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CONSTRUÇÃO DA INTERDISCIPLINARIDADE NO TERRITÓRIO DA

PNAS: EXERCÍCIOS PARA UMA PSICOLOGIA DA CIDADANIA

Fabiana Meijon FADUL1


Maria Lúcia Miranda AFONSO2

Introdução

Neste artigo, fazemos uma reflexão sobre as possibilidades e tensões da


aplicação de saberes e práticas da psicologia no campo da assistência social,
considerando a interdisciplinaridade do trabalho social no Sistema Único da
Assistência Social (SUAS) e indagamos sobre a constituição de uma psicologia da
cidadania.
Procuramos dar continuidade a argumentos que foram abordados em Afonso et
al (2012), onde discutimos como a incorporação da psicologia no SUAS reacendia o
receio da psicologização da questão social e como seria importante, para superar este
receio, trabalhar na associação entre cidadania e subjetividade, tanto no plano
individual quanto no coletivo. Naquele momento, apontamos algumas contribuições
da psicologia e da psicologia social para o SUAS, enfatizando que “a sustentabilidade
dos saberes e práticas do campo psi no SUAS passa necessariamente pela
interdisciplinaridade e pela intersetorialidade, que juntas compõem um setting para a
ação dos psicólogos no SUAS” (AFONSO et al, 2012).
No presente artigo, buscamos avançar na questão da interdisciplinaridade e da
intersetorialidade como condições básicas para a incorporação de saberes e práticas da
Psicologia no SUAS. O texto é dividido em duas partes. Na primeira, fazemos uma
breve contextualização das concepções de territorialidade, intersetorialidade e
interdisciplinaridade na Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Na segunda

1
Psicóloga, Especialista em Violência Doméstica, Mestranda em Gestão Social, Educação e
Desenvolvimento Local, Centro Universitário UNA. Analista de políticas públicas e Coordenadora de
CRAS, Prefeitura de Belo Horizonte. Professora da Especialização em Intervenção Psicossocial nas
Políticas Públicas, Centro Universitário UNA, Belo Horizonte, Minas Gerais.

2
Psicóloga social e clínica, Mestre e Doutora em Educação, Pós-Doutorado em Psicologia
Social. Professora aposentada da UFMG. Pesquisadora e docente no Programa de Pós-Graduação em
Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, Centro Universitário UNA, Belo Horizonte, MG.
parte, buscamos articular algumas ideias sobre as tensões e o diálogo entre o campo
discursivo da PNAS e os saberes e práticas das diferentes disciplinas que se reúnem no
campo psi3, isto é, no campo discursivo das psicologias, aqui consideradas em sua
pluralidade.
Trabalhamos com a definição de discurso da Análise de Critica Discurso,
desenvolvida por Norman Fairclough (2001), que considera que o discurso é uma
prática de significação social associada às lutas pela hegemonia social. Nesse sentido,
procuramos formular questões que contribuam para a articulação do campo psi com os
objetivos de uma política baseada em direitos. A PNAS propõe o enfrentamento de
vulnerabilidades, o acesso aos direitos socioassistenciais e a promoção da cidadania.
Acreditamos que, no campo psi, isto exigiria tanto invenção de novos saberes e
práticas quanto reinvenção, adequação/transformação de saberes e práticas existentes.

Nessa direção, colocamos a ideia de pontes que poderiam ser construídas


ligando saberes e práticas das psicologias com os objetivos da política pública. Nesse
exercício, sugerimos pensar na criação de uma psicologia da cidadania – saber
transversal e operativo, que pode ser constituído em disciplinas, estágios, conteúdos
transdisciplinares, ou outras modalidades de formação – que poderia servir como
referência para a ação de profissionais que usam as psicologias no SUAS e, talvez, em
outras políticas públicas de promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos.

1. A PNAS no Sistema Brasileiro de Proteção Social

A Política Nacional de Assistência Social (PNAS), promulgada em 2004, com


base na Constituição Federal de 1988 e na Lei Orgânica da Assistência Social de 1993,
foi proposta como política respaldada no direito à proteção social, na universalização
dos direitos de cidadania e no princípio da responsabilidade do Estado (BRASIL,
2004). Busca-se romper, pelo menos no texto legal, com o paradigma da tutela e da
caridade associado à área de assistência social.

3
Designamos por campo psi, um campo de conhecimentos que inclui a psicologia e outras áreas
(que assumimos não serem derivadas da psicologia) como a psicologia social, a psicologia comunitária
e a psicanálise. A formação na graduação em Psicologia, no Brasil, hoje, autoriza o profissional a atuar
em todas estas áreas.
A PNAS integra, junto com outras políticas públicas, o Sistema de Proteção
Social Brasileiro que, a partir da Constituição Federal de 1988, pode ser compreendido
como:
o conjunto de políticas e programas governamentais destinados à prestação
de bens e serviços e à transferência de renda, com o objetivo de cobertura
dos riscos sociais, garantia dos direitos sociais, equalização de
oportunidades e enfrentamento das condições de destituição e pobreza
(CARDOSO JUNIOR; JACCOUD, 2005, p. 194 in ANDRADE, 2011, p.
20).

