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ERIC WILLIAMS Capitalismo e escravidao Traduca Denise Bottmann Preficio a edigao brasileira Rafael de Bivar Marquese TomPannita Das LETRAS Copyright © 1944, 1994 by The University of North Carolina Press, renovado fem 1972 por Erie Williams Grafia atualizada segundo 0 Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa de 1990, {que entrow em vigor no Brasil em 2008. ‘Titulo original Capitalism and Slavery Capa Vietor Burton Foto do autor “The Bric Williams Memorial Collection, The Alma Jordan Library, ‘The University of the West Indies, St, Augustine, Republic of Trinidad and Tobago Preparagto Osvaldo Tagliavini Filho Indice remissivo Luciano Marchiori Revisae ‘arise Leal ‘Ana Maria Barbosa ‘Datos temacionsn de Catalogo a Publis (C1) {Chiara Eraira do tt. Bras. Wiis ne apitatsme ¢ exewid / Ei Wilame radu Denise ortmann specie afl de Bar Marques. led — SiO Pnulos Compan dat Leta, 20 “halo igi: Caption and Sher. 1. Capitaine « erate Comércio de cenos ~ Get tren ladies Gr Bean Historia THe Tne pace calogo sare: 1 sadot Undoe "Caplio eeeav0 Tronomn incr oe fora) “Todos 0s dicetos desta edigio reservados 3 Rus Bandeira Paulista, 702,632 104532-002 — Sto Paulo— SP “Telefone: (1) 3707-3500 Fax: (0) 3707-3501 ‘werw.companhiadasletras.com.br ‘wonw blogdacompanhia.com.br Ao professor Lowell Joseph Ragatz, cujo trabatho monumental nesta drea pode ser ampliado e desenvolvido, ‘mas jamais superado Sumario Preficio a edicao brasileira Preficio . 1. A origem da escravidao negra se... 2. O desenvolvimento do trafico de escravos 3. O comércio briténico ¢ o comércio maritimo triangular .. 89 . Os interesses econdmicos das Indias Ocidentais . A industria britanica e 0 comércio maritimo triangular . A Revolucao Americana .. . : , O desenvolvimento do capitalismo briténico, 1783-1833 .. . A nova ordem industrial —_ . O capitalismo britanico e as Indias Ocidentais 10. “A parte comercial da nagao” e a escravidéo wey aye 11, Os “Santos” ¢ a escravidao .. 42, Os escravos ea escravidao 13. Conclusao Notas ... Bibliografia Indice remissivo .. 351 361 Prefacio a edi¢do brasileira Capitalismo e escravidao ea historiografia sobre a escravidao negra nas Américas Rafael de Bivar Marquese No vasto campo de estudos sobre a escravidao negra nas Américas, 0 livro Capitalismo e escravidao € um de seus mais noté- veis resultados. Quando a primeira edicao em inglés veio a lume, ‘em 1944, Eric Williams era um jovem historiador com 33 anos. Na ocasido, ele vivia nos Estados Unidos, lecionando ciéncias sociais € politica em Howard. Essa universidade fora fundada na capital federal logo depois do término da Guerra Civil norte-americana, concebida para a educacdo dos afro-descendentes recém-saidos da escravidao, e tinha 0 corpo docente majoritariamente formado por professores negros. Williams nela ingressara em 1939, um ano apés obter seu doutorado pela Universidade de Oxford, com uma tese intitulada The Economic Aspect of the Abolition of West Indian Slave Trade and Slavery [O aspecto econdmico da abolicao do tré- fico de escravos e da escravidao nas Indias Ocidentais]." Das origens da tese a publicagao do livro, caminho foi di- ficil. Williams nasceu na colénia britanica de Trinidad e Tobago. Primoggnito de onze irmaos, filho de um modesto funcionario dos correios locais, sua infincia foi marcada por grandes priva- Bes, 0 que nao o impediu de se destacar como dtimo estudante na escola primaria. Aos onze anos, obteve uma bolsa para estu- dar no Queen's Royal College, em Porto de Espanha, um dos ra- ros canais de ascensdo social via educagao abertos a populacao negra pobre da colonia. Nessa instituicao, 0 historiador, jornalista ¢ militante politico C.L.R. James foi um de seus tutores. Dez anos mais velho, ele seria uma referéncia decisiva em toda a vida inte lectual e politica de Williams. Com excelente desempenho académico, Williams ganhou, em 1931, uma das trés vagas anualmente alocadas para todo 0 Caribe britanico das disputadissimas Island Scholarships, que franqueavam aos laureados a possibilidade de estudar no sistema “Oxbridge”. A influéncia de James deve ter pesado na escolha de Williams pelo curso de histéria, contra a predilegao de seu pai, que preferia vé-lo estudar direito ou medicina. De todo modo, James e Williams mudaram-se no mesmo ano, em 1932, para a Inglaterra. Tendo por ganha-pao o jornalismo esportivo (cricket era sua especialidade), James mergulhou rapidamente nos ci culos anticoloniais radicais de Londres, que envolveram em dife rentes situacoes militantes vindos tanto das Indias Ocidentais co- mo da Africa — dentre os quais se destacaram George Padmore, Kwame Nkrumah e Jomo Kenyatta. Mesmo que apartado da mi- litancia de tempo integral, Williams nao deixou de travar conta- tos proximos com esses intelectuais e politicos negros oriundos do mundo colonial. Tais afinidades Ihe serviram como um claro contrapeso ao que encontrara em Oxford, onde o dominio da chamada “escola imperial” era absoluto. ‘A perspectiva de andlise do passado colonial britanico vei- culada por essa escola, ainda que nao fosse univoca, esposava os fundamentos ideolégicos que, desde a segunda metade do sécu- lo xix, vinham legitimando o império. Seu principal nome em Oxford, nes anos em que Williams lé esteve, foi Reginald Coup: land. No periodo entreguerras, Coupland exerceu completo con- trole sobre os temas relativos a histéria do império naquela ins- tituicdo, nao raro valendo-se de seu posto como catedratico para recrutar estudantes para a administracao imperial, da qual ele proprio participou em momentos decisivos. Em todos os seus trabalhos académicos e politicos, Coupland enfatizava a capacida: de moral do Império Britanico em moldar um “mundo melhor” ajudar os povos “atrasados” a avancar em diregao a liberdade. No longo prazo, o império se justificaria pelo seu proprio resultado final, isto é a formacao de nagdes iguais livremente associadas a Commonwealth britanica, como 0 comprovavam o Canada ea Australia. Mais importante para os presentes fins € 0 fato de que, em 1933, ano do centenario do ato de emancipagao nas colonias inglesas da morte de William Wilberforce, Coupland publicou 0 livro The British Anti-Slavery Movement [O movimento abo- licionista britanico], no qual ressaltava 0 papel crucial das ideias humanitérias morais ¢ religiosas da passagem do século xvuit para 0 xix, descarnadas de interesses materiais imediatos, na con: formagio do movimento que levara a aboligao da escravidao ne. gra caribenha? ‘A pesquisa que Williams desenvolveu ao longo de seu douto- rado, ao focar 0s fatores econdmicos na abolicao do trafico tran satlintico de escravos e da escravidao negra no Império Britani- co, afastou-se dos canones de interpretacéo entao vigentes sobre aquele processo. Tratava-se de um trabalho que seguia a risca 0 padrao consagrado de uma tese académica em historia, sobretu- do no que se refere ao encadeamento cronolégico da narrativa ¢ a0 dominio exaustivo que demonstrava sobre a documentagao. Dividida em doze capitulos, a tese concentrou-se no periodo de 1783 a 1838, examinando o declinio da importancia econémica das Indias Ocidentais para o Império Britanico depois da Revo- lugao Americana; 0 crescimento do tréfico negreiro ¢ da escravi- dao em Saint-Domingue; as tentativas de conquista britanica da colonia francesa durante 0 curso da revolucao escrava; 0 impacto do fracasso dessa tentativa para a abolicao do trafico transatlin- tico em 1807; a decadéncia da produgao acucareira do Caribe bri- tanico em face dos demais competidores mundiais; as ameacas das rebelides escravas de Barbados, Demerara e Jamaica € suas influéncias sobre a opiniao publica britanica; os limites impostos pelo monopélio das Indias Ocidentais para o avango das forgas capitalistas na metrépole. Uma referéncia basica para Williams compreender o declinio econémico das Indias Ocidentais foi o livro de Lowell Joseph Ragatz (The Fall of the Planter Class in the British Caribbean (A queda da classe plantadora no Caribe brita- nico], de 1928), referéncia esta que seria mantida no livro publi- cado seis anos depois da defesa da tese.* © malogro em publicé-la rapidamente e, também, em en- contrar um emprego no sistema universitétio britanico, levou Williams a se mudar para os Estados Unidos. Em Howard, encon- trou condigées intelectuais excelentes, que muito o estimularam a rever o plano original de seu trabalho.’ O elemento mais impor tante para a reconfiguragao do projeto foi o aparecimento, no mesmo ano de defesa da tese, da monumental obra de C.L.R. James sobre a Revolugao de Saint-Domingue.’ Como Williams deixou claro nos comentarios bibliograficos (p. 357), sua inter- pretagao sobre as relagdes contraditérias entre capitalismo e es- cravidao foi diretamente retirada de Os jacobinos negros. Williams adicionaria, ao livro de 1944, trés eixos ausentes de sua tese de doutorado de 1938, que se concentrara no papel das forgas eco némicas do capitalismo industrial para a destruigao da escravi- dao no Império Britanico: primeiro, a compreensao da escravidio negra como um fendmeno econdmico, em uma elaboragao da ideia do racismo funcional posto a servico da exploragao de clas- se; segundo, a centralidade do complexo escravista atlantico para a formagio do capitalismo industrial na Inglaterra; terceiro, 0 pa- pel da resisténcia escrava para a derrubada da escravidaio — um tema ja desenhado, mas pouco desenvolvido, no doutorado. Mas nao 56: Williams inspirou-se igualmente no tom politico ¢ no es- tilo de C.L.R. James, em sua escrita direta, 4cida e envolvente, que expressava a concepcao de que a pratica do oficio do historiador era uma atividade eminentemente politica. Nao por acaso, a fina~ lizagiio de Capitalismo e escravidao foi intermediada pela publi- cacao do primeiro livro de Williams, The Negro in the Caribbean {O negro no Caribe], de 1942, fruto de uma viagem ao Caribe (Cuba, Porto Rico, Republica Dominicana e Haiti foram os paises visitados) na qual travou contato com varios intelectuais de peso da regiao, entre 0 quais Fernando Ortiz, e em que pode consta- tar os efeitos similares, porém desiguais, da heranga da economia acucareira escravista colonial para os povos negros antilhanos. A plataforma politica inscrita em Capitalismo e escravidao era distinta da de Os jacobinos negros: James pensava na revolucao mundial e, em especial, nas potencialidades do Pan-Africanismo; Williams, na afirmagao do nacionalismo caribenho. Ivar Oxaal esclarece que essa distingao estaria na base do rompimento poli tico dos dois na década de 1960, mas, no contexto dos anos 1930- -40, 0 que sobzessaia era a convergéncia, Nas suas palavras, ambos 0s estudos ressaltavam 0 papel decisivo do conflito de clas- ses na historia. Williams atacou a complacéncia moral associada 20 enti \d:mento britanico de seu passado escravista; James pro curou demolir a mentira histérica da passividade negra sob a ¢s- cravidao, Ambos eram trabalhos radicais de investigagao escritos da perspectiva de intelectuais negros marginalizados, cujas expe- riéncias os tornaram conscientes da hipocrisia que subjazia & au- tocongratulacdo piedosa da metrépole a respeito das relagdes com suas coldnias? De fato, Capitalismo e escravidao batia de frente com 0 estab- lishment de Oxford e, por extensao, com toda a ideologia im- perial britanica, © estilo irénico e a organizacao esquemitica, nao necessariamente cronolégica, dos capitulos do livro demonstra- vam que Williams abandonara os padrdes de uma tese académica em busca de uma forma que atingisse diretamente 0s leitores ca- ribenhos, auxiliando-os a fundar politicamente o nacionalismo. ‘Atacar a interpretagdo humanitarista da abolicao consagrada pelos atores do século x1X, reatualizada por Coupland em 1933, signifi- cava atacat as justificativas ideologicas do imperialismo britanico na conjuntura critica da Segunda Guerra Mundial. O novo empre- go que assumiiu nessa época indicava 0 caminho que Williams pre- tendia seguir. Em 1943, ele passou a acumular com o trabalho em Howard um cargo na Anglo-American Caribbean Commission, 0 que em poucos anos 0 afastaria definitivamente da vida académi- ca. Williams romperia com a comisséo em 1955, mergulhando de cabeca no movimento pela emancipacio de Trinidad ¢ Tobago, do qual seria o grande lider, por meio da dirego do People’s Na- tional Movement, De 1956 a 1981, ano em que faleceu, Williams foi sucessivamente ministro-chefe de Trinidad e Tobago (1956-59), premié do pais na Federagdo das Indias Ocidentais (1959-62) € primeiro-ministro do pais independente (de 1962 em diante), car- {gos ocupados sempre por meio de eleigoes democraticas. Salvo algumas excesSes, todas da lavra de pesquisadores ne- gros norte-americanos ou caribenhos, 0 acento politico de Capi- talismo e escravidao foi rejeitado pelos historiadores profissionais do mundo anglo-saxénico, o que pode ser aquilatado pelas rese- nhas negativas publicadas sobre o livro na segunda metade dos anos 1940. Uma delas chama a atencao. Em 1946, Frank Tannen- baum escreveu um duro comentario, no qual deixava de lado 0 cerne da dupla tese de Williams sobre as relagoes entre capitalis- mo e escravidao" para ctiticar sua explicagao a respeito da genese do racismo nas Américas — segundo Tannenbaum, vincada por uma énfase desmedida nos fatores econdmicos. Saltam aos olhos as inscrigées politicas dessa resenha, com uma posicao antimar- xista abertamente contréria a0 nacionalismo caribenho entao em curso.’ A recep¢ao hostil certamente foi responsavel pelo fato de o livro ter vendido pouco depois de um inicio relativamente pro- missor — 1500 cépias chegaram a ser reimpressas em menos de um ano. Sua trajetoria se alteraria apenas nos anos 1960, quando, em contexto marcado pela independéncia na Africa, pela revolu- a0 na América Latina e, em especial, pelo movimento dos direi- tos civis nos Estados Unidos, sairam novas edigdes, com tiragens enormes, ¢ 0 livro foi finalmente publicado na Inglaterra." Um momento em que, por razbes semelhantes, 0 trabalho de Williams adquiriu 6tima fortuna na historiografia brasileira. A primeira edicao em inglés de Capitalismo e escravidao foi contem- poranea ao aparecimento de uma obra canénica para a compreen sao do passado brasileiro. Com efeito, apenas dois anos antes da publicagao do livro de Eric Williams, veio a lume Formagao do Brasil contemporaneo, de Caio Prado Jr. Nao obstante suas dife- rengas, ambos os livros apresentavam varios pontos em comum: a importancia conferida as economias das regides tropicais do Novo Mundo para a formagao do capitalismo europeu, 0 peso decisivo da escravidéo negra nelas, os impactos negativos da he- ranga colonial escravista para as formaces nacionais no Caribe ¢ na América Latina."' As convergencias entre as perspectivas de Williams e Prado Jr. podem ser avaliadas pelo trabalho pioneiro de Alice Piffer Canabrava sobre a industria acucareira antilhana na primeira metade do século xvttt: finalizado em 1945, sem tem- po habil, portanto, para que a autora tomasse ciéncia de Capita- lismo ¢ escravidao, a tese de Canabrava se aproximava notavelmen- te das conclusdes a que havia chegado Eric Williams, valendo-se para tanto do modelo analitico de Caio Prado Jr. ¢ da pratica de 5 uma historia econémica associada a primeira geragdo da Escola dos Annales.” Nao é surpreendente, assim, a recepcao positiva que a obra de Williams encontrou nas ciéncias sociais brasileiras a partir de fins da década de 1950, impacto que se prolongou por duas déca das. Capitalismo e escravidao foi relevante tanto para Celso Fur- tado, economista filiado ao pensamento da Cepal, como para 0 grupo de socidlogos da Universidade de Sao Paulo associados a Florestan Fernandes ¢ Roger Bastide, que dele se utilizaram para reavaliar e criticar teses consagradas sobre a democracia racial brasileira.?” A perspectiva analitica de Williams, enfim, casava-se bem com uma tradigao que vinha ganhando corpo no Brasil ena ‘América Latina em geral, e que logo desembocaria na teoria da dependéncia.'* O melhor exemplo disso esté na tese de doutorado de Fernando Henrique Cardoso, ex-aluno de Fernandes: seu en- quadramento para compreender o problema da transicdo da es- cravidao para o capitalismo na economia pecuarista do Rio Gran- de do Sul, um dos pontos de partida de suas posteriores investidas sobre o problema da dependéncia na América Latina, escorou-se inteiramente nos pressupostos do livro de Eric Williams."* (Os trabalhos que mais se valeram do esquema interpretativo de Eric Williams, no entanto, foram elaborados por historiadores igualmente vinculados 8 usP. Dois deles tornaram-se matriciais para a historiografia brasileira, obrigat6rios em seus respectivos dominios. O primeiro foi a tese de livre-docéncia de Emilia Viot- ti da Costa, de 1964, que tratou da crise da ordem escravista nas regides cafeeiras do Centro-Sul do Brasil; o segundo foi a tese de doutorado de Fernando Novais, de 1973, que examinou a crise do colonialismo portugués na América na virada do século xvii pa- rao x1x.'6 Essas obras de historiadores e cientistas sociais da use converteram-se, na passagem da década de 1960 para a de 1970, nas referencias basicas para os pesquisadores que lidavam com 0 16 passado escravista brasileiro, seja no periodo colonial ou no im- perial. © impacto internacional nao foi menos relevante: David Brion Davis ¢ Eugene Genovese, por éxemplo, muito se valeram das obras desses historiadores e cientistas sociais brasileiros para compreender de forma comparada o problema das diferengas ¢ das aproximagbes entre os sistemas escravistas americanos.” ‘Mesmo 0s historiadores que procuraram, nos anos 1970, dar consisténcia tedrica ao conceito de modo de producao escravista colonial, portanto sendo criticos do modelo de Eric Williams, nao deixaram de reconhecer no seu trabalho —e nos que, a exemplo de Emilia Viotti da Costa e Fernando Novais, seguiram-no de perto — as marcas da referéncia fundadora. Tais foram os casos de Ciro Flamarion Santana Cardoso e Jacob Gorender. Ao elabo- rarem 0 conceito, ambos estavam engajados no problema do de- bate sobre a formagao do capitalismo no Brasil e na América La- tina — em nosso pafs, parte do acerto de contas com a derrota que a esquerda sofrera em 1964."