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Nutrição em Pediatria

Importância da alimentação complementar na saúde do


lactente: o papel dos cereais.

Profª. Drª. Roseli Oselka Saccardo Sarni


Doutora em Medicina pela Unifesp Disciplina de Nutrologia do Departamento de Pediatria da Unifesp – Escola
Paulista de Medicina Serviço de Crescimento, Desenvolvimento e Terapia Nutricional da Faculdade de Medicina
do ABC Programa Einstein de Nutrição na Comunidade de paraisópolis

Importância da alimentação complementar na saúde do lactente: o papel dos


cereais.

Alimentação complementar envolve o conjunto de outros alimentos, oferecidos ao lactente a


partir da interrupção do aleitamento materno exclusivo e deve se iniciar, preferencialmente, a
partir do sexto mês de vida. O leite materno, isoladamente, é capaz de nutrir adequadamente
as crianças nos primeiros 6 meses de vida; porém, a partir desse período, há necessidade de
introdução de novos alimentos.

O período de introdução da alimentação complementar é de elevado risco para a criança, tanto


pela oferta de alimentos inadequados quanto pela possibilidade de sua contaminação devido à
manipulação/preparo inadequados, favorecendo a ocorrência de inúmeras doenças, como a
doença diarréica, desnutrição e enteropatia ambiental. A adequada orientação para as mães,
durante esse período, é de fundamental importância e deve ser realizada criteriosamente por
profissionais da área de saúde.

A redução na ingestão dos alimentos complementares pode ocorrer devido à monotonia dos
alimentos ofertados, deficiência de micronutrientes e/ou fatores emocionais envolvidos.

Uma dieta pobre em micronutrientes pode acarretar uma série de danos especialmente ao
indivíduo em acelerada fase de crescimento e desenvolvimento. Uma das conseqüências da
inadequação de alimentos oferecidos nessa fase é a anemia carencial ferropriva, principal
carência nutricional nos primeiros anos de vida, atingindo cerca de 50% dos lactentes
brasileiros. A deficiência de ferro compromete o crescimento, desenvolvimento motor e
cognitivo, favorece a ocorrência de processos infecciosos e leva a conseqüências tardias,
inclusive no desempenho escolar, força de trabalho e qualidade de vida.

A densidade de ferro recomendada nos alimentos complementares é de 4 mg/100 kcal para


crianças de 6 a 8 meses, de 2,4 mg/100 kcal dos 9 aos 11 meses e de 0,8 mg/100 kcal dos 12
aos 24 meses. O Estudo Multicêntrico de Consumo Alimentar mostrou que a média da
densidade de ferro da dieta das crianças brasileiras menores de 2 anos está bem abaixo da
recomendada: de 0,49 a 0,69 para crianças de 6 a 12 meses e de 0,53 a 0,69 para crianças no
segundo ano de vida. Esses achados são coerentes com a alta taxa de anemia em crianças
pequenas no Brasil.

A OMS reforça que a densidade de ferro nos alimentos complementares, em países em


desenvolvimento, não garante as necessidades desse micronutriente a lactentes. Assim, a
quantidade adequada de ferro na alimentação complementar será melhor atingida com o
consumo de alimentos enriquecidos/fortificados e/ou de alimentos de origem animal que
contenham ferro heme. Crianças pequenas, em geral, têm dificuldade em consumir grande
quantidade de alimentos ricos em ferro (fígado, carnes e peixes). Estudos de consumo indicam
uma redução no total de despesas dirigidas à compra desse tipo de alimento pela população
brasileira, possivelmente por seu custo elevado. Portanto, faz-se necessária a implementação
de estratégias visando a aumentar a ingestão de ferro em crianças de 6 a 24 meses, como o
estímulo à manutenção do aleitamento materno, enriquecimento de alimentos e suplementação
profilática com ferro medicamentoso.
Infelizmente, as carências associadas à introdução de alimentação complementar inadequada
não se referem a apenas um micronutriente, mas são, freqüentemente, múltiplas. Nestel et al
(2003) ressaltaram que a análise da densidade nutricional, em micronutrientes, dos alimentos
complementares oferecidos a crianças, a partir do sexto mês de vida, em Bangladesh,
Guatemala, Gana, México, Peru e Estados Unidos revelava inadequação no conteúdo de
zinco, ferro e vitamina B6, em todos os países avaliados. As deficiências de riboflavina e
niacina ocorreram apenas na alimentação complementar utilizada em países em
desenvolvimento.

