad conforme, las razones de Ja minorfa (asf sea solo uno) no hayan sido consideradas y revisan mayor peso para la comunidad. Sélo zanjadas las diferencias, por mucho tiempo que ello lleve, se alcanza el acuerdo [...|" MORALES BERMUDEZ, Jess. Op. cit, p. 329 41 cantsen, Laura, Op. cit. 55, (TLA] 42. rx014, Antonio. Comunidad tzeltal y socializacién. In: Revista Chiapas. México: Era, 0° 7, p. 135-161, 1999 Teologia da Libertagao e cultura politica maia chiapaneca 269 ey 269 para 6 micro-cosmos da comunidade tzeltal. Os tzeltales df Chiapas vivem em pequenas comunidades ¢ 0 universo alcangad® pelo en- saio do autor engloba mais de mil dessas comunidades gna’ quais vivem aproximadamente cinquenta mil familias: Q Pretendemos apresentar um ideal social em grande medida feito realidade. Os tzeltales que vivem em pequenas comu- nidades participam destas formas coletivas, com as quais dio unidade a cada lugar e aos diversos lugares entre si. Para eles a unidade é uma questo transcendente e sagrada. Dela cons- troem seus vinculos com seus companheiros, com a nagao mexicana com a humanidade.” O ceme norteador dessas préticas abordadas por Paoli sfo os acuer- dos. Por exemplo, o parcelamento das terras tomunais — elemento chave para a integrac&o da comunidade tzeltal - € feito com base em acuerdos comunitérios. Esses acuerdos so selados em assembleias constitufdas por representantes de cada uma das células produtivas familiares, que formam a base da organizagdo comunitiria e possuem independéncia quanto a tomada de quaisquer decisées, até o momen- to definitivo em que seja necesséria uma deciséo por acuddo. Nas comunidades tzeltales sio atribufdos cargos com o intuito de garantir a realizagdo de cada um dos diversos servigos comunitarios. Aqueles que recebem os cargos compete convocar € organizar as assembleias, estabelecer os acuerdos e vigiar para que eles se reali- zem e sejam mantidos. Cada cargo possui uma duragao de um ano eno é remunerado, pelo contrario, muitas vezes € oneroso para seu ocupante. Todavia, cada trabalho exitoso € convertido em acimulo de autoridade moral. 43. rout, Antonio Op. cit,,p. 136. [TLA] ——— As pessoas a quem sao atribufdos os cargos nao séo denominadas como autoridades, 280 gr Luis Andreo [...] mas pessoas com trabalho (ay te ya'tel). Sublinha-se as- sim que sua fungao nao € mandar, mas servir [...] Ch'ujun significa obedecer, e também crer, de maneira que [...] nao obedecem de uma forma superficial, mas creem € buscam realizar 0 que a comunidade decide mediante acordo [...] Assim a autoridade descansa na comunidade. O individuo pode mandar somente caso se atenha aos acordos da coletividade. ‘ A palavra da comunidade frequentemente & considerada \ santa; por isso se cré nela e se obedece.* | } | Nas assembleias todos possuem o diteito de expressar pontos de vista particulates ¢ os acuerdos somente sio tomados por consenso, isto 6, apés todas as diferencas de opiniées terem sido suprimidas, mesmos que para que isto seja necessdrio muito tempo. Todas as instituigdes existentes, que contam com o respaldo’e a cooperagao das comunidades, sao frutos de acuerdos coletivos toma- dos ao largo, da historia local de cada comunidade. Suas realizacoes, além dos acuerdos, dependem de esforgos coletivos coordenados, 0 que, consequentemente, reforga os lacos comunitérios. Aqueles con- siderados exitosos a0 desempenhar diversos cargos comunitérios po- dem ser consagrados como um principal, que € um cargo vitalicio. Os principales possuem, concomitantemente, atribuigdes civis 44 O autor percebe que na estruturagdo da lingua tzeltal também nao