*Alids, foi no contexto dos deba- tes travados dentro da esquerda brasileira sobre os modos de pro- ducao na América Latina que apareceu a primeira edigo em por- tugués de Capisalismo e escravidao. Bla foi inserida, em 1975, com tradugdo de Carlos Nayfeld, na colegio América: Economia & So- ciedade, coordenada por IImar Rohloff de Mattos ¢ Ari Aratijo Viana para a editora Pallas. Também fizeram parte dessa colecao a coletinea de ensaios sobre modos de produsao editada por Théo Santiago e a Economia politica da escravidao, de Eugene Genove se, originalmente publicada em inglés em 1965.” Em que pese toda a critica a Eric Williams, Caio Prado Jr. ¢, por extensio, a teoria da dependéncia, Ciro Cardoso e Jacob Go- render nunca negaram a relevancia das abordagens estruturais paraa anillise dos processos sociais escravistas. O conceito de mo- do de produgao escravista colonial, ao considerar 0 fato colonial como uma dimensio estrutural, reconhecia explicitamente o le- 7 gado positivo das teses elaboradas a partir daqueles autores. De todo modo, pode-se afirmar que foi com Ciro Cardoso, no final dos anos 1970, que come¢ou um dos dois deslocamentos (0 ou- tro foi o da nova historia social da escravidao) que em pouco tempo contribuiriam para sepultar 0 aporte que as perspectives de Williams, Prado Jr. ¢ outros haviam trazido para a histori gratia brasileira e, com elas, a validade da categoria capitalisme para conferir inteligibilidade a compreensio do nosso passado escravista (0 contexto casado da redemocratizagao politica ¢ da crise econdmica na década de 1980 abriu caminho para a percepsa0, entre os historiadores da escravidao brasileira, de que a agenda das duas décadas anteriores era coisa do passado. Os debates so- breo modo de produgao escravista colonial se esgotaram, 0 oficio da historia se profissionalizou no Brasil, com a consolidagio do sistema da pos-graduacao, ¢ houve um movimento de redesco- perta dos arquivos. Ademais, foi nos anos 1980 que se consolida- ram as principais vertentes de estudo da escravidao brasileira que até hoje ditam a agenda de pesquisa sobre 0 assunto” Quando todos esses processos ocorriam, alguns historiado~ res de peso da geracio imediatamente anterior, que fundaram = nova agenda e estavam formando 0s novos pesquisadores, ataca ram explicitamente a validade a heranga de Williams ¢t alti, desau- torizando-a de forma definitiva. Ciro Cardoso foi um dos nomes centrais desse impulso. Tendo realizado sua tese de doutorado so- brea escravidao na Guiana francesa, ele foi um dos poucos histo- riadores brasileiros dos anos 1970-80 — senao 0 unico — que praticou a sério a histéria comparada da escravidao negra nas ‘Américas, com vasto conhecimento acerca da bibliografia sobre o Caribe. Em diversos textos dos anos 1980, afirmou com todas as letras que Capitalismo e escravidao era coisa do pasado, um tra batho superado e irrecuperavel." Vale citar as palavras de um tex 8 to de balan 0 critico que ele inseriu em um volume que reunia alguns dos principais nomes da nova geragdo de pesquisadores da escravidao brasileira, publicado por ocasitio das comemoragées do centenario da abolig4o no Brasil: a concepcao de Eric Williams sobre as relagdes entre capitalismo escravidao, hhegeménica e nao contestada por muito tempo, serviu de origem ¢ foi um dos esteios centrais, em nosso pais, tanto no caso da “es- cola sociolégica de Sdo Paulo” quanto, posteriormente, no dos escritos que desenvolveram a nogio de Antigo Sistema Colonial. Hoje o Brasil talvez seja 0 seu tiltimo reduto: j4 muito desacredi- tada por sucessivos golpes assestacios nos tiltimos vinte anos por muitas pesquisas, a teoria de Eric Williams, até 1987 pelo menos, continuava a ser afirmada — as vezes “por tabela”, de segunda ou terceira mao — em alguns trabalhos brasileiros sobre escravidao e aboligao Ciro Cardoso se referia aos “golpes assestados” por historia- dores norte-americanos e ingleses, desde fins dos anos 1960, a0 esquema interpretativo de Williams. Os questionamentos incidi- ram tanto sobre as explicagdes concernentes ao peso do comple- xo escravista colonial para a acumulagao capitalista na Inglaterra como sobre a importancia dada aos fatores econdmicos no pro- cesso de aboligao do trafico negreiro € da escravidao. Em relagao a0 primeiro ponto, as revisdes enfatizaram as chamadas “causas internas” da Revolucao Industrial: variaveis endégenas ao mundo metropolitano inglés, como crescimento populacional, progresso agricola, abundancia de recursos minerais e inovagdes técnicas locais teriam sido muito mais relevantes para a decolagem indus trial na virada do século xvur para o x1x do que o avango ante- rior do comércio ultramarino. O ataque, aqui, nao era apenas con- tra Williams, mas contra toda uma perspectiva — da qual ele foi 19 um dos fandadores — que destacava 0 peso decisive do colonia- lismo para o descolamento do Ocidente europeu em relacao a0 restante do globo. Como parte da critica ao primeiro ponto, hou- ve também 0 trabalhos que estimaram a lucratividade do trafico negreiro, apontando que ela nao representava nada de excepeional dentro do conjunto de investimentos disponiveis para os agentes econémicos do século xvint, Em relagao ao segundo ponto, par- tindo de estimativas sobre a lucratividade das plantations escra- vistas e sobre o crescimento da produgao escravista britanica na conjuntura da abolicao do trafico transatlantico de escravos, os historiadores eriticos de Williams sugeriram que, em 1807, 0s in- teresses econdmicos ligados a industrializagéo britanica nao t- ham razées imediatas para atacar 0 complexo escravista das In- dias Ocidentais; a partir de tal constatagao, as explicages que forneceram se voltaram ou para o humanitarismo como o motor basico do antiescravismo, ou para impulso democratic da Era das Revolugdes como 0 elemento que galvanizou a opiniao publ ca britanica contra a escravidac Para Ciro Cardoso, tais trabalhos trouxeram a superacao de- finitiva de Williams, sepultando por completo a perspectiva teo- rica que ele avangara* Mas havia um problema grave em sua avaliacao. Em 1984, varios historiadores de renome se reuniram em uma conferéncia em Bellagio, na Itélia — transformada em livro, em 1987 —, para discutir seriamente a heranga do trabalho de Fric Williams. Em 1985, iniciou-se, nas paginas da American Historical Review, 0 debate entre Thomas Haskell, David Brion Davis e John Ashworth sobre as relages entre antiescravismo € capitalismo industrial, modulado conforme os termos estabele~ cidos por Williams. Em 1988, foi publicado 0 monumental livro de Robin Blackburn sobre a queda da escravidao colonial, que reatualizava, de forma bastante sofisticada, as teses de James € Williams, Finalmente, em 1990, Ronald Findlay publicou um im- portante trabalho no qual elaborava um modelo econométrico sobre o comércio triangular que dava suporte a interpretagao de Williams a respeito do peso das coldnias escravistas caribenhas para 0 crescimento econdmico inglés.”* Em resumo: em 1988, 0 Brasil estava longe de ser 0 “tiltimo reduto” de Williams. As palavras de Ciro Cardoso, no entanto, casaram-se bem com uma tendéncia que vinha ganhando forga na historiografia brasileira naquela época, e que logo se tornou comum. Refiro-me a0 abandono das perspectivas estruturais que procuravam inse- rir 0 pasado do Brasil no processo de forma do capitalismo mundial. A prépria categoria capitalismo, tomada como um cons- tructo a-hist6rico e abstrato, incapaz de conferir intligibilidade as experiéncias vividas pelos sujeitos histéricos concretos, de~ sapareceu do horizonte analitico. A despeito dos méritos dessa historiografia, cuja contribuicao para o melhor entendimento da historia da escravidao no Brasil € considerdvel, ela acabou por conduzir a um descaso com os processos histéricos de longa du- ragdo € os quadros globais mais amplos nos quais se inscreveu 0 sistema escravista brasileiro. Nisso reside uma das mais originais contribuigdes de Eric Williams ¢ C.LR. James: com base na leitura de Marx, eles esti- veram entre os primeiros historiadores a conectar a formacao do capitalismo europeu a escravizagao em massa dos africanos no Novo Mundo. A escravidao negra, assim, foi algada ao cora- 40 da génese do mundo moderno. Ao mesmo tempo, também foram os primeiros a apresentar um modelo de andlise que enca rava 0s processos hist6ricos desenrolados no espago atlantic como uma unidade organica, ao apontar como eventos no Velho Mun- do (Europa e Africa) ¢ no Novo Mundo foram mutuamente de- terminantes. Nesse sentido, ambos foram pioneiros no que, em tempos recentes, vém sendo denominado “histéria atlantica’, isto é, uma perspectiva que procura tratar de forma integrada os fluxos de pessoas, mercadorias ¢ ideias que conectaram, do século XV ao XIX, as trés margens do oceano Atlantico. Nao por acaso, diversos livros publicados na altima década indicam como a obra de Eric Williams pode estimular boas relei- turas, capazes de transcender os limites dos debates anteriormen- te travados sobre ela. Trabalhos que so inspirados de um modo ou de outro em Capitalismo e escravidao — como os de Peter Li- nebaugh e Marcus Rediker, sobre a formagao de um proletario atlantico, multiétnico e multicultural; de Andrew O'Shaughnessy, sobre a cisdo entre as colonias continentais ¢ as colénias insulares na crise imperial de 1776; de lan Baucom, sobre o papel da espe- culacdo financeira, ligada ao trafico transatlantico ¢ a escravidao colonial, na formacao cultural do capitalismo mundial — de monstram a vitalidade do livro.”” Em um registro mais proximo & letra da obra de Williams, Joseph Inikori desenvolveu a ideia de que os africanos escravizados no espaco atlantico tiveram peso decisivo para o desenvolvimento industrial inglés; Christopher Brown, a interpretacao sobre a centralidade da Revolugdo Ame- ricana para a crise da escravidao britanica; David Beck Ryden, os estudos sobre as motivacdes econdmicas e politicas na aboligao do trafico em 1807; Gelien Matthews, a observagao sobre a im- portancia das revoltas escravas de 1816, 1823 ¢ 1831 para a cam- panha antiescravista na metrépole.” Por fim, vale destacar como dois dos mais inovadores trabalhos recentes sobre a escravidio nas Américas, que recorrem a uma perspectiva verdadeiramente integrada e hemisférica com o propésito de elaborar modelos ana- Iiticos capazes de dar conta da historicidade, na longa duracao, das relages entre capitalismo ¢ escravidao — o de Robin Black- burn, sobre as trés idades do escravismo do Novo Mundo, e o de Dale Tomich, sobre a “segunda escravidao” oitocentista—, parti- ram de um didlogo direto ¢ proximo com Eric Williams.” 2 “Os classicos sao livros que, quanto mais pensamos conhe- cer por ouvir dizer, quando sao lidos de fato mais se revelam no- vos, inesperados, inéditos”:” a avaliagdo de Italo Calvino se ajusta a perfeicao ao presente volume. A atualidade do livro decorre em grande parte da qualidade das questoes que ele apresentou, muito pertinentes a um mundo marcado pelo crescente avango da de- gradago do trabalho, da natureza e da financeirizacao do capital. Capitalismo e escravidao, nao obstante estar datado em certos as- pectos, permanece como uma obra capaz de suscitar novas ¢ sur- preendentes leituras — e, assim, de nos ajudar a compreender melhor o nosso passado escravista. Dezembro de 2011 3 Prefacio O presente estudo tem como objetivo colocar em perspecti- va hist6rica a relagdo entre o inicio do capitalismo, exemplificado pela Gra-Bretanha, ¢ o trafico negreiro, a escravidao negra € 0 co- mércio colonial geral dos séculos xvtt e xvitt. Toda época reescreve a hist6ria, mas em especial a nossa, obrigada pelos acontecimen- tos a reavaliar nossas concepg6es da histéria e do desenvolvimento politico e econdmico. © progresso da Revolugao Industrial foi tra- tado de maneira mais ou menos adequada em muitas obras, tan- to especializadas quanto voltadas para o public em geral, e suas, ligdes ja estdo bem impressas na consciéncia das camadas cultas, em geral e na consciéncia daquelas pessoas em particular que sto responsaveis por criar e orientar a opiniao publica informada. Por outro lado, a despeito do material acumulado ¢ dos livros sobre 0 periodo que precedeu a Revolugdo Industrial, o carater mundial e as inter-relagdes do comércio de tal periodo, seus efeitos diretos sobre o desenvolvimento da Revolugao Industrial e sua heranga presente até os tempos atuais ainda nao foram, em parte nenhuma, situados numa perspectiva sintética ¢ ao mesmo tempo abrangente. 25 Este estudo é uma tentativa nesse sentido, sem, porém, deixar de fornecer indicagdes sobre a origem econdmica de correntes so- ciais, politicas e mesmo intelectuais bastante conhecidas. O livro, contudo, nao é um ensaio sobre ideias ou interpre- tagbes. £, estritamente, um estudo econdmico do papel da escra- vidao negra ¢ do trafico negreiro como fornecedores do capital que financiou a Revolugao Industrial na Inglaterra, ¢ do papel do capitalismo industrial maduro na destruicao do sistema escravis- ta. Portanto, é um estudo em primeiro lugar sobre a historia eco- némica inglesa, ¢ em segundo lugar sobre a historia dos negros ¢ das Indias Ocidentais. £ um estudo nao sobre a instituicao da escravidao, e sim sobre a contribuicdo da escravidao para o desen- volvimento do capitalismo britanico. ‘Tenho muitos agradecimentos a fazer. Muito atenciosas ¢ prestativas foram as equipes das seguintes instituicoes: British ‘Museum; Public Record Office; India Office Library; West India ‘Committee; Rhodes House Library, Oxford; Bank of England Re- cord Offices British Anti-Slavery and Aborigines Protection So- ciety; Friends’ House, Londres; John Rylands Library, Manchester; Central Library, Manchester; Public Library, Liverpool; Wilber- force Museum, Hull; Library of Congress; Biblioteca Nacional, Havana; Sociedad Econémica de Amigos del Pais, Havana. Que- ro agradecer a Newberry Library, Chicago, pela gentileza em me permitir ver, gracas a um empréstimo por intercimbio entre bi- bliotecas com a Founders’ Library, da Universidade Howard, as valiosas estatisticas de sir Charles Whitworth sobre 0 “Estado do Comércio Internacional da Gra-Bretanha em suas importagoes € exportagGes, progressivamente desde 1697 a 1773". ‘Minha pesquisa contou com subsidios de varias fontes: 0 go- verno de Trinidad, que concedeu a bolsa de estudos original; a Universidade de Oxford, que me forneceu duas bolsas de douto- rado; 0 Beit Fund for the Study of British Colonial History, que 26 me cedeu duas verbas; ¢ a Julius Rosenwald Foundation, que me concedeu bolsas em 1940 e 1942. O professor Lowell J. Ragatz, da Universidade George Washington desta cidade, o professor Frank W. Pitman, da Faculdade Pomona (Claremont, California), ¢ 0 professor Melville J. Herskovits, da Universidade Northwestern, muito gentilmente leram o manuscrito ¢ fizeram muitas sugestdes. © mesmo fez o professor Charles Burch, colega meu, de titula~ 40 mais alta, na Universidade Howard. Dr. Vincent Harlow, ago- ra professor de historia imperial na catedra Rhodes da Universi- dade de Londres, orientou minha tese de doutorado em Oxford e sempre foi muito prestativo. Por fim, minha esposa foi de gran- de auxilio tomando minhas notas e datilografando o manuscrito. Eric Williams Universidade Howard, Washington 12 de setembro de 1943 a 1. A origem da escravidao negra . Em 1492, ao descobrir 0 Novo Mundo em nome da monar- quia espanhola, Cristévao Colombo desencadeou a longa e acir- rada disputa internacional pelas possessdes coloniais que até hoje, passados 450 anos, continua sem solucao. Portugal, que iniciara 0 movimento de expansio internacional, reivindicou os novos territérios alegando que se enquadravam nos termos de uma bula papal de 1455, autorizando o Reino a reduzir todos os povos infiéis a servidao. Para dirimir a controvérsia, as duas po- téncias procuraram arbitragem e, sendo catélicas, recorreram a0 papa — passo Idgico ¢ natural numa época em que as preten- ses universais do papado ainda nao tinham sido questionadas por individuos e governos. Depois de avaliar cuidadosamente as ambigdes rivais, 0 papa langou uma série de bulas em 1493, es- tabelecendo uma linha de demarcacao entre as possessdes colo~ niais dos dois Estados: as terras a leste ficariam para Portugal, as terras a oeste, com a Espanha. Mas a partilha nao satisfez as aspi- ragdes portuguesas, ¢ no ano seguinte as partes em conflito che- garam a um acordo mais satisfatério, o Tratado de Tordesilhas, 29 que retificava a deciso papal e permitia que Portugal ficasse com © Brasil. A arbitragem do papa ¢ 0 tratado formal nao pretendiam valer para as outras poténcias, e de fato ambos foram rejeitados. A viagem de Cabot 4 América do Norte, em 1497, foi a resposta imediata da Inglaterra a partilha, Francisco 1 da Franga protestou com sua famosa declaracao: “O sol brilha para mim como para os, outros. Gostaria de ver a cléusula do testamento de Adao que me exclui da partilha do mundo”. O rei da Dinamarca se recusou a reconhecer a autoridade papal no que se referisse as Indias Orien. tais. Sir William Cecil, o famoso politico elisabetano, negou ao papa o direito de “dar e tirar reinos a seu bel-prazer”. Em 1580, © governo inglés contra-atacou mais uma vez, sustentando que 0 principio da ocupacao de fato deveria ser o critério determinan, te da soberania.' A partir dai, como diziam na época, nao houve “paz abaixo da linha do trépico”. Disputava-se, nas palavras de um futuro governador de Barbados, “se 0 monarca das Indias Ocidentais sera o rei da Inglaterra ou da Franga, pois 0 rei da Es- panha nao consegue mais controlar a situagio”. A Inglaterra, a Franga e mesmo a Holanda comecaram a contestar o Eixo Ibérico € a reivindicar seu lugar ao sol. © negro também teria seu lugar, mesmo sem pedir: era 0 sol escaldante das fazendas de cana-de- ~agticar, tabaco ¢ algodao do Novo Mundo. Segundo Adam Smith, a prosperidade de uma nova colénia depende de um tinico fator econdmico, muito simples: “a abun- dancia de terras férteis"? As colonias britanicas até 1776, porém, podem ser divididas em duas categorias gerais. A primeira é a economia diversificada da agricultura de subsisténcia dos peque- nos sitiantes, “meros rapadores de terra’, como ridicularizava Gibbon Wakefield, vivendo de um solo que, como diziam ser 0 30 Canada em 1840, nao era “uma loteria, com alguns prémios exor- bitantes e uma grande quantidade de bilhetes em branco, mas um investimento sélido e seguro”? A segunda categoria é a colonia com facilidades para produzir uma agricultura comercial em gran- de escala para um mercado de exportaco. Na primeira categoria enquadravam-se as colénias no norte do continente americanos na segunda, as colénias de tabaco no continente e as ilhas cana- vieiras do Caribe. Nessas colénias, como apontou Merivale, a ter~ ra.