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INDÚSTRIA CULTURAL

A
hipermassificação e
a destruição do
indivíduo
EDIÇÃO - 7
por Bernard Stegler
Fevereiro 1, 2008
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O “tempo livre” é de fato assim tão livre? Esse tempo,
saturado de produtos culturais, impede que cada qual se
diferencie por escolhas próprias, espoliando sua energia
vital. E, levando a uma perda generalizada de
individuação, engendra rebanhos de seres em
permanente e angustiante mal-estar – rebanhos que se
aproximam cada vez mais da horda furiosaBernard
Stegler
Uma fábula dominou as últimas décadas e iludiu em boa parte os
pensamentos políticos e as filosofias, afirmando, desde 1968,
que tínhamos enfim alcançado a era do “tempo livre”, da
“permissividade” e da “flexibilidade” das estruturas sociais, a
sociedade do lazer e do individualismo. Esse conto de fadas,
teorizado sob a denominação de “sociedade pós-industrial”,
influenciou e fragilizou notadamente a filosofia “pós-moderna”.
Inspirou os social-democratas, querendo fazer crer que tínhamos
passado da época das massas laboriosas e consumidoras típicas
da era industrial para o tempo das classes médias. O
proletariado, segundo tal fabulação, estaria em vias de
desaparecimento.
Esse último, porém, não apenas continua a ser numericamente
significativo como ainda cresceu, com a larga proletarização dos
empregados, assujeitados a um dispositivo maquínico que os
priva de iniciativa e de saberes profissionais. Quanto às classes
médias, estas se pauperizaram. Falar de crescimento e impulso
do lazer – no sentido de um tempo liberado de qualquer coerção,
o tempo da “disponibilidade absoluta”, como diz o dicionário – não
é nada evidente, pois o lazer não tem mais por função liberar o
tempo individual, mas melhor controlá-lo no intuito de
supermassificá-lo: tornou-se o instrumento de uma nova servidão
voluntária. Produzido e organizado pelas indústrias culturais e do
entretenimento, o lazer forma o que Gilles Deleuze [1] chamou
de as sociedades de controle. Estas desenvolvem um capitalismo
cultural e de serviços que fabrica modos e estilos de vida,
transforma a vida cotidiana segundo seus interesses imediatos,
padroniza as existências pelo viés dos “conceitos de marketing”.
Como este, por exemplo, do life-time value, que designa o valor
economicamente calculável do tempo de vida de um indivíduo,
cujo valor intrínseco é dessingularizado e desindividualizado.
O marketing, como o entendeu Deleuze, transformou-se no
“instrumento do controle social” [2]. A sociedade pretensamente
“pós-industrial” tornou-se, ao contrário, hiperindustrial [3]. Longe
de se caracterizar pelo domínio do individualismo, a época mais
se aproxima de um devir gregário dos comportamentos e de uma
perda generalizada de individuação.
O conceito de perda de individuação introduzido por Gilbert
Simondon [4] expressava aquilo que adveio ao operário
submetido à máquina-ferramenta no século 19: este perdeu seus
saberes técnicos e, com isso, sua individualidade, reduzido à
condição de proletário. Agora, é o consumidor que é padronizado
em seu comportamento pela formatação e fabricação artificial de
seus desejos. Perdeu, também ele, seu “saber viver”, substituído
pelas normas editadas pelas marcas.
“Racionalmente” promovidas pelo marketing, as marcas
assemelham-se às “bíblias” que regem o funcionamento das
franquias de fast-food, às quais os concessionários devem
conformar-se ao pé da letra, sob pena de ruptura de contrato, ou
mesmo de processo. Essa privação de individuação, e portanto
de existência, é extremamente perigosa: Richard Durn, o
assassino de oito integrantes do conselho municipal de Nanterre,
escreveu em seu diário que precisou “fazer o mal para, ao menos
uma vez em [sua] vida, experimentar o sentimento de existir” [5].