Nesse sentido, a PNAS visa garantir seguranças básicas, ligadas aos direitos
socioassistenciais4, e definidas como: (1) Acesso à renda; (2) Acolhida (inserção na
rede de serviços e provisão das necessidades humanas); (3) convívio familiar e
comunitário; (4) desenvolvimento da autonomia individual e familiar; e (5)
sobrevivência a riscos circunstanciais (BRASIL, 2004).
Em 2005, começa a implantação do SUAS, que se divide em Proteção Social
Especial (PSE) e Proteção Social Básica (PSB). A PSE é dirigida a indivíduos,
famílias ou grupos em situação de violação de direitos e com vínculos familiares
ameaçados ou rompidos. A PSB atende indivíduos, famílias e grupos em situação de
vulnerabilidade decorrente de pobreza, exclusão e/ou violência, mas que mantêm os
seus vínculos de pertencimento social. Visa prevenir e enfrentar situações de
vulnerabilidades e riscos sociais por meio do desenvolvimento de potencialidades e
aquisições, do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, e da ampliação do
acesso aos direitos de cidadania (BRASIL, 2009).
O equipamento onde se desenvolve a PSB é o Centro de Referência da
Assistência Social (CRAS), localizado em territórios de alta vulnerabilidade social,
onde se busca trabalhar com as vulnerabilidades e potencialidades das famílias, dos
indivíduos e das redes sociais, fortalecendo as seguranças básicas e os direitos de
cidadania, especialmente aqueles designados como direitos socioassistenciais
(BRASIL, 2004; BRASIL, 2009).

4
Os direitos socioassistenciais são: 1) Todos os direitos de proteção social de assistência social
consagrados em Lei para todos 2) Direito de equidade rural-urbana na proteção social não contributiva
3) Direito de equidade social e de manifestação pública 4) Direito à igualdade do cidadão e cidadã de
acesso à rede socioassistencial 5) Direito do usuário à acessibilidade, qualidade e continuidade 6)
Direito em ter garantida a convivência familiar, comunitária e social 7) Direito à Proteção Social por
meio da intersetorialidade das políticas públicas 8) Direito à renda 9) Direito ao co-financiamento da
proteção social não contributiva 10) Direito ao controle social e à defesa dos direitos socioassistenciais.
Dentre as diretrizes fundamentais da PNAS encontramos a territorialização, a
intersetorialidade e a interdisciplinaridade (BRASIL, 2004). Neste artigo, enfocamos
estas diretrizes com o intuito de discutir a interdisciplinaridade e os desafios colocados
para a utilização das psicologias no SUAS.

1.1. O território como base para a ação intersetorial e interdisciplinar

Na PNAS, a territorialização refere-se à centralidade do território como fator


determinante para a compreensão das situações de vulnerabilidade e de risco social,
bem como para seu enfrentamento, ofertando os serviços socioassistenciais nos locais
em que se organiza a vida dos usuários:
O princípio da territorialização significa o reconhecimento da
presença de múltiplos fatores sociais e econômicos, que levam o
indivíduo e a família a uma situação de vulnerabilidade, risco
pessoal e social (BRASIL, 2005, p.90).

O território é constituído, ao mesmo tempo, por suas dimensões espaciais e


psicossociais. Não é um simples espaço geográfico. É um espaço habitado, usado e
vivido, onde os sujeitos sociais exercem o seu modo de existir, sua linguagem,
representações, relações e práticas sociais. O território tem vida interna e também
existe na relação com outros espaços sociais, culturais e políticos, dentro de contextos
e processos históricos, estando sujeito a transformações (ROLNIK, 1989 in
JOVCHELOVICHT; PRIEGO-HERNÁNDEZ, 2013, p. 32).
Entretanto, as proposições teóricas sobre território e territorialização não são
suficientes para delas se deduzir, automaticamente, procedimentos para o trabalho
social. Como argumenta Pereira (2010), a dimensão espacial sempre fez parte da
história da assistência social no Brasil. A partir dos anos 1970, com a crise dos
Estados-nação e a universalização do capital financeiro, confrontam-se dois projetos
societários:
o primeiro, pautado na perspectiva de universalização de direitos, de
constituição de esferas públicas fortalecidas por participação societária para
controle social sobre as ações estatais e, o segundo, precursor do Estado
mínimo, da participação consultiva e adesista, das políticas públicas
focalizadas sobre os mais pobres, da cidadania de resultados (PEREIRA,
2010, p. 195).