existe sujeito pas- sivo € as agdes sempre ocorrem entre agentes ativos, como no caso da composigao lingutstica sch'ultic, que pode ser traduzida como a ago de sujeitos (nés) que so san- tificados em decorréncia da agdo realizada por um sujeito que santifica (ao obedecer as palavras ou aos acuerdos da comunidade). PAOL!, Antonio. Op. cit, p. 139. [TLA] Teclogia da Libertagao e cutura politica mala chiapaneca 261 religiosas, uma vez que nao entendem estas duas instancias como separadas. Sua principal responsabilidade € garantir a harmonia co- munitéria, ao vigiar 0 cumprimento de todos os acuerdos e buscar resolver os problemas ¢ desentendimentos que surjam na comunida- de, por meio da proposigao de estratégias coletivas elaboradas pelo conselho (consejo) de principales. Normalmente, os principales realizam os mesmos trabalhos coti- dianos - tanto na lavoura, como nas obras piiblicas — efetuados pelos outros pais de familia da comunidade. Nas assembleias, os principa- les participam como um membro qualquer da comunidade, com os mesmos direitos de expresstio e sendo obrigados a obedecer as mes- mas instrugées propostas por quem convocou e organiza a assem- bleia. Além disso, somente lhe é permitido agir cumprindo acuerdos comunitérios, nunca podendo tomar quaisquer decisdes individuais sen o consenso coletivo. ‘Antonio Paoli afirma que o sagrado é fundamental para a vida comunitéria tzeltal, uma vez que-a comunidade € constituida de tal forma a servir tanto aos Ahcananetic,(os seres que cuidam de nés), quanto a seus membros, os awalaltac, cuja tradugio seria algo como “seus filhos (da comunidade) qué so pessdas iguais entre si": ‘A comunidade regula, integra, prescreve, modera, celebra, acompanha. Cada sujeito sintonizase com ela e por sua vez a influencia, Algo dele existe naquela totalidade (...] ‘A-comunidade nio depende de nenhuma familia; depende de todas em conjunto. Assim sendo, como entidade coloca- -se como um organismo superior a cada uma delas e refe- rente aos Ahcananetic como a seres superiores & prépria 262 Igor Luis Andreo comunidade. A eles serve a comunidade, ¢ ao servir aos awa- laltac serve-se também aos Ahcananetic.* Desta maneira, a vida individual tzeltal € inconcebivel fora da co- munidade e, até mesmo, fora do servico coletivo comunitério, uma vez. que estar contra a comunidade é estar sozinho, contra si mesmo a contra os Ahcananetic. Esta necessidade de viver coletivamente gerou formas ritualizadas que visam harmonizar as relagGes sociais ¢ fortalecer os lagos de solidariedade comunitéria. Paoli analisa as im- Plicagdes de algumas destas formas ritualizadas de relacées sociais. As primeiras destas formas apontadas so 0 compadrazgo e'a cor- testa, formas ritualizadas que orientam relagées como visitas progra- madas ou meros encontros casuais, de modo que ocorram singelas gentilezas entre ambas as partes, tais como convites a comer, peque- nos presentes etc., assim fortalecendo os lagos comunitérios. A segunda refere-s¢ a palavra Ich’el ta muk, que pode ser traduzi- da como respeito ou, mais literalmente, como “tomar a grangleza”. O leh’el ta muk se associa, principalmente, as interagées ritualizadas nas formas de conversagao e respeito muituo entre os tzeltales. Este respeito miituo pode ser percebido, inclusive, na negagto da coacao na instrugdo infantil O pai habitualmente diz a0 filho que trabalho faz ainds tes de levé-lo a trabalhar (...] O menino entende desde cedo que sua comida ¢ a de todos seus entes queridos depende dessa produgao. E ao participar dela se esté fornecendo 0 que comer 20s seus [...] O preceito