Freud escreveu, em 1930, que, mesmo dotado pelas tecnologias
industriais dos atributos do divino, e “por mais que se assemelhe
a um deus, o homem hoje não se sente feliz” [6]. É exatamente o
que a sociedade hiperindustrial faz dos seres humanos: privando-
os de individualidade, ela engendra rebanhos de seres em
permanente e angustiante mal-estar; seres aos quais falta um vir-
a-ser, seres sem porvir. Esses rebanhos desumanos terão cada
vez mais tendência a se tornarem hordas em fúria. Freud, em A
psicologia das massas e análise do eu, esboçava, já em 1920, a
análise dessas multidões tentadas a regredir ao estágio da horda,
habitadas pela pulsão de morte descoberta em Além do princípio
do prazer e que O mal-estar na civilização retomou dez anos
depois, quando o anti-semitismo, o totalitarismo e o nazismo se
alastravam pela Europa.
Ainda que tenha se referido à fotografia, ao gramofone e ao
telefone, Freud não evocou o rádio nem – ainda mais estranho –
o cinema, utilizado por Mussolini, Hitler e Stálin, esse cinema
acerca do qual um senador americano dizia, já em 1912, que
“trade follows films” (o mercado acompanha os filmes) [7].
Tampouco imaginou a televisão, cuja emissão pública os nazistas
ensaiaram em abril de 1935. No mesmo momento, Walter
Benjamin [8] analisava aquilo que denominou o “narcisismo da
massa”: o controle dessas mídias pelos poderes totalitários. Mas
ele não pareceu aquilatar melhor que Freud a dimensão funcional
– em todos os países, incluídos os democráticos – das indústrias
culturais nascentes.
Edward Bernays, ao contrário, duplo sobrinho de Freud, teorizou-
as. Explorou as imensas possibilidades de controle daquilo que
seu tio chamara de “economia libidinal”. E desenvolveu as
“relações públicas”, técnicas de persuasão inspiradas pelas
teorias do inconsciente, que pôs a serviço do fabricante de
cigarros Philip Morris por volta de 1930 – no momento em que
Freud percebia, na Europa, a ascensão da pulsão de morte
contra a civilização.
Freud não se interessava pelo que se passava então nos Estados
Unidos. Salvo por uma estranha observação. Ele se diz, primeiro,
obrigado a “vislumbrar também o perigo suscitado por um estado
particular que se pode chamar de ?a miséria psicológica de
massa?, e que é criada principalmente pela identificação dos
membros de uma sociedade uns com os outros, enquanto certas
personalidades com temperamento de chefe não conseguem […]
desempenhar esse importante papel que deve lhes caber na
formação de uma massa”. E afirma, em seguida: “O estado atual
da América forneceria uma boa ocasião para estudar esse
temível prejuízo levado à civilização. Resisto à tentação de
lançar-me na crítica à civilização americana, não desejando dar
a impressão de querer, eu mesmo, usar métodos
americanos” [9].
Foi preciso esperar que Theodor Adorno e Max Horkheimer [10]
denunciassem o “modo de vida americano” para que a função
das indústrias culturais fosse verdadeiramente analisada, além
da crítica dos meios de comunicação surgida desde os anos 1910
com Karl Kraus [11].
Embora suas análises permaneçam insuficientes [12], esses
autores compreenderam que as indústrias culturais formam um
sistema conjunto com as indústrias em geral – sistema cuja
função consiste em fabricar os comportamentos de consumo,
massificando os modos de vida. Trata-se de garantir o
escoamento dos produtos sempre novos engendrados pela
atividade econômica, cuja necessidade não é espontaneamente
sentida pelos consumidores. Essa reticência dos consumidores
provoca um risco endêmico de superprodução, e portanto de
crise econômica, que só é possível combater – a não ser que haja
um questionamento geral do sistema – com o avanço daquilo que
constituía, aos olhos de Adorno e de Horkheimer, a própria
barbárie.
Depois da Segunda Guerra mundial, a frente da teoria das
relações públicas foi ocupada pela “pesquisa motivacional”,
destinada a promover a absorção do excedente de produção
quando do retorno à paz – avaliado em 40%. Uma agência de
publicidade assim escrevia em 1955: o que faz a grandeza da
América do Norte “é a criação de necessidades e de desejos, a
criação do desgosto por tudo que é antigo e ultrapassado”.
Promover o gosto supõe de fato provocar o desgosto, o que
termina por afetar o próprio gosto. Apelava-se ao “subconsciente”
para ultrapassar as dificuldades encontradas pelos industriais
quando se tratava de levar os americanos a comprarem o que
suas fábricas podiam produzir [13].
