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As Tecnologias do espirito Texto traduzido por Juremir Machado da Silva Lucien Sfez de Ciencia Politica ma Universidade Paris | 0 FAME A VIOLENCIA fisica nao pode ser negligenciada. E uma forca exercida com certo prazer contra tudow queéfraco (espiral:forca, vida,extensao da poténcia no sentido de Spinoza) Mas ha outros tipos de violencia: a violéncia simbélica, igualmente real, através da qual, por exemplo, os grupos © as comunidades sao forcados a entrar num sistema, sem que o percebam. Isso se chama ideologia. E temos chaves para analisar essa violagao. Modelos dessas chaves: a teoria da alienagao ou teoria da interiorizacao desse dispositive geral em cada individuo Ao numero das violéncias simbélicas exercidas sobre cada um, gostaria de acrescentar uma forma de violencia singular: a violéncia intelectual, Aqui, estamos num terreno particular. Nocoes, conceitos, forcam- nos a pensar, a analisar, a escrever de uma certa maneira. Chamo essa nova bateria de instrumentos conceituais coercitivos de “tecnologias do espirite”. A violencia particular exercida por eles sera discutida neste texto. Umcerto numerode conceitos dirige as Pesquisas ligadas 4s tecnociéncias contem: poraneas, tanto da biologia quanto da fisicae das ciéncias cognitivas. Invadem © campo inteiro da reflexdo e tém conseqtiéncias também em relagdo as praticas da vida em Sao eles ~ rede - paradoxo -simulagao - interatividade Seria futil crer que, por continuarem desconhecidos do grande publico, osesforcos tedricos dos pesquisadores em comunicacao restariam sem eco, protegidos pelas dificul- dades de abordagem e como que instalados num territorio limitado, dominio exclusivo dos cientistas na prépria fortaleza. Se os programas de estudo permanecem “proprie- dade privada”, e as méquinas que os sustentam, apandgio de ricos centros de OS * Port estudo, existe algo, porém, que tende a se difundir, a tornar-se prioritério no mercado intelectual, a propagar-seatravésdasciéncias sociais, a invadir a literatura: so as nogdes estabelecidas pelas tecnologias do espirito.* Assistimos entio a uma verdadeira revolugiodasantigas técnicas dopensamento. As teorias da informagdo ¢ da comunicacio, as priticas que o império da comunicagio exalta © provoca, tém perturbado a razio habitual. Nao so mais os planos em duas partes das faculdades de Direito, ou em trés, das faculdades de Letras, que nos governam, Eram as armas dos governantes de ontem, iiltimos avatares da dogmdtica medieval, injustamente atacada, que permitiam a interpretacio, o jogo entre as instincias, um pouco de liberdade, em suma? Esses Procedimentos candnicos sXo substituidos, na atualidade, nas camadas dirigentes, por uma “nova” razio. Resultado nao negligenciavel que produz os seus efeitos para além do que poderiamos chamar de “alternativas” de escolha social. A nova razio se introduz nos fundamentos constitutives do espirito e exerce, a despeito de nossas vontades, sibias manipulacdes. E somente uma questio de moda, que. como sabemos a intelligentsia adora e muda todo o tempo, conforme uma velocidade crescente? Ou, mais insidiosamente, como acredito, um passo rumo ao tautismo? Tautismo, relembro o neologisme forjado por mim na Critique de la commu nication’, resulta dla contragdo de autismo & de tautologia, evocando uma mirada totali- zante, ou até mesmo totalitaria. O tautismo & co mal absoluto, ameagador, da sociedade da comunicagio e das tecnologias da comu- nicagio, Nao nos surpreendames que possa intervir aqui nas priticas de uma forma particular de tecnologias da comunicacao, o que denomino “tecnologias do espirito” Para ter uma idéia da medida das transformagées, das quais ainda naesabemos se sto decisivas, ¢ necessario tentar precisar quaissdo as nogdesou conceitosqueinvadem © discurso dos profissionais do discurso: © Revista FAMECOS # Ports Alegre * n* 6 © junho I socidlogos, administradores, jornalistas, psicologos, engenheiros, cientistas. Essas nogdes jd foram examinadas por nés, aqui e ali, em nosso