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Física

Evolução, auto-organização, sistemas e caos

1
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Reitor
Marcelo Fernandes Aquino, SJ
Vice-reitor
Aloysio Bohnen, SJ

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor
Inácio Neutzling, SJ
Diretora adjunta
Hiliana Reis

Gerente administrativo
Jacinto Schneider

Cadernos IHU em formação


Ano 2 – Nº 6 – 2006
ISSN 1807-7862

Editor
Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho editorial
Profa. Esp. Àgueda Bichels – Unisinos
Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta - Unisinos
Prof. MS Dárnis Corbellini – Unisinos
Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos
Prof. MS Laurício Neumann – Unisinos
MS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos
Esp. Susana Rocca – Unisinos
Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos
Conselho técnico-científico
Prof. Dr. Gilberto Dupas – USP - Notório Saber em Economia e Sociologia
Prof. Dr. Gilberto Vasconcellos – UFJF – Doutor em Sociologia
Profa. Dra. Maria Victoria Benevides – USP – Doutora em Ciências Sociais
Prof. Dr. Mário Maestri – UPF – Doutor em História
Prof. Dr. Marcial Murciano – UAB – Doutor em Comunicação
Prof. Dr. Márcio Pochmann – Unicamp – Doutor em Economia
Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUCRS - Doutor em Psicologia Social e Comunicação
Responsável técnico
Laurício Neumann

Revisão
Mardilê Friedrich Fabre

Secretaria
Camila Padilha da Silva

Projeto gráfico e editoração eletrônica


Rafael Tarcísio Forneck

Impressão
Impressos Portão
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Instituto Humanitas Unisinos
Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467
www.unisinos.br/ihu

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Sumário

Apresentação
A Física no século XX: A consciência ferida do cientista
Por Antônio Augusto Passos Videira...................................................................................... 5

Física Quântica: Da sua pré-história à discussão sobre seu conteúdo essencial


Por Paulo Henrique Dionísio................................................................................................. 11

As ‘digitais’ de Einstein encontram-se em todas as áreas da Física moderna, porém te-


mos que ter cuidado com o charlatanismo
Entrevista com Carlos Alberto dos Santos ............................................................................. 30

A ciência contemporânea ainda funciona de acordo com o determinismo cartesiano


Entrevista comm Alfredo Gontigo de Oliveira........................................................................ 36

Inteligência artificial e robótica


Entrevista com Farlei Jose Heinen ........................................................................................ 40

Um debate sobre o lugar do ser humano na imprevisibilidade imanente ao mundo


Mesa-redonda com Karen Gloy, Günther Küppers e Carlos Roberto Velho Cirne Lima........ 42

“A simples relação de causa e efeito se tornou complexa”


Entrevista com Günter Küppers ............................................................................................ 55

Natureza e liberdade – A Física atual em foco


Por Armando Lopes de Oliveira............................................................................................ 57

A imperiosa criação e recriação dos códigos de entendimento do universo e as revolu-


ções causadas pela Teoria da Relatividade
Entrevista com Armando Lopes de Oliveira .......................................................................... 61

Teoria da Relatividade: uma leitura filosófica


Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira ......................................................................... 65

Por que as leis naturais são como são?


Entrevista com Antônio Augusto Passos Videira .................................................................... 69

A lógica quântica e a transdisciplinaridade exigem a mudança de nossos hábitos mentais


Entrevista com Basarab Nicolescu ......................................................................................... 73

Dialética para entender a cultura


Entrevista com Paulo Margutti............................................................................................... 79

3
“É preciso combater a idéia de que há uma solução técnica e simples para qualquer
problema”
Entrevista com Thomas Michael Lewinsohn .......................................................................... 84

A Cosmologia está mudando a forma humana de pensar


Entrevista com Mário Novello ............................................................................................... 87

A dimensão espiritual do cosmos


Entrevista com Paul Schweitzer............................................................................................. 91

Filosofia, bioinformática e tecnoumanismo


Entrevista com Timothy Lenoir ............................................................................................. 93

Há urgência de pensar uma nova ética global


Entrevista com Nelson Gonçalves Gomes.............................................................................. 97

O ensino de ciências está longe da formação de cidadãos conscientes


Entrevista com Susana Lehrer de Souza Barros .................................................................... 100

Copenhagen: montagem paulista sobre a questão nuclear ................................................ 102

Mirada ao passado para fazer uma Terra habitável


Por Attico Chassot................................................................................................................. 103

Copenhagen: um desafio à inteligência e à sensibilidade ................................................... 106

Protagonistas de Copenhagen falam sobre a peça .............................................................. 107

Copérnico e Kepler. Como a Terra saiu do centro do universo


Entrevista com Geraldo Monteiro Sigaud.............................................................................. 109

Da caricatura empirista a uma outra história


Entrevista com Fernando Lang da Silveira ............................................................................ 112

Investigar fenômenos, utilizando abstrações matemáticas


Entrevista com Ney Lemke ................................................................................................... 114

O “xeque-mate” da genialidade do jovem Einstein. Como separar o caráter quântico da


teoria quântica que busca descrevê-lo
Entrevista com Enio Frota da Silveira.................................................................................... 116

O universo de Einstein
Entrevista com Horácio Alberto Dottori ................................................................................. 121

A onipresença transformadora dos princípios quânticos: desafios e possibilidades


Entrevista com Fernando Haas.............................................................................................. 123

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Apresentação

A Física no século XX: A consciência ferida do cientista

“Nenhum período da história foi mais penetrado pelas b) analisar o lugar na sociedade ocupado pe-
ciências naturais nem mais dependente delas do que o los físicos segundo eles próprios;
século XX. Contudo, nenhum período, desde a retrata-
ção de Galileu, se sentiu menos à vontade com elas.
c) responder às questões:
Este é o paradoxo que tem de enfrentar o historiador • Como é que os físicos explicam a origem
do século.” (Eric Hobsbawn) dos nossos problemas atuais?
• Quais são as soluções que eles propõem?
Este trabalho é composto das notas que
• Qual é o papel que os físicos atribuem
apresentei numa oficina no Simpósio Interna-
cional Terra Habitável: um desafio para a aos leigos (os não-cientistas) nesses
processos?
humanidade, promovido pelo Instituto Huma-
nitas Unisinos (IHU). O meu objetivo inicial era Evidentemente, eu não tinha a pretensão de
preparar uma exposição a respeito do desenvol- esgotar o assunto que escolhi, certamente fasci-
vimento teórico-experimental da Física ao longo nante e relevante. A minha pretensão era mais
de todo o século XX. Imediatamente, percebi que modesta: defender a tese de que os físicos do sé-
este objetivo era descabido, não apenas pela culo passado viveram uma crise vocacional séria
imensa quantidade de informações a serem que começou logo após o final da Segunda Guer-
transmitidas à assistência e num tempo muito re- ra Mundial. Não sei se esta crise já foi solucionada,
duzido, mas também porque eu não abordaria mas creio, no entanto, que ela provocou uma pro-
alguns temas que dizem diretamente respeito à funda, e quiçá irreversível, mudança na auto-ima-
ciência – em particular, à Física –, tais como, por gem que os físicos têm de si mesmos.
exemplo, o desenvolvimento da bomba atômica. Como a minha participação no Simpósio
Ou seja, analisar a ciência apenas por meio de Internacional Terra Habitável: um desafio
uma perspectiva que a compreende como um para a humanidade aconteceu por meio de
tipo específico de conhecimento não seria possí- uma oficina, o que significava que a assistência
vel e, talvez, recomendável para o colóquio em deveria participar ativamente dela (o que, em mi-
questão. Com base nessa constatação, resolvi es- nha opinião, aconteceu), acho mais importante,
colher um outro tema, o qual considero como como forma de registro, reproduzir as transparên-
muito importante para que possamos compreen- cias que projetei na ocasião.
der a ciência e o seu lugar na sociedade durante Ainda que constitua uma obviedade, não
todo o século passado: a imagem que os físicos gostaria de deixar de registrar que o tema deste
constroem a respeito de si mesmos. Assim, eu es- colóquio requer que saibamos de que modo a físi-
tabeleci como objetivos desta oficina os seguintes ca poderá contribuir para manter a Terra um pla-
tópicos: neta habitável. Talvez algumas das soluções ne-
a) analisar as relações entre a Física e a socie- cessárias e desejadas só possam ser obtidas caso
dade; haja mais ciência, e não menos ciência.

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Diferentemente do que afirma o historiador para ela, como aquele que indagava pela natureza
inglês Eric Hobsbawn a respeito dos sentimentos do homem, já podiam ser investigados por proce-
que o século passado alimentou com relação à dimentos científicos.
ciência, o século XIX, de modo geral, observou a A opinião de Boltzmann a respeito da ciên-
tendência de enaltecê-lo e, basicamente, por duas cia era favorável a esta última, tal como já tive
razões: 1) a ciência fornecia explicações sobre a ocasião de afirmar. Ao longo de todo o século
realidade e 2) a ciência, mediante as aplicações XIX, a ciência construiu um consenso generaliza-
tecnológicas que produzia, transformava a vida do a respeito de suas capacidades referentes à
dos seres humanos. Em outras palavras, talvez um compreensão e à transformação do real. Ser civi-
pouco esquemáticas, para o século XX, a ciência lizado passou a significar dispor de recursos hu-
passou a ser um problema, enquanto, para o sé- manos e materiais necessários para a prática da
culo XIX, ela fora a fonte de soluções. ciência. Fazer ciência passou a ser fator de pro-
Um exemplo muito interessante da positivi- gresso e parâmetro para avaliar os povos. A visão
dade desfrutada pela ciência ao longo do século do século XIX sobre a ciência foi otimista. Para
XIX encontra-se na defesa que um certo cientista muitos homens do século XIX, a trajetória da
fez da teoria darwiniana da evolução. Certa vez, ciência seria sempre fadada ao sucesso. Com o
no final do século XIX, o físico teórico austríaco passar do tempo, os temores e as críticas à ciên-
Ludwig Boltzmann (1844-1906) disse que, caso cia desapareceriam.
indagado sobre a melhor denominação para Sob certos aspectos, o século XX pode ser
aquele período, o chamaria de o século de caracterizado como o período da história huma-
Darwin: na no qual ocorreram alguns dos mais importan-
Caso vocês indaguem por minha convicção mais ínti- tes eventos e transformações, envolvendo a ciên-
ma se a nossa época ficará conhecida como o século do cia. De atriz coadjuvante, papel que desempe-
aço ou o século da eletricidade ou do vapor, contes- nhou ao longo do século XIX, a ciência passou,
tar-lhes-ei, sem pestanejar, que ela será chamada de o
no século passado, à atriz principal. No entanto,
século da concepção mecanicista da natureza: o século
de Darwin. isso não se fez sem que a sua imagem sofresse
mudanças. Se, por um lado, o século XX foi, sob
Ao afirmar isso, Boltzmann não estava privi- muitos aspectos, um período de tempo favorável
legiando outras importantes realizações, como o à ciência; por outro, e à medida que o século se
telefone, o aço, o telégrafo submarino, o trem a aproximava de seu final, a ciência voltou a rece-
vapor, entre outras, as quais já tinham repercutido ber uma série de críticas (epistemológicas, éticas,
na população, por considerá-las desnecessárias políticas, ambientais etc), as quais afetaram a
ou mesmo desinteressantes. Ao declarar sua pre- imagem que tinha até então. A partir da segunda
ferência por aquela teoria, Boltzmann pretendia metade do século XX, as pessoas que não pratica-
defender, não apenas a importância da teoria dar- vam a ciência, mas que viviam sob sua influência
winiana da evolução, o que, por si só, seria louvá- direta, começaram a nutrir sentimentos pessimis-
vel, mas também mostrar que a ciência desfrutava tas com relação a ela. À ciência não mais era con-
de uma posição central no seio da sociedade hu- cedida – ao menos com a facilidade anterior – a
mana, uma vez que, ao lado das aplicações tecno- possibilidade de configurar os destinos dos seres
lógicas que começavam a configurar o cotidiano humanos. A pergunta “para que fazer ciência?”,
de milhões de homens e mulheres por todo o que parecia ser respondida facilmente até a déca-
mundo ocidental, a ciência, por meio daquela teo- da de 1940, começou a ser exposta com mais fre-
ria, poderia, finalmente, tentar compreender a na- qüência e ênfase. A reposta “a ciência contribuía
tureza do homem. O exemplo de Boltzmann nos para o progresso da humanidade” já não era mais
mostra o elevado grau de generalização da opi- entendida como óbvia ou a única resposta possí-
nião a respeito do progresso da ciência, a tal pon- vel. Propagou-se o sentimento de que a ciência
to que temas, até então considerados impossíveis não poderia ser promovida e sustentada sem que

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se soubesse o “preço” (isto é, as conseqüências) alemão que ganhou o prêmio Nobel de Física por
que tais promoção e apoio exigiam. suas contribuições à Mecânica Quântica, é parti-
Começou-se a questionar a idéia, compreen- cularmente interessante, pois mostra que a consci-
dida como evidente entre (em termos aproxima- entização dos físicos não ocorreu apenas no plano
dos) 1850 e 1950, de que a base da política seria a ético, mas também no plano político:
ciência. O pressuposto fundamental para pensar Os físicos são conscientes de que, como conseqüência
que a política deveria ser elaborada com base na- de seus trabalhos, a humanidade se encontra em um
quilo que a ciência permitia era a neutralidade da momento de decisão. Nisso baseia-se o seu sentimento
de responsabilidade, que move muitos deles. [Eles]
ciência. Esse pressuposto foi afirmado, ainda que não querem ser puros peões, obedientes aos políticos,
com variações, a partir do século XVIII. No século mas [querem], sim, tomar parte nas grandes decisões,
XX, ele perdeu o seu ar de obviedade e, defen- no mínimo como assessores. Como conseqüência des-
dê-lo, passou a ser uma tarefa árdua. Como não ta conscientização, em muitos países foram constituí-
das associações, cujo objetivo é familiarizar os seus
poderia deixar de ser, os primeiros e mais aguerri- membros com os problemas políticos, aconselhar os
dos defensores da ciência foram os próprios cien- governos e obrigá-los a tomar decisões razoáveis.
tistas. Ao longo de todo o século XX, os cientistas
tiveram que, publicamente, desempenhar uma ta-
refa, a qual, é certo, já desempenhavam desde Alguns eventos históricos com reper-
muito tempo, ainda que de modo mais discreto, cussões diretas sobre a Física
para a qual, pensava-se, eles não eram especial-
mente habilitados: fazer política. As fronteiras, que Os eventos abaixo, escolhidos arbitrariamen-
os cientistas e os filósofos seus amigos procuraram te, têm por objetivo mostrar a presença da Física
criar entre a ciência e o restante das produções in- na política, bem como o inverso. De certo modo,
telectuais e práticas humanas, foram, então, sub- esta linha do tempo procura sugerir que ,no século
metidas a duras críticas e rejeições. Para os críticos XX, a história da Física é inseparável da história
e céticos, o século XX teria mostrado que a ciência política.
não vivia num mundo à parte, no qual as regras 1933 – Ascensão de Hitler ao poder, o que
de atuação eram específicas e diferentes daquelas provoca a demissão ou renúncia de
outras presentes, por exemplo, nas sociedades. O muitos professores alemães judeus,
mito da torre de marfim foi abandonado e, para ou de ascendência judia, de suas
muitos, para sempre. cátedras.
1939 – Albert Einstein (1879-1955)1 envia
carta ao então presidente Franklin D.
A conscientização dos físicos Roosevelt, assinada por ele, mas que
não é de sua autoria, chamando a
A Segunda Guerra Mundial mostrou, de atenção para o fato de que os ale-
modo irrecusável, aos físicos que eles não mais mães poderiam estar interessados em
poderiam acreditar na tese que a ciência seria neu- usar, para fins militares, a energia atô-
tra, isto é, que a ciência poderia ser justificada sem mica. Início da 2ª Guerra Mundial.
que houvesse referência à política. Os físicos per- 1943 – Início do funcionamento de Los
ceberam que não mais poderiam e deveriam per- Alamos.
mitir que os políticos falassem em seu nome. A de- 1945 – Lançamento de bombas atômicas so-
claração abaixo de Max Born (1888-1970), físico bre o Japão.