€o capital néo teriam nenhuma utilidade se nao houvesse um trabalho de grupo sob comando.‘© trabalho precisa ser constan- tee deve funcionar, ou ser obrigado a funcionar, em cooperacio. Nessas colénias, o entranhado individualismo do agricultor de Massachusetts, praticando sua agricultura intensiva e arrancan do com o suor do rosto magros frutos de um solo renitente, de- via ceder lugar & disciplina das turmas de trabalhadores bracais do grande capitalista praticando uma monocultura extensiva em grande escala. Sem o trabalho compulsério, 0 lavrador se entre~ garia a sua tendéncia natural de trabalhar a terra para si mesmo. Existe aquela anedota famosa do grande capitalista inglés, o sr Peel, que pegou 50 mil libras, trezentos trabalhadores e li se foi para a coldnia do Swan River na Austrélia. O st. Peel imaginava que os homens iriam trabalhar para ele, como acontecia na In- glaterra. Mas, chegando & Austrélia, com terras abundantes — até demais —., seus pedes preferiram trabalhar por conta prépria, co- mo pequenos sitiantes, em vez de ser assalariados do capitalista. A Australia ndo era a Inglaterra, e ndo sobrou um criado sequer para arrumar a cama ou trazer Agua para o proprietitio.’ Nas colénias do Caribe, a solugio para evitar que os traba- Ihadores se dispersassem ¢ fossem “rapar a terra’ foi a escravi- dao. Os inicios da histéria da Geérgia slo instrutivos. Proibidos de empregar trabalho escravo pelos man ‘quais, em alguns casos, eram senhe rigs da colonia, os. hores de escravos em outras co. 2 lonias, os fazendeiros da Geérgia se viram, como disse Whitefield, tendo de andar com os pés amarrados. Assim, os magistrados lo- is erguiam seus votos brindand: escravidao — até ser anulada a proibigao.* Mesmo que fosse um “recurso odioso”, como disse Merivale,’ a escravidao foi uma ins- tituigdo econémica de primeira importancia. Tinha sido a base da economia grega ¢ erguera 0 Império Romano. Nos tempos mo- dernos, forneceu 0 agticar para as xicaras de cha e café do mundo ocidental. Produziu o algodao que foi a base do capitalismo mo- derno. Constituiu as ilhas do Caribe e as colénias do Sul dos Es- tados Unidos. Numa perspectiva hist6rica, a escravidao faz parte daquele quadro geral de tratamento cruel imposto as classes des- favorecidas, das rigorosas leis feudais e das impiedosas leis dos po- bres, ¢ da indiferenga com que a classe capitalista em ascensdo estava “comegando a calcular a prosperidade em termos de libras esterlinas ¢ [...] se acostumando com a ideia de sacrificar a vida humana ao deus do aumento da produgao"."” Adam Smith, 0 paladino intelectual da classe média indus- trial com sua nova doutrina da liberdade, passou a sustentar mais tarde que, de modo geral, eram o orgulho dos senhores e seu amor pelo poder que levavam a escravidao, ¢ que nos pais de obra escrava o trabalho livre seria mais rentavel. A experiéncia universal demonstrava conclusivamente que “o trabalho feito por escravos, embora pareca custar apenas 0 sustento deles, no final € 0 mais caro de todos. Uma pessoa que ndo pode adquirir bens nao terd outro interesse sendo comer 0 maximo ¢ trabalhar 0 mi nimo possivel”" Assim, Adam Smith tratava como proposicao abstrata algo que é uma questio especifica de tempo, espaco, trabalho € solo. A superioridade econémica do trabalho assalariado livre em re~ lagdo ao trabalho escravo é evidente até mesmo para o dono de escravos. A mao de obra escrava trabalha com relutncia, nado é 2 qualificada, falta-Ihe versatilidade."” Em igualdade nas demais condigées, é preferivel o homem livre. Mas, nas fases iniciais do desenvolvimento colonial, as demais condigdes nao sao iguais. Quando se adota a escravidao, nao se trata de uma escolha em detrimento do trabalho livre; simplesmente nao ha escolha. As razdes da escravidio, escreveu Gibbon Wakefield, “sao condigdes nao morais, e sim econémicas; dizem respeito nao ao vicio € a virtude, e sim a produgio”." Com a populagao reduzida da Euro- pa no século xv1, nao haveria como prover a quantidade necessé- ria de trabalhadores livres para uma produgao em grande escala de cana-de-acticar, tabaco e algodao no Novo Mundo. Por isso foi necesséria a escravidao; ¢, para conseguir escravos, 05 europeus recorreram primeiro aos aborigines e depois a Africa. Em certas circunstancias, a escravidao apresenta vantagens evidentes. Em culturas como a cana-de-agticar, 0 algodao ¢ 0 ta- baco, cujo custo de producao se reduz consideravelmente em uni- dades maiores, o dono de escravos, com a producao em grande escala e turmas de trabalho organizadas, consegue ter um uso mais rentavel da terra do que 0 camponés proprietério ou 0 pe- queno agricultor. Para esses produtos agricolas, os grandes lucros podem compensar os custos mais altos da mao de obra escrava ineficiente.'* Onde o maximo que se exige em termos de conheci- mento é simples ¢ rotineiro, é essencial que a mao de obra tra balhe de maneira constante e coordenada — a escravidéo — até que, com o crescimento vegetativo e a importagao de novos enga~ jados, a populacao alcance seu ponto de densidade e a terra dis- ponivel ja tenha sido distribuida proporcionalmente. Quando e as despesas da escravidao, apenas quando se atinge esse estas sob a forma do custo e sustento dos escravos, produtivos e impro- dutivos, superam 0 custo dos trabalhadores assalariados. Como escreveu Merivale: “O trabalho escravo € mais caro do que o livre sempre que exista uma abundancia de trabalho livre”. 33 Do ponte de vista do fazendeiro, a maior desvantagem da escravidao € o esgotamento répido do solo. © abastecimento de mao de obra de baixa condigdo social, décil ¢ barata, s6 pode ser mantido com a degradacao sistematica e 0 esforgo deliberado de sufocar a inteligéncia. Assim, a rotagao das culturas e as praticas agricolas cientificas sdo estranhas as sociedades escravistas. Co- mo escreveu Jefferson sobre a Virginia, “é mais barato comprar uum novo acre de terra do que adubar um antigo”"* O fazendeiro escravista, na pitoresca nomenclatura do Sul americano, é um land-killer, um “matador de terra”, Pode-se contrabalancar ¢ re tardar essa grande desvantagem da escravidao por algum tempo, caso haja uma disponibilidade quase ilimitada de solo fértil. A expansdo é uma necessidade das sociedades escravas; 0 poder es- cravista requer constantes novos avancos."” “E mais rentavel”, escreveu Merivale, “cultivar um solo novo com o trabalho caro de escravos do que um solo esgotado com o trabalho barato de homens livres.”"* Da Virginia e de Maryland para a Carolina, a Gedrgia, o Texas e 0 Meio-Oeste; de Barbados para a Jamaica, S30, Domingos ¢ entao Cuba: a logica era a mesma, ¢ inexordvel. Era como uma corrida de revezamento: o primeiro a sair passava 0 basto ao préximo, com certeza de mé vontade, ¢ ficava para trés, claudicando pateticamente. - _ Aescravidao no Caribe tem sido identificada com 0 negro \de uma forma demasiado estreita. Com isso deu-se uma feigao racial ao que é basicamente um fendmeno econdmico. A escravi- dao nao nasceu do racismo: pelo contrario, o racismo foi conse quéncia da escravidao, O trabalho forsado no Nove Mundo foi vermelho, branco, preto € amarelo; catélico, protestante e pagao. O primeiro caso de trafico ¢ trabalho escravos que se desen- volveu no Novo Mundo dizia respeito, em termos raciais, nao a0 a4 negro, mas ao indio. Os indigenas sucumbiram rapidamente ao excesso de trabalho exigido, a alimentasao insuficiente, as doen- as do homem branco e a incapacidade de se adequar 0 novo modo de vida, Acostumados a uma vida de liberdade, a constitui- 40 fisica € o temperamento dos indios nao se adaptavam bem aos rigores da escravidao nas fazendas [plantations].* Como es creve Fernando Ortiz: “Submeter o indio as minas, a seu trabalho ‘monstono, insalubre e pesado, sem senso tribal, sem ritual reli gioso [...] era como Ihe tirar 0 sentido da vida. Era escravizar nao s6 sua carne, mas também seu espirito coletivo”.” Quem visita Ciudad Trujillo, capital da Repiiblica Domini- cana (nome atual da metade da ilha antes chamada Hispaniola), pode ver uma estitua de Cristévao Colombo, coma figura de uma india escrevendo com gratidao o nome do Descobridor: € 0 que diz a inscrigao na estétua. Por outro lado, conta a histéria que o cacique Hatuey, condenado a morte por resistir aos invasores, recusou-se categoricamente a aceitar a fé crista como caminho da salvagao, ao saber que seus algozes também esperavam ir para 0 Céu, £ muito mais provavel que Hatuey representasse melhor a opiniao indigena da época sobre os novos senhores do que a india anonima da estatua, A Inglaterra e a Franca, em suas colonias, seguiram a pratica espanhola de escravizar os indios. Havia apenas uma diferenga visivel: a Coroa espanhola tentou, embora sem sucesso, restringir a escravidao indigena aqueles que nao quisessem aceitar 0 cristia~ nismo e aos aguerridos indios caribes, sob a especiosa alegacao de ‘que eram canibais. Do ponto de vista do governo britanico, a es- * Para plantation (e planters), entendido como sistema de produgao em grandes propriedades rurais, baseado na monocultura extensiva de produtos agricolas voltados para a exportacio, geralmente (mas nem sempre, como demonstrard Williams) com uso de mio de obra escrava, usarei “fuzenda’ “fazendeiros’, "sis- tema de monocaltura extensiva” e correlatos. (N.T.) 38 cravidao indigena, a diferenca da escravidao negra posterior que envolvia interesses imperiais vitais, era um assunto exclusivamen- te colonial. Como escreve Lauber: (© governo da Coroa se interessou pela legislacao e pelas condi- ges escravas coloniais somente quando veio a se tratar do trafico de escravos africanos.[..] Como [a escravidao indigena] nunca foi cextensa a ponto de interferir no trafico de escravos e na escravidio negra, nunca recebeu qualquer ateng3o do governo central, assim cra legal porque nunca foi declarada ilegal.”” Mas a escravidao indigena nunca foi extensa nos dominios britanicos. Ballagh, escrevendo sobre a Virginia, diz que o senti- mento popular nunca havia “exigido a sujeigao da raga india per se, como foi praticamente 0 caso com 0 negro na primeira lei es- cravista de 1661, mas apenas uma parte dela, e reconhecidamente uma parte muito pequena. [...] No caso do indio [..] via-se a es- cravidao como algo ocasional, uma penalidade preventiva, ¢ nao uma condicao normal e permanente” Nas col6nias da Nova In- glaterra, a escravidao indigena nao era lucrativa, pois ai nenhuma escravidao o era, visto que nao se adequava & agricultura diversi- ficada dessas colénias. Além disso, 0 escravo indio era ineficiente. Os espanhéis descobriram que um negro valia por quatro dios.” Um importante funcionério colonial da Hispaniola insis- tiu em 1518 que “seja dada a permissao para trazer negros, raga robusta para o trabalho, em vez dos nativos, tao fracos que s6 po- dem ser empregados em tarefas que nao exijam resisténcia, co- mo cuidar dos sitios ou dos milharais”” Os futuros produtos de exportagio do Novo Mundo, o agiicar ¢ 0 algodao, demandavam uma forca que o indio nao tinha, ¢ exigiam o robusto “preto do algodao”, assim como, na Louisiana, a necessidade de mulas fortes para 0 agticar gerou o epiteto “mulas do agticar”: Segundo Lauber, 36 “comparados as somas pagas por negros na mesma época € no ‘mesmo lugar, vé-se que os precos dos escravos indios eram consi- deravelmente mais baixos””” © estoque indigena também era limitado, ao paso que 0 africano era inesgotivel. Portanto, os negros foram roubados na Africa para trabalhar nas terras roubadas aos indios na América. ‘As viagens do infante d. Henrique, o Navegador, complementaram as de Cristévao Colombo; a hist6ria da Africa Ocidental comple- mentou a das indias Ocidentais, sucessor imediato do indio, porém, nao foi o negro, ¢ sim ‘© branco pobre. Esses trabalhadores brancos eram de varios tipos. ‘Alguns eram engajados (indentured servants)", assim chamados porque, antes de sair da terra de origem, assinavam um termo de engajamento reconhecido por lei, pelo qual se obrigavam a prestar servicos por tempo determinado para custear 0 prego da passa- gem. Outros, chamados “quitadores” (redemprioners), combina~ vam com 0 capitao do navio que pagariam a passagem na chega~ da ou dentro de determinado prazo a contar da chegada; se ndo * Indenture, indentured servants: esses termos no tém uma tradugio muito consolidada entre nds. Ha quem fale em “servidio por divida’, “servidao [ou escravidio) temporaria’, “servos” etc. Uma indenture € um contrato de presta- «20 de servigos por tempa determinado, geralmente em troca do sustento (casa, roupa e comida) do trabalhador, por exemplo entre aprendiz ¢ mestre. No caso das Indias Ocidentais, essa contratacio de trabalhadores europeus incluia 0 ccusteio da passagem, ¢ assim o contratado assumia a divida pelo transporte, a ser paga com seus servigos, Dai o fato de alguns entenderem a indenture como uma “Servidio por divida”” Mas, embora os termos de uma indenture acarreter a privagio temporiria da liberdade do contratado, trata-se de uma modalidade de trabalho muito especifica do capitalismo em sua expansio colonial, endo ha como confundi-la com a servidao. No Brasil, encontramos com frequéncia © ‘mesmo fendmeno, citado nas fontes como “engajamento”e “engajados’. Assim, adoto aqui para indenture e indentured servants “contrato de servigo a termo’, “engajados” e correlatos, reservando “servidao” e “servos” para serfdom/serfs villainy/villeins. (NT) 37 cumprissem 0 acordado, o capitao os venderia em hasta publica Outros ainda eram criminosos condenados, enviados por politi- ca deliberada do governo para trabalhar por um periodo de tem- po estipulado, Essa emigracdo estava em sintonia com as teorias mercanti- listas da época, que defendiam enfaticamente que 0s pobres fos- sem alocados em trabalhos titeis ¢ produtivos e propugnavam a emigracao, voluntéria ou involuntaria, como medida para redu- zir o indice de pobres ¢ encontrar ocupagdes mais rentaveis no exterior para os vagabundos e desocupados do pais. “O engaja mento’, escreve C. M. Haar, “nasceu devido a duas forgas diferen- tes, mas complementares: havia uma atracao positiva do Novo Mundo e uma repulsdo negativa do Velho Mundo.” Num do- cumento oficial entregue a Jaime 1 em 1606, Bacon frisou que a Inglaterra, com a emigragao, ganharia “uma dupla vantagem, evi- tando gente aqui e usando-a la”* © termo de engajamento, de inicio, nao denotava inferio- ridade nem declinio social. Muitos engajados eram rendeiros de grandes senhores rurais fugindo das restrigdes cansativas do feu- dalismo, irlandeses procurando se libertar da opressao de bispos ¢ latifundiérios, alemaes escapando a devastacéo da rerra dos Trinta Anos. Levavam no peito o desejo ardente de terra, a paixio fervorosa pela independéncia. Chegavam terra das oportunida des para ser homens livres, com a imaginacio transbordando de descrigoes extravagantes ¢ entusidsticas que tinham ouvido na terra natal.” Somente mais tarde, quando, nas palavras do dr. Williamson, “todos os ideais de uma sociedade colonial decente, de uma Inglaterra maior e melhor no ultramar, sogobraram na busca de lucro imediato”,® a introdugao de elementos mal-afa- mados passou a ser uma caracteristica geral do engajamento. Desenvolveu-se um tréfico regular de engajados. Entre 1654 € 1685, s6 de Bristol partiram 10 mil deles, sobretudo para as In- 38 dias Ocidentais ea Virginia.” Em 1683, 05 engajados brancos cor- respondiam a um sexto da populacao da Virginia. Dois tercos dos imigrantes da Pensilvania no século xvitt eram engajados bran: cos; em quatro anos, $6 a Filadélfia recebeu 25 mil deles. Calcu- la-se que, durante o perfodo colonial, mais de 250 mil pessoas pertenciam a essa categoria,” e provavelmente correspondiam & metade de todos os imigrantes ingleses, a maioria se concentran- do nas Colénias do Meio." Quando a especulagao comercial passou a integrar 0 quadro, iniciaram-se os abusos. O sequestro passou a ser altamente incen- tivado e se converteu em atividade regular em cidades como Lon- dres Bristol. Os adultos eram aliciados com alcool, as criangas eram atraidas com doces. Os sequestradores eram chamados de “espiritos”, ¢ a definigdo do termo era “alguém que pega homens, mulheres e criangas para vendé-los num navio ¢ serem dester- rados para o ultramar”. Os capitaes de navios que comerciavam com a Jamaica iam visitar 0 Reformatério de Clerkenwell, ofere- ciam bebida as mocas que estavam presas por arruaga ¢ as “con- vidavam” a ir para as Indias Ocidentais. As propostas feitas aos crédulos e incautos eram tao tentadoras que, como relatow em tom desaprovador o prefeito de Bristol, os maridos eram induzidos a abandonar as esposas, as esposas a largar 05 maridos, os apren dizes a deixar seus mestres, enquanto 0s criminosos procurados encontravam nos navios cargueiros um refiigio para escapar 20 braco da lei. A onda de imigracdo alema gerou a figura do “en- gajador’, 0 agenciador de mao de obra daquela época, que per. cortia 0 vale do Reno convencendo os camponeses feudais a ven- * As chamadas Middle Colonies se situavarn no meio das entio Treze Coldnias Britanicas, também chamadas de Bread Colonies, por cultivarem cereais como trigo, milho e centeio. Correspondem aos atuais estados de Nova Jersey, Pensil- vvinia, Nova York e Delaware. (N.T.) 39 der seus pertences ¢ a emigrar para a América, recebendo uma comissao por cada emigrante.* Muito se escreveu sobre as astiicias que esses “engajadores” nao hesitavam em usar.”* Mas, qualquer que fosse a vigarice pra- ticada, resta 0 fato, como disse Friedrich Kapp, de que “o verda- deiro motivo para a febre migratoria residia nas condigdes poli- ticas e econémicas insalubres. ...] As condigdes de mi opressao dos pequenos estados [germanicos] deram um incenti- vo muito mais continuo e perigoso a emigragao do que 0 pior dos “‘engajadores”.