Na França, desde o século 19, vários órgãos se empenhavam em
facilitar a adoção dos produtos industriais, que transformavam
por completo os modos de vida, lutando contra as resistências
suscitadas por tais transformações: assim se deu a criação do
“reclame” por Emile de Girardin. Mas foi preciso esperar o
surgimento das indústrias culturais (do cinema e do disco) e
principalmente dos programas e emissões (do rádio e da
televisão) para que se desenvolvessem os objetos temporais
industriais. Estes permitem um controle íntimo dos
comportamentos individuais, transformando-os em
comportamentos de massa – embora o espectador, isolado
diante de seu aparelho de TV, conserve a ilusão de um lazer
solitário.
É também o caso da atividade dita “de tempo livre”, que, na era
hiperindustrial, estende a todas as ações humanas o
comportamento mimético e compulsivo do consumidor: tudo deve
tornar-se consumível, desde o sabão em pó e o chiclete até a
saúde, a educação e a cultura. Mas a ilusão que é preciso
oferecer para chegar a isso só pode provocar frustrações,
descréditos e instintos de destruição. Sozinho diante de meu
televisor, posso sempre pensar que me comporto
individualmente; mas a realidade é que eu faço como fazem
milhões de telespectadores que assistem ao mesmo programa
no mesmo instante.
As atividades industriais, tornadas planetárias, pretendem
realizar gigantescas economias de escala e, por meio de
tecnologias apropriadas, controlar e homogeneizar os
comportamentos: as indústrias de programas ocupam-se disso,
por meio dos objetos temporais que compram e difundem a fim
de captar o tempo das consciências que formam suas audiências,
e que elas vendem aos anunciantes.
Um objeto temporal – melodia, filme ou emissão de rádio ou
televisão – é constituído pelo tempo de seu desenrolar, aquilo
que Edmund Husserl [14] nomeou como “fluxo”. É um objeto que
passa. Como as consciências que ele unifica, esse objeto é
constituído pelo fato de desaparecer à medida que aparece. Com
o nascimento da rádio civil (1920) e mais tarde dos primeiros
programas de televisão (1947), as indústrias de programas
passaram a produzir objetos temporais que coincidem no tempo
de seu desenrolar com o desenrolar do tempo das consciências
das quais são objetos. Tal coincidência permite à consciência
adotar o tempo desses objetos temporais. As indústrias culturais
contemporâneas podem, assim, fazer as massas de
espectadores adotar o tempo do consumo do dentifrício, do
refrigerante, do automóvel. É quase exclusivamente desse modo
que a indústria cultural se financia.
Ora, uma consciência é essencialmente uma consciência de si:
uma singularidade. Só posso dizer “eu” porque dou a mim mesmo
meu próprio tempo. Enormes dispositivos de sincronização, as
indústrias culturais, em particular a televisão, são máquinas de
liquidar esse “si mesmo”. Quando dezenas ou centenas de
milhões de telespectadores assistem simultaneamente ao
mesmo programa ao vivo, essas consciências do mundo inteiro
interiorizam os mesmos objetos temporais. E se, todos os dias,
elas repetem, na mesma hora e regularmente, o mesmo
comportamento de consumo audiovisual, porque tudo as leva a
isso, tais “consciências” terminam por tornar-se a consciência da
mesma pessoa – isto é, de ninguém. A inconsciência do rebanho
libera um fundo pulsional que não se liga mais ao desejo – pois
este supõe a singularidade.
Durante a década de 1940, a indústria americana pôs em ação
técnicas de marketing que não cessaram depois de se
intensificar, produzindo uma miséria simbólica, libidinal e afetiva.
Essa última conduz à perda daquilo que eu próprio chamei o
narcisismo primordial [15].
A fábula pós-industrial não compreende que a força do
capitalismo contemporâneo repousa sobre o controle simultâneo
da produção e do consumo, regulando as atividades das massas.
Ela propaga a falsa idéia de que o indivíduo é aquilo que se opõe
ao grupo. Simondon demonstrou, ao contrário, que o indivíduo é
um processo. E que se transforma ininterruptamente naquilo que
ele é. Ora, só nos individualizamos coletivamente. O que torna
possível essa individuação intrinsecamente coletiva é o fato de
que a individuação de uns e de outros resulta da apropriação, por
cada singularidade, daquilo que Simondon chamou de fundo pré-
individual comum a todas as singularidades.