percurso critico. Trata-se do pensamento de rede, caro aos neurobidlogos © aos pesquisadores em inteligéncia artificial, no que se refere as maltiplas conexdes no trabalhodosneurénios ¢ as dos circuitos de informagao montados em paralelo nos computadores “pensantes” Trata-se também do paradexe, explorado pelos defensores da Criatura, quer esteja em questo o double bind de Palo Alto, a sociedace paradoxal de Barel ouos principios de Von Foerster. Ou ainda da sinulagdo, pontonodal da maquina universal de Turing € eixo em toro do qual se desenvolve o delirio simoniano. A essas (rés nogdes instigantes de tecnologiaede técnicas decomunicag’ojunta- se a interatividede, excelente argumento de venda, pelo qual se vé o homem ea maquina unirem-se por amizade, numa alianga que Pouco apoucose tornacasamento, atéa espera apaixonadatosfilhosnascidos da fecundagio Feciproca. Cada uma, no seu campo, essas nogdes ajudavamateorizara acao (social, psicologica, comunicativa), informavam um fragmento de saber limitado. Cada uma tinha a sua sedugao particular ¢ carregava a propria revolucdo. A rede erguia-se contra a arvore (linear), 0 paradoxe contra 0 principio de ndo-contradigio, a simulagdo contra a ontologia, a interagso contra a causalidade e © sujeito Todo-Poderoso. Mas as coisas se estreitam quando todas as sedugdes operam aomesmotempo, nioimportandooassunto, Ou ainda se uma dessas nogées pretende rons todas as outras absorvidas. Ora, assistimos, hoje, a essa confusio ou a essa globalizacdo; e € nisso que simples ténicas (ferramenta conceitual pertinente para um olhar determinado) tornam-se tecni side visio totalitaria Comecemes pois por explorar esse quadrilatero, coma intengao de perceber que tipos de sedugso seus elementos podem exercer sobre os intelectuais, que formam, sabemos, multiddes em nossas sociedades... ARede Ligada, antes de tudo, aos lugares do corpo humanot,a redeéa das veias edas nervos que transportam o sangue e os humores: liquidos alimenticios ounocivos. OO cruzamentodeles, 0 “entrelagamento”, forma uma “rede”, que €a substancia mesma da carne. Essa referénciaanatmica ¢fundamental na medida que indica um lugar especifico. Nervos, veias, canais, onde passeiam os espiritos animais, sio da ordem dosingulare tém qualquer coisa do acaso, pois nennum corpo possui 0 mesmo entrelagamento, a mesma dimensdo de canais. Todos so singulares, e ¢ por isso que a medicina, ou a arte de tratar os lugares do corpo, é uma ARTE (uma techné), mais doque umaciéncia Claro, as particularidades se unemnum esquema geral, indicadordeuma ordemmais do que de uma tealidade. A realidade, o conereta do funcionamente interno sio situacdes de “caso”, de golpe de vista, de tatear e de exercicios repetidos. Essa concepgdo permite tratar as 1cdes ‘como circulagdes sem comeco nem fim, na medida que os “abocamentos” si multiplos 0s encaminhamentos complexos. Ela sera retomada sob a forma de uma visdo cireularista do mundo ¢ de seus envelopes sucessivos, visio de um interior orgainico se completando por reprodugao “auto”®. Pois, ao mesmo tempo que se refere a0 corpo biolgico, ao concreto da vida do corpo, 0 desenho geral dos maltiplos ‘entroncamentos pode ser tratado como um campodeforcasorientado,ondese propagam ‘energias (vistas como fluidas) no modelo dos humores e das inflamagoes, ou do sangue. O deslizamento para a teoria da comunicagio faz-se por extensdo € associa os antigos -conceitos ¢ as novas praticas. Enunciar: “Estar conectado ou se conectar”, expresses comuns, hoje, € fazer referéncia a essa arvore da vida cujos ramos enviam em todas as direcdes seus rebentos manifestos. E também considerar o conjunto da sociedade como um organismo vivo, no qual crescimento e morte aparecem ligados A qualidade e ao numero de ramificagdes possiveis. ‘Ogque seria dificil de entender na nogao deuma linhaou delinhas nao-lineares,deum, veo que nao seria um sobrevéo, de uma finalidade sem fim - tracos caracterizadores da rede - “passa” facilmente para o publico gragas a imagem do corpo. © mundo de canais, satélites, cabos, fibras