O trabalho com a territorialização pode servir como estratégia de amenização


dos conflitos sociais em nível local ou, diferentemente, ser consonante com um projeto
de universalização dos direitos. Assim, o princípio de territorialização na PNAS
precisa ser acompanhado do desenvolvimento e da consolidação de processos
participativos, fortalecendo o controle social sobre a política pública. Entretanto,
visões contraditórias - entre o assistencialismo e a cidadania - ainda se conflitam e se
entrecruzam no campo da assistência social no Brasil (PEREIRA, 2010).
No campo discursivo da assistência social, após a CF88, estas visões
contraditórias resultariam em diferentes tipos de proteção social e de cidadania. O
paradigma assistencialista estaria ligado a uma visão de proteção social oferecida por
um Estado mínimo (COTTA, 2010), a uma cidadania altamente regulada pelo Estado,
com baixo incentivo à participação social. O paradigma dos direitos estaria, em
princípio, ligado a uma cidadania emancipatória, com ênfase na participação e no
controle social sobre as políticas públicas (DEMO, 1995). A pobreza e as diversas
vulnerabilidades sociais não são resultado da inércia dos cidadãos, nem são meramente
acidentais. Resultam de relações de poder assimétricas e estão ligadas à emergência de
conflitos sociais. Daí a necessidade da participação ativa dos cidadãos, sendo que a
proteção social não pode se limitar a fornecer bens e acessos básicos.
Torna-se fundamental a promoção da cidadania, da equidade, da autonomia e
da participação dos sujeitos na busca por direitos. Nesse processo, são desenvolvidas
competências pessoais e sociais que contribuem para a compreensão e para o
enfrentamento da exclusão e da pobreza. O trabalho social neste contexto deve enfocar
as especificidades locais, mas sem perder de vista as ligações do território com o seu
contexto social, cultural e político mais amplo (a cidade, o país).
O trabalho com a cidadania emancipatória, dentro do paradigma dos direitos,
visa sujeitos que são ao mesmo tempo cidadãos. Porém, o campo da assistência é
também marcado pela dialética contraditória dos fenômenos sociais. Estudando os
discursos sobre a assistência social na proteção social básica, Fadul (2012) observou
que “esses tipos de cidadania não possuem necessariamente fronteiras rígidas” e que,
pelo contrario, pode-se perceber “suas flutuações ao analisar a prática social e
principalmente os atores que a representam, configurando o campo histórico de
disputas ideológicas” (FADUL, 2012, p. 25). As práticas sociais no campo da PNAS
apresentam conflitos entre posições hegemônicas e não hegemônicas relativas ao seu
objeto de intervenção. Mas, afinal qual é o objeto de intervenção da assistência social?
Como discutimos, a PNAS se propõe como política de defesa do direito à
proteção social, por meio de seguranças básicas e direitos socioassistenciais. Nesse
sentido alinha-se a uma concepção de desenvolvimento humano e social, buscando
romper com o assistencialismo (BRASIL, 2004) e endereçar-se à questão social.
A questão social diz respeito às expressões de desigualdades sociais cujo
enfrentamento requer a intermediação do Estado. Surge do confronto de poder e da
desigualdade social que pressiona os vínculos sociais, ameaçando com a sua ruptura.
A intermediação do Estado precisa se dar por meio da implementação e condução de
políticas econômicas e sociais visando à garantia das necessidades humanas básicas
(IAMAMOTO, 2001). O Estado Mínimo é o termo aplicado quando essas políticas
sociais se desenvolvem de maneira compensatória, assistencialista, endereçando
apenas as necessidades básicas para a sobrevivência e sem qualquer preocupação com
a participação e a defesa da cidadania (IAMAMOTO, 2001).
Entretanto, na visão de proteção social inscrita na CF88,
a questão social não se define como a questão da pobreza e sim como a
questão dos direitos. A cidadania, referenciada aos direitos e deveres, está
ancorada na noção de igualdade. Por isto mesmo, existe uma profunda
contradição em uma ordem econômica que reproduz a miséria e uma ordem
política que afirma a igualdade entre cidadãos (JACCOUD, 2009, p. 66).

O objeto da assistência social não se materializa sem a participação do sujeito,


pois estamos falando de direitos que precisam ser conquistados e não simplesmente
consumidos. Porém, para a sua efetivação, é necessária a articulação com as demais
políticas que podem assegurar direitos relacionados aos direitos socioassistenciais.
Assim, a PNAS deve ser desenvolvida segundo os princípios da intersetorialidade e da
interdisciplinaridade, que orientam as ações no território, como estratégias de
promoção da cidadania emancipatória.