* Os condenados constituiam outra fonte constante de mao de obra branca. As duras leis feudais da Inglaterra estabeleciam trezentos crimes capitais. Entre os tipicos delitos sujeitos a exe- cugdo na forea estavam: bater carteira com mais de um xelim; fartar artigos em lojas no valor de ci cla ou um carneio; apanhiar codl aristocracia.” Entre os delitos que eram punidos com o degredo estavam: roubar tecidos, queimar medas de trigo, mutilar e matar gado, obstruir 0 trabalho dos funcionérios aduaneiros ¢ exercer praticas judiciais irregulares.®* Em 1664, surgiram projetos de lei prevendo o desterro para as colnias de todos os vagabundos, ma- landros e vadios, ladroes, ciganos e dissolutos que frequentassem bordéis ilicitos.” Uma comovente petigao de 1667 rogava a co mutagio da pena capital para degredo no caso de uma mulher casada condenada por roubar artigos no valor de trés xelins e qua~ tro pence." Em 1745, a punicao para 0 roubo de uma colher de prata ¢ um relégio de ouro foi o desterro."" Um ano depois da li- bertacio dos escravos negtos, o degredo era a penalidade para ati- vidades sindicais. E dificil resistir 4 conclusdo de que havia al- “guma ligagao entre a lei ea demanda de mao de obra nas fazendas, € 0 que admira € que t4o pouca gente tenha ido para as colonias do ultramar. 40 Benjamin Franklin protestou contra esse “despejo dos parias do Velho Mundo no Novo Mundo”, tomando-o como o insulto mais cruel ja cometido por uma naco a outra, € perguntou se as coldnias, visto que a Inglaterra se sentia justificada de mandar seus criminosos para la, nao estariam justificadas de mandar em troca suas cascavéis para a Inglaterra.** Nao esté claro por que Franklin se mostrou tao suscetivel. Mesmo que os condenados fos- sem criminosos impenitentes, o grande aumento de engajados de emigrantes livres tenderia a tornar inécua a influéncia dos de- gredados, tal como um volume sempre maior de agua dilui o vene- no num copo. Sem os degredados, teria sido impossivel o desen- volvimento inicial das colénias australianas no século x1x. Mas poucos colonos americanos eram tao melindrosos assim. Um con- temporaneo resumiu a opiniao geral: “Os beneficios do trabalho deles numa colénia incipiente seriam maiores do que os prejuf- zos de seus vicios”? Nao havia nada de estranho nessa posigao. O, grande problema num pais novo ¢ a mdo de obra, ¢ 0 trabalhe dos degredados, come ‘dav de graga aos moradores das colénias, que nao precisavam arcar com as despesas da importacao." O gover nador da Virginia em 1611 recebia de bom grado os degredados poupados a forca, considerando que era “uma maneira répida de nos fornecer homens e nem sempre da pior espécie” As Indias Ocidentais estavam preparadas para aceitar a todos, mesmo a desova das prisdes de Newgate ¢ Bridewell, pois “nenhum pri- sioneiro pode ser tao incorrigivel, e ha esperanga de que se adap- te aqui e avance na vida, coisa que alguns ja tiveram a felicidade de conhecer”** Os problemas politicos e civis na Inglaterra entre 1640 € 1740 ‘aumentaram o fornecimento de engajados. Os dissidentes politi- cos € religiosos pagaram sua heterodoxia com o desterro, seguin- do em sua maioria para as ilhas canavieiras. Tal foi o destino de | a 4 2 Oe setinn a muitos prisioneiros irlandeses de Cromwell, que foram enviados para as Indias Ocidentais.”” Essa politica era seguida de maneira tao sistematica que a lingua inglesa ganhou um novo verbo de acao: “barbadoar” (to barbadoes) alguém.'* Montserrat se conver 1mente numa col6nia irlandesa," ¢ ainda hoje ouv muito o dialeto irlandés em vérias partes das Indias Ocidentais Britdnicas. Os irlandeses, porém, eram pedes pobres. Odiavam os ingleses, estavam sempre prontos a ajudar os inimigos da Ingla terra, e numa revolta nas ilhas Leeward, em 1689,” ja podemos ver sinais daquela indignacao fervente que, segundo Lecky, forne- ceu a Washington alguns de seus melhores soldados.*' Os derro- tados nas campanhas escocesas de Cromwell foram tratados co- mo os irlandeses antes deles, e os escoceses passaram a ser vistos como “trabalhadores bracais e soldados em muitos locais do es: trangeiro”*? A intolerancia religiosa enviou mais trabalhadores para as fazendas. Em 1661, os quacres que se recusassem a prestar juramento pela terceira vez seriam deportados; em 1664, estipu- Jou-se que a penalidade para os maiores de dezesseis anos na ter ceira vez em que cometessem 0 delito de se reunir em grupos de cinco ow mais pessoas, sob pretexto religioso, seria o desterro pa- ra qualquer fazenda, exceto na Virginia ou na Nova Inglaterra, ou © pagamento de uma multa de cem libras.® Muitos adeptos de Monmouth foram enviados para Barbados, com ordens de traba~ Ihar durante dez anos na colénia. Os prisioneiros eram oferecidos em lotes a membros favoritos da corte, que obtinham lucros vul- tosos com um trafico que, diz-se, contava com a participagao da propria rainha.* Utilizou-se uma politica semelhante apés as re- voltas jacobitas do século xvi. los br rdadeira —nio algo incomum ou desu- teu ba mostra a sua * A Rota do Meio (Middle Passage) era um dos lados do chamado comércio triangular entre a Inglaterra, a costa da Affica e as Indias Ocidentais. (N.T.) mano, mas parte integrante da época. Os emigrantes iam compri- midos como sardinhas. Segundo Mittelberger, para cada um de. les era designado um espago de sessenta centimetros de largura por 1,80 metro de comprimento na horizontal..? As embarcaces eram pequenas; a viagem, longa; a comida, a falta de refrigeracao, ruim; as doencas, inevitaveis. Uma petigao ao Parlamento em 1659 descreve como 72 engajados ficaram trancafiados sob 0. durai ny POF cincé ‘Fearon ficou chocado com “o horrivel quadro de sofrimento hu- mano que esse sepulcro vivo” de um navio de emigrantes Ihe mos- trou na Filadélfia.®” Mas, naquela época, mesmo para os passagei- 105 livres as condigdes nao eram muito melhores, ¢ comentario de uma dama de sociedade, descrevendo uma viagem da Escécia as Indias Ocidentais num navio cheio de contratados temporé- ios, deveria eliminar qualquer ideia de que os horrores dos na- vios negreiros se deviam ao fato de serem as vitimas negras. “E ‘quase impossivel crer’, escreve ela, “que a natureza humana possa ser tdo depravada a ponto de tratar os semelhantes dessa maneira por to pequeno ganho.”** O transporte de engajados e degredados gerou um poderoso setor de interesses econdmicos na Inglaterra. Quando foi criado 0 Departamento Colonial em 1661, uma de suas fungdes mais im- portantes era 0 controle do trinsito de engajados. Em 1664, foi nomeada uma comissao, presidida pelo irmao do rei, para exami- nar e elaborar um relatério sobre a exportagao desses trabalhado- res. Em 1670, foi rejeitado um projeto de lei proibindo a deporta 0 de prisioneiros ingleses para o ultramar; outro projeto de lei contra o sequestro de criangas nao resultou em nada. No sistema de deportacao de criminosos, uma hierarquia inteira, desde os secretrios palacianos e os imponentes juizes até os encarregados a das prisdes e os carcereiros, insistia em receber sua parte nos es- polos.” Ha quem sugira que os fazendeiros deram preferéncia a0 escravo negro por uma questao de humanidade para com indi- viduos do mesmo pais ¢ com a mesma cor de pele.® Nao ha ne- nhum trago desse humanitarismo nos anais da época, pelo menos no que se refere as colonias monocultoras ¢ & produgao agrico: la para exportacao. Contornavam-se as tentativas de registrar os emigrantes engajados ¢ de regularizar os procedimentos da de- portaco, o que daria pleno reconhecimento legal ao sistema. To dos os principais negociantes ¢ funcionarios publicos estavam envolvidos nessa pratica. A penalidade para 0 sequestro era 0 pe- lourinho, mas o publico estava proibido de atirar objetos no con denado. A oposigdo vinha das massas. Bastava apontar uma mu- de “espirito” para se iniciar Iher nas ruas de Londres e chamé um tumulto Tal era a situagao na Inglaterra quando Jeffreys chegou a Bristol, em seu circuito pelo oeste para eliminar os resquicios da rebelizo de Monmouth. Jeffreys passou para a posteridade como um “carniceiro”, 0 representante tiranico de um rei arbitrario, ¢ sua visitagao judicial é apresentada nos manuais como um ciclo de “Sessdes Sanguinérias” As sessdes do tribunal tiveram uma ca racterfstica redentora. Jeffreys declarou que tinha ido a Bristol com uma vassoura para varrer e limpar a cidade, despejando sua célera sobre os sequestradores que infestavam os cargos mais al tos do municipio. Os grandes comerciantes ¢ os juizes de paz ti- nham o habito de forcar a lei a fim de aumentar a quantidade de condenados, que scriam deportados para as fazendas canavieiras que eles préprios possufam nas Indias Ocidentais. Aterrorizavam pequenos transgressores com a perspectiva da forca, ¢ entao os levavam a pedir uma reducdo de pena com o desterro. Jeffreys par~ tiu para cima do prefeito, que, com todas as pelicas e purpuras do cargo, estava para condenar um batedor de carteiras ao desterro 44 na Jamaica, obrigando-o, para 0 grande assombro dos cidadios respeitaveis de Bristol, a ocupar 0 banco dos réus como um de- linquente comum, onde devia se declarar culpado ou inocente, ¢ trovejou num linguajar tipico: Senhor Prefeito, quero dizer, Sequestrador, e velho Juiz de Paz na corte de justiga. [..] A ele nao conhego, velho safado: ele vai a ta- verna, ¢ por uma pinta de vinho obriga as pessoas na taverna a assinar um contrato para ir as Indias, Um safado sequestrador! Vou mandar cortar suas orelhas, antes de sair da cidade. [..] Rap- tor, o senhor mesmo, estou dizendo. [..] Se no fosse em respeito a espada que esta sobre sua cabesa, eu o mandaria para Newgate, seu sequestrador safado. E pior do que o batedor de carteira que esté ali. [..] Eu soube que o ramo do sequestro tem grande de- manda, Eles podem soltar um criminoso ou um traidor, desde que cle vé para a fazenda do senhor Conselheiro nas Indias Ocidentais. O prefeito foi multado em mil libras, mas, afora a destituicao do cargo ¢ 0 medo que sentiram os comerciantes, estes nao perde- ram nada— seus lucros ficaram intocados.*' Segundo uma das explicagées, 0s insultos de Jeffreys se de ma embriaguez ou 8 insanidade.®* Mas nao é improvavel que estivessem relacionados com uma completa inversao das ideias mercantilistas sobre a emigracao, em virtude do desenvolvimento interno da metrépole. No final do século xvtt, a grande meta da politica econémica nacional nao era mais a acumulagao de me- tais preciosos, e sim o desenvolvimento da industria no pais, a promogio do emprego e 0 incentivo as exportacdes. Os mercan- tilistas sustentavam que a melhor maneira de reduzir custos, € assim aumentar a competitividade diante dos outros paises, era pagar baixos saldrios, o que parecia plenamente possivel devido a0 grande ntimero de habitantes. © medo da superpopulagao no 45 comeco do século xvit deu lugar a0 medo da subpopulacao nos meados do mesmo século, A condigao essencial da colonizagao a emigracao de habitantes do pais colonizador — agora contra- riava o principio de que o interesse nacional exigia uma grande populacao dentro do pais. Sir Josiah Child negava que a emigra- do para a América enfraquecera a Inglaterra, mas sentia-se for. ado a reconhecer que sua posicao era minoritaria, talvez uma en- tre mil, e endossava a opiniao geral de que “tudo o que tende a despovoar um reino tende a empobrecé-1o”® O insélito humani tarismo de Jeffreys se torna menos estranho a essa luz, ¢ pode ser atribuido a consideragoes de ordem mais econdmica do que etili- ca. Seus patronos, a familia real, também ja eram os patronos da Companhia Africana Real e do trifico negreiro. Para o excedente demografico necessério a povoacio das colénias do Novo Mun- do, os ingleses tinham recorrido a Africa, ¢ em 1680 jé dispu- nham de provas conclusivas, em Barbados, de que os africanos atendiam as necessidades produtivas melhor do que os europeus. A condicao dos engajados foi piorando nas colonias de agri cultura para exportagao. A prestacao de servicos, que original ‘mente era uma relagdo pessoal livre baseada num contrato volun- tério por prazo determinado, em troca do transporte edo sustento, tendia a se converter numa relagdo de propriedade que acabava por exercer um controle de extensdo variavel sobre 0 corpo € os direitos da pessoa durante o prazo do contrato, como se ela fosse um objeto." Eddis, escrevendo as vésperas da Revolugao, viu os engajados gemendo “sob um cativeiro pior do que o egipcio’® Em Maryland, 0 engajamento se converteu numa instituigao que, em alguns aspectos, era préxima a escravidao, o engajado sendo quase um mével. Quanto & Pensilvania, jé se disse que, “mesmo que em alguns casos particulares possam ter sido tratados com bondade, ou possam ter ingressado voluntariamente na relacdo, os engajados, enquanto classe ¢ depois de obrigados por contrato, 46 cram temporariamente bens méveis”” Nas fazendas canavieiras de Barbados, os engajados passavam o tempo trabalhando nas moendas e atendendo as fornalhas, ou cavoucan- do esta ilha causticante; nao tendo nada para se alimentar (ape sar do trabalho pesado) a nao ser batatas, nem para beber,a nao ser a agua de lavagem das batatas, além do pao e das lagrimas de seus sofrimentos; sendo ainda comprados e vendidos entre os fazendei- 105, ou confiscados como cavalos ¢ animais pelas dividas de seus senhores, sendo agoitados nos pelourinhos (como vadios) pelo pra- zer de seus senhores,¢ dormindo em chiqueiros pior do que os por- cos na Inglaterra. © professor Harlow conclui que as provas demonstram irrefuta~ velmente que as condigoes em que se obtinha e se utilizava a mao de obra branca em Barbados eram “sempre severas, as vezes de- ‘gradantes e em geral uma desonra para o nome da Inglaterra”. Mas as autoridades inglesas abragavam a ideia de que 0 con- trato de trabalho a termo nao era tio ruim, e que o engajado na Jamaica estava melhor do que o camponés na Inglaterra. “E um bom lugar para o comércio. Nao ¢ tdo odioso quanto o pintam.”” Porém havia certa suscetibilidade em torno do assunto. Em 1676, 08 lordes do Conselho de Comércio e Agricultura das Colénias m: nifestaram-se contrérios ao uso do termo “servitude” (servitude), que indicaria cativeiro e escravidao, sugeriram a substituicao por “servigo” (service).”' A instituigao nao foi afetada pela mu- danga de nome. Expressou-se a esperanga de que os engajados brancos fossem poupados ao acoite tdo prodigamente distribui- do entre seus camaradas negros.” Nao tiveram tanta sorte, Como esses trabalhadores estavam obrigados por um contrato de tem- po determinado, o fazendeiro tinha menos interesse no bem-estar deles do que no dos negros, que eram servidores perpétuos ¢, por 7 isso, constituiam “os ativos mais titeis” de uma fazenda.” Segun- do Eddis, os negros estavam “em quase todos os casos em con ges mais confortéveis do que 0 europeu miserdvel, sobre o qual © fazendeiro rigido exerce um rigor inflexivel””* Os fazendeiros viam os engajados como “lixo branco”, ¢ eram agrupados com os negros na mesma condigao de trabalhadores bragais. “Nenhuma dessas colénias teve ou teré qualquer melhoria considerdvel sem um abastecimento de negros ¢ engajados brancos’, declarou 0 Conselho de Montserrat em 1680.” Numa sociedade europeia que considerava essencial a subordinagao, na qual Burke podia falar dos trabalhadores como “rebanho miserével” ¢ Voltaire co- mo “ralé”, e Linguet condenava o trabalhador apenas a0 uso dos misculos, pois “tudo estaria perdido se ele soubesse que tem in- telecto””*— nessa sociedade nao € preciso procurar muitas expli- cagdes para a condigao do engajado branco nas colénias. Defoe declarou sumariamente que 0 engajado branco era um escravo.”” Nao era. A privagdo da liberdade do engajado era por tempo limitado, 0 negro era escravo por toda a vida. A condigao do engajado nao se transmitia aos filhos, 0s filhos dos negros her- davam a condigéo da mae. O senhor jamais teve controle abso- luto sobre a pessoa ¢ a liberdade do engajado, tal como o tinha sobre 0 esctavo. © engajado possuia direitos — limitados, mas re- conhecidos por lei e especificados em contrato. Tinha, por exem- plo, um direito limitado & propriedade, Na lei positiva, 0 engaja- do nunca foi equiparado a um bem mével ou imével. As leis nas colénias mantinham essa distingao rigida entre pessoa ¢ coisa, € impunham penalidades severas & coabitagao das duas racas. O en- gajado, ao término do contrato, podia esperar receber um lote de terra, embora, como Wertenbaker aponta no caso da Virginia, isso nao fosse um direito garantido por lei,” € as condigoes variassem conforme as coldnias. Assim, 0 engajado europeu podia esperar na América uma liberdade que a servidao feudal nao Ihe concedia, 48 ‘Ao se desobrigar do contrato, os engajados se tornavam peque- nos sitiantes no interior, uma forga democratica numa sociedade de grandes fazendeiros aristocraticos, ¢ foram os pioneiros na ex- pansao para o Oeste. Era por isso que Jefferson, na América, ¢ Saco, em Cuba, preferiam a entrada de engajados europeus em vez de escravos africanos — pois eles apontavam para a demo- cracia, e ndo para a aristocracia.” A instituicao do contrato de servigo a termo de brancos, po- rém, apresentava sérios inconvenientes. Postlethwayt, rigido mer- cantilista, sustentava que os engajados brancos nas coldnias ten deriam a criar concorréncia com 0 reino no setor manufatureiro. Melhor escravos negros na agricultura do que engajados brancos na indastria, que incentivariam as aspiragdes de independéncia.” ‘Além disso, o fornecimento estava ficando cada vez mais dificil, ¢ a demanda das fazendas superava 0 mimero de condenagoes na Inglaterra. Ademais, os negociantes de mao de obra estavam en- volvidos em muitos processos caros ¢ incémodos, movidos por pessoas que manifestavam disposigao de emigrar, aceitavam rou pas e alimentos dados em adiantamento e depois ingressavam com uma aco judicial por detengao ilegal.