dticas, mensagens telematicas, gestioa distancia, ramificagdes possiveis em todas as diregdes, multifungo dos transmissores (chamados impropriamente de multimidia) nao desestabiliza a concepgao tradicional do mundo, na medida que a referéncia ao corpo resiste no seu arcaismoas inovagdes técnicas. Tal conceito 6 mesmo um conceito de passagem e aclimata osespiritos A refundicao dos elementos tradicionais do conhecimento que sio a causalidade e a linearidade, o determinismo e a ndo-contradicao, Nao é surpreendente vé-lo circular em todos osmeios e designar situagdes tao banais quanto a constituicgdo de um carné de enderegos, um complexo de relagdes, uma reuniao de filiais de empres istribuicao da edigio ou do combustivel, e até a teia de aranhadaméfia,enquanto que, deoutraparte, serve de suporte a construgdes abstratas e audaciosas em légica matematica, Assim, trata-se menos, com o pensa- mento darede, de um canto de triunfo do que de um compromisso, remédio contra as anguistias do mundo contemporaneo refe- rentes 4 marcha dos acontecimentos ou das ages, a responsabilidade deste ou daquele numa empresa. Se a rede nio tivesse por fundo original essa relagio com 0 corpo € Arvore, ninguém duvidaria que 0 ques- tionamento das “fontes” e dos “fins” pela circularidade dos canais multiconectados acarretaria problemas ontolégicos edeordem moral sem fundo.., Por isso, devemos desconfiar das apologias da modernidade e das praticas recomendadas por elas, apresentadas como Revita FAMECOS * Porto Alegre * n° 6 * junho 1997 * semestral novas sob o titulo de rede: é realmente do mesmo mundo que se trata, ea renovacao di respeito & racionalizagao da passagem ’. Ou, ainda, trata-se mesmo de outro mundo, camuflado pela bastante antiga e tran- quilizadora metafora corporal da rede, Nessa mistura sutil, ndo se sabe bem quem vencera, nosso corpo ou a técnica. Mas 0 interesse nessa disputa é, vé-se, bastante claro, a rede impée-se a todos como tecnologia do espirito. E preciso raciocinar em termos de rede, quer se trate de camuflar um futuro frie ou de preservar um passado mais quente. 08" doparadoxo Se umsistema pode ser visto segundoa rede, isto, sem “comego nem fim” fixados e cujas linhas possam se acavalar circularmente, tornando TODA circulagao passivel, sem ordem determinada de uma vez por todas e, da mesma maneira, todas as ramificagoes possiveis, entdo estamos ndo somente num. sistema aberto, masnumsistemaque se define pelotempo passado a percorré-loem todosos sentidos, como o sistema geral de todos os sistemas possiveis. Dito deoutra forma, temos ai um sistema e seu exterior, ligados de tal maneira quendo se pode mais Ihe desenhara forma (seu limite exterior); estamos as voltas entiocomumaforma dita”paradoxal” Como precisa Yves Barel’, toda forma, social ou biol6gica, natural ou artificial, pode dar lugar aduas visdes, uma que utiliza 0 “ou isto” aquilo”, e outra, 0 “e...e”, isto e aquilo. Superposigao. Legendaria figura do pato- coelho de Wittgenstein, da mulher feiticeira, ousimplesmentedacubo, que se pode verde duas maneiras. paradoxo era, nao ha muito tempo, um exercicio de logica, considerado como a propriedadedeumalinguade dizer oque diz aomesmo que onega. Desse ponto de vista, @ aprendizagem das aporias tornava-se necesséria e parecia uma curiosidade, uma singularidade no seio das formagdes lingua- geiras “normais’. Mesma coisa para os desenhos ambiguos dos quais falei acima. Ou VO Revista FAMECOS « 1997 rio Alegre = n° 6 + junk dessassituagdes angustiantes, queera preciso eviter ou denunciar e nas quais 0 sujeito era pego entre os fogos cruzados de duas injungdes opostas, O”“Eu sou um mentiroso” do cretense encontrava o seu lugar, limitado entre aspas que condenavam a proposigao a uma semi solidaa cereada como ela a6 dejustapasicaes possiveis, Basta,em verdade, posicionar essa proposicdo num discurso que the designe a condigdo de paradoxo, enquanto 0 conjunto de proposicdes “normais” continua a funcionar sem rupturas intempestivas ‘Completamente diferentes saa os paradoxos modernos