1.2. A intersetorialidade como estratégia de gestão social e


operacionalização dos saberes

A intersetorialidade se coloca como estratégia necessária ao sistema de


proteção social. É por meio da articulação entre políticas públicas que a proteção
social pode se efetivar, contribuindo para o desenvolvimento social. Tomamos o
conceito de desenvolvimento social de Inosoja (2001), que implica na “repartição mais
equânime das riquezas existentes na sociedade em determinado momento histórico,
com a redução das desigualdades (que todas essas políticas assistencialistas jamais
pretenderam resolver) e, portanto, com a reversão da exclusão social” (INOSOJA,
2001, p. 107).
Na PNAS, a intersetorialidade é fundamental para a garantia dos direitos
socioassistenciais uma vez que a operacionalização do SUAS precisa da articulação
com outras políticas públicas (MONNERAT; SOUZA, 2011). A intersetorialidade é
definida como “a articulação de saberes e experiências com vistas ao planejamento,
para a realização e a avaliação de políticas, programas e projetos, com o objetivo de
alcançar resultados sinérgicos em situações complexas” (INOSOJA, 2001, p. 105).
O princípio da intersetorialidade não nega a relevância das políticas setoriais,
que devem cada qual, buscar concretizar os seus objetivos e definir suas estratégias.
Entretanto, a questão é que as políticas setoriais, funcionando isoladamente, são
frágeis para a efetivação do Sistema de Proteção Social. Nesse caso, a
intersetorialidade é compreendida como uma estratégia que permitiria o planejamento
e a execução de ações visando articular políticas de forma a prover aquilo que,
sozinha, nenhuma delas poderia oferecer. Ou seja, a intersetorialidade não é uma
panaceia a ser receitada para toda e qualquer ação, e sim uma articulação complexa em
torno de objetivos locais, orientada por um planejamento conjunto, pactuada em torno
de objetivos amplos.
Além disto, a intersetorialidade não se limita à justaposição de um conjunto de
projetos que são formulados e realizados setorialmente, mas implica em mudança de
paradigma sobre como abordar a realidade, na elaboração de projetos transformadores,
no planejamento e avaliação participativa, com base regional e na atuação em rede de
compromisso social (INOSOJA, 2001, p. 106). Isto envolve uma perspectiva política
de desenvolvimento social e de superação da exclusão (INOSOJA, 2001, p.109). Ou
seja, para ser efetiva, a dimensão assistencial precisa se apoiar no acesso às outras
políticas sociais (SCHUTZ; MIOTO, 2010, p. 70). Entretanto, a intersetorialidade não
é de fácil realização e coloca grandes desafios para a gestão social.
Garajau e Afonso (2013) sugerem que a intersetorialidade se realiza em três
dimensões que podem ser articuladas entre si. Em um nível básico, é necessário o
mapeamento e conhecimento da rede no espaço territorial e dos atores sociais
envolvidos no enfrentamento das questões no processo de intervenção social. Nesse
caso, é possível articular as políticas em nível local para fazer encaminhamentos.
Podem ser conciliadas ações, embora não se trate, ainda, de integrá-las. Na segunda
dimensão, que necessita que a primeira esteja organizada, as relações são estreitadas,
visando articulação e suporte para o desenvolvimento de ações comuns, integradas,
visando atingir os mesmos objetivos. Nesse caso, é necessário, como afirmou Bronzo
(2007), a interação entre dois eixos: o dos conhecimentos necessários à ação técnica e
o da capacidade relacional entre atores e políticas. Garajau e Afonso (2013) falam,
ainda, de uma terceira dimensão, onde há o desenvolvimento de ações conjuntas, de
acordo com um planejamento integrado incluindo, dentre outras possibilidades, o
diagnóstico conjunto do território e processos de avaliação que levem em conta a
intersetorialidade. Ou seja, a intersetorialidade é uma estratégia para a gestão social,
que se coloca como cooperativa e inclusiva, sendo que as políticas sociais seriam,
como sugeriu Santos (2011), ao mesmo tempo, autônomas e interdependentes.
Na mudança do paradigma assistencialista para o paradigma dos direitos, surge
o desafio da produção de conhecimentos e metodologias de ação. É tão importante
utilizar o conhecimento já produzido quanto produzir novos conhecimentos escutando
as demandas que chegam dos usuários e da própria rede de serviços. Há que se
considerar que o campo de conhecimento impacta a prática tanto quanto a prática
impacta o campo de conhecimento.
Da mesma forma que a intersetorialidade exige mais do que a justaposição de
ações, a interdisciplinaridade não se limita a conciliar pesquisas e métodos, mas busca
construir novas formas de interpretar e de operar no mundo (SANTOS, 2007). Assim,
é importante indagar que saberes seriam necessários para desenvolver atividades com
indivíduos, famílias e grupos sociais de forma a realizar os objetivos da política e a
concretizar a entrega de seu objeto? Da mesma maneira que encontramos paradigmas
em conflito no que diz respeito à proteção social e à territorialização, podemos supor
que os saberes que os sustentam também mostram tensões e disputas.
Ou seja, os saberes e práticas atuantes no campo da assistência social precisam
ser mobilizados para a concretização do paradigma dos direitos e, isto só se torna
possível através de uma abordagem interdisciplinar, aliada à ação intersetorial no
território. E aqui é preciso pensar no território habitado, usado, vivido. Ou seja,
saberes e práticas se endereçam à questão social, como uma questão de direitos e de
cidadania. Devemos indagar, no campo psi, como operar com saberes e práticas de
forma a:

- Enfrentar a questão social, dentro de uma visão de direitos?


- Promover a cidadania, dentro de uma visão de cidadania emancipatória?
- Promover o desenvolvimento social dentro de uma visão de equidade e autonomia?