Herança oriunda da experiência acumulada das gerações, o
fundo pré-individual sobrevive apenas na medida em que é
apropriado singularmente e assim transformado pela participação
dos indivíduos psíquicos que o compartilham. Mas só é
compartilhado aquilo que é, a cada vez, individuado. E só é
individuado na medida em que for singularizado. O grupo social
se constitui como composição de uma sincronia, na medida em
que se reconhece em uma herança comum, e de uma diacronia,
na medida em que torna possível e legítima a apropriação
singular por cada membro do grupo desse fundo pré-
individual [16].
As indústrias de programas tendem, ao contrário, a opor sincronia
e diacronia, visando produzir uma hipersincronização que torna
tendencialmente impossível a apropriação singular do fundo pré-
individual constituído pelos programas. A grade desses
programas substitui o que André Leroi-Gourhan denominou de
programas socio-étnicos: ela é concebida para que o meu
passado se torne igual ao passado dos meus vizinhos, e para que
nossos comportamentos se gregarizem.
Um eu é uma consciência consistindo em um fluxo temporal do
que Husserl chamou de “retenções primárias”, isto é, aquilo que
a consciência retém, no agora, do fluxo em que ela consiste.
Assim a nota que ressoa em uma nota se apresenta à minha
consciência como o ponto de passagem de uma melodia: a nota
precedente continua presente, mantida no e pelo agora; e
constitui a nota que a sucede, formando com ela uma relação, o
intervalo. Como fenômenos que eu recebo e que eu produzo
(uma melodia que executo ou ouço, uma frase que pronuncio ou
escuto, um gesto que executo ou sofro etc.), minha vida
consciente consiste essencialmente de tais retenções.
Ora, essas últimas são seleções: não retenho tudo o que pode
ser retido [17]. No fluxo daquilo que aparece, a consciência opera
seleções que são propriamente as retenções: se eu ouço duas
vezes em seguida a mesma melodia, minha consciência do
objeto muda. E tais seleções se fazem através dos filtros em que
consistem as retenções secundárias, isto é, as reminiscências de
retenções primárias anteriores, que a memória conserva e que
constituem a experiência.
A vida da consciência consiste nesses agenciamentos de
retenções primárias, filtradas por retenções secundárias,
enquanto as relações das retenções primárias e secundárias são
sobredeterminadas pelas retenções terciárias: os objetos-
suportes da memória e as mnemotécnicas, que permitem
registrar sinais – notadamente os fotogramas, fonogramas,
cinematogramas, videogramas e tecnologias digitais, que
formam a infra-estrutura tecnológica das sociedades de controle
na época hiperindustrial.
As retenções terciárias são o que, tal qual o alfabeto, sustentam
o acesso aos fundos pré-individuais de toda individuação
psíquica e coletiva. Existem em todas as sociedades humanas.
Condicionam a individuação como partilha simbólica, que torna
possível a exteriorização da experiência individual por meio de
sinais. Quando se tornam industriais, as retenções terciárias
constituem tecnologias de controle que alteram
fundamentalmente a troca simbólica: repousando sobre a
oposição entre produtores e consumidores, elas permitem a
hipersincronização dos tempos das consciências.
Estas tornam-se cada vez mais tramadas pelas mesmas
retenções secundárias e tendem a selecionar cada vez mais as
mesmas retenções primárias: percebem então que não têm muita
coisa a dizer umas às outras e se encontram cada vez menos.
Ei-las remetidas à sua solidão, diante das telas nas quais
consagram cada vez menos seu tempo ao lazer – isto é, a um
tempo liberado de qualquer coerção.
Tamanha miséria simbólica conduz à ruína do narcisismo e à
debandada econômica e política. Antes de ser uma patologia, o
narcisismo condiciona a psique, o desejo e a singularidade [18].
Ora, se, com o marketing, não se trata mais apenas de garantir a
reprodução do produtor, mas de controlar a fabricação, a
reprodução, a diversificação e a segmentação das necessidades
do consumidor, são então as energias existenciais que garantem
o funcionamento do sistema, como frutos do desejo dos
produtores, de um lado, e dos consumidores, do outro – o
trabalho, como o consumo, representando a libido captada e
canalizada. O trabalho em geral é sublimação e princípio de
realidade. Mas o trabalho industrialmente dividido traz cada vez
menos satisfação sublimatória e narcísica, e o consumidor cuja
libido é captada encontra cada vez menos prazer em consumir:
ele debanda, então, trespassado pela compulsão da repetição.