*' Os engajados nao chega- vam a América em quantidade suficiente para substituir os que haviam cumprido 0 prazo do contrato. Nas fazendas, para 0 en- gajado branco era facil fugir; mais facil do que para o negro, 0 qual, se era alforriado, costumava, por uma questao de autode- fesa, continuar na mesma localidade onde era conhecido e estaria menos sujeito a ser capturado como fugitive ou vagabundo. O en- gajado esperava receber terra ao termo do contratos 0 negro, num, ambiente estranho, destacando-se pela cor € pelos tracos, igno- rando a lingua e os costumes do homem branco, podia jamais vir a ter acesso a um lote de terra. Com as diferengas raciais ficava mais facil justificar ¢ racionalizar a escraviddo negra, arrancar uma obediéncia mecanica como a um boi de tragéo ou a um ca- 49 valo de carga, exigir aquela resignagao e aquela completa sujeicao moral e intelectual indispensaveis para a existéncia do trabalho escravo. Por fim, ¢ este era o fator decisivo, o escravo negro era mais barato. O dinheiro por dez anos de servigo de um branco comprava toda a vida de um negro. Como declarou o gover- nador de Barbados, os fazendeiros locais descobriram pela expe- Tiéncia que “trés pretos trabalham melhor e mais barato do que um branco"® Mas a experiéncia com o engajamento branco tinha sido precios: . O sequestro na Africa nao enfrentava as dificuldades que surgiam na Inglaterra. Os capitaes ¢ os navios tinham a experién- cia de um para orienté-los no outro. Bristol, o centro do trafico de engajados, tornou-se um dos centros do trifico de escravos. O capital acumulado num financiou 0 outro. O servigo forcado bran- co foi a base hist6rica sobre a qual se edificou a escravidao negra. Os feitores dos degredados nas fazendas nao tiveram dificuldade em se tornar feitores de escravos. Escreve o professor Phillips: “Em larga medida, os africanos chegaram depois, inserindo-se num sistema ja desenvolvido”** Eis ai, portanto, a origem da escravidao negra. A razao foi econdmica, nao racial; nao teve nada aver com a cor da pele do trabalhador, e sim com 0 baixo custo da mao de obra. Compara- da ao trabalho indigena € branco, a escravidao negra era muito superior. “Em todos 0s casos”, escreve Bassett sobre a Carolina do Norte, “foi a sobrevivéncia do mais apto. A escravidao do indio ¢ 0 engajamento do branco cederam diante da maior resisténcia, docilidade e capacidade de trabalho do negro.” Suas feig6es, 0 cabelo, a cor e a dentigao, suas caracteristicas “sub-humanas” tao amplamente invocadas, ndo passaram de racionalizagao poste- rior para justificar um fato econémico simples: as colénias preci 50 savam de mao de obra e recorreram ao trabalho negro porque era ‘0 melhor e © mais barato, Nao era uma teoria; era uma conclu- sio pratica extraida da experiéncia pessoal do fazendeiro. Ele iria até a Lua, se precisasse, para conseguir mao de obra. A Africa fi- cava mais perto do que a Lua, mais perto também do que as terras mais populosas da India e da China. Mas estas também teriam sua vez. ‘© engajamento de mio de obra branca é de importancia fun- damental para entendermos o desenvolvimento do Nove Mundo 0 lugar do negro nesse processo. Ele destr6i o velho mito de que 0 brancos nao aguentariam os rigores do trabalho bracal no cli- ma do Novo Mundo e que por isso, e apenas por isso, as poténcias ‘europeias tiveram de recorrer aos africanos. E um argumento to- talmente insustentavel. Um ditado do Mississippi diz que “s6 ne- gros e mulas conseguem encarar o sol de julho”. Mas os brancos encararam 0 sol por mais de um século em Barbados, € os salz~ burgueses da Geérgia ficavam ofendidos a insinuagao de que 0 plantio do arroz podia Ihes fazer mal.** As ilhas do Caribe ficam em plena zona do Trépico, mas 0 clima € mais ameno do que tropical; a temperatura raramente sobe acima de 26 °C e se man- tém constante ao longo do ano, ao sopro das brisas do mar. A umi dade intoleravel de um dia de agosto em algumas partes dos Esta dos Unidos nao encontra nada que se compare nas ilhas. Além disso, apenas 0 extremo sul da Flérida é realmente tropical, ¢ ape- sar disso o trabalho negro floresceu na Virginia ¢ na Carolina. O sul dos Estados Unidos nao é mais quente do que o sul da Italia ou da Espanha, e Tocqueville perguntava por que 0 europeu nao trabalhava ali tao bem quanto nesses dois outros paises.” Quan- do Whitney inventou a descarocadora de algodao, esperava-se que © algodao fosse produzido por homens livres em pequenos sitios, ‘o que de fato ocorreu."* Se o sitiante branco era desalojado de al- gum lugar, o inimigo nao era o clima, e sim a fazenda escravista, 3. assim ele seguia para oeste, até que o avango da monocultura 0 obrigasse a se mudar mais uma vez. Weston assinalou que, em 1857, 0 cultivo dos campos do extremo sul ¢ todo o trabalho ex- terno pesado em New Orleans eram feitos por brancos, sem ne- nhuma consequéncia negativa. “Nenhuma parte das fronteiras continentais do golfo do México”, escreveu ele, “e nenhuma das ihas que o separam do oceano precisa se entregar a barbarie da escravidao negra.” Nos mesmos, em nossos dias, que vimos os meeiros brancos desalojando os negros no Sul, ¢ presenciamos a migraco em massa dos negros do Sul para os climas mais frios de Detroit, Nova York, Pittsburgh e outros centros industriais do Norte, nao podemos mais aceitar a conveniente explicacao de que as fazendas escravistas utilizavam mao de obra negra porque 0 clima era rigoroso demais para a constituigao fisica do branco. Um fluxo migratério firme e constante de brancos pobres da Espanha para Cuba, até o final do dominio espanhol, foi a carac- teristica dominante da politica colonial espanhola. Fernando Or- tiz estabeleceu um contraste marcado entre o papel do tabaco ¢ 0 do agiicar na historia cubana. O tabaco era uma cultura intensiva praticada por brancos livres em pequenas propriedades; a cana- -de-agticar era uma cultura extensiva praticada por escravos ne- gros em grandes latifiindios. Além disso, ele comparou o tabaco cubano cultivado com trabalho livre ao fumo da Virginia culti- vado com trabalho escravo.” © que determinava a diferenca nao era o clima, e sim a estrutura econdmica das duas regides. Seria muito improvavel que os brancos aguentassem 0 calor tropical de Cuba e sucumbissem ao calor tropical de Barbados. Em Porto Rico, o jibaro ou camponés branco pobre ainda é 0 tipo basico, demonstrando, nas palavras de Grenfell Price, 0 erro de se crer que homem branco, depois de trés geragGes, seria incapaz de se reproduzir nos trépicos.”* No Caribe, desde os primeitos assen- tamentos até os nossos dias, existem comunidades brancas seme- 3 Ihantes nas ilhas Saba e St. Maarten, das Indias Ocidentais holan- desas. Por cerca de sessenta anos, colonos franceses habitaram em. St. Thomas nao s6 como pescadores, mas também como agricul- tores, e hoje constituem o “maior setor dentro da classe rural” da itha. Dr. Price conclui: “Evidencia-se que 0s brancos setentrio- nais conseguem manter um bom padrao durante geragSes no tré- pico dos alisios, quando o local esta a salvo das piores formas de doenga tropical, o retorno econémico ¢ adequado ¢ a comunida- de esta disposta a enfrentar um trabalho fisico pesado”.® Mais de um século atras, um grupo de emigrantes alemaes se estabele- ceu em Seaford, na Jamaica, onde vive até hoje, sem nenhum sinal visivel de degeneracio, contrariando explicitamente a descrenga popular quanto a chance de sobrevivéncia do branco setentrional nos trépicos.* Em suma, onde a agricultura se deu em pequenas propriedades, os brancos nao s6 sobreviveram, como também prosperaram. Onde desapareceram, a causa néo foi o clima, mas a substituigao do pequeno sitio pela grande fazenda, com sua concomitante demanda de fornecimento constante de uma gran- de quantidade de mao de obra. ‘Assim, a explicagao climética do sistema de fazendas nao passa de uma racionalizagao. Num excelente ensaio sobre 0 tema, © professor Edgar Thompson afirma: “A fazenda nao se explica pelo clima. £ uma instituicao politica”. E acrescentariamos: é uma instituigdo econémica. A teoria climatica “faz parte de uma ideo- logia que racionaliza e naturaliza uma ordem social e econdmica ‘existente, a qual, em todas as partes, parece ser uma ordem con- tendo um problema racial” A historia da Australia encerra a discussao. Praticamente metade desse continente se situa na zona tropical. Numa parte dessa area tropical, 0 estado de Queensland, a principal cultura é a cana-de-agticar. Quando a cultura comesou a se desenvolver, a ‘Austrélia tinha duas opg6es: trabalho negro ou trabalho branco. 3 O pais iniciou a cultura de cana do modo usual, importando mao de obra negra das ilhas do Pacifico. Houve, porém, pressoes cres- centes para que se adotasse uma politica em favor de uma Austré- lia branca, e no século xx foi proibida a imigracao de nao brancos. Aqui nao vem ao caso que, em decorréncia disso, 0 custo de pro- ducao do aciicar australiano tornou-se exorbitante, o setor, artifi- cial, sobrevivendo apenas por causa da muralha impenetrével da autarquia australiana, A Australia estava disposta a pagar um alto Preco para continuar um pafs de brancos. A tinica questao que interessava reter era que a escolha estava sendo paga pelo consu- midor australiano, nao a custa da degeneracio fisica do traba- Ihador australiano, Atualmente, a mao de obra no setor agucareiro de Queens- land é totalmente branca. Escreve H. L. Wilkinson: “Queensland oferece 0 unico exemplo no mundo de colonizacao europeia nos trépicos em larga escala, E mais: mostra uma grande populacao europeia executando todo o trabalho de sua sociedade, desde 0 servigo mais humilde e a tarefa bragal mais pesada até a forma mais elevada de intelectualismo”™ A ciéncia venceu a supersti- 40 a tal ponto que, hoje, os cientistas australianos sustentam que a tinica condicao para que os brancos de ambos os sexos mante- nham a satide nos trépicos é que se dediquem a um intenso tra- balho fisico. Onde isso se deu, como em Queensland, “os mais rigorosos exames cientificos’, segundo o Congreso Médico Aus- traliano de 1920, “nao conseguiram detectar nenhuma mudanga organica em moradores brancos capaz de diferencié-los de mora- dores de climas temperados””” Assim, a escravidao negra nao teve nada a ver com o lima. Suas origens podem ser enunciadas em trés palavras: no Caribe, o Agticar; no continente, 0 Tabaco eo Algodio. Uma mudanga na 54 estrutura econémica gerou uma mudanga cotrespondente no fornecimento de mao de obra. O fato fundamental foi “a criagao de uma organizacao social e econdmica inferior de exploradores ¢ explorados” O acticar, o tabaco ¢ 0 algodao exigiam o sistema de monocultura extensiva em fazendas ¢ um grande volume de mado de obra, ¢ a pequena propriedade do branco apés 0 término de seu contrato nao teria como sobreviver. O tabaco do pequeno sitio em Barbados foi substituido pelo agticar da grande fazen- da. O surgimento do setor agucareiro no Caribe foi o sinal para desalojamento macico do pequeno sitiante. Em 1645, Barbados tinha 11.200 pequenos sitiantes brancos € 5680 escravos negros; em 1667, havia 745 grandes fazendeiros ¢ 82023 escravos. Em 1645, a ilha contava com 18300 brancos aptos a pegar em armas; em 1667, apenas 8300.” Os sitiantes brancos foram expulsos. Os fazendeiros continuaram a oferecer incentivos aos recém-chega- dos, mas nao podiam mais oferecer o principal incentivo, a terra Os engajados brancos preferiam as outras ilhas, onde tinham es- peranga de conseguir terra, e nao Barbados, onde certamente nao conseguiriam nenhuma.’® Em des pero, os fazendeiros propu- seram uma legislaco que impediria os proprietérios rurais de comprar mais terras, obrigaria os negros e 0 engajados brancos a usar 0 fustdo fabricado em Barbados (0 que diriam os mercan- tilistas ingleses a respeito disso?) para garantir emprego aos bran- cos pobres e proibiria que os negros aprendessem um oficio.'*" Em 1695, o governador de Barbados pintou um quadro desola- dor desses ex-engajados. Sem carne fresca nem rum, “eles sao ti- ranizados e tratados como caes, e com o tempo isso certamente afastard toda a comunidade branca”, Sua tinica sugestao foi con- ceder direito de voto a todos os brancos que possuissem dois acres de terra, a fim de que elegessem 0s membros da Assembleia. Para conseguir seus votos — e as eleigdes eram anuais —, 0s candida- tos “as vezes dio aos pobres miseréveis um pouco de rum, comi- 38 da fresca ¢ coisas que possam alimenté-los’"* Nao admira que 0 éxodo tenha continuado. (Os brancos pobres comegaram a se mudar, passando de um lugar a outro em todo o Caribe, de Barbados para Nevis e Anti- gua, dai para a Guiana e Trinidad, e por fim para a Carolina. Por toda parte eram perseguidos e expulsos pela mesma forca econd- mica inexoravel: © acicar. Na Carolina, ficaram a salvo do algo- dao apenas por cem anos. Entre 1672 e 1708, 0 ntimero de brancos em Nevis diminuiu mais de 60%, enquanto a populagio negra mais que dobrou. Entre 1672 ¢ 1727, 0 mimero de brancos do sexo masculino de Montserrat caiu mais de dois tercos, ¢ no mes- mo periodo a populacao negra aumentou mais de onze vezes." “Quanto mais compram’, diziam em Barbados referindo-se a com- pra de escravos, “mais podem comprar, pois num ano e meio ga- nhardo com a béngao de Deus o prego que eles custam.”"* © Rei Agticar iniciava sua depredacao, transformando comunidades flo- rescentes de pequenos agricultores em vastos engenhos de agticar nas maos de magnatas capitalistas ausentes, operados por uma massa de proletérios vindos de fora. A economia da monocultura extensiva das fazendas nao tinha espaco para brancos pobres; 0 dono ou o administrador, um médico nas fazendas mais préspe- ras, € provavelmente suas respectivas familias: era o que bastava. “Se se pudesse imaginar um estado feito de fazendas continuas’, escreveu Weston, “a raga branca nao morreria simplesmente de fome, mas seria literalmente expelida a forga.”"" Os fazendeiros residentes, apreensivos com a desproporgao cada vez maior entre brancos e negros, conseguitam aprovar as Leis de Insuficiéncia para obrigar os absentefstas a manter empregados brancos, sob pena de multa, Os fazendeiros ausentes preferiram pagar a multa. Hoje, nas Indias Ocidentais, 0s brancos pobres sobrevivem como 0 Redlegs de Barbados, pilidos, fracos e degenerados, devido & endogamia, ao alcoolismo, a alimentagio insuficiente e a falta de 56 | atividade fisica. Pois, como disse Merivale, “num pais com predo- minio macico da escravidao negra, nenhum branco € diligente no trabalho". Era o triunfo ndo das condigdes geogréficas, como sustenta Harlow," mas das condigdes econdmicas. As vitimas foram os negros da Africa e os pequenos sitiantes brancos. © aumento da riqueza de alguns brancos foi tao fenomenal quanto © aumento da miséria para os imtimeros negros. As safras de 1650 em Barba~ dos, com colheita em vinte meses, alcangaram mais de 3 milhGes de libras,"® cerca de 15 milhdes em moeda atual. Calcula-se que, em 1666, Barbados tinha enriquecido dezessete vezes desde o ini- cio do plantio de cana. “As construgdes em 1643 eram humildes, apenas com artigos de primeira necessidade, mas em 1666 havia pratarias, joias e mobjilias estimadas em 500 mil libras, em cons- trugdes muito boas € bonitas; ¢ suas casas como castelos, os en- genhos e as senzalas parecem, vistos do mar, pequenas vilas, cada qual defendida por seu castelo”"” O prego da terra disparou. Uma fazenda de quinhentos acres que valia quatrocentas libras em 1640 alcangou 7 mil libras por metade de sua drea em 1648." A propriedade de um certo capitdo Waterman, de oitocentos acres, foi dividida entre nada menos que quarenta compradores.'"' Pois © agticar era e € uma atividade essencialmente capitalista, envol- vendo nao sé as operacées agricolas, mas também as etapas da refinasao. Um relatério sobre as ilhas canavieiras francesas afir- mava que o custo de fabricacao de dez barris de agticar, em ter- mos de animais de carga, moendase utensilios, era igual ao de cem barris."”? James Knight, da Jamaica, calculou que, para implantar uma fazenda de cana, eram necessérios quatrocentos acres.'! Se- gundo Edward Long, outro fazendeiro e historiador da ilha, era necessério um capital de 5 mil libras para iniciar uma pequena plantasao de trezentos acres, produzindo de trinta a cinquenta barris de agiicar por ano, ¢ 14 mil libras para uma plantagao do 7 ‘mesmo tamanho que produzisse cem barris.'"* $6 podiam existir duas classes numa sociedade assim: os fazendeiros ricos e 0s es cravos oprimidos. A conclusao se reforga ao examinarmos a histéria da Virgi- nia, onde se praticava a monocultura extensiva nao de cana, e sim de tabaco. As pesquisas do professor Wertenbaker destruiram 0 mito de que a Virginia foi desde sempre um dominio aristocrati- co. No comeco do século xvit, cerca de dois tergos dos proprieta- rios rurais ndo tinham nem escravos, nem engajados. A forca da colonia se fundava na quantidade de pequenos proprietérios bran- cos. As condigées se agravaram quando 0 mercado do tabaco foi inundado pela concorréncia espanhola, ¢ os moradores furiosos da Virginia exigiram que se tomasse alguma providéncia em rela- ‘cdo “aquelas infimas plantagoes inglesas nas ilhas selvagens das Indias Ocidentais” por onde passava 0 tabaco espanhol em quan- tidade até chegar & Inglaterra." Mesmo assim, embora os pregos continuassem a cair, as exportaces da Virginia ¢ de Maryland mais que sextuplicaram entre 1663 ¢ 1699. Podk se dar a explica- a0 em duas palavras: escraviddo negra — que barateou o custo da produgao. Os escravos negros, que em 1670 correspondiam a um vigésimo da populagao, em 1730 jé eram um quarto dela. “A escravidao, longe de ser um fator insignificante na vida econd- mica da colonia, tornara~ ¢ 0 proprio fundamento em que ela se alicergava.” Na Virginia, ao contrario de Barbados, ainda havia espago para 0 pequeno agricultor, mas de pouco Ihe adiantava a terra se ele nao conseguia concorrer com o trabalho escravo. E assim 0 camponés da Virginia, tal como o de Barbados, foi expul- so. “A Virginia, que antes fora em larga medida a terra do peque- no agricultor, tornara-se a terra dos Senhores ¢ dos Escravos. Nao havia espago para mais nada." ‘Toda a hist6ria posterior do Caribe é apenas uma confirma- 40 disso. O proceso se deu antes nas ihas britdnicas e francesas 38 € 56 depois nas espanholas, onde ele foi retardado até se implan- tar a politica americana de promover seus interesses por meio da chamada “diplomacia do délar” de nossa época. Sob o capital americano, vimos a transformagao de Cuba, de Porto Rico ¢ da Reptiblica Dominicana em intensos engenhos de agticar (embora © sistema de fazendas, principalmente em Cuba, nao fosse desco nhecido sob o regime espanhol), com seus proprietérios moran do no exterior, operados por mao de obra importada, nos moldes das Indias Ocidentais britanicas. O fato de ser um processo com mao de obra livre e em dreas nominalmente independentes (ex ceto Porto Rico) ajuda-nos a enxergar a primeira importagao de mao de obra escrava negra para o Caribe britanico a sua verda- deira luz — uma fase na hist6ria do sistema de monocultura ex- tensiva em grande escala. Nas palavras do professor Phillips, 0 sistema “dependia menos da escravidao do que a escravidao de- pendia dele. [...] © sistema de fazendas correspondia, por assim dizer, ao arcabougo social e econdmico do governo [...] enquanto a escravidao era um cédigo de leis instituidas para aquele fim’.""” Onde nao se desenvolveu a grande fazenda com culturas de ex- portacdo, como na industria do tabaco cubano, a mao de obra negra era rara e predominava a mao de obra branca. Os setores liberais da populacdo cubana advogavam sistematicamente o fim do trafico negreiro e a introdugao de imigrantes brancos. Saco, porta-vor dos liberais, defendia a imigracao de trabalhadores “brancos ¢ livres, de todas as partes do mundo, de todas as racas, desde que tenhiam pele clara e possam oferecer um trabalho ho- nesto™"" O agticar derrotou Saco. Foi a fazenda canavieira, com sua base escrava, que retardou a imigracao branca em Cuba du- ante o século xrx, tal como a impedira antes em Barbados no século xvit ¢ em S40 Domingos no século xvi. Sem agticar nao ha negros. Em Porto Rico, que se desenvolveu em época relativa mente tardia como um sistema auténtico de monocultura exten- 59 siva, e onde, antes da tutela americana, 0 agticar nunca domino a vida ¢ 0 espirito da populagdo como em outras partes, os cam- poneses brancos pobres sobreviveram ¢ 0s escravos negros nunca ultrapassaram 14% da populagao."” Saco queria “branquear” a estrutura social cubana.