educativo de evitar a coagao aos meninos e me- ninas € uma forma sumamente importante de yich’ta muk’ 45. PAOLI, Antonio. Op. cit, p. 143. [TLA] i Tedlogia da Libertagao e coitura politica maia chiapaneca 263 ot dao” te alaletic (tomar a grandeza as criangas) [..Jpor meio da qual se faz possfvel propiciar um sentimento deibem interior causado pela interac respeitosa com a familia e com a co- monidade [...] A.cooperacao voluntéria que o menino aceita déve encher-se de estimulos, de reconhecimentos, de carinho, do aprego da comunidade, mas principalmente da compré€nsio pessoal do sentido de seu trabalho, da ordem social na qual se insere, do respeito a suas decisées (...] A forma ritualizada analisada a seguir € o ch’abajel, que pode ser traduzido como reconciliagao — entre duas pessoas, ente duas ou mais familias, entre a comunidade inteira, entre comunidades distin- tas etc. Este € outro processo que reivindica um estreito vinculo com © sagrado ¢ onde as atribuigGes religiosas dos principales se fazem fundamentais, além de transparecer a importincia sociocultural de um catolicismo hibridizado vivenciado cotidianamente pelas comu- nidades tzeltales: Os principais (...] Sua autoridade moral € chave para re- construir a harmonia. Eles [...] possuem uma ampla capaci- dade convocatéria que facilita 0 acordo [...] Os principais realizam o ch’abajel, se dit im a Deusf're- nem os catequistas [...] reparam os problerpas dentro da Santa Casa (igreja) |...” . As dltimas formas ritualizadas de relagdes sociais analisadas so 0 Te'ikel, cuja tradugio mais apropriada é “tolerar”, e Sujtesel co'tantic, 46 paots, Antonio. Op. cit, p. 154. (TLA] 47 Ibidem, p. 155. {TLA] 264 Igor Lus Andrea cuja tradugio literal é “o Tegresso de nossos coragdes”, mas nao seria totalmente incorreta a tradugdo como “perdao”. Quanto ao Ts'ikel: [...] exemplo: um bébado de repente dé um forte golpe em seu companheiro, que no bebeu nada. Quem esti em seu juizo deve aguentar. [...] H4 que aguentar e esperar 0 momento de atuar com sensatez, porque estamos mais bem dispostos a aceitar nos- sas pr6prias falhtas quando vemos que o outro tolerou nossas impertinéncias.*# O Sujtesel co'tantic consiste em uma forma ritualizada de perdio a faltas cometidas Por um individuo contra outro individuo ou con- tra toda a comunidade. Nas comunidades tzeltales considera-se que toda falta cometida altera o lamalil Kinal (0 meio ambiente de paz) ¢, portanto, o indivfduo infrator deve ser punido pela comunidade. Entretanto, € possivel que a punig&o seja evitada por meio da solici- taco do perdao: y [...] A pessoa que foi perdoada [...) pode voltar a assumir qualquer posto de trabalho dentro da comunidade, ainda | ue tenha furtado, Isso jf ficou de lado porque a comunida- de regressou seu coragao, renovou seus lacos. Quando ocorrem problemas muito sérios, formula-se um julgamento como testemunhas e provas. Mas no final, caso © culpado reconhega seu erro.e pega perdio, a comunida- | de normalmente o perdoa € ndo se menciona a falta nova- \ mente. Por isso € importante que no fique nada por escrito. | Se fosse assim, equivateria a que ndo houvesse perdoado o culpado, a que se guardasse em um papel seu delito [...] £ necessério restabelecer nossa confianga (...} 48 raott, Antonio. Op. cit, p. 156-157. [TLA] Teologa da Libetago e cultura poftica maa chiapaneca 265 Quem pede perdao e quem o outorga assumem que se trata de uma agio recfproca ante a comunidade. Pedem perdio também a comunidade, porque perturbaram slamalil Kinal (eu ambiente de paz) (...]