2. Pontes: pensando em uma psicologia da cidadania

A afinidade do campo da psicologia com o conceito de dignidade humana foi


enfatizada por autores diversos, como sistematizou Rosato (2012). Nesse sentido,
entendemos que, se a psicologia pode, em alguns momentos históricos e em diferentes
dimensões da vida social, submeter-se aos interesses de reprodução das relações
sociais de poder, em outros momentos e em outras dimensões, ela vem engrossar os
movimentos progressistas que buscam a defesa da dignidade humana, a compreensão
dos processos de auto-conhecimento e de autonomia dos sujeitos, individual e
coletivamente.
Porém, a articulação entre a dignidade humana e os direitos de cidadania nem
sempre tem sido feita dentro do campo das psicologias, onde vicejam outras
preocupações que embasam ações em áreas diversas, tais como na saúde, na educação
e outras. Citam-se, dentre outras, as produções na área da psicopatologia, do
desenvolvimento humano, dos processos grupais, do desejo do sujeito, para falar de
algumas categorias que atravessam o campo de conhecimento nas suas diferentes
manifestações teórico-metodológicas.
Ora, o desafio do trabalho nas políticas públicas, no contexto brasileiro após a
CF88, faz surgir uma questão inadiável: como articular os saberes e práticas das
psicologias à promoção, proteção e garantia dos direitos de cidadania e dos direitos
humanos? Imaginemos, então, um conjunto de saberes e práticas que atravessasse o
campo psi buscando construir articulações – pontes – para a atuação profissional. Esse
conjunto de saberes e fazeres não viria substituir o conhecimento já existente, mas
facilitar a sua apropriação e apoiar novas produções, de maneira transversal e
operativa. Uma psicologia da cidadania, que poderia oferecer subsídios para o trabalho
nas políticas públicas baseadas em direitos de cidadania.
Uma construção interdisciplinar e intersetorial é necessária para a atuação das
psicologias no SUAS. Manter os conhecimentos disciplinares, manter os objetos
setoriais, mas construir a interdisciplinaridade e a intersetorialidade como estratégias
complexas que podem enfrentar questões que não poderiam ser enfrentadas pelas
políticas setoriais e endereçadas pelos conhecimentos disciplinares – esses seriam os
objetivos das pontes propostas no presente debate. Existe aqui a ideia de transposição,
de interligação, buscando alicerces sólidos para fazer face aos desafios do campo de
atuação.
As psicologias podem trazer para o SUAS conhecimentos existentes, de
maneira dialogada e ainda ser convidada a produzir novos saberes. Considerando que a
interdisciplinaridade se faz sobre campos (princípios, objeto, métodos) e problemas
desses campos, para os quais é preciso apresentar possíveis soluções, pode-se pensar
em núcleos geradores (no caso, vinculados ao enfrentamento da questão social) e
também em questões específicas (conforme pertinência ao problema enfrentado). Por
exemplo, na saúde um núcleo gerador seria a saúde mental e uma questão específica
seria a inserção da pessoa com transtorno mental na comunidade. Na Assistência
Social, podemos sugerir que um núcleo gerador seria a promoção da cidadania e uma
questão eletiva seria o desenvolvimento de capacidades das pessoas com deficiência
para o seu encaminhamento para programas de emprego e renda bem como o estímulo
à sua participação em atividades comunitárias, fóruns e conselhos de direitos.
Entendemos que muitos saberes estão, hoje, presentes nas diversas políticas
públicas – na saúde, na educação, na segurança alimentar, na assistência social, e
assim por diante. O que difere, em cada uma, é a seleção e a mobilização desses
saberes para a sua aplicação e operacionalização em um campo da prática. Façamos,
então, um exercício de pensar as questões interdisciplinares no campo da assistência
social vinculadas ao enfrentamento da questão social.
Por onde começar? Como de hábito, comecemos pelo nosso mal-estar! Porém,
procurando também os elementos que poderiam servir para um novo olhar. Em
seguida, levantamos algumas questões que, a nosso ver, surgem no encontro das
psicologias com a assistência social, procurando compreender as suas tensões e
produções. Trata-se tão somente de um esforço para tornar mais concreta a discussão
sobre as psicologias no SUAS. Não temos a pretensão de dar as respostas, nem a nossa
lista de questões é exaustiva. Simplesmente, queremos convidar para o diálogo. Um
cuidado necessário é o de lembrar que as diferentes psicologias não foram e não são
iguais no trato destas questões. Porém, aqui, desejamos fomentar este debate no campo
psi, como um todo e uma razão prática para isto é que psicólogos com as mais
diferentes tendências teórico-metodológicas trabalham no SUAS. Assim, vamos às
questões:
A questão social – No campo discursivo da assistência social, a desigualdade social
exige o desenvolvimento de políticas públicas que, dentro de um paradigma dos
direitos, venham a promover e a garantir a cidadania. Ou seja, a política pública deve
se endereçar ao enfrentamento da questão social. Ora, podemos pensar que a questão
social tem dimensões políticas, sociológicas, culturais, psicossociais e psicológicas.
Por exemplo, a desigualdade de gênero tem uma dimensão psicossocial, quando está
ligada a representações sociais sobre homens e mulheres, às formas como a visão
sexista na cultura acoberta a violência doméstica e assim por diante. No campo
discursivo das psicologias, nem sempre houve a preocupação com a questão social,
muitas vezes abordando o indivíduo fora das suas condições de existência ou mesmo
se limitando a pensar no contexto social como um enquadre que pressiona o sujeito
nesta ou naquela direção.
Uma psicologia da cidadania se preocuparia com a compreensão dos efeitos da
questão social sobre os sujeitos, as famílias, os grupos e coletivos sociais. Indagaria
como a questão social influencia a maneira dos sujeitos organizarem os seus modos de
existência, suas crenças e relações, seus vínculos afetivos, de trabalho, de lazer, e
assim por diante. Indagaria também como os sujeitos poderiam elaborar e produzir
formas de resistência aos mecanismos de exclusão social, para produzir a sua vida em
sociedade, tanto nos ambientes íntimos, como na família, quanto nos públicos, como
na cidade. Trabalharia formas de propiciar o diálogo em torno da cidadania, de
mobilizar e estimular a participação. Buscaria compreender como a subjetividade
humana é efeito das condições de existência e pode, por sua vez, transformar as
condições de existência, por meio da ação individual e coletiva.

