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APREENDENDO O DINAMISMO DO MUNDO VIVIDO* Anne Buttimer ‘construida hé mais ou manos 200 anos. para a habitagio de campo: ‘auto-sufcitncia do poder permitiu que a terrae o céu, as divindades ¢ (08 mortsis entrassem na identidade simples das coisas e ordanassem a casa. Ela colocot a fazenda ne vertente da montanha abrigada do vento, voitada para ©. ‘entre as campinas préximas & nascente. Deu-the um amplo toto salient, de telhes de ‘ébua, cujeinclinago apropriade verga-so sob © peso da neve © que, prolongando ‘bom para baixo, abriga as salas contra 2s tormentas nas longas noites de inverno. Ela ‘fo esqueceu 0 canto do altar, atrés de mesa de comunidad: consttuis espagas em ‘sua sala para os lugares ebengoados do berco e da “érvore dos mortos'” — para 6 quo ‘les chamam de eaixBo: 0 Totenbaum —, @ desta manola & projetado pare as dite. rentes geragies sobre um dnico toto, 0 caréter de sua jornada através do tempo. Uma arte que em si mesma surgiu da habitago (dwelling), e que ainda usa seus instru. ‘ments e molduras como coisas, construi a casa da fazend. Dwelling*: um nome ou um verbo? um edificio ou uma arte? um artefato paisagistico ou um processo? Se uma indagago como esta fosse publicada por um gedgrafo receberia ele aclamagdo ou desdém? Transcrito dos Annals of the Association of American Geographers, 68 (2): 277-282, junho 1976. Titulo do original: “Grasping the dynamism of lifeworld”. ‘Tradugo de Neide Piran ¢ Antonio Christofoett Martin Heidegger, “Building Dweling Thinking”, Poetry, Language and Thought (Now York, Harper and Row Publishers, 1971), p. 160. 0 termo dveting foi introduzido por Heidegger, senda noglo fenomenoligica ‘ue significa viver harmoniosemente no lugar, Sont-sa em casa tanto soci ‘ecolégica @ espirtualmente. Na tradugSo usamos 0 termo habitagdo, como o ‘wis aproximativo (Nota dos tradutoree).. Perspectivas de Goografia Estranha, na verdade, soa a linguagem de poetas e filésofos; ainda mais estranha é a recusa da Ciéncia em ler e ouvir sua mensagem. O gedgrafo humanistico, afinado com as vazes do cientista e do filésofo, nfo pode dar-se a0 luxo de ignorar qualquer coisa que possa lancar luz nas com- plexidades do relacionamento do homem com a terra. Poderia a noc&o de “habitago", no sentido usado por Heidegger, oferecer uma perspectiva valiosa para a Geografia atual? Habitar implica mais do que morar, cultivar ou organizar 0 espaco. Significa viver de um modo pelo qual se esté adaptado aos ritmos da natureza, ver a vida da pessoa como apoiada na histéria humana e direcionada para um futuro, construir um lar que € 0 simbolo de um didlogo diario com o meio ambiente ecol6gico e social da pessoa. Tem sido mais facil descrever como es pessoas podiam viver em meios tecnologicamente menos complexos dos tempos de antanho, ou especular romanticamente sobre como poderiamos viver melhor hoje se no houvesse a erosio dos solos, do que lutar com a questo se ou como a “habitagao" (dwelling) pode ser possivel para 0 homem contemporaneo. Nossa heranca de construtos intelectuais pa- rece de muitos modos inadequada para descrever os estilos contempo- raneos de construir uma morada sobre a terra. ‘A humanizaco da terra pode ser vista como um processo pelo qual a Humanidade tem procurado varios estilos de habitago (dwelling) no espago e no tempo. Os gedgrafos humanos delinearam estes regis- ‘tros em diversas metéforas, que esclarecem seus tragos paisagisticos: estabelecimentos, redes de circulago, uso da terrae padrées de com- Portamento, Recentemente, temos explorado a terrae incognitae da mente e da imagem. Certo mal-estar estendeu-se, entretanto, sobre 0 abismo conceitual e semdntico que separa nossa compreensio do com- portamento aberto e de suas origens latentes. Como muitos outros cientistas socisis temos deficiéncias de idéias ¢ linguagens para des- crever e explanar a experiéncia humana do espago, da natureza e do tempo. Muitos estudiosos ocidentais argumentaram que uma investigagio to ambiciosa pertence somente a0 poeta, a0 filésofo ou ao mistico. Os