Deficiências de micronutrientes, além de suas manifestações clássicas, são identificadas como


fundamentais na fisiopatologia de complicações associadas a doenças crônicas não
transmissíveis.

Hoje, mais de 2 bilhões de pessoas no mundo estão em risco para desenvolvimento de


deficiências de micronutrientes, e mais de 1 bilhão de pessoas estão doentes ou deficientes
desses nutrientes, sendo portadoras de anemias, deficiência de vitamina A ou mesmo de
seqüelas como a deficiência no aprendizado decorrente de carências nutricionais no início da
vida.

As doenças crônicas não-transmissíveis atingem 30% da população adulta brasileira, sendo


mais de 10 milhões de pessoas portadoras de excesso de peso. A alimentação saudável e
estilo de vida adequado, iniciando nos primeiros anos de vida, são medidas comprovadamente
eficazes na redução da prevalência desse tipo de doença.

A fortificação de alimentos, em diferentes estudos, é apontada como uma das medidas mais
eficazes no combate à carência de micronutrientes. Nesse contexto, os cereais infantis
exercem importante papel, especialmente na fase de alimentação de transição, por serem ricos
em vitaminas do complexo B (tiamina, B6, B12, niacina, riboflavina e ácido fólico), fósforo e
possibilitarem a fortificação com outros micronutrientes como ferro e vitamina C.

Especial atenção deve ser dada ao uso de cereais integrais impróprios para lactentes e
crianças devido ao alto conteúdo de fitatos que podem comprometer a biodisponibilidade dos
minerais e micronutrientes.

Assim, a partir dos 6 meses de vida, recomenda-se a introdução inicial de cereais à base de
arroz, que são livres de glúten, com menor conteúdo de sódio e com menor poder alergênico.
Em seqüência, introduzem-se os demais tipos de cereais, incluindo as preparações compostas.
Os cereais podem dar variedade e auxiliar na composição de uma dieta equilibrada, evitando
monotonia.

Cereais Infantis – Aspectos Gerais

A maior parte dos cereais (arroz, milho, aveia, centeio, cevada e trigo) pertence à família das
gramíneas. Eles são ricos em carboidratos, em especial amido (70 a 75%), e pobres em
lipídeos (exceto aveia e milho); contêm quantidade variável de proteínas, minerais, certas
vitaminas do complexo B (tiamina, B6, niacina e riboflavina), fósforo e fibras alimentares. As
proteínas dos cereais são incompletas em termos de aminoácidos essenciais e, quando em
associação com proteínas de origem animal, resultam em combinação de melhor valor
nutricional. Exemplo: cereais consumidos com leite.

A acelerada velocidade de crescimento pondero-estatural no primeiro ano de vida e o aumento


da energia gasta com a atividade física no segundo semestre em comparação com o primeiro
reforçam a importância de um aporte adequado de carboidratos. A utilização de cereais, em
quantidade apropriada, auxilia na adequação do fornecimento de carboidratos essenciais como
fonte de energia e não se associa ao desenvolvimento futuro de obesidade. As farinhas de
cereais disponíveis no Brasil para alimentação de lactentes podem ser apresentadas com ou
sem acréscimo de leite. Algumas contêm um único tipo de cereal (farinhas simples), enquanto
outras são compostas por 2, 3 ou 4 tipos desse alimento (farinhas mistas ou complexas). As
preparações são fortificadas com vitaminas e minerais.

Os carboidratos nos cereais infantis são submetidos a processo de dextrinização e hidrólise


enzimática. Tais processos facilitam a digestão do amido e conferem um sabor adocicado ao
produto, evitando a necessidade de acréscimo de sacarose, que apresenta elevado poder
cariogênico.

Consideração importante diz respeito ao conteúdo total de sódio das preparações com cereais
que requerem leite ou que já venham acrescidas de leite. A oferta excessiva de sódio entre 6 e
12 meses de vida contribui sobremaneira para elevação da carga renal potencial de soluto e
favorece o desenvolvimento de hipertensão na vida adulta. Assim, é importante verificar o
conteúdo total de sódio da dieta oferecida ao lactente.