1 Albert Einstein (1879-1955): físico alemão naturalizado americano. Premiado com o Nobel de Física em 1921, é famoso por ser
autor das teorias Especial e da Relatividade e por suas idéias sobre a natureza corpuscular da luz. É provavelmente o físico mais
conhecido do século XX. A revista IHU On-Line n. 135, de 4 abril. 2005, cujo título é Einstein 100 anos depois do Annus
Mirabilis. João Paulo II. Balanço e perspectivas, teve seu tema de capa dedicado a este importante físico. (Nota da IHU On-Line)

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1950 – Niels Bohr (1885-1962)2 envia à O lugar do físico na sociedade


ONU uma carta pública, na qual de-
fende a idéia de que é preciso estabe- Wigner permanece na mesma linha de pen-
lecer colaboração internacional entre samento quando afirma:
os países para evitar uma corrida ar- ... eu acredito que ao menos aqueles cientistas, que são
mamentista. Criação da National meus contemporâneos, mostram uma autêntica ten-
Science Foundation (EUA). dência para retirarem-se das batalhas que acontecem
na nossa sociedade, mostram [também] uma certa in-
1954 – Robert Oppenheimer é acusado de clinação para o modo monástico de vida: essa é uma
atividades antipatrióticas. característica daqueles que escolheram a ciência como
1957 – Lançamento do Sputnik. sua vocação.
1975 – Andrei Sakharov recebe o Prêmio
Nobel da Paz.
Físicos e leigos

Efeitos da Segunda Guerra Mundial so- Uma das transformações mais importantes
bre os físicos e a imagem que a socie- que ocorreram na passagem da primeira metade
dade constrói da Física para a segunda do século XX foi que as motiva-
ções dos físicos passaram a ser muito semelhan-
a) Os físicos sofrem de uma crise vocacional,
tes daquelas presentes entre os leigos. Até então,
isto é, não sabem determinar qual é a sua
os físicos percebiam-se como pessoas diferentes
motivação principal;
não apenas porque detinham um conhecimento
b) o público leigo começa a desconfiar da
técnico, sofisticado e verdadeiro, mas também
ciência, que se mostra capaz de gerar efei-
porque este conhecimento seria alcançado e ve-
tos nocivos à sociedade.
rificado por critérios apolíticos e epistemologica-
mente específicos.
A vocação do físico por ele mesmo Uma vez mais, Wigner é preciso na formula-
ção que apresenta dessa transformação:
Até a Segunda Guerra Mundial, era muito Pode ser que eu seja antiquado quando espero que as
comum que os físicos afirmassem que a motiva- pessoas escolham uma carreira na ciência sem que ali-
mentem a expectativa de óbvias recompensas exter-
ção fundamental para se dedicarem à Física era o nas.... (...) O cientista de hoje em dia é, em sua atitude
desejo de compreender o mundo, e não o de mo- para com a vida, muito mais semelhante ao não-cien-
dificá-lo. As palavras do físico norte-americano de tista do que era o cientista de trinta anos atrás.
origem húngara, Eugene Wigner (1902-1995), No entanto, apesar das palavras acima de Wig-
são, sob esse aspecto, exemplares: ner, as quais poderiam sugerir que o reconhecimen-
As atividades do cientista satisfazem não ao seu desejo to da semelhança entre cientistas e leigos teria leva-
de influenciar o mundo em torno dele. (...) Eu acredito
do os primeiros a abandonarem a sua atitude aristo-
que isso é verdade. (...) Sem a ciência moderna, nós
não teríamos rádio, televisão ... ou mísseis antibalísti- crática, isso não é corroborado pela percepção que
cos... tais efeitos são conseqüências das atividades dos outros físicos têm de si mesmos e dos leigos, apon-
cientistas, e não motivações para elas. tando para a existência de uma distinção funda-

2 Niels Bohr (1885 - 1962): físico dinamarquês, que desenvolveu a teoria da natureza do átomo. O prêmio Nobel de Física que
ganhou em 1922 deve-se ao seu trabalho sobre estrutura e radiação atômica. Com a idade de 28 anos, Bohr publicou sua
teoria que explicava, por meio da Teoria Quântica de Max Planck, os problemas surgidos com a descoberta da radioatividade.
No dia 17 de maio de 2005, durante o Simpósio Internacional Terra Habitável, foi apresentada a peça Copenhagen. A
trama do espetáculo remete-se a um misterioso encontro em 1941 entre Niels Bohr e Werner Heisenberg, alemão encarregado
do programa nuclear de Hitler. A montagem foi do Núcleo Arte Ciência no Palco, da Cooperativa Paulista de Teatro, com texto
de Michael Frayn. Os protagonistas da peça, Carlos Palma (Werner Heisenberg), Oswaldo Mendes (Niels Bohr) e Selma
Luchesi (Margarethe Bohr) foram entrevistados na edição 142ª da IHU On-Line, de 23/05/2005. (Nota da IHU On-Line)

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mental. A educação recebida pelos físicos seria res- As bombas de Hiroxima e Nagasáqui foram qualifica-
das como pecado original da livre investigação. Todos
ponsável pelo sentimento de diferença que eles sen- compreendem que já não é suficiente que o entendi-
tem quando se comparam com os leigos. O mero re- mento humano continue esforçando-se por descobrir,
conhecimento da existência de uma diferença entre cada vez com mais profundidade, os segredos da natu-
os dois grupos não seria suficiente para que ambos reza, se disso surgem meios de destruição cada vez
mais poderosos.
soubessem como cooperar para a solução dos pro- O homem deve utilizar a razão e, acima de tudo, per-
blemas que afligem a sociedade contemporânea. A guntar-se para quê. E, uma vez que apenas o especia-
especificidade do conhecimento científico tornava lista sabe do que se trata, somente ele sabe aquilo que
pode ser feito, o efeito que se pode esperar; não se
os cientistas presença obrigatória nos espaços desti-
pode deixar que a resposta venha apenas dos políticos,
nados à elaboração, avaliação e aplicação das solu- dos homens de estado e, tampouco, dos teólogos, dos
ções imaginadas, tal como, penso eu, pode ser de- historiadores, os quais pensam segundo os métodos rí-
preendido das palavras de Victor Weisskopf gidos e tradicionais da especulação. Exigimos ser es-
cutados. (Os negritos são meus)
(1908-2002), físico teórico de origem austríaca:
Nós não estamos argumentando que apenas aqueles As palavras de Born são interessantes, pois
com treinamento básico na ciência, o que excluiria os defendem a idéia de que os físicos não podem dei-
outros [isto é, aqueles que não são cientistas], podem xar para outros – observe-se que os outros aqui
resolver os nossos problemas. Longe disso. (...) Eles
são necessários, mas não suficientes.
são aqueles que, tradicionalmente, se preocupa-
vam com o sentido – a preocupação com a per-
gunta “para quê?”. O físico deveria reconhecer
O objetivo da ciência que passava por uma crise de vocação; caberia a
ele resolver este problema, o qual tem profundas e
Apesar de existir um certo reconhecimento graves conseqüências para a sociedade. De todo,
público de que as motivações dos cientistas não di- é fácil perceber que Born acreditava que o físico
feririam muito daquelas presentes em outros profis- desfrutava de um lugar especial. Aliás, esse “senti-
sionais, alguns físicos continuaram a declarar que o mento” foi compartilhado por quase todos aque-
seu objetivo não era a aplicação, mas sim, a com- les que pertenciam à sua geração. Até Wigner
preensão. Weisskopf acreditava na continuidade mostrava-se saudoso de uma época na qual a
da crença que atribuía, em primeiro lugar, à especi- ciência era vista como algo nobre e superior, mes-
ficidade da ciência ao seu objetivo e, em segundo mo que, talvez, ele tenha se mostrado como um
lugar, ao modo pelo qual esse objetivo era efetiva- dos mais ferozes críticos à tese da separação entre
mente alcançado. “O principal objetivo da ciência físicos e leigos.“Nós, que somos generosamente
não é a aplicação; é ganhar discernimento sobre as apoiados pela nossa sociedade, deveríamos mos-
causas e leis que governam os processos naturais.” trar um sentido de humildade e gratidão, ao invés
Tal caracterização do objetivo da ciência, de [mostrar] desprezo para com o não-cientista.”
como é bem conhecido, era importante, pois ga-
rantiria a sua neutralidade, uma vez que faria com
ela permanecesse indiferente e protegida dos inte- O que fazer?
resses humanos. Pode-se dizer que a já menciona-
da crise de vocação, que atingiu parte dos cientis- Diante das transformações causadas pela Se-
tas, é explicada pela impossibilidade de se conti- gunda Guerra Mundial no que diz respeito ao lugar
nuar a aceitar essa tese. do cientista na sociedade, à imagem que esta última
formula da ciência, aos problemas que muitos dos
resultados (teóricos e aplicados) da ciência provo-
Mas, afinal, o que deseja um físico? cam, como resolver as questões não-científicas que
preocupam os cientistas? Em geral, os físicos pensa-
A citação de Weisskopf, que continua a sus- vam ser necessário modificar o seu comportamento,
tentar a tese de que a ciência é pura, entra em principalmente acerca do seu relacionamento com
choque com a declaração de Max Born: a sociedade, mas não a ponto de perderem o lugar

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

especial que ocupavam, uma vez que isso poderia, Ao final de 2000, ele [Teller] e um de nós [Michael
May] estávamos esperando por uma cerimônia fúnebre
por exemplo, implicar a perda, ou a diminuição, em homenagem a um colega de muito tempo. Enquan-
dos recursos financeiros destinados à ciência. Por to aguardávamos pelo início da cerimônia, ele me per-
outro lado, os valores antigos, aos quais se recorreu guntou quais seriam, para mim, as três mais importan-
durante um longo período para justificar a ciência, tes conquistas do século XX. Seus candidatos eram a
habilidade de rapidamente ir de um lugar para outro, a
eram vistos como sofrendo um processo de desgas- de se comunicar, à velocidade da luz, com praticamen-
te irreversível, como afirma Weisskopf: “Este é um te toda e qualquer pessoa e a de destruir eficientemente
fenômeno novo e perturbador para a espécie hu- todos nós. Ele, então, me disse qual seria a coisa mais
importante a ser conseguida no novo século. Isso seria,
mana: as experiências da geração mais antiga não
ele afirmou, aprender a conviver um com o outro.
são mais úteis como um dia o foram na lida com os
problemas atuais.” Antônio Augusto Passos Videira3
No entanto, não é fácil defender o abandono
da relevância e da utilidade da tradição, dado que
esta última é uma das fontes que temos à nossa Referências bibliográficas
disposição para formularmos repostas para o
BOLTZMANN, Ludwig. Escritos Populares. Organização.
“para quê?”. Em outros termos, muito daquilo
Traduzido por Antonio Augusto Passos Videira. São Leopol-
que compreendemos como sentido é herdado por do: Editora Unisinos, 2004.
meio das tradições que nos constituem. Todavia, BORN, Max. La física en la problemática de nuestra época.
não creio que Weisskopf estivesse defendendo, In: La responsabilidad del científico. Barcelona: Labor, 1968.
pura e simplesmente, o desaparecimento da tradi- p. 83-93.
ção. Sua posição parece ser a de mostrar que as _______. Física e Política. In: La responsabilidad del científi-
co. Barcelona: Labor, 1968. p. 103-16.
tradições têm limites sérios.
_______. Esperanza de que todos los hombres compreendan
Quanto a mim, a declaração de Weisskopf las consecuencias del armamento atómico. In: La responsabi-
aponta para o reconhecimento de um limite heu- lidad del científico. Barcelona: Labor, 1968. p. 137-46.
rístico da tradição. Se isso for correto, os novos BROWN, Harold; MICHAEL, May. Edward Teller in the Pu-
problemas exigiriam criatividade para poderem blic Arena. Physics Today, p. 51-3, ago.2004.
ser resolvidos. Apesar de os físicos terem tentado HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX
encontrar tais soluções, as quais pressupunham a (1914-1991).
manutenção e o fortalecimento do diálogo entre WEISSKOPF, Victor. Man and Nature. In: Physics in the 20th
Century (Selected Essays). Cambridge: MIT Press, 1972.
grupos que defendiam visões distintas, eles não
_______. Science and Ethics. In: Physics in the 20th Century
conseguiram implementar, ao menos no grau em (Selected Essays). Cambridge: MIT Press, 1972.
que desejavam, as suas posições. Todo o impres- _______. The Significance of Science. In: Physics in the 20th
sionante desenvolvimento da Física no século XX Century (Selected Essays). Cambridge: MIT Press, 1972.
não foi suficiente para mostrar a importância de os WIGNER, Eugene P. The Scientist and Society. In: From a
seres valorizarem a diferença, como constatado life of physics, Evening lectures at the International Center for
Theoretical Physics, Trieste, Italy. A special supplement of the
em 2000 pelo físico norte-americano de origem
IAEA Bulletin, Printed by the IAEA in Áustria, s.d., p. 49-56.
húngara, Edward Teller (1908-2003):

3 Antonio Augusto Passos Videira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), coordenador do grupo de trabalho em Filosofia da Ciência da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia
(Anpof) e secretário adjunto da Anpof e secretário da Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC).
Videira é doutor em Filosofia pela Université de Paris VII e fez pós-doutorado nas Universidades de Évora, em Portugal, na
Unicamp, na Universidade Federal da Bahia e na Universidade Federal de Santa Maria. Publicou vários artigos em revistas
nacionais e estrangeiras e o livro Henrique Morize e o ideal de ciência pura na República Velha. Rio de Janeiro: FGV
Editora, 2003. Além disso, organizou várias obras, entre as quais citamos: Einstein e o Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
1995; O que é vida? Para entender a biologia do século XXI. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000; Temas de
Filosofia da Natureza. Rio de Janeiro: UERJ, 2004.