® Antonio Paoli conclui o seu artigo afirmando que a educagao comunitétia tzeltal consiste em um processo permanente, que visa inculcar regras sociais e, sobretudo, um sentimento de solidariedade ¢ valorizagao dos outros membros da comunidade, o que gera um forte sentido de pertencimento e identidade, que ultrapassam a pe- quena comunidade sendo projetados para o mundo transcendente dos Ahcananetic ¢ para os territ6rios tzeltales, que so formados por uma comunidade de comunidades. 4.3 O Congresso Indigena de 1974 eo EZLN As construgées, andlises e apontamentos realizados até aqui nos permitem refletir acerca de uma tltima questio: 0 quanto do pro- cesso de politizagao e revalorizagao étnica — iniciados a partir das transformagoes da diocese de San Cristébal — e, consequentemente, da identidade étnica e cosmovisao das comunidades indigenas maias de Chiapas esto presentes no EZLN. A validade da proposigio dessa questo é reforgada a partir da comparagao entre os mapas 12, 13 e 14 (paginas 22, 23 e 24), na qual percebemos que, para além dos municipios majoritariamente ladinos, a ea atendida pela diocese de San Cristébal abarca a to- talidade dos municfpios onde se concentram as comunidades tzel- tales, tojolabales e choles, a maioria absoluta dos municipios onde habitam as comunidades tzotziles e nao alcanga municipios onde 49 pAoL!, Antonio, Op cit., p. 159. [TLA] 266 Igor Lus Andreo vivem populagées de outras etnias, a ndo ser o municipio de Amatdn (conferir mapas 02 ¢ 07), onde predominam comunidades zoques; enquanto algo muito semelhante ocorre quanto aos municfpios com presenga neozapatista, que também abrangem o municipio de Amatén, todos os municfpios tzeltales, tojolabales e choles e a maio- ria dos municfpios tzotziles, excetuando-se apenas Soyal6, Chiapilla e Totolapa (conferir mapas 02 e 03), que também nao se encontram na circunscrigao da diocese, diferenciando-se apenas pela presenga em quatro municfpios da regio Sierra e um municipio da regio de Soconusco (conferir mapas 02, 09 e 10) com populagées Mame, Mocho e Kakchiquel. Todavia, Arturo Warman afirma que, em 1994, o EZLN nao apa- receu como um movimento ou insurgéncia indigena, mas como um foco de guerra prolongada, com bases indigenas, mas cujo objetivo central era propiciar a mudanga (revoluciondria) do regime politico- -administrativo mexicano por um regime de orientagdo socialista: y Ainda que fosse evidente que as bases insurgentes do zapatis- mo consideravam-se Indias, ndo se postulavam reivindicagdes espectficas dessa condigo. Foi a opinio piblica, orientada pelos meios de comunicagao, quem identificou ao zapatismo como uma insurreiggo indigena ¢ mobilizou-se para evitar sua repressio, O EZLN, em um processo gradual, mas acele- rado, assumiu essa identificagdo que protegia, garantia apoio ¢ simpatia. Desde 1996 converteu-se em polo e interlocutor definitivo no debate nacional sobre a questio indigena [...]” Ademais, Warman entende essa assungao neozapatista como um retrocesso se comparada a supostas conquistas alcangadas no campo 50 WARMAN, Arturo. Los indios mexicanos en el umbral del milenio. México: Fondo de Cultura Econémica, 2003, p. 8. (TLA] m ca ao re, a m vo 20 de > Teologia da | bortagaoe cultura poitica maia chiapaneca 267 politico democratico pelos movimentos campesinos/indigenas mexi- canos que, segundo o autor, foram eclipsados pelo EZLN.*" Em outro extremo, encontramos a versao propagada pelo préprio EZLN, que afianga o movimento como indigena desde p prinefpio, inclusive afirmando que em 1992 os préprios indigenas galgaram 0 cume da hierarquia diretiva, com a criagdo do Comité Clandestino Revolucionario Indfgena - Comandancia General del Ejército Zapatista de Liberacién Nacional (CCRI-CG).