que invadiram progressivamente os dominios cientificos até inverter a ordem dos fatores: o paradoxal ¢ agora englobante, enquanto as proposigdes assertivas ou descritivas se tornam excecdes no ambiente paradoxal Varias constatacdes se impéem aqui. Por exemplo, 0 observadar ve suas medidas modificadas por sua propria intervencao: & preciso ento que se considere como parte integrante do sistema que deve estudarcomo se, referilo ao sou um mentiroso”,o”eu” do observador se dlissesse mentiroso, mas assegurasseentretanto os resultados objetives desua observagdo. Impossivel, aqui, de safar- se coma introdugao de uma classe de objetos “meta”, superior logicamente a proposicao enunciada, pois essa classe cai sob a mesma suspeita. As “classes logicas” de Russell sto entao ineficazes. A comunicagio linguageira deve recusar-se ao “eu” de quem fala ea um “eu fazendo parte de outro sistema que 0 anula enquanto “eu”. O dizer nao €¢ o dito, ¢, entretanto, dizer e dito “andam juntos”. A lingua é uma realidade ambigua, cujos elementos pertencem a varias ordens heterogéneas, Trata-se de uma relacdo desatada, de um andar junto que nao anda junto, de uma confusao do sujeito e do objeto sob o mesmo traco de realidade de segunda ordem. Von Foerster nos apresenta, desde 0 comego, uma ordem comunicacional que se exprime por: “Nao fale”, ou alguém que pronuncia: “E proibido proibir”. Todo discurso ganha fim com outre discurso que significa o seu fim, ¢ isso numa construgao em abismo. A super- posigao e a confusio sio a lei do género, que traca fronteiras frouxas, servindo também de passagem. Aqui, nao ¢ @ principio de linearidade quesofre, maso danio-contradicao que passa pormodificagdesimportantes, Que um objeto possa ser isto © aquilo, que eu seja isto E aquilo, dentro E fora, e eis-me frente a um estranho mecanismo! Arealidadebemconcretaebem distinta dos objetos que me cercam se torna imper- ceptivel, sua representacao em formas diseretas me escapa, eu me encontro diante de um continuum flutuando em pontos de vistacontrastados esimultaneamente validos. A essa confusdo de pontos de vista s acrescenta a que provém da reversibilidade daparteedotodo. A parteenvolvea totalidade que “exprime” enquantoatotalidadeenyolve apartena qual éexpressa. Esse envolvimento reciproco permite a passagem (e alimeista a ambigitidade) do sujeito 2 sociedade e da sociedade ao sujeito, do mesmo modo que permite © reenvio indistinto do sistema considerado como totalidade ao sujeito considerado como expressdo*total de uma sociedade dividida O paradoxe € 0 sintoma de uma crise, onde, por nao desatar 0 né instaurado, 0 individuoperde asuaidentidade. Sintomade tada sociedade quando se acha pressionada pelo duplo constrangimento de uma moder- nidade que nao pode recusar e de tradicées que anegam; o paradoxo se torna simbolode impoténcia a se determinar. Simbolo. quer dizer que inverte essa impoténcia, valori zando-a, organizando em torno de si circulos de contradigdes.ndo resolvidas que valem como estilo de pensamento e de vida, como nos sugere Yves Barel em suas obras. Aera dos paradoxosabre-seentaocomo adeuma reestruturagioespago-temporal. relatividade generalizada esta longe dejogar sua partida apenas nas esferas siderais. Esta presente nesta esfera particular da inte- ligencia: 0 paradoxo, bem feito, era antes uma certa qualidade de espirito (brilhante e Rewiste FA paradoxal formavam pat). Sustenta, hoje, construcdes conceituais que visam maisalto: Hofstadter, depois de Von Foerster’, grande amador de ficcoes cognitivistas, faz reinar a visdo paradoxal sobreomundode amanha. A auto-representagao e a auto-referéncia, essas duas formulas sistematizadas do paradoxo, sao cavalos de batalha. Nos s6 seriamos pensantes por termos em nés mesmos esse movimento perpétuo de referéncia a nos mesmos que nos fecha no seu circulo. Demos ao computador sua propria auto-referéncia, essa possibilidade de se colocar em abismos, eno havera mais diferenca entre a maquina eo homem.” Vemos que, parte do jogo, paradoxose toma uma tecnologia capaz. de