™ A escravidao negra escureceu essa ¢s- trutura em todo 0 Caribe, enquanto o sangue dos escravos negros tingia o Atlantico e suas duas costas. Estranho que um produto como 0 acticar, tao doce € necessério a existéncia humana, tenha gerado tantos crimes e derramamentos de sangue! Depois da libertagao dos esctavos, os fazendeiros britanicos pensaram em recorrer a imigracao branca, mesmo de condena- dos. Em 1845, 0 governador da Guiana Inglesa escreveu em ter- mos entusisticos sobre os imigrantes portugueses da ilha da Ma- deira.'*' Mas, embora os portugueses tenham chegado em grande quantidade, como atesta sua presenca marcante, ainda hoje, em ‘Trinidad e na Guiana Inglesa, eles preferiam se dedicar ao varejo em vez de trabalhar nas fazendas. O governador da Jamaica foi uum pouco mais cauteloso em sua opiniao sobre 0s imigrantes in- gleses ¢ irlandeses. As doengas se alastravam, 0s salérios eram bai- xos demais. A tinica vantagem relativa seria um aumento imedia- to da populacao trabalhadora, e, portanto, era desaconselhavel uma importacao indiscriminada de mao de obra." Os imigran- tes europeus em Sao Cristévao choravam seus destinos e rogavam jue Ihes permitissem voltar para casa. q ‘Nao haveria a menor relutincia de nossa parte em continuar na itha para uma vida honesta agradando a nossos empregadores com nosso trabalho dedicado se o clima nos permitisse, mas infe- lizmente ele nio permite; ¢ receamos muito que se continuarmos neste clima quente prejudicial [das Indias Ocidentais] a morte sera para a maioria de nés."® a consequénci 60 ‘Nao era o clima que atrapalhava a experiéncia. A escravidao criara a perniciosa tradigao segundo a qual 0 trabalho bragal era 0 simbolo do escravo ¢ a esfera de atividade do negro. O primeiro pensamento do escravo negro depois da alforria cra abandonar a fazenda, quando podia, e se estabelecer por conta prépria onde houvesse terra disponivel. Dificilmente existiria uma sociedade onde convivessem trabalhadores brancos nas fazendas ¢ peque- nos sitiantes negros. Se houvesse incentivo para a agricultura em pequena escala, os brancos prosperariam. Mas a abolicao da es- cravatura nao significava o fim dos canaviais. Com a libertagao do negro ca inadequagao do trabalhador branco, 0 fazendeiro dos ‘engenhos voltava ao ponto onde estava no século xvit. Conti- nuava a precisar de mao de obra. Tinha passado do indio para o branco, ¢ do branco para o negro. Agora, privado do negro, volta- -va.ao branco e do branco ao indio, dessa vez 0 indiano* das Indias Orientais. A India substituiu a Africa; entre 1833 ¢ 1917, Trinidad importou 145 mil trabalhadores das Indias Orientais, e a Guiana Inglesa, 238 mil. © padrao foi o mesmo nas outras coldnias do Caribe. Entre 1854 ¢ 1883, entraram 39 mil indianos em Guada- lupe; entre 1853 ¢ 1924, mais de 22 mil trabalhadores das Indias Orientais holandesas ¢ 34 mil da India britanica foram levados para a Guiana Holandesa.™ Cuba, enfrentando uma escassez de escravos negros, adotou a experiéncia interessante de utilizar es- cravos negros ao lado de cules chineses sob contrato,” e depois da libertagao recorreu aos muitos milhares no Haiti ¢ nas Indias, Ocidentais britanicas. Entre 1913 1924, Cuba importow 217 mil trabalhadores do Haiti, da Jamaica e de Porto Rico. © que Sa- co escreveu cem anos atrds ainda era vélido, sessenta anos apés a abolicao da escravatura em Cuba. * Este € 0 termo correto para a caracterizacao do habitante das Indias Orientuis. E um erro chamé-los, como se costma fazer neste pais, de “hindus: Nem todos, sao hindus. Ha muitos muculmanos nas Indias Orientais. a Assim, a escravidao negra foi apenas uma solucao, em certas circunstancias histéricas, para o problema de mao de obra no Ca- ribe. Agticar significava mao de obra — as vezes essa mao de obra foi escrava, outras vezes foi nominalmente livre; As vezes negra, ou tras vezes branca, indigena ou amarela. A escravidao nao implicava de maneira nenhuma ¢ em nenhuma acep¢ao cientifica a inferio- ridade do negro. Sem ela, o grande desenvolvimento das fazendas canavieiras do Caribe, entre 1650 ¢ 1850, teria sido impossivel e 2. O desenvolvimento do trafico de escravos Os escravos negros eram “a forga ¢ a energia deste mundo ocidental”!' A escravidao negra exigia 0 trafico de escravos negros. Portanto, a preservacdo e aperfeigoamento do trafico na Africa cram “uma questdo de extrema importincia para este reino ¢ as fazendas pertencentes a cle”? E por isso ele se manteve, até 1783, como objeto central da politica externa britanica. ‘A primeira expedicao inglesa para o tréfico de escravos foi a de sir John Hawkins, em 1562. Como tantas das empreitadas eli- sabetanas, foi uma expedicao bucaneira, transgredindo os termos da arbitragem papal de 1493, que fazia da Africa um monopélio de Portugal. Os escravos obtidos eram vendidos aos espanhéis nas Indias Ocidentais. O trafico escravo inglés foi de carter in- constante e esporadico até o estabelecimento de colénias britani cas no Caribe e a implantacao do setor agucareiro. Quando ter- il, em 1660, a Inglaterra estava pronta para se lancar vigorosamente minaram as revoltas politicas e sociais do periodo da Guerra Ci a um ramo do comércio que s6 entéo comegava a ser plenamen- 6 te avaliado em sua importancia para as colonias britanicas de ta baco e cana-de-agticar no Novo Mundo. De acordo com as politicas econémicas da monarquia Stuart, ‘0 comércio de escravos foi entregue a uma companhia mono- polista, a Real Companhia dos Empreendedores do Comércio com a Africa, criada em 1663 pelo prazo de mil anos. O entusias- mo da época encontrou expressao nas palavras do conde de Cla- rendon, o qual declarou que a companhia seria “igualmente um modelo que fara o comércio da Inglaterra acompanhar o de qual- quer outra companhia, mesmo a das Indias Orientais”? A pre- visdo otimista nao se realizou, sobretudo por causa dos prejut zo e deslocamentos provocados pela guerra com os holandeses, e em 1672 foi criada uma nova companhia, a Real Companhia Africana ‘A politica de monopélio, porém, continuou inalterada, ¢ ge- rou forte resisténcia em dois setores: os comerciantes nos outros portos ingleses, lutando para quebrar 0 monopélio da capital, ¢ 10s fazendeiros nas colOnias, exigindo o livre-comércio de esera~ vos com o mesmo impeto ¢ furor com que, 150 anos mais tarde, iriam se opor ao livre-comércio do agticar. Os teéricos mercan- tilistas se dividiram sobre a questao. Postlethwayt, © mais prolf fico dos autores mercantilistas, queria a companhia, toda a.com- panhia e nada mais do que a companhia.* Joshua Gee enaltecia a frugalidade e a boa administracéo do comerciante privado.* Da venant, um dos mais competentes economistas ¢ especialistas em finangas da época, foi inicialmente contrério ao monopélio,® mas depois mudou de opiniso, sustentando que outras nagdes con- sideravam necessitia a existéncia de companhias organizadas, ¢ que a companhia poderia “funcionar como uma universidade, para formar um nuimero ilimitado de pessoas no conhecimento metédico de todos os assuntos relacionados aos varios ramos do comércio africano” 64 |As objegdes ao monopélio foram sucintamente apresenta- das pelos praticantes do livre-comércio — ou “entrelopos’, como exam chamados na época — & Junta do Comércio em 1711. 0 monopélio significava que a compra de produtos manufaturados britanicos para venda na costa africana, 0 controle dos navios uti- lizados no trifico de escravos, a venda de negros as fazendas ea importagdo dos produtos coloniais — “este grande circulo do co- mércio e da navegacao”, do qual dependia a subsisténcia, direta ¢ indireta, de muitos milhares de pessoas — estariam sob 0 coman- do de uma tinica companhia.' Os fazendeiros, por sua vez, recla~ mavam da qualidade, dos precos e da irregularidade das entregas, e negavam-se a saldar seus débitos com a companhia” ‘Nao havia nada de estranho nessa oposi¢ao ao monopélio do tréfico negreiro. Monopélio era uma palavra que soava mal, evocando lembrangas da tirania politica de Carlos 1, embora ne- nhum praticante do livre-comércio da época pudesse fazer a mais leve ideia das visdes ainda piores que a palavra viria a evo- car 150 anos depois, ao ser associada & tirania econémica do fa zendeiro de cana das Indias Ocidentais. Mas, nos anos 1690, © monopélio estava decididamente na contracorrente da econo- mia. Em 1672, abriram-se os portos do comércio baltico, aca- bando com o exclusive da Companhia do Mar do Norte. Uma das consequéncias mais importantes da Revolugao Gloriosa de 1688 ¢ da expulsao dos Stuart foi o impulso que se deu ao prin- cipio do livre-comércio. Em 1698, a Real Companhia Africana perdeu seu monopélio, ¢ foi reconhecido o direito do livre-co- mércio de escravos como direito natural e fundamental dos in- gleses. No mesmo ano, os Empreendedores Comerciais de Lon- dres perderam o monopélio da exportagao de tecidos, ¢ um ano depois foi revogado 0 monopélio da Companhia da Moscovia & 0 comércio com a Russia foi liberado. A liberdade concedida a0 comércio de escravos s6 se diferenciava da liberdade concedida a 6 outras atividades num tinico detalhe: a mercadoria em questo era o ser humano. A Real Companhia Africana se viu impotente diante da con- corréncia do livre-comércio. Logo foi faléncia e passou a depen- der de subsidios do governo. Em 1731, ela abandonou o trafico de escravos ¢ se restringiu ao comércio de marfim e ouro em po. Em 1750 foi criada uma nova organizacao, a Companhia de Merca- dores em Comércio com a Africa, com um conselho de nove di- retores igualmente repartidos entre Londres, Bristol ¢ Liverpool. Entre os comerciantes de escravos registrados em 1755, 237 eram de Bristol, 147 de Londres e 89 de Liverpool.” Com 0 livre-comércio ¢ a demanda crescente das fazendas agucareiras, o volume do tréfico britanico de escravos aumentou vertiginosamente. Entre 1680 ¢ 1686, a Real Companhia Africana transportou em média 5 mil escravos por ano.!' Nos nove anos iniciais do livre-comércio, s6 Bristol enviou 160950 negros para as fazendas canavieiras."* Em 1760, safram 146 navios dos portos ingleses para @ Africa, com capacidade para 36 mil escravos;" em 1771, 0 mimero de navios ja tinha aumentado para 190, e 0 nt- mero de escravos para 47 mil.'* Na Jamaica, entre 1700 ¢ 1786, entraram 610 mil negros, e calcula-se que 0 total de escravos ex- portados para todas as colénias britanicas entre 1680 1786 te- nha superado a casa dos 2 milhoes.'” Mas o trafico escravo nao era apenas um meio atendendo a um fim: era também um fim em si mesmo. Os comerciantes bri- tanicos de escravos forneciam os trabalhadores necessérios nao 86 para as fazendas das colonias briténicas, mas também para as, dos concorrentes. O fomento aos estrangeiros contrariava o bom senso ¢, ainda, o préprio mercantilismo em sentido estritos po. rém, enquanto os estrangeiros fossem as coldnias espanholas, ha- 66 via alguma justificativa para isso. Até 0 século x1x, a Espanha sempre dependeu de outros paises para ter seus escravos, fosse por ter posto em pratica a arbitragem papal que a exclufa da Afri- «a, fosse por falta de capital e bens necessrios para o trafico de escravos. O privilégio de fornecer negros para as colénias espa- nholas, 0 chamado asiento, velo a ser um dos objetos mais cobica~ dos ¢ renhidamente disputados na diplomacia internacional. Os meércantilistas britinicos defendiam a importancia do comércio, legal ou ilegal, de negros e de artigos manufaturados com as co- Jonias espanholas, visto que os espanhéis pagavam em moeda,¢ assim as reservas de ouro e prata da Inglaterra aumentavam. To- davia, o fornecimento de escravos para as coldnias francesas no podia invocar essa justificativa. Aqui havia um claro conflito de interesses entre 0 comerciante britanico de escravos e o fazendei- ro bri ico dos engenhos de agiicar, assim como a exportagao de méaquinas britanicas apés 1825 levaria a um claro antagonismo entre armadores e produtores britanicos. O fazendeiro de cana estava certo e o traficante de escravos estava errado. Mas, na primeira metade do século xvi, apenas os mais perspicazes se davam conta disso. Postlethwayt condenou o asiento de 1713, considerando-o escandaloso ¢ catastrfico, por tomar uma ilusdo por realidade: “Seria dificil conceber um trata- do to pouco favoravel 4 nagao".© Nos nove meses em que os bri- tanicos ocuparam Cuba, durante a Guerra dos Sete Anos, entra ram 10700 escravos na ilha, mais de um sexto das importacoes entre 1512 ¢ 1763,e mais de um tergo das importagdes entre 1763 € 1789.” Durante a mesma guerra, em trés anos os ingleses intro- duziram 40 mil negros em Guadalupe."* A Comissao do Conse- Iho Privado de 1788 deu especial atengao ao fato de que dois ter- 05 da exportacao britanica anual de escravos africanos tinham se destinado a estrangeiros.” Ao longo de todo o século xvitt, se- gundo Bryan Edwards, os traficantes britanicos de escravos for 9 neceram meio milhao de negros aos fazendeiros de cana da Franca e da Espanha, 0 que justificava suas dividas em relagao 8 “pru- déncia e sagacidade desse setor do comércio africano”® A Ingla- terra nao era apenas o principal pais comerciante de escravos no ‘mundo; tinha se tornado também, na expresso de Ramsay, a “ilus- tre transportadora de escravos” para os concorrentes."! A historia do crescimento do tréfico escravo basicamente a historia do desenvolvimento de Liverpool. O pri greiro da cidade, uma modesta embarcagao de trinta toneladas, Zaipou para a Africa em 1709. Era o primeiro | passe ums rota que, no final do século, valeria a Liverpool 10 de ser 0 maior porto negreiro do Velho Mundo. O avango, de inicio, foi lento. A cidade estava mais interessada no contrabando com as colénias espanholas ¢ no comércio de tabaco. Mas, segundo um historiador da cidade, logo ela tomou a dianteira com sua polit ca de reduzir as despesas ao minimo, 0 que lhe permitiu operar a precos mais baixos do que suas concorrentes inglesas e continen- tais. Em 1730, ela tinha quinze navios no tréfico de escravos; em 1771, 0 séptuplo disso. A proporcao de navios negreiros no mo- vimento total do porto ficava ligeiramente acima de 1% em 1709} em 1730, era de 99%; em 1763, de 25%; em 1771, correspondiam a ‘um terco da frota total? Em 1795, Liverpool respondia por cinco oitavos do comércio escravo britanico e por trés sétimos de todo ‘0 comércio escravo europeu.* Os “horrores” da Rota do Meio tém sido exagerados. Os res- ponséveis so, em larga medida, 0s abolicionistas britanicos. Ha ‘uma ponta de ignorancia ou de hipocrisia, ou de ambas, nas in- vectivas que esses homens multiplicavam contra uma atividade comercial que, naquela época, ja ndo era tao lucrativa e vital para a Inglaterra. Um fazendeiro das Indias Ocidentais lembrou ao Parlamento que nao ficava bem que os representantes eleitos de ‘um pais que embolsara os lucros do tréfico negreiro agora 0 es- 68 tigmatizassem como um crime. A geragao que presenciara a mortandade entre os engajados nao via nenhuma razao para me- lindres em relacéo & mortandade entre os escravos, ¢ a exploracao dos escravos nas fazendas, na esséncia, nao se diferenciava muito da expléracao dos camponeses feudais nem do tratamento dado aos pobres nas cidades europeias. Qs motins es suicidios, naturalmente, eram muito mais fre~ {quentes nos navios negreiros do que em outros navios, € sem di vida o tratamento brutal € as maiores restricbes aos movimentos dos escravos tendiam a aumentar o indice de mortalidade. Mas as causas fundamentais dessa alta mortalidade nos navios negrei- ros, bem como nos navios de engajados ¢ mesmo de passageiros livres, devem ser procuradas, em primeiro lugar, nas epidemias, consequéncia inevitavel da longa duragao da viagem e da difi- culdade de manter os alimentos ¢ a Agua em condigoes salubres, em segundo lugar, no costume de superlotar os navios. A tinica preocupacao dos traficantes de escravos era ter seus pordes “bem forrados de pretos”? Nao sdo raras as noticias de um navio de noventa toneladas transportando 390 escravos ou de um navio de cem toneladas transportando 414.” As pesquisas de Clarkson em Bristol mostraram uma chalupa de 25 toneladas para setenta seres humanos, e outra de apenas onze toneladas para trinta es- cravos.”” O espaco destinado a cada escravo na travessia do Atlan- tico era de 1,65 metro de comprimento por quarenta centimetros, de largura, Comprimidos como “filas de livros em prateleiras”, como disse Clarkson, acorrentados aos pares, a perna direita de um a perna esquerda do outro, a mao direita de um & mao es- querda do outro, cada escravo tinha menos espago do que um homem num caixao. Era como um transporte de gado negro —e, de fato, quando nao havia negros suficientes, embarcavam-se ca~ begas de gado.