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Física Quântica:
Da sua pré-história à discussão sobre o seu conteúdo essencial

Por Paulo Henrique Dionísio

Paulo Henrique Dionísio é doutor em Física experimentos que o próprio desenvolvimento tec-
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul nológico viabiliza, realizados com o fim específico
(UFRGS). de tentar elucidar as questões pendentes. Dualida-
de onda-partícula, princípio da incerteza, gato de
Schrödinger4, colapso da função de onda, ação
Introdução da consciência do observador sobre o estado do
sistema... Expressões como essas respingam no
A Física Quântica desperta, em muitas pes- leigo em Física, que fica entre curioso e perple-
soas, interesses variados. Nascida com o século xo, às vezes, esperançoso, no mais das vezes, in-
XX, bastaram algumas décadas para que influen- diferente. Mas afinal, o que é mesmo a Física
ciasse, decisivamente, a vida de todos nós, pois Quântica?
deu sustentação teórica à estonteante revolução Em uma tentativa de interpretar os novos pa-
tecnológica, ocorrida, principalmente, a partir dos radigmas nascidos com a Física Quântica, Niels
anos 1950. Concomitantemente, exigiu dos físi- Bohr formulou o seu “princípio da complementari-
cos profundas alterações em sua maneira de des- dade”, segundo o qual os sistemas quânticos po-
crever os fenômenos naturais, em sua forma de dem se apresentar sob dois aspectos aparentemen-
compreender e explicar a natureza. Na verdade, te incompatíveis e mutuamente exclusivos. Quan-
não houve consenso. Ficaram famosas as discus- do um dos aspectos é aparente, o outro fica oculto
sões entre Einstein e Niels Bohr, centradas, princi- e vice-versa, como uma moeda que nos volta ape-
palmente, na questão do caráter probabilístico da nas uma face de cada vez. Em um (nada aconse-
nova teoria em oposição ao determinismo da Físi- lhável, advirto!) exercício de generalização, há
ca Clássica e na interpretação de alguns aspectos quem proponha pares de conceitos complementa-
do formalismo matemático utilizado. E as discus- res (conceitos que não podem ser esclarecidos si-
sões perduram, apesar da sofisticação dos novos multaneamente) ou de condições complementares

4 Erwin Rudolf Josef Alexander Schrödinger (1887-1961): físico austríaco, um dos pais da Teoria Quântica. O “gato quântico”
de Schrödinger é uma experiência imaginária na qual “o gato imaginário do físico (um objeto macroscópico) é fechado numa
caixa, contendo um recipiente de cianureto e um átomo radioativo (objeto microscópico). O átomo está em estado
metaestável, ou seja, seu núcleo tem 50% de chance de romper-se. Se isso acontecer, o recipiente quebra, o cianureto é
liberado e o gato morre. Se ele continuar no estado metaestável, o recipiente não racha, e o gato continua vivo. O estado
quântico é uma superposição dessas duas possibilidades. Enquanto a caixa não for aberta, o gato está vivo e morto (o que é
diferente de estar vivo ou morto, que seria a explicação da Física Clássica). Só ao abrir a caixa, define-se a potencialidade de
um dos resultados. É o ato de mensuração que resolve as potencialidades quânticas.” (Nota do IHU On-Line, extraída do
artigo Estudo concilia “vida” e “morte” de partícula, escrito por Alexandra Ozorio de Almeida, publicado no jornal Folha de S.
Paulo, em 29-10-2000, reproduzido em http://www.nuclear.radiologia.nom.br/politica/outubr00/291000.htm#6. O professor
Paulo Henrique Dionísio aborda esse tema no Cadernos IHU Idéias n. 22. Ele trata de Schrödinger nas páginas 18-23 (Nota
da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

(condições que não podem ser satisfeitas simulta- trabalhos de Maxwell sobre os campos eletromag-
neamente). Certa vez, em uma entrevista, alguém néticos vieram completar o arcabouço teórico que
perguntou a Bohr5: “O que é complementar à ver- se iniciara com a mecânica de Newton e que pare-
dade?” Ao que ele respondeu: “A clareza.” cia, agora, capaz de abarcar a totalidade dos fenô-
Este texto é uma tentativa de desmentir o menos físicos. Aos físicos, restava, então, medir,
princípio da complementaridade, ao menos no com maior precisão, os valores das constantes físi-
que diz respeito ao par verdade x clareza. O autor cas fundamentais e trabalhar na implementação
pretende ser “verdadeiro”, ao responder a ques- de aplicações para tantos conhecimentos acumu-
tão o que é a física quântica, fazendo-o de manei- lados. Havia, é verdade, uma pequena inconsis-
ra fidedigna, precisa e clara. Esforça-se, ao mes- tência teórica a ser resolvida e alguns poucos fe-
mo tempo, por ser acessível aos não-físicos e man- nômenos ainda não satisfatoriamente equaciona-
ter-se adequado ao ambiente acadêmico. Para dos, mas tudo parecia ser apenas uma questão de
tanto, será necessário falarmos não apenas “so- tempo.
bre” a Física, mas também “de” Física. Trata-se, A pequena inconsistência teórica era a as-
sem dúvida, de um propósito ambicioso. Seu sim chamada não-invariância das equações de
eventual sucesso será creditado, principalmente à Maxwell; sua solução resultou, nada mais nada
disposição e ao empenho de quem lê. menos, do que no surgimento da Teoria da Rela-
E, ao falar de Física, não se poderá evitar o tividade6, uma verdadeira mudança de paradig-
uso de alguns recursos de linguagem que são pró- ma na Física. Já os fenômenos não satisfatoria-
prios a essa disciplina, como a representação de mente explicados eram a radiação de cavidade,
situações por meio de figuras, a referência a gran- os espectros de raias e o efeito fotoelétrico, aos
dezas físicas por meio de símbolos e algumas quais, mais tarde, vieram juntar-se as descober-
equações. Isso se fará, na medida do possível, de tas com tubos de raios catódicos e a radioativida-
maneira acessível a quem não está habituado a de. O enquadramento teórico desses fenômenos
esta linguagem. Afinal, vencer o aparente obstá- implicou outra revolução conceitual, que resul-
culo, representado por uma linguagem a que não tou na Física Quântica. Assim surgiram a Teoria
se está habituado, é um desafio intelectual fre- da Relatividade e a Física Quântica, os dois pila-
qüentemente enfrentado na vida acadêmica. Sal- res da física contemporânea.
tar alguns trechos mais técnicos talvez não preju-
dique de todo o entendimento do que vem depois.
Podemos, também, tentar ler de trás para diante, 2. A radiação de cavidade
seção por seção, a partir da conclusão. O resulta-
do pode ser surpreendente! Foi o estudo da chamada radiação de cavi-
dade que desencadeou o processo de desenvolvi-
mento da Física Quântica. Sabemos, há muito
1. A Física ao final do Século XIX e os tempo, que um objeto suficientemente aquecido
germens da transformação irradia luz, torna-se incandescente (por exemplo,
um ferro em brasa na forja do ferreiro ou o fila-
Por volta de 1880, a Física alcançou um está- mento de uma lâmpada incandescente). Sabemos
gio de desenvolvimento que parecia não apenas também que a coloração da luminosidade irradia-
difícil, mas até mesmo desnecessário superar. Os da depende da temperatura: à medida que o obje-

5 Conforme PIZA, A. F. R. de Toledo. Schrödinger, Emaranhado e Decoerência. In: HUSSEIN, Mahir; SALINAS Sílvio (org.). 100
anos de física quântica. São Paulo: Livraria da Física, 2001, p.14.
6 A Teoria da Relatividade, que reformulou a concepção da gravidade, foi criada por Albert Einstein. Ela foi abordada nas
revistas IHU On-Line, n. 130, de 28 fev. 2005, que recebeu o título Einstein: 100 anos depois do Annus Mirabilis. João Paulo
II. Balanço e perspectivas, dedicado a Einstein, e n. 141, de 16 de maio de 2005, que levou o título Terra habitável: um desafio
para a humanidade. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

to esquenta, sua cor passa de um vermelho fosco a A descrição detalhada do fenômeno encon-
um vermelho vivo, a um alaranjado, depois amare- trou logo uma importante aplicação tecnológica.
lo, branco e, finalmente, azulado. Estudando em Com base nela, desenvolveu-se o “pirômetro óti-
detalhe este fenômeno, verificou-se que a colora- co”, um instrumento que permite medir à distân-
ção não depende do material, tamanho ou formato cia a temperatura de um objeto, como, por exem-
do objeto, mas apenas da temperatura em que ele plo, o interior de um forno em uma siderúrgica ou
se encontra. Os físicos, no entanto, preferiram estu- uma estrela. Mas, para a Física, isso não basta.
dar a luz emitida por uma cavidade feita no objeto, Precisamos compreender o fenômeno, descrever
e não por suas paredes externas, daí o nome “radia- seus mecanismos, explicar seus princípios gerais,
ção de cavidade”. Este mesmo fenômeno é tam- enquadrá-lo em uma teoria o mais abrangente
bém conhecido como “radiação de corpo negro”, possível.
por razões que não cabe aqui esclarecer. A tentativa de enquadramento teórico do fe-
Em termos técnicos, é mais adequado carac- nômeno incluía considerar-se a existência de ra-
terizar a luz emitida por um objeto aquecido, espe- diadores elementares nas paredes da cavidade,
cificando-se não a sua cor, mas a freqüência das que seriam sistemas oscilantes dotados de carga
ondas luminosas. Dizermos que um objeto ostenta elétrica. De acordo com a Teoria Eletromagnética,
um brilho alaranjado, por exemplo, é uma afirma- tais osciladores com carga elétrica, uma vez agita-
ção vaga e subjetiva. Os físicos, mediante o uso de dos termicamente, devido ao aquecimento do ob-
equipamentos adequados e muita dedicação, po- jeto, seriam emissores de radiação, mas poderiam
dem oferecer uma descrição muito mais precisa, também absorver radiação que, porventura, sobre
objetiva e abrangente. A luz emitida pelo objeto é eles incidisse, estabelecendo-se, então, um equilí-
apenas uma pequena porção da energia por ele ir- brio entre emissão e absorção dentro da cavidade.
radiada na forma de ondas eletromagnéticas, cor- Os cálculos baseados em tal modelo teórico, no
respondente a uma pequena gama de valores de entanto, não conseguiam reproduzir os resultados
freqüências. Além da radiação eletromagnética experimentais, uma vez que previam a emissão de
que vemos, e à qual denominamos “luz”, o objeto uma quantidade infinita de energia nas freqüênci-
(ou a cavidade feita nele) emite também ondas as mais altas, o que, evidentemente, não podia
eletromagnéticas de outras freqüências, que se es- corresponder à realidade. Como esta discrepância
tendem em um continuum desde valores muito ocorria na faixa do espectro eletromagnético de-
pequenos até valores muito grandes. As ondas de nominada de “região ultravioleta”, convencio-
freqüência numa faixa imediatamente inferior à nou-se chamar esta embaraçosa dificuldade de
da luz constituem a chamada radiação infraver- “catástrofe do ultravioleta”.
melha, ou ondas de calor; as de freqüência numa
faixa imediatamente superior são a chamada ra-
diação ultravioleta. A caracterização do fenôme- 3. A solução proposta por Planck
no completou-se de maneira satisfatória, do ponto
de vista experimental, mediante a determinação Em dezembro de 1900, Max Planck ofereceu
precisa da quantidade de energia eletromagnética ao mundo uma solução para a catástrofe do ultra-
emitida em cada freqüência, de tal modo que os violeta. Era o nascimento oficial da Física Quânti-
resultados puderam ser representados em um grá- ca. A solução, no entanto, era ainda mais embara-
fico e descritos por meio de uma relação matemá- çosa do que a dificuldade que viera superar.
tica. Em outras palavras, obteve-se uma “fórmula A solução proposta por Planck consistia em
empírica” (isto é, obtida da experiência), que per- estabelecer uma séria limitação ao movimento
mite calcular a quantidade de energia emitida a dos osciladores elementares. Segundo ele, um os-
uma dada freqüência por uma cavidade em um cilador não poderia vibrar com qualquer energia,
objeto aquecido a uma dada temperatura. mas apenas com algumas poucas energias permi-
tidas, cujos valores seriam múltiplos inteiros de

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um valor mínimo fundamental, denominado o A figura 1 mostra um pêndulo oscilando até


quantum de energia do oscilador. Este mínimo uma altura A acima da posição inferior de sua tra-
fundamental seria determinado pela freqüência jetória. Por conveniência, chamaremos a altura A
natural de oscilação do oscilador. Em linguagem de “amplitude de oscilação”. Designaremos a
matemática, se a letra f representa a freqüência do massa do objeto suspenso por M, o comprimento
oscilador (ou seja, o número de oscilações que rea- do fio por C e a freqüência de oscilação por f.
liza por segundo), o quantum de energia valerá
hxf (ou simplesmente hf), onde h é um número,
uma constante universal, denominada “constante
de Planck”. Tomando-se a letra n para represen-
tar um número inteiro qualquer (n pode assumir
valores como 0, 1, 2, 3 etc.), a proposta de Planck C
estabelece que os osciladores elementares só po-
dem vibrar com energias tais que:
M
A
E = nxhf (ou, simplesmente, E = nhf) (equação 1).

Resumindo, um oscilador elementar cuja fre- Figura 1 – Um pêndulo de massa M e comprimento C, osci-
qüência natural de oscilação seja f somente pode- lando até uma altura A.
rá oscilar com energias zero, 1xhf, 2xhf, 3xhf e
assim por diante. Em linguagem matemática,
Planck “postulou”7 que a energia dos osciladores Quem já andou de balanço sabe que, quanto
é uma variável “discreta”. Na Matemática, a pala- mais longas as cordas que o suspendem, mais len-
vra “discreta” é um antônimo para “contínua”. tas e suaves são as suas oscilações, ou seja, menor
Ou, como passou a dizer-se, então, a energia dos é a sua freqüência. Se o comprimento do pêndulo
osciladores é uma grandeza “quantizada”. Refa- for medido em metros e a freqüência, em oscila-
zendo os cálculos, agora submetendo os oscilado- ções por segundo, esta afirmativa pode ser tradu-
res elementares a esta restrição, Planck deduziu, zida na relação matemática
com base em princípios teóricos, a mesma fórmu-
la empírica extraída dos dados experimentais. A f = 1 / 2C (equação 2).
isso os físicos chamam de “explicar o fenômeno”.
A seguir, utilizando-nos de um exemplo sim- Em geral, a freqüência é menor do que um.
ples, tentaremos esclarecer o significado desta Por exemplo, se f = ½, significa que o pêndulo reali-
proposta e a razão dos embaraços que criou. za meia oscilação em um segundo, ou seja, leva dois
segundos para realizar uma oscilação completa.
Já a amplitude de oscilação A (“altura”) de-
4. O movimento de um pêndulo segun- pende da energia E que se fornece ao pêndulo
do Planck para oscilar e do peso P do objeto suspenso. Quan-
to maior a energia, maior a altura; quanto maior o
“Pêndulo” é a denominação genérica para peso, menor a altura:
sistemas constituídos por um objeto suspenso que
A = E/P (equação 3).
oscila sob a ação da gravidade. Por exemplo, o fio
de prumo de um pedreiro ou um balanço em um O movimento de um pêndulo é perfeitamen-
parque infantil. te compreendido no contexto da Física Clássica, e

7 Segundo o dicionário Houaiss, um postulado é “o que se considera como fato reconhecido e ponto de partida, implícito ou
explícito, de uma argumentação; premissa”. Ou ainda, “afirmação ou fato admitido sem necessidade de demonstração”.