reinar com dominio absotuto, t30 mais absolut que um paradoxo ndo pode sofrer contradigao, Pois ¢ preciso notar que, no caso de um jogo delinguagem, podia-setrataro paradoxo como alguma coisa de extraordinario, dizendo: “Afinal de contas, nada mais ¢ do que um paradoxo”, enquanto, num contexto paradoxal, as situagdes embaragosas recla- mam umvigoroso:”Masclaro, éassim porque ¢ paradoxal, como tudo mais”. Reviravolta que nie carece de tempero enos faz entrever a verdadeira funcao e toda a poténcia dessa tecnologia do espirito: permitir-nos, apesar de tudo, preservar a identidade ameacada, desintegrando a arcaica constituigao do ego para substitui-la por uma nova identificagao, dificil, fragil, paradoxal. ASimulagao J4estamos bem longedo pensamento “rede”; acedemes a uma zona onde © autismo, fechamento da referéncia sobre si mesma, definindo a vida sob a espécie da auto- referéncia, comega a fissuragio de nossas certezas. A simulacao, apesar ou por causade sua velha historia, nao tem condigses de arrumar as coisas, bem ao contrario! Aqui também, o processo de seducao passa pela Antiguidade. A nogéo nasce ac mesmo tempo que o logos afirma seu direito OS © Porto Alegre * n 6 + juilhs 1997 © semestral 1 © onde se constitui um pensamento do Ser. Um tao persistente quanto o outro, Ser & smulagao se conjugam nos mesmos tons. E, inda que retomando coloragdes sucessivase divergentes,a simulagdondocessa dese referit A sua origem. Assim, oferece a andlise duas faces, antiga e moderna. Essa caracteristica antiga nos permite a passagem - arriscada - para a sua acepcao atual. Outro atrativo: a simulagao, tal como paradoxo, ésintoma da crise que pretende superar. E, comoele, tenia -englobar todos os conceitose reabsorves todos 0s conflitos no seu processo. Igualmente totalitaria, visa a dar a chave totalizante de um enigma, apagando as pistas. Mas, mais ainda do queo paradoxo, cobree recobredais, outros elementos do tautismo: o autismo ea tautologia Omesmoeooutre No “comeco”, a simulagdc se mantém no, dominioaberto por Platao, Trata-sedo modelo e da copia, do mesmo e do outro. Todos objetos que exigem um estudo aprofundado, indoao Unoe ao Ser, requerem uma dialética rigorosa, a dianoia, ou distingao do pensa- mento Pois preciso distinguir entre os termos que indicam... a distingao, Assim, 0 Uno ¢ semelhantea si, estandoreunido nele mesmo, enquantoo diverso, oespalhado, nao se parece nem a si nem ao Uno. Entre os dois termos, entre © mesmo ¢ © outro, uma fissura, um hiato consideravel. Como fazer? A primeira via é uma espécie de astucia através da qual, com uma cépia, pensa-se podersimular Uno: ¢aimagem,asimulagao do Ser, aparéncia todavia enganadora, falsa Falar “imagem” significa de toda maneira trair o Ser, impor uma valendo por, instalar a cOpia no lugar do original. Falta moral, falta contra a filosofia, que ¢o pensamento do Uno. O simulador é um mentiroso; procede comaintencaode se fazer passar pelo quenao 6,usandoa aparéncia,asemelhanga repetigao cavernosa, © poeta eo pintor esti no nivel mais baixo, pois, claro, a imagem € seducdo, 2 Reviste FAMECC etérica, sofisma. Nao ha uma segunda via mais segura para superar a ruptura? Sim. A nocéo de paradigma (de para deiknumi: subir em paralelo) ¢ burilada para tirar a imagem, (cidélon) de seu estatuto desprezivel. A epistemologia, longe de empurrarasimulagao ao infemo da moral, defende-lhe a utilidade, Construir um modelo reduzido do mundo, & a permissio para exploré-lo, Uma laranja & um payadigma da terra, a caverna, 0 parediyma da silwagic humana, A analogia, aqui, € teleolégica; visa aum fim, participa da esfera da ciéncia. Se a copia nao vale o original, é porque nés, humanos, somos imperfeitos. Temos necessidade desse artefato; uma inteligéncia infinita nao precisaria disso. O paradigma designa nossa insuficiéncia e desempenha 0 papel de estepe. Mas esse aspecto € ampla- mente compensado por sua utilidade."