inco Moretti
O burgués
Entre a hist6ria ea literatura
(Xo Alexandre Morales
‘Todos os dis
reservados. Nena parte desta obra pode ser reproduzida arquivade
ida de nenhama forma ox por nenhsm melo sera a permissio expresa ¢ por
da Empresa Folhada Manka S.A. ck
“Tele original The Rouge Bateen History and
rotron Alcino Leite Neto
sm 0) | KimbellArtMuseum, Fort Worth
“The Bridgeman Art Library
coo MIOLO May
GAO ELETRONICA Jussra Fino
Ligia Azevedo.
zevisho Carmen T.S, Costa,
ayaa
el Jorge Cury e Guilherme Magalies
Este liv segue as rgras do Acondo Ortogrfico da Lingua Portuguesa (1990),
emvigor desde 1 dejanciro de 2009,Introducgdo
Conceitos e contradigdes
EU SOU UM MEMBRO DA CLASSE BURGUESA”
burgués... Hé pouco tempo essa nogio parecia indispensével
Aanilise social. Hoje é pos
O capi
aco humana parece ter sumid
‘o-me como tal e fui
reve Max Weber em 1895.' Quem repetiria essas pala-
vras hoje? Quais sio as “opinides” ¢ os “ideais” burgueses?
A mudanga de ares est refletida na produgo intelectual. Sim-
iado sob suas opinides e seus
a burguesia ~ a economia e a antropol
mesma moeda, “Nao sei de nenhuma interpretaao hist6
deste nosso mundo moderno’, afirmou Immanuel Wallerstein hd
de burguesia [...]esteja
pouco ou nenhum interesse na figura do burgués, “Na Inglaterra,
" afirma Meiksins Wood em The Pristine Culture
engendrado pela burguesia, Na Franca, havia uma burguesia (mais‘ou menos) triunfante, mas seu projeto revolucionério tinha pouco a
‘ver com 0 capitalismo”. Ou, enfim, “ndo ha nenhuma identificagio
necessaria do burgus [..] com o capitalista”?
Ecerto quenao ha nenhuma identificacdo necessaria, mas isso
mal est em questo. A origem da classe burguesa e de suas pec-
liaridades, escreveu Weber em A ética protestante ¢ o “espirito” do
capitalismo, é um processo “estreitamente relacionado aquele da
origem da org
«da mesma coisa”. Estreitamente associado, embora nao se trate da
observar o bur-
gués e sua cultura ~ pois na maior parte da histéria 0 burgués foi
+ terminantemente um “ele” como componente de uma estrutura
i2ago capitalista do trabalho, embora no se trate
mesma coisa, Esta € a ideia por tras deste liv
de poder com a qual, porém, nao coincide por completo. Mas
falar “do” burgués, no singular, é questiondvel.“A grande burgue-
sia nao podia se separar formalmente de seus inferiores”, afirma
Hobsbawm em A era dos impérios; “sua estrutura tinha dese manter
aberta a novos integrantes~ essa era a natureza do seu ser" Essa
permeabilidade, acrescenta Perry Anderson, distinguea burguesia
da nobreza antes dela eda classe operiria depois dela. Nio obstante
as importantes diferengas no interior de cada uma dessas lasses
contrastantes, a homogeneidade delas 6 estruturalmente mai
aristocracia era tipicamente definida por um status legal que com-
binava titulos civis e privilégios juridicos, ao passo que a classe
operiria é demarcada em peso pela condigio do trabalho bracal.