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as relações acima podem ser deduzidas das leis de de uma hipótese puramente formal, e não refleti
Newton. Vejamos, no entanto, a conseqüência de muito sobre ela, mas apenas sobre o fato de que,
admitirmos como correta a hipótese de Planck so- sob quaisquer circunstâncias, custasse o que cus-
bre a quantização da energia. Submetendo-se a tasse, um resultado positivo tinha de ser obtido”8.
energia de oscilação E à condição de ser quantiza- A partir deste primeiro episódio um tanto acacha-
da, a amplitude de oscilação A também o será, pante, outros semelhantes seguiram-se, envolven-
pois uma depende da outra, conforme mostra a do outros fenômenos e outros pesquisadores. A
equação 3. Substituindo-se, na equação 3, a con- Física Quântica avançou, tornou-se uma teoria
dição de quantização de Planck E = nhf (equação consistente e abrangente, ofereceu uma descrição
1), obtemos: adequada dos fenômenos em escala atômica e su-
batômica, o que pode ser comprovado pelo suces-
E nhf hf
A= = = n× (equação 4). so da tecnologia à qual deu sustentação. A cada
P P P passo, porém, constrangeu os físicos a admitirem
mais uma hipótese aparentemente absurda, con-
A equação 4 mostra que existe um quantum
trária ao senso comum e, principalmente, incom-
de amplitude de oscilação hf/P, de modo que a
patível com a já consagrada Física Clássica.
amplitude de oscilação A do pêndulo somente po-
derá assumir valores que sejam múltiplos inteiros
dele.
5. Uma digressão sobre números
Em termos práticos, se alguém for embalar
pequenos
uma criança em um balanço cujo quantum de am-
plitude seja, por exemplo, 30 cm, deverá ajustar o
Antes de prosseguirmos no relato dos episó-
impulso dado para que a altura atingida seja exa-
dios que se seguiram ao feito de Planck, é forçoso
tamente ou 30 cm, ou 60 cm, ou 90 cm, ou 120
aprofundar um pouco a discussão a respeito da
cm e assim por diante. Se tentar imprimir ao ba-
contradição entre a sua maneira de descrever a di-
lanço uma oscilação a uma altura proibida, (100
nâmica dos osciladores físicos e a descrição conti-
cm, por exemplo), o balanço “simplesmente se re-
da na mecânica newtoniana. Para tanto, devemos
cusará a mover-se” e a pessoa receberá seu impul-
levar em conta o valor da constante de Planck h,
so de volta, sendo jogada para trás. Ora, nenhum
valor por ele obtido mediante o simples ajuste nu-
balanço, nem o pêndulo de um relógio, nem qual-
mérico entre o seu cálculo teórico e os dados ex-
quer oscilador físico que conheçamos funciona as-
perimentais. A constante de Planck vale
sim. Como, então, aceitar a hipótese de Planck,
segundo a qual os osciladores elementares nas pa- h = 6,63×10-34 J × s (equação 5),
redes da cavidade funcionariam assim?
Planck inaugurou uma era de perplexidade onde s é o símbolo para segundo, nossa conheci-
no mundo da Física. Por um lado, logrou construir da unidade de medida de tempo, e J é o símbolo
uma teoria capaz de explicar, em todos os detalhes, para joule, uma unidade de medida de energia.
o fenômeno que se propunha, capaz de descrever A presença do fator 10-34 indica que o valor
adequadamente o comportamento do sistema físi- numérico de h é extremamente pequeno. Tendo
co em estudo. Mas, por outro lado, deixou-nos na em vista a provável pouca familiaridade de alguns
embaraçosa situação de termos que aceitar como leitores com este tipo de notação, procuraremos
verdadeira uma hipótese inteiramente contrária esclarecer o seu significado por meio de um exem-
aos fatos, ao senso comum e à própria Física Clás- plo, qual seja, o das unidades de medida de
sica. Nas palavras do próprio Planck, “tratou-se comprimento.

8 Conforme FLEMING, Henrique. Max Planck e a Idéia do Quantum de Energia. In: HUSSEIN, Mahir; SALINAS, Sílvio (org.). 100
anos de física quântica. São Paulo: Livraria da Física, 2001, p.10.

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Um milímetro vale um milésimo de um me- metro é a mesma que entre a espessura de uma
tro, isto é, o milímetro é obtido dividindo-se o me- folha de papel e um quilômetro. O raio do núcleo
tro em mil partes. Em linguagem matemática, es- é da ordem de 10-15 metros: quinze ordens de
crevemos que 1 mm vale 0,001 m. Mas, dividir grandeza separam nosso mundo do mundo suba-
por mil é o mesmo que dividir três vezes sucessivas tômico! Hoje, podemos “ver” um átomo por meio
por dez. Esta última afirmativa é mais bem expres- de um microscópio eletrônico de tunelamento
sa em linguagem matemática pelo enunciado “1 (outra conquista da Física Quântica), mas não
mm vale 10-3 m”. Nesta notação, o sinal – no ex- existe instrumento que permita igual façanha no
poente da base 10 indica divisão por dez e o nú- que diz respeito ao núcleo.
mero 3 indica três divisões sucessivas. Essa manei-
ra de escrever é geralmente referida como “nota-
ção científica”. Costumamos, também, dizer que 6. O pêndulo segundo Planck ´ o pên-
o milímetro é três “ordens de grandeza” menor do dulo segundo Newton
que o metro. Para ter uma idéia do que significa
isso na prática, tome uma trena e compare uma A constante de Planck, cujo valor foi apre-
divisão de um milímetro com o comprimento de sentado antes, é expressa em termos das grande-
um metro. Assim, se quisermos, por exemplo, ex- zas físicas energia e tempo, sendo a energia medi-
pressar o comprimento de 5 milímetros em me- da em joules (símbolo: J) e o tempo medido em
tros, podemos escrever segundos (símbolo: s). Uma duração de um se-
gundo é fácil de estimar; esclareçamos, então, o
5 mm = 0,005 m ou 5 mm = 5x10-3 m. que representa uma energia de um joule:
Um metro é um milésimo de um quilômetro, um joule é a energia necessária para elevar-se
ou seja, para obtermos um metro a partir de um um objeto de 100 gramas a um metro do solo.
quilômetro, devemos dividir este por mil, ou três
vezes sucessivas por dez. Então, para obtermos Na constante de Planck, aparece o fator
um milímetro a partir de um quilômetro, este de- 10-34. Vamos distribuir arbitrariamente essas trinta
verá ser dividido primeiro por mil para obtermos e quatro ordens de grandeza igualmente entre a
um metro e, em seguida, novamente por mil para energia e o tempo, de modo a concluir que, grosso
obtermos o milímetro. Um milímetro é, então, seis modo, a constante de Planck refere-se a fenôme-
ordens de grandeza menor do que um quilômetro, nos cuja duração é da ordem de 10-17 segundos e
e isso é o mesmo que dizer que um milímetro é a envolvem energias da ordem de 10-17 joules. Ou
milionésima parte de um quilômetro. Assim, por seja, refere-se a fenômenos de duração dezessete
exemplo, ordens de grandeza menor do que um segundo,
envolvendo energias dezessete ordens de grande-
5 mm = 0,005 m = 0,000 005 km za menor do que a energia gasta por alguém para
ou apanhar um objeto de cem gramas do solo e de-
5 mm = 5x10-3 m = 5x10-6 km.
positá-lo sobre uma mesa. Lembremos que o nú-
cleo atômico é quinze ordens de grandeza menor
Observe que a notação científica economiza
do que um metro. Logo, mesmo sendo verdadeira
zeros e espaço.
a hipótese de Planck sobre a quantização dos osci-
A espessura de uma folha de papel é cerca de
ladores físicos, ela não deve afetar significativa-
10 mícrons. Um mícron (símbolo: £) é a milésima
mente os sistemas macroscópicos, cujas dimen-
parte de um milímetro. Então, se quisermos ex-
sões são aquelas a que estamos habituados.
pressar a espessura de uma folha de papel em qui-
Um exemplo prático esclarecerá a última afir-
lômetros, teremos 10£ = 0,000 000 01 km ou
mação acima. Seja um pêndulo feito com um ob-
10£ = 10-8 km. Já o raio de um átomo vale justa-
jeto de 100 gramas suspenso por um fio de 8m,
mente cerca de 10-8 centímetros. Ou seja, a pro-
oscilando até a altura de 1m. A energia envolvida
porção entre o tamanho de um átomo e um centí-

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na oscilação é exatamente um joule, conforme a demos dispensá-la, uma vez que os detalhes que
definição de joule apresentada acima. A freqüên- fornece não são de interesse prático. Aliás, a Física
cia, calculada pela equação 2, vale um quarto de Clássica aplica-se aí satisfatoriamente, inclusive
oscilação por segundo, o que vale dizer que o pên- com algumas vantagens, uma das quais é a simpli-
dulo leva quatro segundos para realizar uma osci- cidade. O contrário, no entanto, não é verdadeiro:
lação completa. O quantum de amplitude de osci- a descrição clássica não corresponde ao compor-
lação, calculado pela equação 4, resulta igual a tamento do mundo microscópico. Assim, a Física
1,66?10-34 m. Isso é dezenove ordens de grandeza Quântica, por abranger a Física Clássica e ir além
menor do que um núcleo atômico, que, por sua dela, é considerada mais adequada, mais comple-
vez, é quinze ordens de grandeza menor do que ta, mais “verdadeira”.
um metro. Ora, se não nos é possível ver o núcleo, Mas devemos reconhecer que a aceitação da
com mais razão ainda não poderemos perceber hipótese de Planck implica uma mudança funda-
variações dessa ordem de grandeza na amplitude mental em nossa concepção acerca da natureza dos
de oscilação do pêndulo, seja qual for o meio de sistemas físicos. A situação é análoga à ocorrida,
observação ou instrumento de medida de que quando da aceitação das hipóteses sobre a constitui-
possamos dispor. Isso equivale a dizer que, para ção atômica da matéria. Antes, quando servíamos
fins práticos, o discreto confunde-se com o contí- vinho em um copo, por exemplo, víamos um fluido
nuo e tanto faz considerar-se a amplitude de oscila- contínuo, rubiáceo e apetitoso, jorrando da garrafa.
ção do pêndulo uma grandeza contínua à maneira Hoje, vemos a mesma coisa e depois saboreamos
de Newton ou quantizada à maneira de Planck. com igual prazer, mas “sabemos” que se trata de
Mas, quando voltamos nossa atenção para o uma cascata de partículas ínfimas, aliás bem separa-
mundo microscópico9, a situação é outra. Por das entre si, às quais chamamos “moléculas”. Da
exemplo, a energia envolvida na interação de um mesma maneira, quando observamos um balanço
elétron com um núcleo atômico é da ordem de que vai parando, por mais que pareça fazê-lo de
10-19 J e os seus quanta, ou seja, o valor das varia- maneira contínua e suave, “sabemos” que vai per-
ções que lhe são permitidas, são desta mesma or- dendo “impulso” “aos trancos”, embora isso em
dem de grandeza. Então, quando se acresce ou nada altere o conforto e o prazer de quem está sen-
subtrai um único quantum à energia do sistema, tado nele... Na verdade, essas novas concepções
ela varia apreciavelmente, de modo que seu cará- não alteram diretamente nossas relações com o
ter quântico fica evidente (veja o funcionamento mundo que nos rodeia, pois dizem respeito a fenô-
de um pêndulo cujo quantum de energia é com- menos que ocorrem em uma escala extremamente
parável à sua energia total no segundo parágrafo pequena, inatingível por nossos sentidos, ausente de
abaixo da equação 4). Em outras palavras, os efei- nossa experiência. Eis aí uma circunstância à qual
tos quânticos dominam o comportamento do sis- deveriam estar atentos alguns que propõem a pura e
tema. Como veremos adiante, esta foi a explica- simples transposição dos conceitos da Física Quânti-
ção encontrada por Niels Bohr para os chamados ca para o nosso mundo habitual, sugerindo aplica-
espectros de raias, mencionados anteriormente ções imediatas na Medicina, na Psicologia, na Eco-
como um dos fenômenos não passíveis de enten- nomia, no Direito... É claro que não estamos nos re-
dimento no contexto da Física Clássica. ferindo à enorme transformação ocorrida em nossas
Os exemplos acima mostram que a descrição vidas devido ao impacto tecnológico decorrente, em
quântica é adequada tanto ao mundo macroscó- última análise, do domínio do mundo microscópico,
pico quanto ao mundo microscópico. Mas, no que proporcionado ao homem por essa nova Física. Mas
diz respeito ao comportamento dinâmico dos sis- isso já é outro assunto.
temas com os quais interagimos no dia-a-dia, po-

9 Micro em oposição a macro. Neste texto, usaremos a expressão “mundo microscópico” para designar o mundo das moléculas,
dos átomos, das partículas elementares.

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7. Einstein e os fótons no entanto, deixaram inequívoco o seu caráter


ondulatório, por apresentar efeitos de difração e
Em 1905, em seu chamado “ano miraculo- de interferência, tal como as ondas sonoras no ar
so”, em um dos cinco artigos que publicou nos ou ondas na superfície da água. Newton conside-
Annalen der Physik, Einstein propôs uma idéia re- rava a luz como feita de partículas; para explicar a
volucionária: a quantização do campo eletromag- refração, precisava supor que sua velocidade fos-
nético. De acordo com a Eletrodinâmica Clássica se maior nos meios mais densos. Contudo, medi-
de Maxwell, uma onda eletromagnética é contí- das precisas mostraram que a velocidade da luz na
nua no tempo e no espaço e sua intensidade é de- água é menor do que no ar, o que invalidou a con-
terminada pela amplitude do seu campo elétrico. cepção newtoniana. Finalmente, na grande sínte-
Em seu artigo, contudo, Einstein escreveu10: se de Maxwell, a natureza da luz ficou inteiramen-
De acordo com a hipótese aqui considerada, na pro- te esclarecida, pois foi ela descrita como uma
pagação de um raio de luz emitido por uma fonte pun- onda eletromagnética. Esse foi justamente um dos
tiforme, a energia não é distribuída sobre volumes momentos culminantes da Eletrodinâmica Clássi-
cada vez maiores no espaço, mas consiste em um nú-
mero finito de quanta de energia, localizados em pon-
ca. Deveria ser tudo isso agora abandonado em
tos do espaço, que se movem sem se dividir e que po- favor, novamente, de uma teoria corpuscular para
dem ser absorvidos ou gerados somente como unida- a luz?
des integrais. Aqui, a situação era um pouco mais favorá-
Ora, “um quantum de energia localizado em vel à Física Clássica do que no caso dos oscilado-
um ponto do espaço, que se move sem se dividir e res físicos, pois a teoria ondulatória da luz não po-
que somente pode ser absorvido ou gerado como deria ser simplesmente englobada pela nova teo-
uma unidade integral” corresponde muito mais ao ria corpuscular. Quando estavam em jogo fenô-
conceito de uma partícula em movimento do que menos relacionados com a geração ou a absorção
ao de uma onda que se propaga. Tais “partículas da luz pela matéria, a visão quântica se fazia indis-
de luz” foram chamadas de “fótons”. Einstein es- pensável. Mas quando se tratava de descrever os
tabeleceu que a energia de um fóton vale o produ- mecanismos de propagação da luz, era necessário
to da constante de Planck pela freqüência da radia- considerá-la uma onda. Era, então, necessário
ção: E = h´f. Apesar da semelhança formal, as hi- conservar as duas concepções, por mais contradi-
póteses de Planck e de Einstein são essencialmen- tórias que parecessem. Esta maneira ambígua de
te diferentes. Planck propôs a quantização de uma a luz apresentar-se aos olhos dos físicos foi o que
“grandeza” associada a um sistema físico (a ener- se chamou de “dualidade onda partícula”.
gia de oscilação do oscilador); já o quantum de
Einstein é, ele próprio, “um ente físico”.
Nesse mesmo artigo, Einstein usou sua hipó- 8. O átomo de Rutherford
tese para explicar, entre outros fenômenos, o efei-
to fotoelétrico, então razoavelmente caracterizado Enquanto Planck e Einstein explicavam as
do ponto de vista experimental, mas carente de inusitadas características da radiação de cavidade
uma interpretação satisfatória no contexto da Ele- e do efeito fotoelétrico, a Física Experimental con-
trodinâmica Clássica. Tal explicação foi uma das tinuava a desnudar aos olhos humanos o mundo
razões pelas quais ganhou o Prêmio Nobel em microscópico. As pesquisas com tubos de raios ca-
1921. tódicos levaram a descobertas, como a existência
Eis-nos diante de outra situação contraditó- dos raios-X e dos elétrons. Os raios-X foram carac-
ria. A natureza da luz fora objeto de disputa por terizados como ondas eletromagnéticas de alta
séculos. Experimentos realizados a partir de 1800, freqüência, os elétrons como partículas dotadas
de carga elétrica negativa e de dimensões e massa

10 STACHEL, John (organização e introdução). O ano miraculoso de Einstein. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. p. 202.