** © objetivo do comerciante era o lucro, nao 0 conforto de suas vitimas, e uma singela medida de 1788 para re- 69 gulamentar o transporte dos esctavos em conformidade com a capacidade do navio despertou uma enorme gritaria entre os tra- ficantes de escravos. “Se essa mudanga ocorrer’, escreveu um de- les a seu agente, “ira prejudicar 0 comércio, assim espero que voce aproveite enquanto é tempo.” Um vendedor de escravos, durante sua permanéncia na Afri- ca, reconhece em seu didrio que nao encontrou “nenhum lugar ‘em todos esses varios paises da Inglaterra, Irlanda, América, Por- tugal, Caribe, Cabo Verde, Acores ou em todos os lugares em que estive [...] onde eu possa aumentar minha fortuna tao répido co- mo aqui onde estou morando agora”. O dinheiro fazia o homem, (0 esbanjador que voltava para casa de maos vazias tinha de se contentar com o nome genérico de“o mulato que voltou da Gui né”. Mas, se voltasse com os bolsos cheios de ouro, “esse detalhe oculta todos 0s outros defeitos, e ai vocé tem montes de amigos de todos os tipos se atropelando e aguardando suas ordens. En- ta0 vocé € conhecido pelo nome de‘o cavalheiro africano’ na casa de todos os homens importantes, € 0 que voce fala é considerado ta0 extraordindrio quanto a expedigao de Crist6vao Colombo na América’. Em Bristol, por volta de 1730, calculava-se que o lucro sobre uma carga de mais ou menos 270 escravos, numa boa viagem, al- cancaria de 7 mil a 8 mil libras, sem contar a receita com 0 mar- fim. No mesmo ano, 0 retorno Iiquido de uma carga “mediana” que chegou em més condigoes foi de mais de 5700 libras.” Em Liverpool, nao eram raros os lucros de 100%, € houve uma via- gem que teve um lucro liquido de pelo menos 300%. O Lively, aparelhado em 1737 com uma carga no valor de 1307 libras, vol- tou a Liverpool com produtos coloniais e letras de cambio num total de 3080 libras, além de algodao e acticar que foram remeti- 70 dos mais tarde. O Ann, outro navio da cidade, partiu em 1751 com um aparelhamento e uma carga custando 1604 libras; no total, a viagem rendeu 3287 libras de lucro liquido. Uma segunda viagem em 1753 rendeu 8 mil libras numa carga e aparelhamento de 3153 libras. Um autor setecentista calculou o valor dos 303737 escravos transportados em 878 navios de Liverpool, entre 1783 ¢ 1793, em mais de 15 milhdes de libras esterlinas. Deduzindo as comissdes € outras taxas, além do custo do aparelhamento dos navios e do sustento dos escravos, ele chegou a conclusdo de que 0 lucro mé- dio anual fora acima dos 30%." Os estudos modernos tendem a criticar um indevido exagero dos observadores da época. Mas, mesmo tomando os céleulos mais enxutos do professor Dumbell, © lucto liquido do Enterprise em 1803, estimado sobre os custos do aparelhamento ¢ da carga, foi de 38%, enquanto 0 do Fortune, também em 1803, para uma carga de escravos de baixa qualidade, foi acima de 16%. Continuando com esses célculos mais conser- vadores, 0 lucro do Lottery em 1802 foi de 36 libras por escravo; 0 do Enterprise, de dezesseis libras; 0 do Fortune, de cinco libras.** Caleula-se que o trafico escravo, em seu conjunto, tenha gerado s6 para Liverpool, nos anos 1780, um Iucro liquido de 300 mil libras anuais; e, em relacio ao comércio muito menos lucrativo das Indias Ocidentais, costumava-se dizer na cidade que, se um a cada trés navios rendesse, nao seria prejuizo, e se dois deles ren- dessem jé seria um bom negécio. Na média, apenas um navio em cinco ficava no vermelho.> Esses lucros parecem pequenos ¢ insignificantes, compara: dos a0s fabulosos 5000% que a Companhia Holandesa das Indias Srientais atingiu algumas vezes em sua hist6ria. £ até provavel que os lucros do trafico negreiro fossem menores do que os aufe- ridos pela Companhia Britanica das Indias Grientais. N outras atividades comerciais eram muito meno: que 0 comércio de escravos. Do ponto de vista mercantilista, 0 Comércio indiano nao era um bom negécio, pois drenava as re- servas da Inglaterra para comprar artigos desnecessarios, 0 que fazia muita gente da época pensar que “seria uma boa coisa para a cristandade que nunca se tivesse descoberto a navegagao para as Indias Orientais pelo cabo da Boa Esperanga”** O trafico de es- cravos, pelo contrario, era ideal porque se fazia usando artigos manufaturados britanicos e, no que se referia as colonias britani- cas, estava indissociavelmente ligado ao comércio da agricultu- ra colonial, o que tornava a Inglaterra independente dos estran- geiros para o abastecimento de produtos tropicais. Além disso, 08 Tucros colossais do comércio holandés de especiarias se baseavam numa politica de restrigao rigorosa & produgao para garantir pre 08 altos, ao passo que o trifico negreiro alimentava a indistria britanica em casa ea agricultura tropical nas colénias. Assim, 0 “atraente meteoro africano’,” como disse um histo- riador de Liverpool daquela época, conheceu imensa popularida- de. Embora grande parte do tréfico negreiro da cidade portuaria inglesa fosse monopolizada por cerca de dez grandes empresas, muitos dos pequenos navios do ramo eram aparelhados por ad- vogados, comerciantes de tecidos, merceciros, barbeiros e alfaia~ tes. As cotas do empreendimento eram subdivididas, ficando um com um oitavo, outro com 1/15, um terceito com 1/32 assim por diante. “Quase todos os homens em Liverpool estéo no co- mércio, e quem nao pode mandar um fardo manda uma caixa [..] gente de quase todas as categorias se interessa numa carga é por isso que {hal tantos barcos pequenos.”* “A compra de escravos exigia tino comercial e grande perspi- cécia, Um angolano era sindnimo de imprestavel; os coroman- n bons trabalhadores, mas para a Guiné, tinos (axantés) da Costa do Ouro er rebeldes demais; os mandingas (Senegal) eram propensos ao fur- imados} os paupaus_ to; os eboés (Nigéria) éram timidos ¢ de n é) eram os mais déceis ¢ de boa disposicao.” Os escravos se destinavam ao trabalho agricola pesado, e por isso 0s homens de fisico robusto valiam mais do que as mulheres ¢ as ctiangas — aquelas porque estavam sujeitas a interromper 0 tra- balho devido a gravidez, e estas porque exigiam atengao até que tivessem condigdes de ficar sozinhas. Um negociante de Liver pool alertou seus agentes para que nao comprassem escravos com, hérnia, deficiéncia mental ou qualquer “condicdo antiga de fra~ queza’® Um poeta das Indias Ocidentais aconselhava que o trafi- cante verificasse se 0 escravo tinha lingua vermelha, peito largo € barriga nao saliente." Compre rapazinhos, recomendou um fei- tor de Nevis; “os ja crescidos acham dificil trabalhar; nunca tendo aprendido a trabalhar, nao se dao bem e morrem ou nunca pr tam para nada’. Mas o trafico negreiro sempre foi um empreendimento ar o Africano” escrevia-se em 1795, “apresenta Nota do Meio € incerta, um navio tal, a mortandade pode ser alta, ¢ lavoura de cana, além disso, era uma loteria. As dividas, as falén- cias ¢ os longos prazos de pagamento dos fazendeiros causavam, muita dor de cabega aos comerciantes. “Como vocé sabe’, escre- ‘yeu um deles, “a rapidez é a alma do negécio, tive muitas horas de ansiedade neste ano, e nao gostaria de passar outra vez por isso nem pelo dobro do lucro que eu possa ter.”# De 1763 a 1778, 08 comerciantes atacadistas de Londres evitaram toda ¢ qualquer re- lagdo com os comerciantes de escravos de Liverpool, na convic~ do de que o trafico negreiro estava operando no prejuizo; entre 1772.€ 1778, os comerciantes de Liverpool teriam perdido 700 mil libras.* Entre as trinta principais firmas que dominavam o co- mércio escravo desde 173, doze tinham ido a faléncia em 1788, 2B enquanto muitas outras tinham enfrentado prejuizos conside~ raveis.#* A Revolugdo Americana provocou uma grave interrup- 40 no trafico. “Nosso comércio com a Africa, antes intenso, esté parado”, lamentava um documento em 1775. Estando com seus “bravos navios guardados e sem uso”, os traficantes de escravos de Liverpool passaram a operar como corsérios,*” aguardando an- siosos pelo retorno da paz, sem jamais Ihes ocorrer que estavam presenciando os estertores finais de uma velha época e as dores do parto de uma nova era. Antes de 1783, porém, todas as classes da sociedade inglesa formavam uma frente unida em favor do comércio de escravos. A monarquia, 0 governo, a Igreja, a opiniao publica em geral, todos apoiavam 0 trafico negreiro, Eram poucos os protestos, ¢ inécuos. A monarquia espanhola langou a moda que a realeza euro- peia veio a seguir até o final. Os paldcios fortificados de Madri e Toledo foram construidos com o dinheiro que a Coroa recebia pelas licencas concedidas para o transporte de negros. Em 1701, houve um encontro entre os monarcas da Espanha e de Portugal para debater o problema aritmético de um contrato para 10 mil “toneladas” de negros firmado com os portugueses.®* A rainha Cristina de Espanha, em meados do século xxx, participou aber- tamente do tréfico escravo para Cuba. A Corte portuguesa, quan- do se transferiu para o Brasil fugindo de Napoledo, nao estranhou a atmosfera escravista de seu territério colonial. Luis xrv reco- nhecia plenamente a importancia do tréfico negreiro para a Fran- ae suas coldnias. Entre os planos do Grande Eleitor para o cres- cimento da Prissia inclufa-se o comércio de escravos africanos.” A expedicao negreira de Hawkins partiu sob 0 patrocinio da rainha Elizabeth. Ela recomendou que nao se embarcasse nenhum negro sem seu livre consentimento, que “seria detestavel e atrai- 4 ria a vinganga dos Céus sobre os empreendedores”, Mas a hipote- se de um transporte negreiro feito democraticamente era to rea- lista quante a possibilidade de uma negociacdo coletiva. A Real Companhia dos Empreendedores ¢ a Real Companhia Africana estavam, como indicam seus nomes, sob a égide real € nao raro contavam com investimentos da prépria realeza.® Segundo Wil- berforce, mais tarde Jorge 111 se opds a extingao do comércio ne- greiro,'" e fei grande a alegria dos traficantes de escravos de Liver- pool e dos donos de engenhos da Jamaica quando 0 duque de Clarence, feturo Guilherme 1v, “ergueu o cacete” contra o fim do tréfico™ e investiu contra Wilberforce, dizendo-o ou fandtico ou hipécrita.” O governo britanico, antes de 1783, era unanime em incen- tivar 0 comércio de escravos. Os primeiros grandes rivais foram os holandeses, que monopolizavam o frete naval das colénias bri- tanicas. A acirrada disputa comercial entre a Inglaterra e a Ho- landa, na segunda metade do século xv1t, foi uma tentativa dos ingleses de romper a rede mercantil que os holandeses tinham criado em torno da Inglaterra e de suas coldnias. “O que nés que- remos’, disse Monk com uma objetividade militar, “é uma parte maior do comércio que os holandeses tém agora.” Fosse uma guerra de fato ou uma paz nominal, durante trinta anos prolon- gou-se uma espécie de guerra privada entre a Companhia Holan: desa das Indias Ocidentais ¢ a Real Companhia Africana. Com a vitéria sobre a Holanda, a Inglaterra ficou frente a frente com a Franga. A Guerra Anglo-Francesa, colonial e comer- cial, é 0 tema dominante na hist6ria do século xvi. Foi um con- smos rivais. A luta se travou no Caribe, na Africa, na india, no Canada e nas margens do Mississippi, dispu- flito entre mercantil tando o privilégio de saquear a India eo controle de alguns pro- dutos de exzortagao vitais ¢ estratégicos — negros; agticar e taba~ co; peixes; peles e suprimentos navais.®* Entre as 4reas, as mais 3 importantes eram 0 Caribe e a Africa; entre as mercadorias, des- tacavam-se os negros ¢ o agticar. A principal questéo era 0 con- trole do asiento. Esse privilégio foi concedido a Inglaterra pelo Tratado de Utrecht em 1713, em decorréncia da vit6ria na Guerra de Sucessao Espanhola, e foi motivo de grandes comemoragoes populares no pais. Chatham alardeava orgulhoso que tinha sido ‘sua guerra com a Franca que garantira a Inglaterra o controle qua- se total da costa africana e do comércio de escravos. Era frequente que as assembleias coloniais criassem dificul- dades para os traficantes de escravos, impondo altas tarifas sobre a importacao de negros cativos, em parte para engordar a receita, em parte por medo do aumento da populagao escrava. Todas es- sas leis enfrentavam oposigao no governo da metrépole, por in- sisténcia dos comerciantes que se opunham a tributagdo sobre 0 ‘comércio realizado por nacionais britanicos. A Junta do Comér- cio determinou em 1708 que era “absolutamente necessério que um comércio tao benéfico ao reino seja empreendido com a mé- xima vantagem. © bom abastecimento das fazendas ¢ das colo- nias com um niimero suficiente de negros a precos razodveis é, em nossa opiniao, 0 ponto central a se considerat’. Em 1773, a ‘Assembleia da Jamaica, com 0 propésito de aumentar a receita € reduzit o temor de rebelides escravas, impés uma taxa sobre cada negro importado. Os exportadores de Londres, Liverpool ¢ Bris- tol protestaram, ¢ a Junta de Comércio condenou a lei, dizendo-a injustificavel, impropria e prejudicial ao comércio britanico. O governador sofreu uma severa reprimenda por nado ter sustado as tentativas de “frear e desencorajar um tréfico tio benéfico & na- G0" Como o conselheiro para os assuntos da agricultura colo- nial argumentou mais tarde: Em toda a variedade de nossa administragao dos assuntos publi- cos, em toda a variedade de partidos, a politica em relagao aquele 76 comércio tem sido a mesma, [...] Em todos os perfodos de nos- sa historia, em quase todas as variagdes de nossa politica, todos os setores ¢ todas as categorias de politicos tém sucessivamente apro- vado este comércio, tem votado pelo incentivo a ele ¢ o tém con- siderado benéfico a nagao.* © Parlamento era sensivel @ importincia da escravidao ¢ do comércio de escravos para a Inglaterra e suas coldnias. Em 1750, Horace Walpole ironizou “o Senado britanico, aquele templo da li- berdade e baluarte da cristandade protestante (...] avaliando méto- dos para aumentar a eficiencia daquele horrendo trafico de venda de negros”” O Parlamento abrigou em seus majestosos sales mui- tos debates sobre a extingao do tréfico e a aboligao da escravatura, e suas atas mostram os vigorosos defensores com que contavam os traficantes ¢ os donos de escravos. Entre eles estava Edmund Burke. © paladino da conciliagao da América colaborava com a crucifica- 40 da Africa. Em 1772, foi apresentado um projeto de lei 8 Ca- mara dos Comuns, proibindo 0 controle do Comité Africano por pessoas que néo participassem do tréfico escravo. Burke protestou, nao contra a instituigao do tréfico, mas pela exclusio da prerro- gativa do voto de pessoas que tinham adquirido legalmente esse direito. Ele argumentou que apenas poucos eram acusados disso. Nao deveriamos imitar 0 modelo que nos foi estabelecido nas Sagradas Escrituras, e, se entre eles encontrarmos dz justos, pou paremos 0 conjunto? (..] Entao ndo contrariemos a sabedoria de rnossos ancestrais, que consideraram e reconsideraram este assun~ to, nem coloquemos na dependéncia de um monopélio 0 que se destinava a ser objeto de um comércio livre.® Bristol podia se permitir compartilhar a admiracao geral pelo grande Liberal. A Igreja também apoiava o comércio de escravos. Os espa- nhéis viam no trafico uma oportunidade de converter os pagao: € 08 jesuitas, os dominicanos ¢ os franciscanos estavam macica- mente envolvidos na cultura canavieira, 0 que significava ter es- cravos. Ha 0 caso de um velho diécono da Igreja em Newport que invariavelmente, todos os domingos apés a chegada de um ne. greiro na costa, rendia gragas ao Senhor porque “mais um carre- gamento de seres ignorantes fora trazido a uma terra onde pode- riam ter 0 beneficio de uma revelagao do Evangelho”."! Mas, de modo geral, os fazendeiros britanicos eram contrarios a cristia zagao de seus escravos. Ficavam mais teimosos ¢ intrataveis, ¢ portanto perdiam valor. A cristianizagao também significava que eles tinham de aprender inglés, o que permitiria que tribos dife- rentes se entendessem e conspirassem uma revolta.* Havia outras razbes materiais para a oposigao dos fazendeiros. Em 1695, 0 go- vernador de Barbados declarou que eles se recusavam a dar folga a08 escravos nos domingos e dias santos; ainda em 1823 a opi- niao publica britdnica ficou chocada ao saber que os senhores de escravos tinham rejeitado uma mogao para dar uma folga sema- nal aos negros, a qual visava ao fim do mercado escravo aos do- mingos.“' A Igreja acatou obediente. A Sociedade para a Difusao do Evangeho proibiu o ensino cristao a seus escravos em Barba- dos, e marcou a ferro seus novos escravos com a palavra “Socie- dade’, a fim de diferencié-los dos escravos dos senhores laicos;* 95 escravos originais eram heranga de Christopher Codrington.” Sherlock, futuro bispo de Londres, assegurou aos fazendeiros que “o cristianismo e a adogdo do Evangelho nao fazem a menor dife- renga na propriedade civil”. E tampouco esta significava algum impedimento a atividade clerical. Gragas a sua contribuisao para © asiento, o qual ele ajudou a elaborar como plenipotenciario bri- tanico em Utrecht, o bispo Robinson de Bristol foi promovido & sé de Londres.” Os sinos das igrejas de Bristol repicaram alegre- F mente a noticia da derrota do projeto de lei de Wilberforce no Parlamento. propondo a extingao do trafico negreiro.” O co merciante de escravos John Newton rendeu gragas nas igrejas de Liverpool pelo éxito de sua tiltima viagem antes de se converter, e rogou a Deus que o abensoasse na préxima. Newton instituiu uma missa was vezes por dia em seu negreiro, sendo ele a oficid: -la pessoalmente, ¢ estabeleceu um dia de jejum e oracées, no para 0s escravos, mas para a tripulagao. E declarou: “Nunca co- nheci horas mais doces ou mais frequentes de comunhao divi- na do que nas duas tltimas viagens a Guiné"”" © famoso cardeal Manning, do século xrx, era filho de um rico mercador das Indias Ocidentais que negociava produtos cultivados por escravos.”* Mui- tos missionarios achavam vantajoso combater belzebu com bel- zebu. Segundo o estudo inglés mais recente sobre 0 trafico, eles “consideravam que a melhor maneira de remediar 0 abuso dos escravos negros era dar um bom exemplo aos fazendeiros ten- do eles mesmos escravos ¢ fazendas, assim realizando na pritica a salvacdo dos fazendeiros e o desenvolvimento de suas institui- 50es”. Os missionarios moravios nas ilhas nao hesitavam em ter escravos os batistas, como escreve um historiador com uma de- licadeza encantadora, néo permitiam que seus primeiros mis- sionarios desaprovassem a propriedade de escravos.”