* Assim, a forte platonica nos lega duas pressuposic¢ées que impregnam nossa maneira de olhar: ~ acépia-simulagao€ muito inferiorao original e devemos desconfiar dela; — oparadigma, acépia controlada pela ciéncia, ¢ Util ao conhecimento, e devemos nos servir dele, Umaespéciedecontaminagaoreciproca atua entre as duas verses, esomosao mesmo tempo desconfiados em relacdo a imagem e confiantes quanto ao extremo oposta, 0 modelo cientifico... dois preconceitos que nos afetain simultaneamente: O problema permanece inteiro: boa ou situacao? mas ©Simulacrocomo “typos” Nossa educacao tradicional nos ensinou a manipular delicadamente as respostas, a limitarosdominios, mesmo se apareceramna seqiléncia alguns conflitos de opiniao. O modelo cientifico € intocavel, a simulagio técnica, util, A simulacdo ética concerne a vida cotidiana. Quanto a da arte, é mais ou menos aceita quando o resultada pode ser Porto Alegre * n' 6 © junho 1897 « semectral considerado “belo”. Ba arte de viverconsiste justamente em circularentre zonas perigosas, desviando-se dos extremos, recusando as confusées de niveis. Mas eis que retorna o “simulador”, objeto “real” e to natural quanto a realidade da qual € 0 decalque. Epicure nos oferece ai um typos, umamarcaou modelo em miniatura dos corpos de onde emana. Pois, em Epicuro, ossimulacros sao imagens, masnao enquanto imitagdes, aparéncias de um original ou da idéia, As imagens existem, sdo corpos fisicos, mais leves e mais finos que os corpos sélidos dos quais emanam em permanéncia, Assim coma emanam, na verdade, dos corpos, propagando-seentaosob a formade pequenos conjuntos, as imagens podem ser ditas typo: modelos, ou impressoes (typos é a impressao em relevo servindo 4 moeda). O modelo é também teorico, pois hé um typei dos corpos sob a forma de simulacros - essas pequenas imagens que vém perturbar os sentidos.” Construgao tedrica nascida da obser- vagao, ou imagens feitas de particulas finas saidas do corpo, € um todo, sob a rubrica typos. Aqui, mais nenhuma consideragao moral ou ontoldgica, Estamos na observacao dos“fatos”, eaimagem saida docerpo solide nao é mais nem menos digna de interesse do que a sua fonte. Com o simulacro epicurista, tocamos a segunda versao danogao:sea primeira estava vinculada a definigao em relacao ao verda- deiro ese achava assim considerada inferior, atémesmo maligna, asegunda diz.respeitoao uso possivel de um signo que tem a mesma textura daquele de onde provém, possuinde amesma garantia deautenticidade, sendo tao “real” quanto a sua fonte. Se um traco disjuntivo pode ser procurade no primeiro caso, esse mesmo trago nao tem razao de ser no segundo caso; o simulacro, neste sentide (epicurista), oblitera a distingdo entre verdadeiro/ also, real/imaginario, verdade/ mentira, Escapa ao desenrolar do tempo: a simulagdo-simulacro se faz em simul- taneidade (simul: ao mesmo tempo). Impos- {vel voltar atras para referir-se a tonte, paisa fonte € interna. Essa privagio de referente a FAMECOS * Porto Alegre + n° 6 * junho 1997 * semestrat junta-sea auto-referéncia de que nos informa oparadoxo, ¢, para além do paradoxo, a rede: umacontaminacaoinstantanea pelo simulacro é possivel gracasao entrelacamento em malha dos circuitos ‘Vemas aqui se desenhar, ao inverso do platonismo, um universo totalmente verda- deiro (ou totalmente falso, a mesma coisa), aoabrigodetoda poténcia moral de distingao, que facilita enormemente a tarefa das tecnologias, para quem a distingao homem- maquina nao tem mais lugar... Nessesentido, as computadores inteligentes seriam bem. simulacros (@ nao siraulagées). Nao seriam unicamente paradigmas, titeis ao conhe- cimento das leis do pensamento. Pois entao estariamos ainda na distingdo natural/ artificial, paradigma/ser.” Com essa acepgio, que poderia se reclamar de Epicuro, os computadares nao simulam, sio, enquanto simulacros. Assim, podem prefigurar um mundo sem avesso nem direito, sem ontologia, um mundo especifico, ilimitado, Esse mundosemavesso nem direitoé odo paradoxo, Docomeco, que éfim, ao fim, que écomego. Eo que encarnam: as novos meios de comunicagao, encerrando a informagao sobre eles mesmos, ou Bau- drillard, que nao fala em vao de sedugao