cientistas sociais, por defini¢ao, poderiam restringir-se a tarefas parciais, mais explicitamente limitadas. Hoje, entretanto, as fronteiras entre as disciplinas sdo freqiientemente atravessadas; estudiosos de diversos campos esto frente a uma tarefa comum: colocar nossas maneiras de conhecer em harmonia mais estreita com nossa maneira de ser no mundo, A elaboracéo de descri¢es do comportamento (aberto), “expla- nadas” em termos de modelos disciplinares (ou ditado filos6fico), per- manece obscura e estética; elas registram facetas da experiéncia como ‘emanando de um passado, porém langam pouca luz sobre sua direclo Uma Aternativa eaista na Googeafia Humana 187 ou significag&o. Em confronto com esse dilema basico, os fildsofos e os cientistas sociais tm muito para partithar. Cada qual poderia descobrir novas facetas de identidade e valor disciplinares. A permuta retorica entre fil6sofos e cientistas no passado parece desajeitadamente anacro- nica em vis8o da tarefa comum que enfrentamos: um esfor¢o combi- nado para reconciliar cora¢o e mente, conhecimento e ago, em nossos mundos digrios. Os fenomenologistas tém sido os porta-vozes mais sisteméticos deste esforco. Desafiando muitas das premissas e dos procedimentos da ciéncia positiva, expuseram uma critica radical do reducionismo, da racionalidade e da separagio de “sujeitos” e “objetos” na pesquisa empitica. Com os existencialistas, apregoam 0 argumento da libertaco da experiéncia vivida, apelando por descri¢Ses mais concretas do espaco e do tempo, e de seus significados na vida humana diaria. Para o entu- siasta do rigor cientifico, "“a experiéncia vivida’’ pode aparecer como um fantasma no horizonte, ainda resistente d conquista; no obstante, uma presenga que ameaga complicar, se no desviar, 0 curso grafado da ciéncia objetiva. Para alguns geégrafos, entretanto, uma imagem global imperiosa da fenomenologia e do existencialismo oferece uma promessa para uma orienta¢o mais humanistica dentro da disciplina.” Tampouco a fenomenologia ou o existencialismo pode prover so- lugbes prontamente feitas para os problemas epistemoldgicos enfrer tados pela ciéncia de hoje, nem oferecer procedimentos operacionais claros para guiar o investigador empirico. Se eles s80 compreendidos ‘como perspectivas, entretanto, que apontam em diréco & exploraco de novas facetas da pesquisa geografica, ento 0 nosso reconhecimento sobre eles seria um valioso e oportuno desenvolvimento. O esforco para colocar o conhecimento intelectual em harmonia mais estreita com a experincia vivida j6 € evidente na etnociéncia, na psicologia humanis- 2. YeFU Tuan, ‘Environment’ and 'World'",The Professional Geographer, 17 (5: 6-8, setembro 1965; “Geography, Phenomenology, and the Study of Hurman Na- , The Canadian Geographer, 15: 181-92, 1971; Man and Nature, Comission ‘on Collage Geography Resource Paper, n° 10 (Washington, Association of Ame Fican Geographers, 1871); Topophil; » Study of Environmental Perceptions, Attitudes, and Values (Englewood Cit, Prentice-Hall, 1874); E. C. Relph, "An Inquiry into the Relations between Phenomenology and Geography”, The Cans dan Geographer, 14: 183.201, 1970; D. Mercer J. M. Powell, Phenomenology ‘and Other Non-Posttvstic Approaches in Geogrephy, Publications in Geography (Clayton, Vietoria, Australia, Monasc University Department of Geography, 1972) @Marwyn S. Samuels, Science and Geography: An Existential Appraisal, tose de ‘outorado,inédita, University of Washington, 1971 Perspectivas de Googratie tica, nas psicolinguisticas em outros campos.> Parece apropriado, enti, escrutinizer essas perspactivas um pouco mais cuidadosamente 9, fixer, tanto quanto possivel, as sues mensagens para os gebgrafos* Cada participante no dislogo necessita tornar-se consciente de sua propria posig&o, e da posi¢So assumida pelo oponente, de modo que a linguagem para o dislogo posse emergir, isto 6, que seja juntemente ctiada, ou pelo menos juntamente aceita, por ambos os participantes,* Este ensaio comega com uma descri¢o muito sucinta da fenomenologia e suas definigbes do mundo vivido. A seguir, delineam-se as trés prin- cipzis posiges assumidas pela Geogratia e pelas discipinas relacionadas com a experiéncia humana do “mundo”, para esclarecer os tipos de questes conceituais que a fenomenclogia pode ajudar a elucidar. Duas nogBes da fenomenologia, “‘corpo-sujeito” e a “intersubjetividade", © uma noo da Geografia Contemporanea, a idéia dos “ritmos do tempo- -28pa50",s80 as bases potenciais para um didlogo entre os dois campos. A idéia de corpo-sujeito focaliza as relagBes diretas entre © corpo hu- mano e seu mundo.