* O bispo de Exeter manteve seus 655 escravos até o fim, recebendo mais de 12.700 libras de indenizacao em 1833. Os historiadores da Igreja tecem justificativas capengas, ale- gando que foi muito lento o despertar da consciéncia para avaliar os males infligidos pela escravidao, e que a defesa eclesidstica da escravidao “simplesmente nasceu da falta de refinamento da per- cepcao moral’.” Nao ha necessidade dessas justificativas. A atitu- de do religioso era igual a atitude do laico. O século xvitt, como qualquer outro século, ndo podia se erguer acima de suas limita- es econdmicas. Como afirmou Whitefield ao defender a retira 79 ac PEE da daquele artigo da Constituigao da Geérgia que proibia a escra vidao, “é evidente que terras quentes nao podem ser cultivadas sem negros”.” O nao conformismo quacte nao se estendeu ao trafico de escravos. Em 1756, havia 84 quacres registrados como membros da Companhia de Mercadores em Comércio com a Africa, entre eles as familias Barclay e Baring,” Os negocios com escravos es- tavam entre 05 investimentos mais lucrativos dos quacres, tanto ingleses quanto americanos, e 0 nome de um navio negreiro, The Willing Quaker, registrado em 1793 em Serra Leoa como prove- niente de Boston,” é simbolo da aprovagao que os circulos qua: ctes dispensavam ao tréfico negreiro. A oposi¢ao quacre ao co- mércio de escravos surgiti inicialmente, ¢ em larga medida, nao na Inglaterra, mas nos Estados Unidos, entre as pequenas comu- nidades rurais do Norte, que nao dependiam da mao de obra es- crava. Como disse 0 dr. Gary: “E dificil evitar a impressio de que a oposicao ao sistema escravista se restringia de inicio a um grupo que nao auferia nenhuma vantagem direta com ele, e portanto ti- nha uma atitude objetiva’” ‘A Marinha sabia apreciar 0 valor das col6nias das Indias Oci dentais ¢ se recusava a colocar em risco a seguranca delas. O pos- to naval das Indias Ocidentais era 0 “posto de honra’, e muitos almirantes tinham sido recebidos com grandes festas pelos se- nhores de escravos. Rodney era contrario a extingao do trafico escravo."' O conde St. Vincent afirmava que a vida nas fazendas era um verdadeiro paraiso para o negro, se comparada a sua exis- téncia na Africa." A extingao nao passava de uma “maldita dou- trina execravel, adotada apenas por hipécritas” Os sentimentos do bravo almirante nao estavam totalmente dissociados de con- sideragdes de ordem mais material. Em 1837, ele recebeu mais de 6 mil libras de indenizagao por seus 418 escravos na Jamaica. A esposa de Nelson era nascida nas coldnias, ¢ as posicoes dele so- 80 bre o trafico eram cristalinas. “Fui criado na boa e velha escola, ¢ aprendi a apreciar o valor de nossas possesses nas Indias Oci dentais, ¢ nem em campo nem no Senado seus justos direitos se- rio infringidos, enquanto eu tiver um braco para lutar.em sua defesa ou uma boca para soltar minha voz contra a abomindvel doutrina de Wilberforce ¢ seus aliados hipécritas.”** A escravidao existia sob as vistas dos ingleses setecentistas. ‘Uma moeda inglesa, o guinéu, embora fosse e continue a ser rara, teve origem no comércio com a Africa."* Um ourives de West- minster fazia cadeados de prata para cées e negro.” Bustos de africanos e elefantes, simbolos do trafico escravo, adornavam a Prefeitura de Liverpool. As insignias e os equipamentos dos trafi- cantes de escravos eram expostos a venda nas lojas ¢ anunciados na imprensa, Os escravos eram abertamente vendidos em leildes.** Sendo 0s escravos propriedade de valor, com titulo reconhecido por lei, as vezes empregavam-se os carteiros como agentes para recapturar escravos fugitivos, e publicavam-se aniincios no érgio oficial do governo.” Empregados domésticos negros eram usuais. Negrinhos eram acompanhantes constantes de capitaes de navios negreiros, de senhoras elegantes ou de mulheres de virtude duvi dosa. A heroina de Hogarth em The Harlot’s Progress [A jornada da meretriz] tem um criadinho negro, e Orabella Burmester, per- sonagem de Marguerite Steen, encarna a opiniao setecentista in- glesa em set desejo de ter um negrinho que possa amar como um gatinho felpudo." Os negros alforriados se destacavam entre os mendigos de Londres, e eram chamados de “gratinas de St. Giles” Eram téo numerosos que em 1786 foi criada uma comissio par- lamentar de assisténcia aos negros pobres.”* “Escravos nao respiram o ar da Inglaterra”, escreveu o poc- ta Cowper. Era uma licenga poética. Sustentou-se em 1677 que, “sendo os negros usualmente comprados e vendidos entre co- merciantes, assim sendo mercadorias e também infiéis, pode ha- a ver propriedade sobre eles”. Em 1729, 0 procurador-geral decidiu que o batismo nao acarretava a liberdade nem trazia nenhuma alteragéo 4 condicao temporal do escravo; além disso, 0 escravo ‘nao se tornava livre ao ser levado & Inglaterra, ¢, estando na Ingla- terra, o dono poderia obrigé-lo legalmente a voltar para a fazen- da.” Uma avtoridade tao ilustre como sir William Blackstone sustentou que, “em relacdo a qualquer direito que o senhor tenha adquirido legalmente sobre o servigo perpétuo de fulano ou bel- trano, este continuard exatamente no mesmo estado de sujeicio or toda a vida’, na Inglaterra ou em qualquer outro lugar.” Portanto, quando o assiduo zelo de Granville Sharp, em 1772, levou a presenga do juiz do Supremo Tribunal, lorde Mansfield, © caso do negro James Somersett, cujo dono estava prestes a re- meté-lo de volta para a Jamaica, havia intimeros precedentes que comprovavam a impureza dos ares ingleses. Mansfield se empe- nhou ao maximo em contornar a questo, sugerindo a manumis- sto do escravo, mas saiu-se com a modesta declaragdo de que caso nao era “admitido ou aprovado pela lei da Inglaterra”, e de- terminou a libertagao de Somersett. Esse proceso ganhou gran- de repercussao, por obra dos interessados em exibir as vitorias do humanitarismo. O professor Coupland afirma que por tras do julgamento judicial estava um julgamento moral, e que 0 caso Somersett marcou o inicio do fim da escravidao em todo o Impé- Hio Britanico.™ Isso ¢ mero sentimentalismo poético disfarcado de historiografia moderna. Benjamin Franklin denunciou com sarcasmo “a hipocrisia deste pafs, que encoraja um comércio tio detestével ao mesmo tempo que alardeia orgulhosamente sua vir- tude, seu amor a liberdade e a equidade de seus tribunais ao liber- tar um negro s6”-" Dois anos depois do caso Somersett, 0 gover- no britanico desautorizou as Leis Jamaicanas que restringiam 0 trifico de escravos. Em 1783, uma peticao quacte pela extincao do tréfico foi solenemente rejeitada pelo Parlamento. & _—l Além disso, também em 1783, 0 mesmo Mansfield julgou o caso do navio Zong. Faltando 4gua a bordo, o capitao tinha lanca~ do ao mar 132 escravos, ¢ os proprietarios acionanaram a segura- dora, alegando que a perda dos cativos se enquadrava na cléusula da aplice que cobria os “perigos do mar”. No parecer de Mans- field, “o caso dos escravos era igual a atirar cavalos ao mar”, Os anos materiais foram fixados em trinta libras por escravo, ¢ ja~ mais passou pela cabeca de qualquer humanitarista a ideia de que © capitdo ¢ as tripulantes deveriam ser processados por homict- dio em massa. Em 1785, coube a Mansfield julgar outro caso en: volvendo seguro, agora um navio britanico ¢ um motim entre os escravos. Sua saloménica sentenga foi que a companhia de segu- ros deveria ressarcir o valor de todos os escravos mortos no motim ‘ou em decorcéncia de contusdes e ferimentos sofridos na ocasido, mas nao os que tinham morrido saltando ao mar, engolindo égua ou de “desgosto’, porque essas mortes nao decorriam de lesdes du- rante 0 motim; a companhia de seguros também nao seria respon: svel por nenhuma desvalorizacao no prego dos sobreviventes.”* O trafico negreiro nao era uma atividade da escéria da socie- dade inglesa. A filha de um comerciante de escravos nos garan- ti que seu pai, embora corsério ¢ capita negreiro, era homem justo e bondoso, pai, marido e amigo exemplar.” Provavelmen. te era verdade. Os mais ativos nesse ramo de comércio eram ho- mens respeitéveis, pais de familia e excelentes cidadaos. O aboli- cionista Ramsay reconhecia esse fato com legitimo pesar e tentava justificd-lo argumentando que “nunca tinham examinado a natu- reza deste comércio, ingressaram nele e se conduziram como ou- ‘ros haviam feito antes deles, como uma coisa natural, a qual nao demandava nenhuma explicagao neste ou no outro mundo” A justificativa é desnecesséria. O trafico de esctavos era um ramo do comércio, e muito importante. Um funcionério do setor disse certa vez que “um simples olhar de fato, um s6 minuto realmente 85 gasto nos pordes de escravos na Rota do Meio faria mais pela causa da humanidade do que a pena de um Robertson ou toda a eloquencia coletiva do Senado britinico”” £ de se duvidar. Como se disse mais tarde a propésito do trafico cubano e brasileiro, era inutil declarar que a atividade era impia ou pouco crista. Era um comércio lucrativo, e isso bastava.' Chegou-se a justificar 0 tré- fico escravo como uma experiéncia muito pedagégica. “Pensem no efeito, no resultado de uma viagem escravista num jovenzi nho no comeco da puberdade. [...] Que educagao era uma via~ gem dessas para o menino da roga. Que ampliagdo da experién- cia para um garoto do campo. Voltando a terra, toda a sua visio da vida seria outra. Safa menino; voltava homem.”" Os comerciantes de escravos estavam entre os principais hu- manitaristas da época. John Cary, defensor do trafico, era famo- mo, ¢ foi o fundador de uma so por sua integridade e humanita sociedade conhecida como “Associagao dos Pobres” © negreiro Southwell de Bristol recebeu esse nome por causa de um parla- mentar de Bristol, que ganhou um monumento como stidito leal a0 rei e a0 pais e homem fiel a suas conviccdes.! Bryan Blundell de Liverpool, um dos mercadores mais présperos da cidade, ativo tanto no trafico escravo quanto no comércio com as Indias Oci- dentais, foi por muitos anos curador, tesoureiro, patrono-mor € financiador mais ativo de uma instituicao de caridade, o Blue Coat Hospital, fundado em 1709.™ Essa entidade recebeu grandes con- tribuigdes de outro comerciante de escravos de Liverpool, Foster Cunliffe. Era um pioneiro do tréfico negreito. Ele e seus dois fi Ihos constam como membros do Comité de Liverpool de Comér- cio com a Africa em 1752. Tinham quatro navios negreiros com capacidade para 1120 escravos, cujos lucros permitiam abaste- cer doze navios com acticar € rum, na volta a Inglaterra. Assim 0 apresenta uma inscricdo na St. Peter's Church: “Um cristao devo- to exemplar no exercicio de todos os deveres publicos e priva- 84 dos, amigo da caridade, protetor dos pobres, inimigo apenas do vicio e da indoléncia, viveu estimado por todos os que 0 conhe- ciam [...] morreu lamentado pelos bons e sabios”.* Thomas Leyland, um dos maiores comerciantes escravistas do mesmo por- to, em seu mandato como prefeito nao teve a menor misericérdia pelos acambarcadores, pelos atravessadores e pelos revendedo- res no varejo, e era um flagelo para os malfeitores.'" Os Heywood eram comerciantes de escravos e foram os primeiros a importar © algodao produzido com trabalho escravo dos Estados Unidos. Arthur Heywood era tesoureiro da Academia de Manchester, on: de seus filhos estudaram. Um deles, Benjamin, foi cleito membro da Sociedade Literéria e Filoséfica de Manchester e admitido ao Billiard Club, clube mais requintado que Manchester conheceu em toda a sua hist6ria, que s6 aceitava os homens mais seletos em termos de educacao, posicao e carreira, Ser admitido no circulo encantado dos Quarenta significava o reconhecimento incontes- tavel como cavalheiro. Mais tarde, Benjamin Heywood organizou a primeira das exposigbes de artes e oficios de Manchester.” Os traficantes de escravos ocupavam altos cargos na Ingla- terra. A Real Companhia de Empreendedores do Comércio com a Africa, numa lista encabegada por membros da realeza, incluia dois conselheiros municipais, trés duques, oito condes, sete lor- des, uma condessa e 27 cavaleiros."** Uma peti¢o dos comercian- tes de escravos de 1739 traz as assinaturas dos prefeitos de Liver: pool e Bristol." O Comité de Bristol, criado em 1789 para se opor a extingdo do tréfico, inclufa cinco conselheiros municipais, um deles ex-capitao de um navio negteiro."”” Nao poucos comer- ciantes de escravos ocuparam o mais alto cargo da municipalida- de.!"' Os traficantes de escravos estavam solidamente estabeleci- dos nas duas Camaras do Parlamento. Ellis Cunliffe representou Liverpool no Parlamento entre 1755 e 1767." A familia Tarleton, importante no tréfico escravo, foi porta-voz da oposigao de Liver: 85 pool ao fim do comércio negreiro no Parlamento."”” A Camara dos Lordes, tradicionalmente conservadora, teve confirmada sua oposicao instintiva ao fim do trifico com a presenca de muitos comerciantes de escravos com titulos de nobreza. Prestou ouvi- dos favoraveis a declaracao do conde de Westmorland, 0 qual afirmou que muitos deles deviam seus assentos naquela camara a0 trafico negreiro,"* e que a extingao da atividade era puro jaco binismo.'!! Nao admira que Wilberforce temesse a Camara dos Lordes."* Foi confiante que a Assembleia da Jamaica afirmou ca- tegoricamente em 1792 que “a seguranga das Indias Ocidentais, depende nao s6 de nao ser abolido o tréfico de escravos, mas tam. bém de uma imediata declaragao da Camara dos Lordes de que nao admitird a extingao do tréfico”!” Houve alguns protestes de uns poucos intelectuais ¢ prela. dos no século xvi. Defoe, em sua “Reforma das Maneiras”, con- denou o comércio de escravos. O poeta Thomson, em seu “Ve- ro”, pintou um quadro dramatico de um tubarao seguindo um navio negreiro. Cowper, depois de alguma hesitacao, escreveu seus versos memoraveis em “A tarefa’. Blake escreveu seu belo poema sobre o “Garotinho negro”. Southey criou alguns versos pungentes sobre 0 “Marinheiro que tinha servido no Trafico de Es- cravos”. Mas grande parte dessa literatura setecentista, como mos- trou o professor Sypher numa anélise exaustiva,""* concentrava- se no “negro nobre’,o principe injustamente capturado, superior a seus captores mesmo estando no cativeiro. Esse sentimenta- lismo, tipico do século xvitt em geral, nao raro trazia 0 capcioso implicito de que a escravidao do negro nao nobre seria justifica- da. Boswell, por outro lado, declarou enfaticamente que a extin a0 do trafico de escravos fecharia os portdes da caridade a huma- nidade e apelidou Wilberforce de“anao de nome bombéstico”."” 36 Dois negociantes do século xvi, Bentley e Roscoe, opuse- ram-se ao trafico de escravos antes de 1783. Eles eram mais que negociantes: eram negociantes de Liverpool. Dois economistas do século xvi condenaram 0 alto custo ¢ a ineficiéncia da mao de obra escrava — Dean Tucker e Adam Smith, 0 sino de alarme, © arauto da nova era. As notas dissonantes nao encontraram eco. O século xvi endossava o apelo de Temple Luttrell: Alguns cavalheiros podem, de fato, ter objegoes ao trafico de es- cravos como pratica impia e desumana. Consideremos que, se qui- sermos manter ¢ cultivar nossas coldnias, o que s6 pode ser feito por negres aft -anos, certamente & melhor nos abastecermos des. ses trabalhadores em navios britanicos do que compré-los por in. termédio de agentes franceses, holandeses ou dinamarqueses.'*° Em certa ocasido, um cavalheiro das ilhas Mauricio, ansioso em convencer 0 abolicionista Buxton de que “os negros eram 0 povo mais feliz do mundo”, pediu a esposa para confirmar suas palavras apresentando as impressdes pessoais sobre os escravos que vira. “Oh, sim’, respondeu a boa esposa, “eles 540 muito feli zes, tenho certeza; eu s6 achava muito estranho ver as cozinheiras pretas acorrentadas ao fogao.”! Poucos ingleses antes de 1783 ti- nham qualquer dtivida, como a boa esposa, sobre a moralidade do trafico de escravos. Os raros com alguma ditvida percebiam que as objecées, como disse Postlethwayt, pouco peso teriam entre poli ticos que viam os grandes lucros nacionais resultantes do comér- cio negreiro. “Temos de tomar as coisas como elas so e racioci- nar a partir delas em sua atual condigao, ¢ nao a partir do que gostariamos que elas fossem. ...] Nao podemos pensar em re nunciar ao trafico de escravos, a despeito de meus votos por que isso possa acontecer.” Mais tarde, talvez, alguma nobre e bondo- sa alma crista pudesse pensar em mudar 0 sistema, “o que, como 87 agora so as coisas, talvez nao ocorta téo facilmente”. Antes da Revolucao Americana, a opiniao puiblica inglesa em geral aceita~ va a posicio do comerciante de escravos Embora traficar com criaturas humanas possa a primeira vista parecer bérbaro, desumano e desnaturado, ainda assim os comer- ciantes aqui tém a invocar em sua justificativa o mesmo que se pode dizer de alguns outros ramos do comércio, a saber, sua van- tagem. |...] Em resumo, deste comércio resultam beneficios que ultrapassam em muito todos os males ¢ inconvenientes, reais ou imaginarios.* 88 3. O comércio britanico e 0 comércio maritimo triangular A. 0 COMERCIO MARITIMO TRIANGULAR Segundo Adam Smith, a descoberta da América e da rota do cabo da Boa Esperanca até as Indias sao “os dois acontecimentos de maior grandeza e importancia registrados na historia da huma- nidade”. A importancia da descoberta da América ndo estava nos metais preciosos ali encontrados, mas no novo mercado inesgota- vel que ela oferecia a0s produtos europeus. Um dos principais efei- tos foi “elevar o sistema mercantil a um grau de esplendor e glé- ria que ele jamais teria alcangado de outra maneira’.' Ela gerou um enorme incremento do comércio mundial. Os séculos xvi € xvitt foram os do comércio, assim como 0 século x1x foi o da produga Para a Inglaterra, comércio correspondia basicamente ao comércio maritimo triangular. Em 1718, William Wood afirmou que 0 comé! cio de escravos era “a fonte origem de onde nascem os demais’* Alguns anos depois, Postlethwayt definiu o trafic de escravos co- moo primeiro principio ea fundacao de todo o resto, a mola prin- cipal da maquina que coloca todas as rodas em movimento”. 89

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