ede simulacro. \Visdo de mundo na segunda poténcia Um ser que renunciou a suas pretensdes de visar ao ser. Pade-se dizer um ser do falso? Nao, pois seria ainda se referir a um ser verdadeiro... Atingimosaqui a grande deriva do paradoxo, e se, num contexto paradoxal, nada mais € paradoxo, num contexto de simulagao, nada mais ¢ simulacao. A angiistia de uma decisao a tomar, de uma vida a preencher, de uma posigao a sustentar é entao superada, pois toda decisao da “no mesmo”. Como 0 paradoxo, e utilizando a rede para propagar-se, asimulagdo ¢em principio sintoma, depois simbolo. Sua generalizacao prefigura uma teologia inconsciente e, esperando encontrar sua expressio numa ciéneia geral de todo conhecimento conhe- cendo-se come seu mesmo, finca as suas raizes nasnossas proprias praticaseembeleza nossas indecisdes, Interasae Ultimo termo da tetralogia, a interagio utilizada como argumento - de venda - no mercado tedrico como no mais chao da economia." O campo designado por ele vai dasemiologia lingtisticaa sociologiaecarrega na passagemos pedacosjdestabelecidos pelas nogdes de paradoxo, de rede e de simulacao. Nisso,otermoilustraa hipstese, desenvolvida por nés, da emergéncia de uma “era da confusio”, em relagio diretacomasociedade Frankenstein, ¢ nos interessa totalmente. Antes de analisar os seus elementos teéricos importados, precisemos sua utili zagao no argumento de “venda” da midia. Paraosquesequestionem sobrea perda de criatividade sofrida pelo individue em fungao da maquinizagio de sua meméria ¢ dos procedimentos heuristicos que Ihes sio proprios, a interacdo vem em socorro.” Mas ~ teria como resposta - seu computador, longe de priv-lo de uma parte das suas funcées criativas, as multiplica, pois a maquina esta em relagio interativa com o usuario.” Toma- se essa interatividade como um dialogo com umserinteligente, quenada esquece, alémdo mais, eque nao lhe da nenhum sermio: basta nao o irritar endo se sofre nenhum dano, Paciente ¢ presentea todo momento, pode-se ter comele lagos tais que seria impossivel té- los idealmente com um individuo dotado de humor e de caprichos. Da mesma forma que uma conversa 6 frutifera entre dois seres normalmente interessados no mesmo objeto. Assim, oarquiteto estara em condigoes de ter mil vezesmais”idéias” gracas aocomputador, com a ajuda da projetacio (CAO), como tomador de decisdes com seu DAO." ‘Ainteratividadeassim propagandeada € em evidéncia torna-se um passaporte que suprime pavor ¢ desconfianga, e, pela promessa de um dialogo enriquecedor, faz passara pilula. Se €assim, por que, de fato, se privar de uma relacdo de criatividade rentavel? Essa pequena interatividade, ou argu- mento devenda,naoéneutra,oqueseimagina com facilidade. Colocando de lado as suas virtudes econémicas, tomemos em consi- deracao somente o que ela contem de pressupostes (ideoldgicos) c compreendere- mos melhor o interesse pratico desta teorizagio. 1. Para fazer entrar © computador inteligente no mundo dos homens, € preciso gratificd-loscom um elemento indispensavel: a criatividade partilhada. 2. Testa-se entio de referir-se a uma definigao de Homo “creans”, ndo somente de Homo faber, Deve-se reconhecer - impli tamente - que a interatividade fabricante ¢ somente instrumental, exterior, mecanicista, € aceitar mais ou menos a definigdo de um “dentro” autonomo, de uma interioridade imanente, nao suscetivel de ser analisada em, termos de perseguigdo de objetivos fixades por antecipacao. Conceder-Ihe 0 poder de definir sua obra sob medida, no TEMPO, por toques sucessivos, sem que afinalidadeesteja claramente prescrita. 3. Edefinir paralelamente o didilogo - a zona de operagoes alternativas - como logica dacriagdo:ditode outro modo, admitir quesé hacriagao propriamente dita nacomunidade de lingua, na troca. Mais ainda: fazer dessa zona de didlogo a verdadeira natureza da comunicagao. 