* A idéia de intersubjetividade esforca-se para cons- ttuir um didlogo entre a pessoa eo meio ambiente, em termos de he- ranga sécio-cutural, eo papel assumido no mundo vivido de cada dia.* Aida dos rtmos témporo-espaciais & proposta como uma perspectiva ue pode produzir compreenséo na integridade dindmica da experiéncia do mundo vivido.’ Estas idéias, e algumas reflexes pessoais, sugerem Gibson Winter, Elements for @ Social Ethie (New York, Macmillan, 1963); Wit sm Sturtevant, “Studies in Ethnoscience'”, Transcultural Studies in Cognition, editado pela A. Kimball Romney © Roy Goodwin D’Angrade, fasciculo especial do Americen Anthropologist, 68: 92-124, 1964; A. J. Sutich 8 M. A. Vich, orgs, Readings in Humanistic Psychology (New York, Free Press, Coller-Macrmilln, 1969). ‘Tom-s0 a improssZo, a parti de trabalhos recentes, que o cientista social so- mente pode entrar na discuss¥o so estiver disposto a usar a linguagem fono- menolgica. Isto poderia nfo somente deixar de produzir beneficios mituos, como também podera ser inconeistente com elgumas des promissas estabeloci- des da fenomenoiogia. IM. Merleau-Ponty, Phenomenology of Perception, waduaido pot Colin Smith (Now York, Humanities Press, 1962); The Structure of Behavior, treduzido por ‘A. L. Fisch (Boston, Beacon Press, 1963]; The Primacy of Perception and Other Essays, J. M. Edie, org., (Evanston, Northwestern University Press, 1964) ¢ D. Seamon, “Tho Phenomenological Investigation of Lived Space”, Monadnock, 49: 38-45, 1975. Gabriel Marcel, Men Against Mass Society (Chicago, Requery, 19601; A. Schutz, On Phenomenology and Social Relations (Chicago, University of Chicago Press, 1970) sou The Structure ofthe Lifeworld, T. Luckmann, org. (Evanston, North: western University Press, 1973). TT. Hagerstrand, “What about People in Regional Science?” Papers of the Regio ‘Apreendendo 0 Dinamismo do Mundo Vivide 169 linhas-mestras para o desenvolvimento de um tipo de pensamento huma- nistico dentro da Geografia, mais experiencialmente fundamentado, 1, FENOMENOLOGIA E MUNDO VIVIDO Nao 6 facil definir a fenomenologia. A variedade de descrigtes reflete as diferengas fundamentais entre os proprios fenomenologistas e a fluidez de seus limites com outros campos." Uma preocupago central da ““fenomenologia pura’ foi'a andlise e a interpretagio da consciéncia, particularmente a cogni¢o consciente da experiéncia direta,” Esforga-sé para retirar as camadas sucessivas de um julgamento a priorie transcender ‘todas as preconcepgdes a fim de se chegar a uma consciéncia da essén- cla pura. Tal reflexiio transcendental deve perscrutar os fundamentos de todo inquérito cientifico; deveria tornar-se, de fato, a atitude funda- ‘mental da qual todo inquérito cientifico poderia originar-se, Os fenome- nologistas argumentaram que os procedimentos cientificos convencio- nnais nunca s80 autoconscientes; originam-se de uma “atitude natura- listica’* que observa, classifica e “explica’” os fendmenos dentro da estru- tura de postulados a prior."° Tal pensamento natural pressupde que hé um mundo externo esperando 0 conhecedor e nunca péra para exami- nar seo conhacimento é realmente possivel.” A atitude fenomenolégica, ao contrério, demanda um retorno & evidéncia, aos proprios fatos, como s8o produzidos, e ums investigago dos atos da prépria consciéncia. No modo cientifico ou “naturalistico” do conhecimento, um individuo pode tornar-se tio envolvido nos obje- ‘nal Science Association, 24: 2:21, 1970 Directions in Geography, R. Chorley, or Press, 1974), p. 67-87. 