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infinitesimais. A radioatividade foi descoberta, e a recido que ocorreu com as estações espaciais
hipótese sobre a constituição atômica da matéria Skylab e Mir: enquanto percorriam suas órbitas em
ganhou solidez. torno da Terra, perdiam, progressivamente, ener-
Por volta de 1910, Rutherford e seus colabo- gia devido ao atrito com as camadas superiores da
radores realizaram experiências com o fim de elu- atmosfera. Não havendo reposição da energia per-
cidar a estrutura do átomo. Tais experiências con- dida, foram perdendo “impulso” até caírem.
sistiam em bombardear finíssimas lâminas de
ouro com as recém-descobertas partículas alfa.
Esperavam ver as partículas alfa ricocheteando 9. Bohr explica o átomo
após se chocarem contra a compacta barreira me-
tálica. O que viram, no entanto, foi surpreenden- Niels Bohr tomou a si a tarefa de encontrar
te: a maior parte das partículas simplesmente atra- justificativas teóricas, capazes de suportar o mo-
vessava a lâmina, sofrendo pequenos desvios, ra- delo atômico de Rutherford. De início, não levou
ríssimas eram refletidas de volta. Cuidadosa análi- em conta as experiências a respeito dos espectros
se dos dados permitiu concluir que se deveria con- de raias dos elementos, um dos fenômenos que
siderar a carga positiva do átomo de ouro como restavam sem explicação ao final do século XIX,
confinada em uma diminuta região do espaço, conforme mencionamos na seção 2. Já em 1885,
onde também se concentraria a sua massa, sendo Balmer havia encontrado uma fórmula empírica
a maior parte do volume do material ocupada pe- que descrevia perfeitamente as raias espectrais do
los elétrons, de massa infinitamente menor, inca- hidrogênio, fórmula esta depois aperfeiçoada por
pazes de impedir a passagem das “pesadas” partí- Rydberg. Alguém advertiu Bohr de que um mode-
culas alfa. Ou seja, o metal, aparentemente sólido lo atômico bem sucedido deveria elucidar aqueles
e compacto, seria, na verdade, vazio e transparen- resultados antigos. Na verdade, ocorreu o contrá-
te como uma peneira! rio: bastou a Bohr um rápido olhar sobre a fórmu-
Rutherford propôs, então, o modelo planetá- la de Balmer-Rydberg para vislumbrar a solução
rio do átomo: no centro, um núcleo dotado de do problema, sendo capaz, ao mesmo tempo, de
carga elétrica positiva, contendo quase toda a justificar o átomo de Rutherford e explicar os es-
massa atômica; girando em torno dele, os levíssi- pectros de raias. Mas, para tanto, foi necessário,
mos elétrons. Um modelo atraente por sua seme- como antes já haviam feito Planck e Einstein, que
lhança com o sistema solar, com a única diferença entrasse em conflito com a Física Clássica.
de que, neste, a força que mantém os planetas li- Esclareçamos em que consistem os espectros
gados ao Sol é de natureza gravitacional, enquan- de raias dos elementos. Conforme descrevemos
to naquele, os elétrons são atraídos ao núcleo por anteriormente, a freqüência das ondas eletromag-
uma força de natureza elétrica. néticas, emitidas por uma cavidade em um objeto
Havia, porém, uma dificuldade: estávamos, incandescente, estende-se em um continuum des-
novamente, diante de uma proposta incompatível de valores muito pequenos até valores muito
com a Física Clássica. Segundo a Eletrodinâmica grandes, isto é, a radiação de cavidade varre um
Clássica, os elétrons em translação em torno do “espectro contínuo”. No que diz respeito à porção
núcleo, por serem dotados de carga elétrica, irra- deste espectro que podemos ver, a qual chama-
diariam continuamente ondas eletromagnéticas, mos luz, isso é facilmente verificável. Basta olhar
perdendo energia e “impulso”, até finalmente caí- para o objeto (ou cavidade) através de um prisma,
rem sobre o núcleo. Em outras palavras, o átomo e veremos todas as cores, como em um arco-íris,
de Rutherford não poderia existir como uma es- sem limites definidos entre uma e outra, passando
trutura estável. Uma instabilidade deste tipo evi- por todos os matizes intermediários. Aliás, o ar-
dentemente não afeta os planetas em torno do Sol co-íris que se forma no céu, é uma evidência de
nem os satélites artificiais em torno da Terra, pois que o espectro solar (o conjunto de freqüências
esses não são objetos eletrizados. Mas foi algo pa- contidas na luz que o Sol emite) é um espectro

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contínuo. Imaginemos que, um dia, ao olharmos des, identificadas cada uma por um número intei-
para o céu, víssemos um arco-íris estranho, con- ro, m ou n:
tendo, digamos, apenas quatro linhas coloridas,
h × RH h × RH
bem definidas e separadas, uma vermelha, uma h × f= − (equação 7).
2
alaranjada, uma verde e uma violácea. Isso seria n m2
uma evidência de que, nesse dia, o Sol desistira de
emitir luz de todos os infinitos matizes possíveis, Bohr assumiu, então, “como princípio”, a
concentrando-se em apenas quatro cores bem de- existência de trajetórias em torno do núcleo, as
finidas, ou seja, tornara-se um emissor de um es- quais denominou “estados estacionários”, poden-
pectro discreto, um “espectro de raias”. do um elétron percorrê-las sem perder energia.
Pois verificou-se que amostras gasosas dos Bohr estipulou também que a cada um desses es-
elementos químicos, quando estimuladas por tados corresponde uma quantidade de energia Ek
aquecimento em uma chama ou por passagem de que pode ser calculada como
corrente elétrica, emitem radiação sob a forma de h × RH
espectros de raias. O número de raias e suas cores Ek =− (equação 8),
k2
(freqüências) são sempre as mesmas para um
mesmo elemento, constituindo-se em uma espé- onde k é um número natural que identifica a órbi-
cie de assinatura ou impressão digital do mesmo. ta ou estado em que o elétron se encontra; k é co-
Este fato é a base da espectroscopia óptica, uma nhecido como “número quântico”. A emissão de
técnica que permite descobrir a composição de um fóton, segundo Bohr, ocorre quando um elé-
uma substância mediante a análise da luz que tron salta de um estado de maior energia para ou-
emite ou absorve. tro de menor energia, devendo a energia do fóton
Consideremos o hidrogênio, o mais leve e, emitido ser igual à energia perdida pelo elétron
portanto, o mais simples dos elementos quími- neste salto. Por exemplo, se, na equação 8, fizer-
cos. De acordo com o modelo planetário de mos k = 3, teremos E3, a energia do terceiro esta-
Rutherford, seus átomos devem ser constituídos do estacionário; se fizermos k = 2, teremos E2, a
por um único elétron, orbitando em torno de um energia do segundo estado estacionário. A dife-
núcleo. A parte visível de seu espectro ostenta rença entre essas duas quantidades mede a ener-
quatro raias, nas cores vermelha, verde-azulada, gia perdida por um elétron que “cai” do terceiro
anil e violeta. A fórmula de Balmer-Rydberg que para o segundo estado estacionário:
descreve o espectro de raias do hidrogênio pode
ser escrita como h× RH  h × R H  h× R H h× R H
E3 − E2 = − 2
−− = −
3  22  22 32
RH RH
f= − (equação 6). (equação 9).
n2 m2
Mas esta deve ser também a energia E = hf
Nela, f é a freqüência da luz emitida, RH é fóton emitido no processo. Então,
um número chamado de “constante de Rydberg
para o hidrogênio” e n e m são números inteiros. h× R H h× R H
h× f = 2
− (equação 10).
Fazendo-se n igual a 2 e m igual a 3, ou 4, ou 5, 2 32
ou 6, obteremos, precisamente, as freqüências
das quatro raias visíveis no espectro de uma A equação 10 é a própria equação 7 com n
amostra de hidrogênio, na ordem em que foram = 2 e m = 3, a qual, por sua vez, dividida por h,
enumeradas acima. Bohr percebeu de imediato reproduz a equação 6. Em outras palavras, Bohr
que bastaria multiplicar a equação 6 pela cons- obteve, com base em seus pressupostos teóricos,
tante de Planck h para ter, do lado esquerdo da precisamente a fórmula empírica de Balmer-
igualdade, o quantum de energia de Einstein e, Rydberg, ou seja, explicou teoricamente os espec-
do lado direito, a diferença entre duas quantida- tros de raias.

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10. O Princípio da Correspondência 1905 até o sucesso de Bohr na explicação da es-


trutura atômica. Outro tanto tiveram que esperar
Mas faltava ainda obter o valor da constante de os físicos até que mais um passo importante fosse
Rydberg com base em pressupostos teóricos. Para dado para o desenvolvimento de uma física dos
tanto, Bohr usou de um artifício que mais tarde for- quanta. Tal passo foi dado em 1924 por Louis de
mulou como um princípio, o chamado “princípio da Broglie, ao propor o comportamento ondulatório
correspondência”. A idéia é a mesma que surgiu, da matéria12.
quando comentamos o funcionamento de um pên- Desta vez, a inspiração não veio de algum fe-
dulo: a descrição quântica deve convergir para a nômeno inexplicado ou experimento a ser inter-
descrição clássica, quando as dimensões do sistema pretado. De Broglie baseou sua proposta em uma
quântico ou o valor de suas variáveis dinâmicas concepção um tanto filosófica, um tanto poética, a
crescem, assumindo valores típicos de sistemas ma- respeito da natureza, mas bastante freqüente en-
croscópicos. Nesse caso, Bohr considerou que, para tre os físicos: a idéia de que a natureza deve ser si-
grandes valores de m e n, a freqüência do fóton métrica. Ora, estava claro que um raio de luz, um
emitido deve corresponder à freqüência da radiação ente físico cujo caráter ondulatório estivera por
prevista pela eletrodinâmica clássica. Pôde, assim, tanto tempo bem estabelecido, apresentava-se, de
calcular um valor teórico para RH em perfeito acor- fato, com um aspecto dual, devendo, às vezes, ser
do com o valor experimental já estabelecido, o que visto com feito de partículas. Por que não admitir
serviu como confirmação para suas hipóteses11. que, simetricamente, as partículas, os objetos ma-
Estranha maneira de fazer Física, a de Bohr. teriais, não estivessem também a esconder um in-
Propôs como princípio justamente o que não en- suspeitado caráter ondulatório?
tendia e precisava explicar: a existência dos estados Além da freqüência f, uma onda pode tam-
estacionários. Ao assim proceder, entrou em franco bém ser caracterizada por uma outra grandeza,
confronto com a Eletrodinâmica Clássica. E tomou chamada de “comprimento de onda”, usualmen-
como a energia de tais estados exatamente o valor te representada pela letra grega £. Seguindo ar-
extraído da fórmula empírica que almejava, mas gumentos que não cabe aqui detalhar, de Broglie
não pôde deduzir com base nos princípios gerais. E sugeriu que, a um objeto de massa M, que se
ainda exigiu que seu resultado fosse consistente, no move com velocidade V, deve-se associar um
limite, com a Física Clássica, a qual estava, ao mes- comprimento de onda expresso pela relação:
mo tempo, contrariando. Não é à toa que alguns
eminentes físicos disseram, então, que, caso Bohr £ = h/MV (equação 11).
estivesse correto, abandonariam a Física. Outros,
onde h, novamente, é a constante de Planck.
no entanto, consideraram seus resultados de suma
De Broglie atribuía realidade física a suas on-
importância e seguiram seus passos, fazendo avan-
das, às quais referia-se como “ondas de matéria”.
çar a descrição dos sistemas atômicos.
Em sua concepção, as partículas apresentavam
comportamento ondulatório, porque viajavam no
espaço, conduzidas por essas ondas, acompa-
11. As ondas de matéria de Broglie
nhando a sua propagação. Algo como um surfista
“pegando uma onda”... Daí serem elas chama-
Cerca de dez anos decorreram desde a pro-
das, também, de “ondas piloto”.
posta de Einstein sobre a natureza dual da luz em

11 Os livros didáticos costumam dar outra versão para os procedimentos de Bohr. Baseamo-nos aqui no relato de SEGRÉ, E. Dos
raios-X aos quarks. Brasília: Universidade de Brasília, 1987. p.126 e seguintes.
12 Em 1917, Einstein publicara um importante trabalho a respeito da interação entre um sistema físico quantizado e o campo

eletromagnético, no qual obtivera resultados de grande impacto. Mas Einstein “corria por fora”, mais interessado na
quantização dos campos do que no comportamento dinâmico das partículas, que dominava o interesse geral.