A burguesia como segmento social nao possui nenhuma unidade
interna que seja compardvel®
Delimitagdes porosas e coesto interna frouxa: esses tragos
invalidam a ideia da burguesia como classe? Para seu maior histo-
iador vivo, ingen Kocka, nao necessariamente, desde que faga-
indo entre aquilo que poderiamos consideraro cerne
desse conceito e sua periferia. Esta diltima era mesmo extrema-
mente varidvel, nto do ponto de vista social como hist6rico: até
fins do século xvii, consistia em sua maior parte nos “pequenos
empreendedores autonomos (artesios, vareji
pedarias e pequenos proprietérios)" da incipiente Europa urbana;
cem anos depois consistia em uma populagio completamente
diferente, composta de “empregados de colarinho-branco ¢ servi-
dores pitblicos em posigdes médias ¢ inferiores",’ Mas, no meio=)
tempo, no decurso do século xx, a figura sinerética da “burg
proprietéria e instruida” veio & tona em toda a Europa ocidental,/
mos uma
‘as, donos de hos-
proporcionando um centro de gravidade para a classe como un
todo e fortalecendo suas qualificagdes como uma possivel nova
classe dominante: uma convergencia que encontrou expressio no/
par conceitual alemdo da Besitesbingertum e da Bildungsbirgertum
burguesia da propriedade e burguesia da cultura ~, ou, de forma
mais prosaica, no sistema fiscal britanico que inseria lucros (do
capital) ¢ honoritrios (dle servigos profissionais) imparcialmente
“sob amesma rubrica”®
O encontro de propriedade e cultura: o tipo ideal de Kocka
também serd 0 meu, mas com uma diferenga significativa, Como
historiador literério, vou enfocar menos as efetivas relagdes entre
segmentos sociais especificos ~ banqueiros e altos funcionérios
publicos, industriais e médicos, e assim por diante ~ do que 0
“ajuste” entre formas culturais e as novas realidades de classe: de
que modo, por exemplo, uma palavra como “conforto” delineia
08 contomos do legitimo consumo burgués, ou 0 andamento da
narragio se ajusta & nova regularidade da existéncia, O burgués
refratado pelo prisma da literatura: este 60 tema de O burgués.
BDISSONANCIAS.
Cultura burguesa, Cultura una? "Multicolorida [...] pode servir
para a classe que mantive sob o meu microsc6pio”, afirma Peter
‘ie A experiéncia burguesa.?
ficgBes inte~
Gay a0 concluir seus cinco volumes da s
lectuais, competicdo social eo devido lugar das mulheres se torna-
tam questdes politicas nas quais burgueses combatiam burgueses”,
acrescenta cle em uma retrospectiva posterior — divisGes to extre-
mas “que é tentador duvidar que a burguesia fosse uma entidade
Para Gay, todas essas “variagies
impressionantes” so produto da intensificagao da transforma-
io social no século xix e, portanto, sio tipicas da fase vite
da hist6ria burguesa."* Contudo, também é possivel empreender
jomias da cultu-
minimamente determinave
uma perspectiva bem mais ampla sobre as a
1a burguesa, Em ensaio sobre a Capela Sassetti na Igreja da Santa
‘Trindade, inspirado no retrato de Lorenzo di Medici composto por
Maquiavel nas Histérias florentinas ~"se Ihe fossem comparadas
afaceta amena ea solene, poder-se-iam identificar dentro dele duas
personalidades distintas, de conjungzio quase impossivel” = Aby
Warburg observou que
0 cidadio da Florenca dos Medici
te dispares do idealista —fossem os do cristdo medieval, do cava~
sunia os atributos completamen-
Iheiro romantico ou do neoplaténico classico ~e do comerciante
ctrusco mundano, pritico, pagio. Rudimentar porém harmoniosa
«em sua vitalidade, essa criatura enigmética admitia todo impulso
psiguico como uma extensio de seu escopo mental a ser desenvol-
vida e explorada a vontade:*
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Uma criatura enigmitica: idealista e mundana. Ao escrever
sobre outra Idade de Ouro burguesa, a meio caminho entre os
Medici eos vitorianos, Simon Schama medita sobre a “peculiar
coexisténcia” que possibilitava a
dirigentes leigos e clericais conviver com aquilo que de outro modo
teria sido um sistema de valores insuportavelmente contradi
uma perene contenda entre gandncia €ascetismo.[...] Os incorr
vweis habitos de autocomplacéncia material eo acicate do empreen-