8, Polo menos trs posigées distintas so ovidentes entre o8 fenomenologistas variando desde “fenomenologia pure” do Hussor, através da fenomenclogi cexistencial de Merioau-Ponty, Marcel e Schutz, ata fenomenclogia hermnendu ‘ica do Ricoeur; Edmund Husser, "Philosophy as Rigorous Science”, in O. Laver, org., Phenomenology and the Crisis of Philosophy (New York, Harper, 1911), p. 71-147; Edmund Hussed, /deas: General Introduction to Pure Pheno: ‘menology (New York, Macmillan, 1913); Merloau-Ponty, op. cit., nota 5; M. Ne- tanson, “The Lebenswelt”, Review of Existential Psychology and Psychiatry, 4: 126-240, 1964 @ N. Lawrence © D. O'Connor, orgs., Readings in Existentia! Phenomenology (Englewood Citts, Prentice-Hall, 1967) 8, Edmund Husserl, The idea of Phenomenology (The Hague, Nihott, 1907) ¢ P. Pe- tit, On The idea of Phenomenology (Dublin, Scepter Publications, 1969), 10, Husser, op. cit.,note9, p. 13414, 11. Idem, tbidem, p17, “The Domain of Human Geogrephy", (Now York, Cambridge University Perspectivas de Geo, tos de sua preocupagdo, que negligencia a si proprio e as perspectivas que traz ao estudo desses objetos. A nocdo fenomenol6gica de intencio- nalidade sugere que cada individuo 6 0 foco de seu préprio mundo, ainda que possa esquecer de si proprio como o centro criativo daquele mundo, Ele 6, num sentido, “uma consciéncia alienada’.” Nao hé um ponto de vista absolutamente transcendente disponivel 20 homem, 2 partir do qual ele poderia ver a si proprio e ao seu mundo em relacionamento, Cada conhecedor deveria reconhecer-se como um sujeito intencional, Isto 6, como um conhecedor que usa palavras com significago inten- cional — para expor suas intui¢des objetivas e comunicaveis. Um indi- ‘viduo poderia fazer isso no famoso principio de redugo de Husserl, o qual demanda que 0 conhecedor retorne a si proprio @ aos dados absolu- tamente evidentes. A fenomenologia inicia por demonstrar a inadequa- 80 de todas as teorias naturalisticas do conhecimento e tenta examinar © que seja conhecimento para clarificar a “esséncia da cognigaio”."* Em termos gerais, ento, a fenomenologia poderia ser definida como um mods filos6fico de reflexéo a respeito da experiéncia consciente uma tentativa para explicar isso em termos de significado e significancia, Ha volumes de criticas, nuangas e elaborag$o a respelto desta ‘meta extremamente elusiva. Hé também dilemas fundamentais, n3o ‘menos importantes, entre os quais esto as reivindicagBes com 0 propé- ito de tornar-se uma superciéncia das esséncias, tida insisténcia na singularidade da experiéncia individual (subj outro." Confusas, do mesmo modo, s&o as correntes cruzadas entre @ fenomenologia e 0 existencialismo, pois os existencialistas de muitos modes solapam as premissas idealisticas da fenomenologia pura, existencialistas tam estado mais preocupados com questfes da vida — ansiedade, fanatismo, desespero, medo, esperanca — do que com pro- blemas de conhecimento e mente. A maior parte rejeita a possibilidade de generalizaco @ so desagradavelmente criticos da racionalidade apreciam, parece, a dificuldade da ambigiiidade que cerca a existéncia 12. Patit, op. t.,note9, p. 48 13. Hussori, op. ct., nota 8 @ Husserl, op. ct, noted, 14. Husser, op. cit, nota 9, p. 18. 18. Husser! “resolveu” este problema com o Ego Transcendental, cuje “eubjetivi- dade" poderie eventualmente stingit @ objatvidade perfeta, baceada na intuicdo dos esstncias. Muitos fenomenologistas contempordneos abendonaram este posicto. 3. Stephen Strasser, “Phenomenologies and Psychologies”, Review of Existential Psychology and Psychiatry, 1: 80-105, 1965; M. Warnock, Existentialism (New York, Oxford University Press, 1970) e H. Spiegelberg, The Phenomenological ‘Movement: A Historical Intraduction (The Hague, M. Nihott, 1960). ‘Apreendendo o dinamismo do Mundo Vivido 1m hhumana."” Os fenomenologistas existenciais colocaram uma passagem serpenteante e precéria & medida que tém-se esforcado para adaptar 0 método fenomenolégico para elucidar o mundo vivido. O cientista social 6 atraldo para as explicagbes destes exploradores quando ele procura