Vigilância Socioassistencial – No campo discursivo da Assistência Social, a


vigilância socioassistencial é a estratégia utilizada para prover informações e dados
sobre o território, levantando as vulnerabilidades existentes e reiterando a necessidade
de planejamento de ações para o enfrentamento dessas vulnerabilidades. Os dados
podem ser provenientes de busca ativa, realizada por meio de visitas domiciliares,
contatos com a rede e outras formas. A análise da demanda, na política pública, está
associada ao diagnóstico feito sobre o território, informado tanto pelos processos de
vigilância socioassistencial quanto pelas informações já sistematizadas em agências de
estudos e bancos de dados. Assim, procura-se conhecer o território e os usuários,
desenvolvendo iniciativas contextualizadas. No campo psi, a análise da demanda está
usualmente ligada à escuta dos sujeitos e à manifestação de seu desejo de mudança.
Profissionais do campo psi podem sentir como um mal estar para abordar um sujeito
que não manifesta o desejo de mudar. Pode ser que a postura profissional deslize para
o conformismo. Talvez haja dificuldades para fazer uma escuta qualificada do
sofrimento do sujeito quando este se mostra desinvestido. Entretanto, as observações
feitas sobre a questão social caberiam neste problema. Seria interessante pensar como
a demanda por mudança pode se manifestar no sofrimento ético-político dos sujeitos
(SAWAIA, 1999), na vivência da ruptura com os vínculos de pertencimento, nas
queixas de exclusão e assim por diante. Seria interessante trabalhar com essa demanda
que vem de forma cifrada, silenciada, desvirtuada pelas ideologias dominantes e
compactadas pelas urgências da sobrevivência. Ou seja, como contribuir para a
vigilância socioassistencial em uma perspectiva de promoção da cidadania.
Uma psicologia da cidadania se dedicaria a compreender a gênese e o
desdobramento das demandas por cidadania e dos esforços dos sujeitos para se
moverem da posição de excluídos e se perceberem como cidadãos. Poderia
compreender, dentre outras coisas, o sofrimento associado à exclusão social, a
importância dos vínculos de pertencimento a comunidades (políticas, sociais e
culturais) e a postura dos sujeitos diante de seus vínculos sociais.

Fortalecimento de vínculos familiares e comunitários – O campo discursivo da


Assistência Social propõe o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários
como segurança básica, direito que deve ser assegurado ao cidadão. Há o
reconhecimento de que as vulnerabilidades, os processos de exclusão e de violência
tensionam e ameaçam esses vínculos, que se configuram no contexto social, cultural e
histórico. No campo psi, talvez a abordagem dos vínculos tenha sido mais ligada à
dinâmica psíquica do que aos determinantes socioculturais, especialmente quando
consideramos os atendimentos individuais em contextos clínicos. Há que se
reconhecer a importância do respeito ao sujeito e o princípio de não julgar a demanda
que o sujeito traz. Ou seja, não cabe ao psicólogo direcionar as escolhas desse sujeito
quer ele deseje romper ou manter os seus vínculos. Embora seja necessário o trabalho
de elaboração sobre esse desejo. Ora, mesmo mantendo este princípio, é preciso
reconhecer que, quando os direitos entram em cena, o trabalho com vínculos traz
novos desafios.
Talvez, na maioria das vezes, o vínculo tenha sido tratado, no campo psi,
apenas em sua dimensão afetiva. É preciso reconhecer que os vínculos têm também
uma dimensão social, cultural e política (PBH, 2007). Não se trata de manter vínculos
a qualquer custo. Mas a proteção aos vínculos familiares e comunitários coloca
questões diferenciadas. Por exemplo, como analisar vínculos de uma família em que
não há presença afetiva de um dos genitores ainda que, do ponto de vista legal, o seu
nome conste na certidão de nascimento da criança? A cidadania é o direito a ter
direitos que, por sua vez, depende do pertencimento do sujeito a comunidades de
direitos. Assim, trabalhar com os vínculos exige que se repense a sua gênese,
manutenção ou ruptura. É um desafio para os profissionais em uma política de
direitos. Seria um desafio para uma psicologia da cidadania.