* Situadas entre esses dois pélos, encontram-se intimeras diver- gentes interpretacdes sobre a questo como, por exemplo, a afirma- do de que a insurgéncia inicial em 1994 consistia em uma tética “foquista” de inspiragao guevarista; ou em um plano de realizar uma aco armada suficientemente impressionante para alcangar éxitos de propaganda e aglutinar setores para forcar a queda do regime em vi- gor, mas, com a inesperada pressao da opinido publica para o fim da repressio ao EZLN, essa estratégia teria tomado outro rumo (inicia- do logo ap6s o cessar fogo unilateral decretado pelo Governo Federal ap6s doze dias de combates), sendo substitufda por uma tatica de guerra como um espetéculo midistico, objetivando ganhar cada vez mais 0 apoio da sociedade civil e, assim, angariar conquistas; etc.* $1 Muito dessas opinides de Arturo Warman pode ser explcitado se levarmos em conta as afirmagoes de Federico Navarrete, que enquadra Warman em umn setor intelee- tual que interpreta a “questio da mestigagem” no México como algo estritamente positive, nZo levando ein consideragio e, até mesmo, fazendo uma apologia indireta a0 que Navarrete denominou como ideologia da mestigagem. NaVARRETE, Federico. Op. ait., p. 99. 52. Conferir,entie outios, cENNARI, Emilio. Op. cit, p. 51 ¢ EZLN, Documentos y comu- nicados ~ 1. México: Era, 1994. 53. Sobre esse assunto conferir, entre outros: FRANCH, Téssio, Igualdades e diferencas no discurso do Exéreito Zapatista de Libertagao Nacional: construcio ¢ estratégias Dissertaglo (Mestrado) - Unesp, Franca. 2004 e FicueikeDo, Guilherme Gitahy de 268 Igor Luis Ancreo Contudo, pouco importa para nossos fins qual é a melhor interpre- tagao ou faz mais sentido. O que nos interessa 6 0 consenso interpre- tativo de que, ao menos a partir das primeiras negociagdes com o go- verno federal — iniciadas em 21 de fevereiro de 1994 — 0 EZLN. , quer tenha sido por conveniéncia ou nao, voltou-se para questées indfgenas ¢, entre os anos de 1996 e 2005,* apesar de diversas transformagoes, a esséncia das bandeiras e demandas neozapatistas eram norteadas pelos chamados Acuerdos de San Andrés sobre derechos y cultura indfgena. Serd partindo deste consenso que buscaremos construir uma resposta para a questo que levantamos anteriormente. Primeiramente ser4 oportuno apresentar uma sintese das refle- x6es de Francis Mestries, que interpreta o EZLN como o tiltimo estégio de uma hist6ria de persisténcia das comunidades maias de Chiapas, produto da hibridizagao entre a matriz cultural e mem6- tia histérica dessas comunidades e as sucessivas influéncias exter- nas, sobretudo da religido catélica e de diversas ideologias politicas. Concordamos com o autor ~ e mais adiante tentaremos demonétrar © porqué quando este afirma que: [...] € possfvel observar centralmente no Congresso de San Cristébal o esboco de uma consciéncia étnica [...] que amadureceré pouco a pouco para impregnar muitos dos A guerra €0 espeticulo:origens e transformagdes da estratégia do FZLN. Dissertagdo (Mestrado) - Unicamp, Campinas, 2003 54 O movimento neozapatista sofreu uma guinada estratégica radical a partir de junho de 2005, marcada pela Sexta Declaracién de la Selva Lacandona, 0 que nfo significa que as questdes referentes as demandas indigenas tenham sido abandonadas, mas suas complexas implicagdes no serdo tratadas neste livro por fugirem totalmente a nos- 50s objetivos. Conferir: EZLN. Declaraciones de la Selva Lacandona. Disponivel e . Acessado © 2210472010. . |

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