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A proposta de Broglie recebeu confirmação formal” de Planck ou os postulados ad hoc de


experimental em 1927, quando foi observado o Bohr. Outro exemplo é o “princípio da exclusão”
fenômeno da difração de elétrons, isto é, partícu- de Pauli, segundo o qual um estado estacionário
las exibindo comportamento ondulatório. Um im- em um átomo pode abrigar, no máximo, dois elé-
portante avanço tecnológico baseado nesta des- trons. Este princípio não se baseou em nenhuma
coberta foi a invenção do microscópio eletrônico. idéia fundamental ou essencial, mas foi estabele-
Mas a comunidade de físicos não esperou por essa cido com a única finalidade de explicar por que,
confirmação para considerar plausível o caráter em um átomo com muitos elétrons, eles não caem
dual das partículas. Já em 1925, Schrödinger, ins- todos no estado de menor energia. Mais um prin-
pirado por essa idéia, desenvolveu o que final- cípio formulado “sob encomenda”, neste caso
mente se poderia chamar de uma verdadeira teo- para viabilizar o entendimento da tabela periódica
ria quântica13. dos elementos.
Se quiséssemos identificar as linhas mestras
que orientavam o trabalho dos físicos de então,
12. Os pilares da Física Quântica em optaríamos por designar as já mencionadas idéias
sua fase pré-histórica da dualidade onda-partícula e do princípio da cor-
respondência. Em resumo, os físicos ressenti-
Para melhor avaliarmos o significado da con- am-se da falta de postulados autênticos, de princí-
tribuição de Schrödinger, façamos antes uma revi- pios gerais sobre os quais pudessem assentar uma
são crítica dos progressos relatados até aqui. Essa verdadeira teoria consistente, eficiente e abran-
Física Quântica, cujos momentos mais significati- gente. A Física vivia, de fato, uma situação não
vos acabamos de descrever, é, às vezes, referida muito favorável à sua auto-estima como ciência...
como a “antiga Mecânica Quântica”. Talvez fosse
apropriado denominar esse período de “fase pré-
histórica da Física Quântica”, pois o que ocorreu a 13. A equação de Schrödinger e o início
seguir representou, para a nova disciplina, algo da fase histórica
análogo à invenção da escrita para a humanidade.
Aquele primeiro quarto de século foi, sem A solução para esta desconfortável situação
dúvida, uma fase de grandes realizações. A dinâ- veio através de uma equação matemática propos-
mica que rege o mundo microscópico começou a ta por Schrödinger em 1926, a qual apresentamos
ser entendida, e vários fenômenos encontraram abaixo:
uma descrição plausível. A estrutura do átomo co-
meçou a ser desvendada e a tabela periódica dos  h2 2  ∂Ψ
 − 
 2m ∇ + V  Ψ = ih ∂Ψ (equação 12).
elementos, antiga conhecida dos químicos, come-  
çou a ser explicada por argumentos físicos. Mas as
bases teóricas e conceituais sobre as quais se as- Aí está um excelente exemplo daquilo que
sentava essa construção eram muito frágeis. Tra- chamamos “um modelo matemático para a descri-
tava-se, na verdade, de princípios esparsos, enun- ção de um dado conjunto de fenômenos físicos”.
ciados com o fim específico de atender a uma ne- Para o leigo, uma dúzia de símbolos incompreensí-
cessidade pontual, como a “hipótese puramente veis dispostos segundo algum critério hermético.

13 Teoria Quântica é a teoria física baseada na utilização do conceito de unidade quântica para descrever as propriedades
dinâmicas das partículas subatômicas e as interações entre a matéria e a radiação. As bases da teoria foram assentadas pelo
físico alemão Max Planck, o qual, em 1900, postulou que a matéria só pode emitir ou absorver energia em pequenas unidades
discretas, chamadas quanta. Outra contribuição fundamental ao desenvolvimento da teoria foi o princípio da incerteza,
formulado por Werner Heisenberg em 1927. Ela foi abordada nas revistas IHU On-Line, n. 130, de 28 de fevereiro de 2005,
que recebeu o título Einstein: 100 anos depois do Annus Mirabilis. João Paulo II. Balanço e perspectivas, dedicado a Einstein, e
n. 141, de 16 maio de 2005, que levou o título Terra habitável: um desafio para a humanidade. (Nota da IHU On-Line)

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Para o físico, o preenchimento das lacunas existen- equação, dos procedimentos meramente
tes na Física Quântica em sua fase pré-histórica. A matemáticos adotados para resolvê-la.
equação de Schrödinger contém em si, ao mesmo 2) A expressão encontrada para os valores
tempo, os procedimentos necessários à solução de permitidos de energia foi exatamente a
um problema físico e os princípios que os emba- mesma proposta por Bohr (equação 8),
sam. Ela é “a própria teoria”, a tão desejada teoria! com a constante de Rydberg também idên-
Isso ficará claro com o relato de sua aplicação ao tica à encontrada por Bohr. Isso significa
átomo de hidrogênio, logo a seguir. que o espectro de raias do hidrogênio ga-
Nesta equação, m representa a massa da nhou uma descrição clara e precisa no con-
partícula cujo comportamento dinâmico deseja- texto da nova teoria, com os números resul-
mos descrever; V é uma função que representa a tando de meros cálculos, sem necessidade
“energia potencial” da partícula, grandeza esta de qualquer hipótese prévia a seu respeito.
que contém a informação sobre como o mundo 3) Sendo coincidente com os resultados de
exterior age sobre ela, como influencia o seu mo- Bohr, os resultados de Schrödinger, evi-
vimento; a presença da variável tempo é indicada dentemente, satisfazem ao princípio da
pela letra t; a variável espaço está contida no sím- correspondência, mas também de maneira
bolo ∇. h é a própria constante de Planck, só que natural, sem a necessidade de impô-lo
dividida pelo fator constante 2£. Como na álge- como condição. A presença da constante
bra elementar, resolver a equação significa “achar de Planck h estabelece que seus resultados
o valor da incógnita”, aqui representada pela letra referem-se estritamente ao mundo micros-
grega £. Mas a equação de Schrödinger não é cópico, sendo redundante a sua aplicação
uma equação algébrica comum, e sim uma equa- aos sistemas macroscópicos com os quais
ção diferencial. Neste caso, a solução £ não é interagimos quotidianamente.
apenas um número ou conjunto de números, e 4) A equação de Schrödinger não permite
sim uma função matemática. £ é função das va- calcular, com exatidão, a trajetória percor-
riáveis “tempo” e “posição da partícula” e é usual- rida pelo elétron em torno do núcleo. O
mente conhecida como a “função de onda”, mas mais que ela pode fornecer é a probabili-
preferimos chamá-la de “função de estado” da dade de o elétron estar aqui ou acolá. Os
partícula. “Toda a informação que se pode obter livros didáticos costumam representar pic-
sobre o comportamento dinâmico da partícula toricamente este resultado por meio de fi-
está contida na função de estado £.” guras, nas quais o núcleo aparece como
Schrödinger aplicou, de imediato, a sua um ponto central rodeado de manchas
equação ao átomo de hidrogênio. Para tanto, bas- mais escuras ou mais claras, indicando as
tou substituir nela a letra m pelo valor da massa regiões onde é mais ou menos provável
do elétron e a letra V pela função que representa a encontrar-se o elétron. Na teoria de Schrö-
energia potencial de interação (atração) entre o dinger, o elétron é descrito como uma
elétron e o núcleo, conhecida da Eletrostática. Re- “partícula” de ínfimas dimensões, dotada
solvendo a equação, Schrödinger encontrou os de massa e de carga elétrica e de localiza-
resultados abaixo descritos e comentados: ção imprecisa, indefinida. Esta é a nova vi-
1) A equação só apresenta soluções para de- são que substitui a paradoxal dualidade
terminados valores de energia, ou seja, a onda-partícula, aceita (a contragosto!) du-
energia do átomo de hidrogênio é uma va- rante a fase pré-histórica.
riável discreta, quantizada. Assim, não há Comparemos este quadro com o apresenta-
necessidade de nenhum postulado, afir- do pela antiga Mecânica Quântica, descrito na se-
mando a priori a quantização da energia ção anterior. Fica claro que, com a nova Mecânica
ou a existência de estados estacionários. Quântica de Schrödinger, a Física Quântica en-
Tudo decorre naturalmente da solução da controu a linguagem adequada para sua expres-

23
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

são e desenvolvimento, qual seja, a Matemática, cio de um processo. Outros passos foram necessá-
que, de resto, é a linguagem natural e adequada rios até tornar-se uma teoria mais geral e abran-
para a Física, de um modo geral14. Eis porque, gente, passando a merecer a denominação de Fí-
guardadas as proporções, podemos traçar um pa- sica Quântica. Em primeiro lugar, a equação de
ralelo entre o significado do surgimento da equa- Schrödinger aplica-se apenas a partículas que se
ção de Schrödinger para a Física Quântica e a des- movem em baixas velocidades. Uma versão que
coberta da escrita para a humanidade. contempla situações relativísticas (isto é, adaptada
Embora a equação de Schrödinger sirva para para grandes velocidades) foi, de imediato, desen-
descrever a dinâmica de uma única partícula, arti- volvida por Dirac e foi fundamental para a descri-
fícios de cálculo, que permitiram aplicá-la ao caso ção precisa da estrutura atômica. Para o tratamen-
de átomos complexos, foram desenvolvidos. Com to de sistemas envolvendo um grande número de
o avanço dos recursos computacionais, foi possí- partículas, criaram-se as teorias estatísticas quânti-
vel calcular, com precisão e riqueza de detalhes, a cas, em contrapartida à mecânica estatística clássi-
estrutura eletrônica dos átomos de qualquer ele- ca. Mas essas teorias aplicam-se apenas a partícu-
mento químico, explicando seu espectro de raias, las materiais, não servem para descrever a dinâ-
suas propriedades físicas e até mesmo seu com- mica dos fótons, uma vez que a estes não se pode
portamento químico. A tabela periódica dos ele- atribuir um valor para a massa. Então, para des-
mentos ficou inteiramente explicada e não seria crever a quantização do campo eletromagnético,
exagero dizermos que a química encontrou seus surgiu a Teoria Quântica de Campos. Eletrodinâ-
fundamentos nas leis da Física. mica quântica, Ótica Quântica, Cromodinâmica
A equação de Schrödinger levou a previsões Quântica são extensões da teoria, apropriadas à
notáveis a respeito do comportamento dos siste- descrição de determinadas categorias de fenôme-
mas microscópicos, todas elas comprovadas em nos físicos. A cada passo, a linguagem e os recur-
experimentos posteriores. Mencionaremos, de pas- sos matemáticos tornam-se mais complexos e
sagem, apenas duas, talvez as de maior impacto. mais difícil se torna levar ao leigo uma informação
Com relação aos osciladores físicos, deduziu-se fidedigna e consistente.
que sua menor energia de oscilação não pode ser Mas houve também tropeços. A Física Quân-
zero, conforme postulara Planck, mas existe um va- tica não mostrou a mesma adequação para a des-
lor mínimo admissível, que é denominado de crição dos processos nucleares. De certa forma, os
“energia de ponto zero”. Em outras palavras, um problemas relativos ao núcleo atômico foram su-
oscilador físico jamais alcançará o repouso. A outra perados sem serem resolvidos, pois a discussão
previsão refere-se ao chamado “efeito túnel”, que é deslocou-se para uma escala ainda mais diminu-
como se denomina a possibilidade de uma partícu- ta, a do mundo das partículas elementares, mun-
la confinada escapar ao confinamento como se en- do este que ainda hoje carece de uma teoria que o
contrasse um túnel nas “paredes” do sistema. Duas represente de maneira satisfatória. Atualmente, os
importantes aplicações deste efeito são a explica- físicos trabalham na busca de uma teoria capaz de
ção da radioatividade alfa e a construção dos mo- fornecer uma descrição unificada de todas as for-
dernos microscópios de tunelamento. ças da natureza, que são classificadas em quatro
tipos: as forças gravitacionais, as forças eletromag-
néticas, as forças fortes ou nucleares e as forças
14. O presente e o futuro fracas. Tal teoria, hoje ainda especulativa, é de-
senvolvida em linguagem matemática altamente
Apesar de todo esse sucesso, a mecânica sofisticada e designada pelas siglas GUT (Grand
quântica de Schrödinger representa apenas o iní- Unified Theory) ou TOE (Theory of Everithing). A

14 A bem da verdade, diga-se que Heisenberg propôs, simultaneamente, a Schrödinger, outra versão formal inteiramente
equivalente para a Mecânica Quântica, mas que só foi assimilada mais tarde.

24
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Teoria do Big Bang, por exemplo, pode ser descri- posição de cada elétron num dado momento, só o
ta como “os últimos avanços teóricos levados às que se pode extrair de £ é a “probabilidade” de
últimas conseqüências”. As descrições que desta encontrá-lo em um dado ponto em um dado
teoria têm sido feitas a título de divulgação científi- instante.
ca não passam de arremedos, pois, pelas comple- Um resultado frustrante, se contrastado com
xidades matemáticas que envolve, seria extrema- o que nos oferece a mecânica de Newton. Esta
mente difícil torná-la compreensível aos leigos. nos permite, por exemplo, prever com absoluta
Além do mais, é prematuro divulgá-la, pois a ex- precisão onde estará um certo corpo celeste do
plicação que ela fornece sobre as origens do Uni- sistema solar em um dado instante futuro, ou dizer
verso está longe de ser unanimemente aceita, onde esteve em qualquer momento no passado. É
mesmo no estrito círculo dos especialistas. As ra- assim que os astrônomos podem fazer previsões
zões pelas quais físicos de prestígio assumem o ris- espantosamente corretas sobre a ocorrência de
co e a responsabilidade por tais iniciativas de po- eclipses ou interpretar relatos sobre efemérides as-
pularização constituem, de fato, um verdadeiro tronômicas encontrados em documentos antigos.
mistério. Já da Mecânica Quântica, com relação à posição
de um elétron nas vizinhanças do núcleo atômico,
o máximo de informação que podemos extrair é a
15. Mecânica quântica de Schrödinger x probabilidade de ele estar aqui ou acolá...
mecânica de Newton Por que, então, não usamos a mecânica de
Newton no estudo dos átomos? Ora, porque as
Na intenção de iniciar uma discussão sobre o previsões que ela faz sobre a localização dos elé-
conteúdo essencial da Física Quântica, vamos nos trons, a sua energia, ou qualquer outra variável di-
restringir, agora, à sua versão mais simples, que é nâmica que caracterize o seu comportamento,
também a mais limitada: a Mecânica Quântica de simplesmente dão errado. No mundo macroscó-
Schrödinger. Conforme já foi dito, esta teoria des- pico, vemos os objetos com nossos olhos e seu
creve o comportamento de uma única partícula movimento futuro é perfeitamente previsível. A
em interação com o meio exterior e está inteira- Mecânica Clássica descreve adequadamente o
mente contida na equação de Schrödinger (equa- comportamento dos objetos macroscópicos, tal
ção 12). como eles aparecem aos nossos olhos ou sob a
Para saber como se comporta uma certa par- mira de nossos instrumentos. Se Newton houves-
tícula sob a ação de algum agente externo, o pro- se criado uma mecânica incapaz de ajustar-se a
cedimento é, em princípio, muito simples: basta esta realidade, capaz apenas de indicar a probabi-
resolver a sua equação de Schrödinger. Hoje, é lidade de, digamos, o sol nascer amanhã um pou-
possível programar um computador para cumprir co mais tarde ou mais cedo, ou de a próxima lua
essa tarefa. Tudo o que precisamos fazer é alimen- cheia acontecer daqui a três ou cinco semanas,
tá-lo com apenas dois dados: a massa m da partí- certamente tal mecânica não haveria sido aceita.
cula e a função V, que representa a ação externa a Já os elétrons, não podemos vê-los, nem dispo-
que ela está sujeita. O computador fornecerá, en- mos de qualquer instrumento capaz de localizá-los
tão, a solução do problema, representada pela com precisão. De que nos serviria, então, calcular
função de estado £. a sua exata posição em um dado instante? Como
A função de estado £ contém toda a infor- a equação de Schrödinger permite calcular corre-
mação que é possível obter-se sobre o comporta- tamente as energias dos estados estacionários e
mento da partícula. No caso de um átomo, con- explicar as cores presentes nos espectros de raias
forme já expusemos, é possível calcular, com ab- dos elementos, que é o que vemos dos átomos, é
soluta precisão, as energias dos vários estados es- ela, então, a teoria adequada para a descrição dos
tacionários permitidos aos elétrons. Mas, quanto à sistemas atômicos.