A absorção do ferro e zinco da dieta pode ser gravemente comprometida pelo alto conteúdo de
fitatos, fibras e polifenóis encontrados em cereais não refinados (integrais). Sabe-se que um
mol de ácido fítico pode quelar 3 a 6 moles de cálcio, formando complexos insolúveis no
intestino. Essa mesma capacidade faz com que o ácido fítico forme também uma variedade de
sais insolúveis com cátions di e trivalentes em pH neutro (Zn, Cu, Mn e Fe), impedindo que
esses minerais sejam absorvidos no intestino.

Nos cereais próprios para uso infantil não há fitatos. Há duas formas de melhorar a
biodisponibilidade do ferro nos cereais infantis: uma diz respeito à forma de ferro inorgânico
acrescido e a outra à presença de fatores facilitadores da absorção do ferro, como a adição de
ácido ascórbico.

As formas de ferro acrescidas aos cereais levam em conta não só a biodisponibilidade como
eventuais problemas organolépticos. Assim, o sulfato ferroso, freqüentemente utilizado nas
fórmulas infantis, apresenta problemas que incluem a oxidação da gordura e rancificação, não
sendo utilizado nos cereais infantis.

O fumarato ferroso apresenta boa biodisponibilidade. Estudos mostram que a ingestão de uma
porção de cereal contendo fumarato ferroso provém em média 102 µg de Fe biodisponível,
equivalente a 14% da necessidade diária de Fe para crianças entre 6 e 12 meses. Assim, a
ausência de fitatos, a forma de ferro (fumarato ferroso) adicionado e o acréscimo de ácido
ascórbico favorecem sobremaneira o aproveitamento do ferro, tornando os cereais infantis
alimentos importantes na composição da dieta, especialmente para prevenção da anemia
carencial ferropriva.

Idade de introdução dos Cereais Infantis na alimentação complementar

A alimentação complementar deve ser iniciada a partir do sexto mês. Uma preocupação na
introdução precoce de alimentos, especialmente cereais, diz respeito ao desenvolvimento
futuro de doença celíaca (DC), diabetes mellitus tipo 1, entre outras doenças. Alelos
semelhantes aos encontrados em pacientes com doença celíaca também conferem aumento
para o desenvolvimento de diabetes tipo 1 e, portanto, parentes em primeiro grau desses
indivíduos também apresentam risco para o desenvolvimento de DC.

Não há evidências suficientes que sustentem a idade de introdução do glúten como fator de
risco independente para o desenvolvimento de DC. Alguns estudos reforçam a importância da
introdução gradual do glúten, enquanto o aleitamento materno ainda se processa, como fator
importante na prevenção da DC; embora o mecanismo do efeito protetor do leite materno ainda
não esteja totalmente elucidado, é conhecido seu papel relevante como imunomodulador.

Outro aspecto importante a ressaltar diz respeito ao potencial alergênico dos cereais. Estudos
salientam a importância de avaliar a alergia a esses alimentos, especialmente em crianças com
alergia à proteína do leite de vaca com má evolução.
Assim, analisando os estudos existentes, embora com limitações metodológicas e fatores de
confundimento, podemos inferir que o aleitamento materno exclusivo deva ocorrer até os 6
meses devido aos inúmeros benefícios além dos enfocados neste tópico, e que a introdução
dos cereais não deveria acontecer antes dos 4 meses de vida.

Considerações Finais

A alimentação complementar é um período de grande vulnerabilidade para a criança,


determinando, se não implementada de maneira adequada, riscos que se prolongam além da
infância e atingem inclusive o indivíduo na idade adulta. Ressalte-se o importante papel da
alimentação nos primeiros anos de vida na prevenção de distúrbios nutricionais como anemia
carencial ferropriva e outras deficiências de micronutrientes.

A fortificação de alimentos é prática empregada em vários países com excelentes resultados


no combate às carências nutricionais, aliada à orientação nutricional adequada, incluindo o
estímulo ao aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida e o consumo de alimentos
adequados em macro e micronutrientes pela população infantil. Nesse contexto, os cereais
infantis fortificados exercem papel importante na fase de transição da alimentação infantil.

Bibliografia recomendada

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