4. Chegamos ent3o a uma andlise em termosdesemisticasocialeaceitamosintegrar as teorias do sujeito na relagio do homem coma maquina, ndo numa relagao de bibelds, um em face do outro, mas em mutua e reciproca interpenetragio: assim fazendo, ocorre o alinhamento entdo a uma teoria da comunicagio em termos de leberistwelt, de horizontes de vida partilhada, ou de intencionalidade a Searle. como _queitam. Emoutras palavras, recupera-se um ser “verdadeiro” no interior do sistema que o exclui para assegurar a sua credibilidade."* Atitude bastante paradoxal e que, como se dava com as outras nogdes, permite realizara confusdo jogando alternativamente com um VA Revistn FAMECOS © Porto Alegre * 2° 6 + junio 1997 * seaestral ou outro aspecto do dispositive, A imbricagao desses quatra conceitos ~ rede, paradoxo, simulagio, interagao - esta pois cumprida, e 0 circulo, fechado. O que é da ordem da rede paradoxal, oferecida em simulagao, é também da ordem do vivide, da criacao e do verdadeiro Nesse passe de magica entre o vivido e © verdadeiro, 0 fator principal de desen- cadeamento, intermed inevitavel, 0 representante do verdadeiro junto ao vivido edovividojuntoaoverdadeiro, onovoCristo, em suma, 6 a interacao. Import-export, comprador, ou vendedor, e principal dist buidor das tecnologias do espirito. A interatividade, sem produto na origem,fazos Precos, do mercado, na chegada E o cireulo se fecha. A interatividade generalizada é também a simulacao, o paradoxo e a rede. O quadrilitero se fechou sobre si mesmo € recobre o conjunto das operacdes possiveis, pois anuncia, desde agora, que nenhuma contradicao, seja qual for, é passivel de oposi¢ao ao paradoxo, que toda posigao pode se conectarcomoutra, pois a mesma realidade irreal (simulacao) esta em atividade de uma ponta a outra dos seres pensantes (rede), que se enriquo€em uns aos outros pelo contato reciproco (rede e inte: atividade). A arte, como a moral, a ontologia, como a ciéncia, tudo entra nesse nova paradigma, superior. Da Violéncia dos quatro conce! Esses quatro conceitos exercem sobre nés violencia por duas razOes: 1. Nao podem ser separados uns dos outros. Sends aceitamos um, devemosir até o fim dos quatro. O que mostra bastante bem a ultimo termo: interagao. Aqui tudoesta ligado, a rede retorna sobre si mesma pela circu- laridade. Tal circularidadeé paradoxal_e, na medida que a rede € paradoxal, ela ¢ auto- referente, logo em simulagao, A auséncia da realidade figura como referencia exterior. A auséncia de escola, como violencia. auséncia deescotha seencontra fu FAMECUS Porto Al em todos os niveis, Assimécoma rede: nao posso me decidir asairde uma redee, deoutra parte, nao posse tomar a decisio de entrar em uma. Por exemplo, na arte contemporinea, o artista est na rede e logo existe, ou bem nao estd nao existe. Por outro lado, uma vez na rede, esta funciona por ele. O mesmo vale para o paradoze: ele nao deixa escalha de ser colacado entre aspas. Aspar significaria sair da rede e fazer referenciaa ordem deuma realidadeexterior. Oparadoxo nos deixa em contate direto com a rede, numa espécie de double bind ao qual nao ha resposta possivel Ocorre 6 mesmo com a simulagio, que toma em consideragao a rede e 0 paradoxo ¢ constitui, através de uma realidade de segunda ordem, a realidade da simulagao, que vem substituir 0 que era outrora seja 0 real, seja o imaginario. A simulagao zomba deste corte e de toda referencia exterior a ela mesma, Fechamento solipsista, Somos prisioneiros da simulacao. Ainda violencia. Enfim, a interagaa liga todos esses polos afirmando que a acdo, voluntaria e livre, foi destronadaem beneficio dainteragaode todos ‘os elementos da rede (inclusive o proprio, individuo), agindo entre eles segundo as lei de uma auto-organizacio, de uma auto- referéncia, Auto-poeisis a qual nao podemos escapar no didlogo “amigavel” com a maquina, Wioléncia aqui também, Eamizade forgada » Notas 1 Sobre essa nogio ¢ seus desdobramenios contides neste texto, ver SFEZ, L., Critique de ta communication, Pa Seu, 199 2. Essa demonstracio comesponde & de Legendre em toda a sua obra Op. «it 4 Ver IIPOCRATES, Les Lieur da cops, Belles Lettres, 18 ret it 6 © junio 1997 © semuestral

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