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16. Duas visões da natureza Lembremos que os idealizadores da Física


Quântica impuseram-lhe, desde o início, a condi-
Na seção anterior, mencionamos uma cir- ção de que obedecesse ao já mencionado princí-
cunstância a respeito das teorias físicas raramente pio da correspondência, isso é, exigiram que a sua
evidenciada ou discutida, mesmo nos cursos de nova teoria, quando aplicada a velhos problemas
Física: tais teorias são construídas com o propósito já resolvidos pela Física Clássica, desse os mes-
de descrever o comportamento dos sistemas físi- mos resultados, resultados esses, aliás, já consa-
cos dos quais se ocupam, da forma como os per- grados em virtude de sua plena concordância com
cebemos ou observamos, e sua validade é medida os fatos experimentais. Assim, no contexto da Físi-
por sua adequação a tal propósito; o confronto ca Quântica, o aparente curso determinístico dos
com a experiência é o critério definitivo para a sua fenômenos no mundo macroscópico reflete a cir-
aceitação ou rejeição. Assim, a mecânica de New- cunstância de que, nesta escala, dentre as múlti-
ton é uma teoria adequada para descrever os pro- plas possibilidades para o curso de um fenômeno,
cessos dinâmicos que ocorrem no mundo macros- uma delas, justamente aquela que estamos acos-
cópico e que não envolvem velocidades muito tumados a presenciar, é privilegiada em relação às
elevadas, e a tais processos dinâmicos restringe-se demais por ser, de longe, a mais provável; nada
o seu domínio de validade. Quanto à Mecânica impede, no entanto, ao menos em princípio, que,
Quântica, mesmo sem fornecer informação preci- em raríssimas ocasiões, algo inusitado ou surpre-
sa sobre a localização das partículas elementares, endente possa acontecer. A Newton, evidente-
dá-nos conta perfeitamente dos processos dinâmi- mente, não poderia ocorrer semelhante circuns-
cos que elas protagonizam, permitindo-nos expli- tância, pois sequer conhecia os fatos com os quais
car as sensações que nos produzem ou as indica- se defrontariam os físicos na virada do século XIX,
ções de nossos instrumentos de medida a respeito havendo a sua mecânica resultado, portanto, em
de seu comportamento. uma teoria de âmbito limitado, adequada apenas
As duas mecânicas, no entanto, oferecem aos sistemas macroscópicos e situações que não
duas concepções inteiramente diferentes acerca envolvem grandes velocidades. Então, repetindo
da natureza. A Física Clássica descreve um mundo o que já foi dito no penúltimo parágrafo da sessão
onde os fenômenos naturais ocorrem de maneira 7, a Mecânica Quântica, por abranger a Mecânica
determinista. Conhecendo-se as condições atuais Clássica e ir além dela, é considerada mais ade-
de um dado sistema e conhecendo-se as leis que quada, mais completa, mais “verdadeira”, do
regem o seu comportamento, é possível prever, ponto de vista da Física. Seria nossa percepção de
com precisão, a sua evolução ou reconstruir o seu uma natureza determinista uma mera ilusão, ape-
passado. A cada causa segue-se um efeito bem nas o resultado de nossa maneira imperfeita de
determinado. Isso corresponde ao senso comum, ver e interpretar os fenômenos naturais?
concorda com a maneira como percebemos os fa- Essa não seria uma situação nova na história
tos naturais em nosso dia-a-dia; as leis da Física da ciência. Aristóteles, baseado em suas observa-
Clássica nada mais fazem do que descrever esta ções e em sua experiência diária, formulou o prin-
nossa realidade. Já as leis da Física Quântica des- cípio de que um objeto somente executa um mo-
crevem uma outra natureza, ajustam-se a uma vimento (que não lhe seja natural) enquanto esti-
outra realidade, na qual dois sistemas físicos ver sob a ação de um agente motor; cessada a
idênticos, sob idênticas condições, provavelmen- ação deste agente, o objeto pára. Foram necessá-
te não evoluirão da mesma forma, sendo impos- rios dezoito séculos até que Galileu propusesse o
sível prever o exato curso de cada um. Em outras princípio da inércia, segundo o qual um objeto
palavras, a Física Quântica, descreve uma natu- não necessita de agente externo algum que sus-
reza em que os fenômenos naturais seguem um tente o seu movimento, mostrando, assim, que
curso aleatório, probabilístico. Mas, como será Aristóteles se deixara iludir pelas aparências, fora
de fato a natureza? enganado pelos sentidos. A força dos dados sen-

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soriais, das vivências do cotidiano é tanta que, O importante, no exemplo acima, é compre-
ainda hoje, quem não estudou Física geralmente ender que a impossibilidade de obter informações
ainda interpreta a tendência dos objetos ao repou- precisas sobre o elétron não é de ordem mera-
so à maneira de Aristóteles. Da mesma forma, é mente prática, tal que possa ser superada median-
muito difícil aceitar-se que seja da essência da na- te aperfeiçoamento dos métodos ou instrumentos.
tureza o comportamento errático, probabilístico Trata-se de uma dificuldade essencial, inerente à
dos fenômenos naturais. Esta nova dificuldade, escala do mundo microscópico, impossível de ser
no entanto, não afeta apenas aos que não estuda- transposta. Para obter informações sobre um elé-
ram Física, mas dividiu as opiniões dos próprios tron, necessitamos da intermediação de um fóton;
criadores da Física Quântica e ainda hoje é motivo mas um fóton jamais poderá “ler” um elétron sem
de discussão. com ele interagir, sem alterar as suas condições, o
seu estado. Nós, seres do mundo macroscópico,
devemos nos conformar com esta limitação ins-
17. O Princípio da Incerteza e o Princí- transponível: não nos é dado contemplar o mun-
pio da Complementaridade do microscópico como meros espectadores, sem
nele interferir, sem alterá-lo. O que vemos ao pers-
Os físicos da chamada Escola de Copenha- crutá-lo já é o resultado desta interação; talvez va-
gue, liderados por Bohr, aceitaram, com naturali- lha aqui a metáfora do elefante na loja de cristais...
dade, a nova concepção. Interpretaram o caráter E, no afã de encontrar uma teoria capaz de se
probabilístico das previsões da mecânica quântica ajustar às evidências experimentais que se iam
como a contrapartida teórica das dificuldades ine- acumulando, os físicos acabaram por construir
rentes aos processos de medida das propriedades uma teoria que não apenas explica o comporta-
dos sistemas físicos (sub)microscópicos. mento dos entes microscópicos em suas manifes-
Um exemplo pode ajudar a compreender a tações espontâneas, mas também descreve a ma-
situação. Nas estradas, os “pardais” realizam, com neira como eles reagem, quando em interação co-
grande eficiência, a tarefa de obter simultanea- nosco. Chega a ser quase obrigatório admitirmos
mente a posição e a velocidade dos automóveis, o que a resposta do mundo microscópico a essas
que é possível com o auxílio de ondas eletromag- nossas intervenções invasivas só possa ser descrita
néticas: um radar envia, na direção do automóvel, em termos de probabilidades, uma vez que o cál-
um feixe de microondas que, uma vez refletido culo das probabilidades é o recurso matemático
por ele, traz de volta ao equipamento a informa- adequado para a descrição de fenômenos aleató-
ção sobre a sua velocidade; no mesmo instante, rios. Em termos práticos, o que precisávamos era
um flash ilumina o automóvel para que possa ser de uma teoria que se ajustasse a essas circunstân-
fotografado, sendo, então, a sua posição precisa- cias todas, que descrevesse os resultados dessas
mente determinada na foto. Imaginemos o mes- interações, que explicasse as leituras de nossos
mo procedimento tendo como objeto um elétron. instrumentos de medida; a Mecânica Quântica
Suponhamos que queiramos saber, num dado cumpriu bem essa função, daí o seu sucesso.
momento, a exata posição e a velocidade de um O Princípio da Incerteza de Heisenberg e o
elétron que vem em nossa direção. Sendo o elé- Princípio da Complementaridade de Bohr foram
tron um ente microscópico, recebe as ondas lumi- construídos nessa concepção. Representam tenta-
nosas que lhe enviamos como uma rajada de fó- tivas de interpretar o caráter probabilístico da
tons, ou seja, partículas que, chocando-se contra nova teoria como resultado da impossibilidade de
ele, desviam-no de sua trajetória, alteram a sua conseguirmos informações precisas sobre o mun-
velocidade. O que poderão dizer tais fótons, uma do microscópico, tal como as obtemos sobre o
vez de volta ao equipamento, sobre a antiga velo- mundo macroscópico. O primeiro afirma que
cidade do elétron ou sobre o novo rumo que ele existem pares de grandezas dinâmicas que não
tomou? podem ser medidas simultaneamente com qual-

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quer precisão arbitrária. A posição e a velocidade da Escola de Copenhague. É certo que, por meio
de uma partícula são um bom exemplo. Quanto de experimentos, não podemos acessar o mundo
ao segundo, já nos referimos a ele na Introdução; microscópico sem nele interferir; não podemos,
discuti-lo com mais profundidade seria tarefa por portanto, por esta via, obter informação precisa
demais complexa para este trabalho. São, essen- sobre seus constituintes e seu comportamento.
cialmente, versões equivalentes da mesma idéia Mas a teoria tem obrigação de ir além, os físicos
fundamental. devem ser capazes de, pela força do intelecto,
Mas, mesmo no grupo de Bohr, aprofunda- compreender as profundezas da matéria. Em
vam-se as discussões. O famoso paradoxo conhe- 1935, Einstein juntou-se a Podolsky e Rosen para
cido como “o gato de Schrödinger” mostra que o formular o famoso paradoxo (ou argumento) EPR,
próprio criador da mais famosa equação da Física mediante o qual pretenderam demonstrar a pre-
Quântica apontava contradições na interpretação cariedade da Mecânica Quântica e a inadequação
probabilística atribuída ao formalismo da nova da concepção probabilística da natureza, que vem
teoria. A esta altura, no entanto, a teoria já avan- embutida em se arcabouço teórico.
çara muito, e a proposta do paradoxo já se deu Por suas concepções filosóficas, Einstein
em um contexto diferente do até aqui apresenta- pode ser considerado um realista. Atribuía à natu-
do, razão pela qual não o discutiremos agora. reza uma realidade objetiva, realidade esta que o
homem procura conhecer e compreender através
da ciência. Quanto mais evoluir a ciência, mais
18. Einstein e a Física Quântica próxima da realidade da natureza será a descrição
que dela fazem os cientistas. Era, também, um ho-
Albert Einstein contribuiu para o desenvolvi- mem profundamente religioso: professava uma
mento da física quântica desde a primeira hora, religião que ele próprio qualificava como trans-
mas a relevância de sua contribuição raramente é cendental. Não é difícil entender o seu realismo fi-
posta em evidência, em virtude de haver sido losófico como compatível com esta concepção
ofuscada por seu legado maior, a Teoria da Relati- transcendental a respeito de Deus e do universo.
vidade. Esquecemos, com freqüência, que o Prê- Tal concepção, no entanto, não admitiria a idéia
mio Nobel lhe foi concedido, principalmente, por de uma natureza que se comportasse aleatoria-
haver proposto a quantização do campo eletro- mente, cujas leis não impusessem aos fenômenos
magnético e, com base nela, haver explicado o um curso predeterminado, uma finalidade. Ou
efeito fotoelétrico (ver seção 8). Também já men- seja, a descrição quântica do mundo microscópi-
cionamos que, em 1917, quando o interesse geral co não poderia corresponder à verdade da nature-
era atraído pelas propriedades dinâmicas das par- za. “Deus não joga dados” foi a frase que cunhou
tículas subatômicas, Einstein “corria por fora”, para expressar esta convicção e que se tornou
mais interessado na quantização dos campos ele- famosa.
tromagnéticos, o que o credencia como um au-
têntico precursor da moderna Teoria Quântica
de Campos (ver nota de rodapé no 7). O traba- Conclusão
lho, que publicou naquele ano, contém, em seu
bojo, a indicação teórica sobre a viabilidade de Os posicionamentos filosóficos diante do for-
construir-se um amplificador de luz, o que, de fato, malismo da Física Quântica não se limitam à con-
veio a ser realizado na década de cinqüenta, resul- trovérsia entre o pragmatismo da Escola de Cope-
tando no equipamento hoje conhecido como laser. nhague e o realismo de Einstein. Há lugar para to-
Mas Einstein foi, paradoxalmente, um crítico das as tendências, do solipsismo ao positivismo,
implacável da Teoria Quântica. O seu desconten- passando por uma esdrúxula sugestão sobre a
tamento talvez possa ser sintetizado da seguinte possibilidade de o universo subdividir-se continu-
forma: ele não compactuava com o conformismo amente em universos paralelos, idênticos em

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tudo, exceto por alguma característica particular também extremamente pequena (ver se-
(por exemplo, o gato de Schrödinger estar vivo ção 7). Se usarmos a Física Quântica na
em um deles e morto no outro...). Não obstante, a descrição de um fenômeno em escala ma-
Física Quântica é um sucesso como teoria científi- croscópica, os aspectos quânticos serão
ca, na medida em que descreve adequadamente ofuscados pela magnitude dos aspectos
o mundo microscópico e nossas relações com ele, não- quânticos, e a descrição obtida será
a ponto de permitir ao homem um domínio fan- idêntica à dada pela Física Clássica (princí-
tástico sobre os fenômenos físicos nessa escala di- pio da correspondência).
minuta. O imenso impacto tecnológico, sofrido 3. A busca de efeitos genuinamente quânti-
pela civilização nas últimas décadas, é conseqüên- cos em escala macroscópica constitui-se
cia direta desse domínio. em tema de pesquisa atual. Como tema de
Ressaltemos, à guisa de conclusão, alguns pesquisa, é válido. Nenhum resultado po-
aspectos: sitivo, no entanto, foi até hoje relatado.
1. As teorias da Física só atingem a maturida- 4. Vemos, com freqüência, conceitos, princí-
de, quando expressas em linguagem mate- pios e procedimentos da Física Quântica
mática. Conforme expusemos na seção 14 aplicados a processos não-físicos (econo-
e nota de rodapé número 8, a fase madura mia, direito, psicologia, relações interpes-
da Física Quântica iniciou quando Schrö- soais, saúde...), a sistemas macroscópicos
dinger e Heisenberg desenvolveram suas (de escala incompatível com o valor da
teorias formais. Mas a Matemática é, para constante de Planck), sem a precisão de
a Física, muito mais do que mera lingua- linguagem e sem o rigorismo lógico-formal
gem: é mediante o uso de procedimentos da Matemática. Podemos admitir que pes-
da álgebra e do cálculo avançado que se soas façam uma extensão livre da Física
vão relacionando os conceitos, princípios Quântica, assim como alguém faz uma re-
e leis, de modo a extrair conclusões. Ao leitura livre de um texto ou uma interpreta-
desenvolver uma teoria, “o físico não ar- ção livre de uma obra de arte. Mas o que
gumenta, calcula”! elas estão fazendo já não é mais Física
2. A Física Quântica é a teoria que descreve Quântica. Algumas, no entanto, com ou
os processos físicos no mundo microscópi- sem formação em Física, insistem, mesmo
co (e submicroscópico). A constante de quando advertidas, em qualificar sua ação
Planck h está presente em todas as equa- como tal. Seria ótimo se tais pessoas estu-
ções da Física Quântica, sem exceção; o dassem mais Física Quântica, ou revisas-
seu valor extremamente pequeno estabe- sem o seu enfoque, ou, até mesmo, reava-
lece que os efeitos quânticos somente são liassem suas intenções.
significativos naquele mundo de escala