Trabalho com riscos sociais e vulnerabilidades – No campo discursivo da


Assistência Social, coloca-se o objetivo de enfrentar as vulnerabilidades e riscos
sociais que provocam situações de desproteção social e de violação de direitos de
cidadania (mencionando especialmente os direitos socioassistenciais). É interessante
indagar como a noção de vulnerabilidade e risco social tem sido apropriada pelos
profissionais do campo psi, com o consequente questionamento sobre o seu esforço de
construção interdisciplinar. A ideia de risco está presente no campo psi, porém talvez
ainda muito restrita aos riscos à vida (por exemplo, em situações de depressão grave).
Talvez a noção de risco ainda seja naturalizada e submetida às vicissitudes da vida – o
risco de ruptura dos vínculos é creditado à angústia ou ao desejo do sujeito, ao seu
processo de escolha nas relações interpessoais. Talvez tenha sido ainda pouco
trabalhado o quanto a vida em sociedade produz o desejo de contrair ou romper
vínculos, o quanto concorre para que seja mais difícil manter ou desfazer relações.
Uma psicologia da cidadania se preocuparia com os pertencimentos dos
sujeitos, e como tais pertencimentos poderiam ter efeitos sobre a sua identidade e suas
relações, como o próprio desejo se mescla aos discursos sociais e às relações de poder
existentes. E, ainda, se interessaria em analisar como seria o trabalho de resgate desse
sujeito diante das violências múltiplas que o desumanizam e o exilam de sua dignidade
humana. Poderia articular conhecimentos variados da clínica, da psicologia social, da
psicologia comunitária, da psicologia do desenvolvimento... Enfim, falamos de um
esforço transversal ao campo psi.
A visão interdisciplinar sobre os ciclos de vida dos sujeitos e das famílias - Ainda
que, no campo discursivo da Assistência Social, a matricialidade sociofamiliar seja um
elemento central para o trabalho social, é preciso compreender que as fragilidades de
cada família em relação ao exercício da sua função protetiva está diretamente
correlacionada às suas condições de existência bem como ao ciclo de vida de seus
membros. O conhecimento das características de cada ciclo de vida associado à
questão social pode dar ao profissional um indicativo de possíveis riscos aos quais as
famílias estão expostas. Além disso, a ancoragem jurídica da garantia de direitos
possui correspondência nos ciclos de vida. Os vínculos familiares não são resultado
apenas dos investimentos afetivos, mas estão marcados por esse conjunto de riscos
sociais e vulnerabilidades. A forma de vivenciar a afetividade, o respeito e a
solidariedade na família pode ser transformada no enfrentamento dos riscos e
vulnerabilidades.
Ora, as idades da vida não são objeto unicamente das psicologias. São
abordadas por diversos campos disciplinares que precisariam dialogar para
desenvolver ações junto às famílias e no território. Por exemplo, conhecer as
representações sociais (psicologia social, sociologia, antropologia) sobre a faixa etária,
os processos de desenvolvimento psicossocial (psicologia social, psicologia) que são
influenciados pelas condições de vida (sociologia) e pela cultura (antropologia).
Finalmente, é preciso “fazer alguma coisa”.
Uma psicologia da cidadania levaria em consideração que é no momento da
prática que as tensões mais aparecem. As ações precisam ser ligadas ao trabalho com a
questão social, o fortalecimento dos direitos e da cidadania. O objeto da ação
intersetorial/interdisciplinar não é exatamente o mesmo dos setores e campos
disciplinares, embora tenha que, com eles, construir pontes. Uma psicologia da
cidadania indagaria como articular as teorias a um projeto ético-político, a um projeto
de atuação no campo da política social? O que fazer, por exemplo, com o
conhecimento sobre a adolescência, que encontramos em diversas psicologias? De
maneira muito ampla, pensando fora de uma política pública específica, pode-se
desenvolver grupos de adolescentes, criar programas de encaminhamento para o
primeiro emprego, promover a reinserção familiar, desenvolver uma política cultural
para jovens, melhorar o atendimento aos adolescentes na área da saúde... Enfim, uma
variedade de ações. Porém, quando atuando dentro de uma política pública específica,
trata-se de construir pontes entre o que as teorias oferecem, dentro da visão
interdisciplinar, e aquilo que a política social define como o seu produto, a ser
entregue à população como um direito de cidadania. Assim, o que fazer com as teorias
do campo psi sobre os ciclos de vida no bojo da política de assistência social? O que
perguntaria uma psicologia da cidadania diante dos ciclos da vida humana? São
questões – são convites para um diálogo.

Como discutimos até agora, as ações da equipe interdisciplinar no SUAS


precisam ser consistentes com os objetivos da PNAS e buscar sustentabilidade na
articulação intersetorial, dentro de uma visão de proteção social mais ampla, como
comentamos neste artigo. Portanto, é importante construir pontes que liguem os
saberes e práticas das Psicologias ao enfrentamento das vulnerabilidades, à promoção
da participaçao e da cidadania. Reflexões desenvolvidas no trabalho junto às famílias,
indivíduos ou grupos no território devem poder ser articuladas a alguma dimensão de
mudança na vida das pessoas, ou correrão o risco de se tornar uma retórica vazia.
E, por fim, nunca é demais repetir que o trabalho social precisa ser
desenvolvido a partir de condições socioinstitucionais e em contextos que possam dar
sustentabilidade às ações, à reflexão e à transformação social (AFONSO, 2010). Ao se
pensar as contribuições do campo psi para o SUAS, é fundamental pensar nesta
sustentabilidade dentro do contexto de intervenção (AFONSO et al, 2012).