Nas sociedades de modulação que são as sociedades de
controle, trata-se de condicionar, por meio das tecnologias
audiovisuais e digitais da aisthesis [19], os tempos de
consciência e o inconsciente dos corpos e das mentes. Na era
hiperindustrial, a estética – como dimensão do simbólico
transformada a um só tempo em arma e teatro da guerra
econômica – substitui a experiência sensível dos indivíduos
psíquicos e sociais pelo condicionamento das hipermassas. A
hipersincronização conduz à perda da individuação pela
homogeneização dos passados individuais, arruinando o
narcisismo primordial e o processo de individuação psíquica e
coletiva, que permitia a distinção entre o eu e o nós, doravante
confundidos na enfermidade simbólica de um amorfo e indefinido
“alguém”. Nem todos são igualmente expostos ao controle.
Vivemos quanto a isso uma fratura estética, como se o nós se
dividisse em dois. Mas nós todos, e nossos filhos mais ainda,
estamos fadados a esse sombrio destino – se nada for feito para
sobrepujá-lo.
O século 20 levou ao extremo as condições e a articulação da
produção e do consumo, com as tecnologias do cálculo e da
informação para o controle da produção e do investimento e com
as tecnologias da comunicação para o controle do consumo e dos
comportamentos sociais, incluídos os comportamentos políticos.
Agora, essas duas esferas integraram-se. A grande ilusão não é
mais, desta vez, a “sociedade do lazer”, mas a “personalização”
das necessidades individuais. Félix Guattari [20] falava de
produção de “dividuais”, isto é, de particularização das
singularidades pela submissão às tecnologias cognitivas.
Essas últimas permitem – por meio da identificação dos usuários
(users profiling) e outros novos métodos de controle – um uso
sutil do condicionamento, mobilizando tanto Pavlov quanto
Freud. Assim funcionam os serviços que incitam os leitores de
um livro a lerem outros livros lidos por outros leitores desse
mesmo livro. Ou os mecanismos de busca que valorizam as
referências mais consultadas, reforçando a consulta dessas
mesmas referências.
Doravante, as mesmas máquinas digitais pilotam, pelas mesmas
normas e padrões, os processos de produção das máquinas
programáveis das oficinas virtuais teleguiadas pelo controle
remoto, posto que a robótica industrial transformou-se
essencialmente em uma mnemotecnologia de produção. Postas
a serviço do marketing, elas organizam também o consumo. Ao
contrário do que pensava Benjamin, não se trata do
desenvolvimento de um narcisismo de massa, mas, ao inverso,
da destruição massiva do narcisismo individual e coletivo pela
constituição das hipermassas. Em outras palavras, trata-se da
liquidação da exceção, isto é, da gregarização generalizada,
induzida pela eliminação do narcisismo primordial.
Os objetos temporais industriais substituem as histórias
individuais e os imaginários coletivos, tramados no interior do
processo de individuação psíquica e coletiva, por padrões
estandardizados de massa, que tendem a reduzir a singularidade
das práticas individuais e suas características de exceções. Ora,
a exceção é a regra, mas uma regra jamais formulável. Ela só é
vivida na ocorrência de uma irregularidade. Não é formalizável
nem calculável por um aparelho de descrição regular aplicável a
todos os casos que constituem as diferentes ocorrências à revelia
dessa regra. Por isso, durante muito tempo, ela foi remetida a
Deus, que constituía o irregular absoluto como regra de
incomparabilidade das singularidades. O marketing torna estas
últimas comparáveis e categorizáveis, transformando-as em
particularidades vazias, reguláveis pela captação ao mesmo
tempo hipermassificada e hipersegmentada das energias
libidinais.
Trata-se de uma economia antilibidinal: só é desejável aquilo que
é singular e sob esse aspecto excepcional. Só desejo o que me
parece excepcional. Não há desejo da banalidade, mas uma
compulsão de repetição que tende à banalidade.