Considerações finais: Uma psicologia da cidadania é possível... E necessária?

Acreditamos que é necessário e desejável pensar em uma psicologia da


cidadania, que englobaria a discussão dos direitos humanos, e convidamos a todos
aqueles envolvidos na reflexão sobre as psicologias no SUAS a se colocarem esta
questão. Não é uma questão nova. Muitos autores abordaram, em diferentes épocas, a
contribuição possível das psicologias para a dignidade humana, para o enfrentamento
da questão social e para os direitos humanos. Neste artigo, não temos a pretensão de
fazer um estudo do estado da arte desta questão e citamos, apenas, como exemplos de
referência, Martin-Baró (1996), Lane (1991) e Garcia (2010). Pensar em uma
psicologia da cidadania é buscar agregar todos esses esforços em um movimento mais
claro de engajamento das psicologias no enfrentamento da questão social, dos direitos
e da transformação social. A diferença, hoje, é que esses esforços estão compreendidos
no contexto das políticas públicas.
Assim, para se pensar em uma psicologia da cidadania, é preciso compreender
as especificidades dos diferentes campos de ação constituídos pelas políticas públicas,
com a elaboração de referenciais teórico-metodológicos, tanto quanto é preciso
assumir o campo de ação por meio de um projeto ético-político (BOCK, 2011;
YAMAMOTO, 2010):

É preciso colocar a Psicologia a serviço da sociedade; é preciso


colocar a Psicologia a serviço da construção de um mundo melhor,
de condições de vida digna, de respeito aos direitos e da
construção de políticas públicas que possam oferecer Psicologia a
quem dela tiver necessidade (BOCK, 2011, p. 7).

É o campo de atuação nas politicas sociais e, na presente discussão, na PNAS,


que convoca os saberes e práticas psi a se manifestarem ante a construção de uma
sociedade mais equânime e justa. Os saberes tradicionais e práticas consolidadas são
colocados à prova e precisam se reinventar, na medida em que o compromisso social
da profissão se vê transformado e ampliado pelas vicissitudes da questão social. É
neste contexto, permeado por contradições e tensionamentos, que as psicologias
precisam contribuir para a efetiva conquista de cidadania, e não de qualquer cidadania,
mas daquela emancipatória, na qual a autonomia do cidadão, a participação social, a
gestão democrática e uma cultura de respeito aos direitos humanos ganham a cena.
É preciso adaptar conhecimentos existentes e construir conhecimentos novos
gerados no campo discursivo das políticas públicas – testar, criar, transformar. Quando
se enfrenta esse desafio, é preciso se abrir para a possibilidade do erro e da
reconstrução e, portanto, do diálogo ao mesmo tempo crítico e construtivo. Não se
pode alegar que a prática do psicólogo deve se restringir “aquilo que aprendeu” em sua
formação, porque a sua formação está em transformação pelo próprio desafio que
demanda, do sistema acadêmico, um posicionamento.
Nesse sentido, é pertinente resgatar a Resolução No. 5 de 15/03/2011, do
Ministério da Educação, que institui as Diretrizes Nacionais Curriculares para os
cursos de graduação em Psicologia, estabelecendo normas para o projeto
complementar para a Formação de Professores em Psicologia (BRASIL, 2011). As
Diretrizes estabelecem, no artigo 3º, que a formação do psicólogo deve ser baseada na
“compreensão crítica dos fenômenos sociais, econômicos, culturais e políticos do País,
fundamentais ao exercício da cidadania e da profissão”. Afirmam ainda que os
psicólogos devem ser preparados para “a atuação em diferentes contextos,
considerando as necessidades sociais e os direitos humanos, tendo em vista a
promoção da qualidade de vida dos indivíduos, grupos, organizações e comunidades”
(BRASIL, 2011, p. 1).
Entretanto, as Diretrizes, formuladas em 2011, não incluem uma preocupação
explícita com a Educação em Direitos Humanos, como poderiam se já estivessem
consonantes com as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos no
Ensino Superior, publicadas em 2012.
Nesse compasso, é importante reconhecer a contribuição do Conselho Federal
de Psicologia por meio da elaboração e produção de diversos documentos que
orientam os psicólogos para atuarem nas políticas públicas. Torna-se válido indagar
como os cursos universitários têm incorporado estas Diretrizes e os documentos
produzidos? Como essa preocupação tem estado presente na graduação, por meio de
disciplinas e estágios, e na pós-graduação lato e stricto sensu? Como o campo das
psicologias tem se posicionado diante dos esforços de promoção, defesa e garantia dos
direitos humanos e da cidadania no Brasil?
O momento histórico convoca para a produção de conhecimentos, a elaboração
de metodologias e a configuração de ações. Uma psicologia da cidadania e dos direitos
humanos seria intrinsecamente ligada à Educação em Direitos Humanos no curso de
Psicologia. Teria como objeto as correlações entre sujeito, individual e coletivo, e
cidadania, as suas mútuas interpelações e construções. Seria interdisciplinar e seria
inspirada pelo compromisso ético-politico com a dignidade humana, a emancipação
dos sujeitos-cidadãos e com a transformação social. Dessa forma o debate não se
esgota e atualiza-se no cotidiano.

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