A psique é constituída por Eros e por Tanatos, duas tendências
que se compõem incessantemente. A indústria cultural e o
marketing visam impulsionar o desejo do consumo, mas, de fato,
reforçam a pulsão de morte, por provocar e explorar o fenômeno
compulsivo da repetição. Contrariam assim a pulsão de vida:
quanto a isso, e porque o desejo é essencial ao consumo, esse
processo é autodestruidor ou, como diria Jacques Derrida, auto-
imunizador.
Só posso desejar a singularidade de algo na medida em que esse
algo é o espelho da singularidade que eu sou, mas que ainda
ignoro, e que este algo me revela. Porém, na medida em que o
capital precisa hipermassificar os comportamentos, precisa
também hipermassificar os desejos e gregarizar os indivíduos. A
partir daí, a exceção é aquilo que deve ser combatido – o que
Nietzsche antecipara afirmando que a democracia industrial só
podia engendrar uma sociedade-rebanho. Eis uma verdadeira
aporia da economia política industrial. Pois o controle das telas
de projeção do desejo de exceção induz a tendência dominante
tanatológica, isto é, entrópica. Tanatos é a submissão da ordem
à desordem. Tanatos tende à equalização de tudo: é a tendência
à negação de qualquer exceção.
O problema não se limita àquilo que se chama comumente
“cultura”: a existência cotidiana, sob todos os seus aspectos, é
submetida ao condicionamento hiperindustrial dos modos de
vida. Trata-se do mais inquietante problema de ecologia
industrial: as capacidades mentais, intelectuais, afetivas e
estéticas da humanidade estão mass
Bernard Stegler é filosofo e escritor, autor dos ensaios
Mécréance et discrédit e De la misère symbolique (Galilée, Paris,
2004 e 2005). Este artigo, publicado originalmente em Le Monde
Diplomatique em junho de 2004, foi republicado em Manière de
Voir (a revista temática bimensal de Le Monde Diplomatique) em
dezembro de 2007.
[1] Gilles Deleuze (1925-1965), filósofo.
[2] Pourparlers, Editions de Minuit, Paris, 2003.
[3] cf. De la misère symbolique. 1. L’époque hyperindustrielle.
Galilée, Paris, 2004.
[4] Gilbert Simondon (1924-1989), filósofo.
[5] Le Monde, 10 de abril de 2002. Cf. também Aimer, s?aimer,
nous aimer. Du 11 septembre au 21 avril. Galilée, Paris, 2003.
[6] Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, Rio de Janeiro,
Imago, 1997.
[7] Jean-Michel Frodon, La Projection nationale. Cinéma et
nation. Paris, Odile Jacob, 1998.
[8] Walter Benjamin (1892-1940), filósofo alemão.
[9] Sigmund Freud, op. cit.
[10] Thedor W. Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-
1973), filósofos alemães, fundadores da escola de Frankfurt.
[11] Karl Kraus (1874-1936), escritor austríaco e crítico dos meios
de comunicação.
[12] Tentei, em La technique et le temps. 1. Le temps du cinéma
et la question du mal-être (Galilée, 2001, capítulo primeiro),
demonstrar por que essa análise permanece insuficiente: os
autores retomam favoravelmente o pensamento kantiano do
esquematismo, sem se darem conta que as indústrias culturais
requerem justamente a crítica do kantismo.
[13] Vance Packard, La Persuasion clandestine. Paris, Calmann-
Lévy, 1958.
[14] Edmund Husserl (1859-1938), filósofo alemão, pai da
fenomenologia.
[15] Aimer, s?aimer?, op. Cit.
[16] A sincronia designa aqui o estado da cultura em seu conjunto
em um momento dado e a diacronia, as mudanças, os saltos, as
evoluções que nela introduzem os indivíduos.
[17] As retenções primárias formam relações. Em uma melodia,
por exemplo, as notas em arpejo que compõem intervalos e
acordes ou, em uma frase, os elos semânticos e sintáticos.
[18] Esse termo se aplica “à descoberta do fato de que o eu,
também ele, é investido de libido. Ele seria mesmo seu local de
origem e, em certa medida, permaneceria o quartel general”
(Freud, O mal-estar na civilização, op.cit.).
[19] Vocábulo grego, do qual provém a palavra “estética”, que
significa “faculdade de sentir”.
[20] Félix Guattari (1930-1992), psicanalista, pioneiro da
antipsiquiatria.

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