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As ‘digitais’ de Einstein encontram-se em todas as áreas da
Física moderna, porém temos que ter cuidado com o charlatanismo

Entrevista com Carlos Alberto dos Santos

Carlos Alberto dos Santos é graduado em Fí- aluno. Este mito é confirmatório ou paradoxal,
sica pela PUC-Rio, mestre e doutor em Física conforme o enfoque dado à produção científica
UFRGS, com a tese Composição superficial e pro- de Einstein. Se ele fosse verdadeiro, o rasgo de ge-
priedades mecânicas e tribológicas de aços carbo- nialidade poderia ter uma justificativa. Se o rasgo
no implantados com nitrogênio. Cursou pós-dou- de genialidade não for verdadeiro, o segundo
torado no Centre d’Études Nucleaires de Greno- mito não se sustenta. Na palestra, eu tento des-
ble, na França. Leciona no Departamento de Físi- constituir esses mitos, mostrando que, ao contrá-
ca da Universidde Estadual do Rio Grande do Sul rio, Einstein era bom aluno naquilo que lhe inte-
(UERGS). É autor de, entre outros, O plágio de ressava, e desde sua mais tenra idade dirigiu seu
Einstein. Porto Alegre: WS editor, 2003 e Nitre- esforço intelectual para aquilo que passou a publi-
tação Iônica. Natal: Cooperativa Cultural da car a partir de 1900.
UFRN. 1989.
IHU On-Line – Tomando como base a infân-
IHU On-Line – Quais os principais aspectos cia de Einstein, quais os fatos que poderi-
que irá abordar ao discutir a preparação de am prenunciar o aparecimento de sua
Einstein para o seu Ano Miraculoso? genialidade?
Carlos Alberto dos Santos – Existem diversos Carlos Alberto dos Santos – Existem quatro
mitos sobre a biografia de Albert Einstein15, a momentos na infância e na adolescência de Eins-
maioria dos quais persiste no imaginário popular tein prenunciadores da sua genialidade, todos eles
graças à veiculação de equívocos por meio de im- relatados pelo ele mesmo, em suas Notas Auto-
portantes meios de comunicação de massa. Um biográficas17. Entre os quatro e cinco anos, seu
deles é que Einstein teve uma tempestade de cria- pai lhe deu de presente uma pequena bússola.
tividade em 1905. Tudo que ele fez naquele Ano Einstein ficou muito intrigado com o fato de que a
Miraculoso16 é fruto de um rasgo de genialidade. agulha sempre apontava na mesma direção, qual-
Outro mito bastante difundido é que ele era mau quer que fosse a posição da bússola. O que o inco-

15 Sobre Einstein, confira a edição n° 135 da revista IHU On-Line, sob o título Einstein. 100 anos depois do Annus Mirabilis. A
publicação está disponível no sítio do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), endereço www.unisinos.br/ihu. A TV Unisinos
produziu, a pedido do IHU, um vídeo de 15 minutos em função do Simpósio Terra Habitável, ocorrido de 16 a 19 de maio
de 2005, em homenagem ao cientista alemão, do qual o professor Carlos Alberto dos Santos participou, concedendo uma
entrevista. (Nota da IHU On-Line)
16 Ano Miraculoso, ou ainda Annus Mirabilis – denominação dada ao ano de 1905, quando Einstein publicou seus trabalhos

sobre o efeito fotoelétrico, a relatividade especial e o movimento browniano. (Nota da IHU On-Line)
17 EINSTEIN, Albert. Notas autobiográficas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. (Nota da IHU On-Line)

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modava era que não havia nada “segurando” a te, atraindo a ira dos professores. Foi desse tipo de
agulha. Essa ação a distância (que depois ele veio contexto que se gerou o mito do aluno relapso. No
a saber ser devida ao campo magnético terrestre) exame final do Ensino Médio, Einstein teve quase
passou a incomodá-lo durante seus estudos uni- todas as notas entre 9 e 10. No exame intermediá-
versitários e foi uma das motivações para a idéia rio na Escola Politécnica (ETH), ao final dos dois
da curvatura do espaço-tempo, conceito funda- primeiros anos, ele teve a melhor média da turma.
mental na sua teoria da relatividade geral. O se- No exame final, ele teve a pior nota entre os apro-
gundo momento revelador ocorreu quando ele ti- vados. Mileva, sua primeira mulher, foi reprova-
nha dez anos de idade. Desafiado por seu tio, ele da. Sabe-se hoje, contudo, que, nos dois últimos
demonstrou o teorema de Pitágoras, apenas ob- anos do curso, ele estava interessado em assuntos
servando figuras geométricas (retas paralelas, que não eram tratados na ETH. Na verdade, ele
convergentes e triângulos diversos). O terceiro estava se preparando, sozinho, para o que viria a
momento ocorreu entre os doze e os quatorze ser, o criador de universos.
anos, quando ele aprendeu, sozinho, noções de Antes dos magníficos trabalhos de 1905, Eins-
cálculo diferencial e integral. Finalmente, no quar- tein publicou, de 1901 a 1904, cinco trabalhos no
to momento, aos dezesseis anos, na Escola Canto- Annalen der Physik. Embora os trabalhos não con-
nal de Aarau, ele se imagina correndo com a velo- tivessem grandes novidades, pois que já haviam
cidade da luz, ao lado de uma onda eletromagné- sido abordados por Boltzmann18 e principalmente
tica. Sua intuição sugere que ele veria o campo por Gibbs19, a forma autônoma como Einstein tra-
eletromagnético estacionário. No entanto, isso é tou a mecânica estatística foi suficiente para que os
uma contradição, pois que a onda está se propa- editores do Annalen o convidassem para fazer rese-
gando! Este problema foi resolvido ao longo de nhas de artigos e livros publicados em outros jor-
dez anos, e constitui o cerne da teoria da relativi- nais. Ele chegou a resenhar um artigo e um livro
dade restrita. publicados por Max Planck20. Trata-se de um privi-
légio normalmente concedido a grandes cientistas,
IHU On-Line – Como caracteriza a trajetória e não a um jovem de 25 anos, sem o título de dou-
estudantil e a carreira acadêmica de Einstein? tor, nem vínculo com o meio acadêmico.
Carlos Alberto dos Santos – Einstein detesta-
va tudo que exigia memorização, e não tinha IHU On-Line – Além da Teoria da Relativida-
qualquer respeito pela autoridade. Então, quando de, quais são as outras contribuições impor-
o assunto não lhe interessava (biologia, línguas es- tantes de Einstein para a Física moderna?
trangeiras, história), ele não fazia a menor questão Carlos Alberto dos Santos – Sem exagero, po-
de esconder seu desapontamento, e provavel- demos dizer que as “digitais” de Einstein encon-
mente deixava transparecer uma atitude arrogan- tram-se em todas as áreas da Física moderna e,

18 Ludwig Edward Boltzmann (1844-1906): matemático e físico austríaco. Sistematizou o conceito de entropia, segundo o qual
há uma tendência natural de a energia se dispersar e de a ordem evoluir invariavelmente para a desordem. Explica o
desequilíbrio natural entre trabalho e calor. (Nota da IHU On-Line)
19 Josiah Gibbs (1839-1903): professor de Física e Matemática na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Propôs uma

fórmula mais abrangente, que inclui certos tipos de interações entre as moléculas. A fórmula de Boltzmann-Gibbs tem sido
usada pelos físicos por cerca de 120 anos. (Nota da IHU On-Line)
20 Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858-1947): físico alemão, considerado o pai da Teoria Quântica. Em 1899, descobriu uma

nova constante fundamental, chamada em sua homenagem Constante de Planck, que é usada, por exemplo, para calcular a
energia do fóton. Um ano depois, descobriu a lei da radiação térmica, chamada Lei de Planck da Radiação. Esta foi a base da
Teoria Quântica, que surgiu dez anos depois com a colaboração de Albert Einstein e Niels Bohr. De 1905 a 1909, Planck atuou
como diretor-chefe da Deutsche Physikalische Gesellschaft (Sociedade Alemã de Física). Como conseqüência do nascimento
da física quântica, foi premiado, em 1918, com o Prêmio Nobel de Física. Após sua morte, o instituto KWG passou a chamar-se
Max-Planck-Gesellschaft zur Förderung der Wissenschaften (MPG, Sociedade Max Planck para o Progresso da Ciência). (Nota
da IHU On-Line)

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por conseqüência, em praticamente toda tecnolo- editando todos os documentos de Einstein) diante
gia contemporânea. A mecânica estatística base da possibilidade do plágio. A novela desenvol-
essencial para o desenvolvimento da Física da ve-se sobre a investigação da autenticidade de do-
matéria condensada, teve seu grande impulso de- cumentos comprometedores para a honra de
pois dos trabalhos de Einstein. Em 1917, ele pu- Einstein. Descobre-se finalmente que se trata de
blicou um artigo com os fundamentos teóricos do uma fraude.
laser. Observe que este só veio a ser inventado
nos anos 1960. Isso tudo para não falar na idéia IHU On-Line – Qual é a atualidade das des-
do fóton21, o quantum de luz. cobertas de Einstein?
Carlos Alberto dos Santos – Parte da resposta
IHU On-Line – Realmente Einstein plagiou a esta questão está na resposta à questão 4, mas
o cientista italiano Olinto de Pretto? Como ela não pára ali. A busca por uma teoria do campo
se explica esse fato? unificado, empreendida por Einstein, continua
Carlos Alberto dos Santos – Por volta de até, hoje envolvendo uma enorme comunidade
1985, o historiador da Universidade de Peruggia, de cientistas em todas as partes do mundo. O con-
Umberto Bartocci22, descobriu que, um ano antes densado Bose-Einstein, previsto nos anos 1920,
de Einstein, Olinto de Pretto23, um cientista ama- só recentemente foi realizado, e valeu o Prêmio
dor italiano, também publicara um trabalho com Nobel de Física de 2001 para três cientistas nor-
uma equação do tipo E=mc2. Na sua pesquisa, o te-americanos24. Esta realização experimental de-
Prof. Bartocci descobriu que um irmão de Olinto verá ter repercussões interessantíssimas, na medi-
trabalhava com o tio de Michele Besso, grande da em que permitirá testes da Teoria Quântica em
amigo de Einstein. Com base nessa coincidência, objetos macroscópicos.
ele levantou a hipótese de que Einstein teria tido
conhecimento do trabalho e que provavelmente te- IHU On-Line – Como a Física dialoga com
ria se motivado a escrever o seu. O jornal inglês outras ciências hoje e quais são seus desafi-
The Guardian deu grande publicidade ao caso, e os para o futuro?
várias suspeitas de plágio foram levantadas em ou- Carlos Alberto dos Santos – Os séculos XIX e
tros veículos de comunicação. Bartocci tentou, mas XX são considerados os séculos da Física. Chega-
não conseguiu publicar sua pesquisa em pelo me- mos aonde chegamos, em termos científicos e tec-
nos duas revistas de história. Os editores considera- nológicos, graças à Física. Hoje consideramos que
ram inverossímil sua hipótese. De fato, o trabalho o século XXI será o século da Biologia e áreas cor-
de Olinto de Pretto, baseado na existência do éter e relatas (Engenharia Genética, Nanotecnologia25),
pleno de equívocos conceituais não poderia ter e grande parte dessa história tem a ver com as
motivado Einstein a deduzir sua famosa equação. aplicações que hoje podemos fazer dos conheci-
Tendo por base esses fatos, escrevi a novela mentos adquiridos com a Física. Um dos grandes
O plágio de Einstein, na qual vemos o desespero desafios é o desenvolvimento da Nanociência a
de um hipotético staff (inspirado no staff que está serviço das ciências médicas.

21 Fóton: partícula mediadora da força eletromagnética. O fóton também é o quantum da radiação eletromagnética, incluindo a
luz. (Nota da IHU On-Line)
22 Umberto Bartocci: professor de Geometria e História da Matemática da Universidade de Peruggia, na Itália. (Nota da IHU

On-Line)
23 Olinto de Pretto: cientista italiano de Vicenza, Bolonha, falecido em 1921. (Nota da IHU On-Line).

24 Trata-se dos cientistas Eric Cornell, Carl Wieman e Wolfgang Ketterle. (Nota da IHU On-Line)

25 Nanotecnologia: ciência associada a diversas áreas (como a medicina e eletrônica) de pesquisa e produção na escala nano.

O princípio básico da nanotecnologia é a construção de estruturas e novos materiais com base nos átomos (como se fossem
tijolos). É uma área promissora, mas que dá apenas seus primeiros passos, mostrando, contudo, resultados surpreendentes,
como na produção de semicondutores, por exemplo. Sobre o assunto, a IHU On-Line publicou a edição 120, de 25 de
outubro de 2004, intitulado O mundo desconhecido das nanotecnologias. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – Qual é a importância de estu- microeletrônica. A relatividade geral resultou na


dar esse assunto numa universidade, sobre- moderna cosmologia, que é a forma como enten-
tudo para um público composto por estudio- demos o mundo. Também na tecnologia, a relati-
sos de outros ramos do conhecimento e tam- vidade geral tem influência: se não fossem usa-
bém pessoas de fora do meio acadêmico? das correções relativísticas nos equipamentos de
Carlos Alberto dos Santos – Existem vários GPS27, seriam acumulados erros da ordem de 11
ângulos para se abordar essa questão. Em primei- km por dia.
ro lugar, a caminhada intelectual de Albert Einstein
é um excelente objeto de estudo para a epistemo- IHU On-Line – Em recente artigo, o senhor
logia da ciência. Depois, a sua própria história de afirmou que “Einstein percebia similarida-
vida tem facetas importantes conectadas com o des nos princípios básicos em contextos
preconceito e a intolerância humana. Finalmente, aparentemente desconexos”. O senhor po-
o conhecimento estrito das suas pesquisas são im- deria, de maneira exemplificativa, discorrer
prescindíveis para o entendimento da Física e de sobre essa característica da percepção de
grande parte da tecnologia contemporânea. Einstein?
Carlos Alberto dos Santos – No final do século
IHU On-Line – Diz o famoso panegírico so- XIX, a física clássica era composta, essencialmen-
bre Newton que ele trouxe para a luz do dia te, da mecânica newtoniana, da termodinâmica e
as leis sobre as quais Deus havia lançado do eletromagnetismo. Essas três áreas tinham
um “manto escuro”. Como podemos nos re- pouca conexão. A teoria cinética dos gases usava
ferir às descobertas de Einstein? conceitos da mecânica, mas ainda estava no início
Carlos Alberto dos Santos – Acho que é a do seu desenvolvimento. O problema da radiação
mesma coisa. O que Galileu e Newton fizeram de corpo negro (um problema essencialmente da
com a ciência aristotélica, Einstein fez com a física termodinâmica) foi resolvido por Max Planck28,
clássica (mecânica newtoniana, eletromagnetis- quando, em 1900, ele propôs que a energia só po-
mo, termodinâmica). Todos eles quebraram para- dia ser absorvida ou emitida em quantidades bem
digmas vigentes. Einstein foi o estopim, que ou- definidas, que ele denominou quantum, e sua
tros contribuíram para acender e transformar a energia era definida pelo produto da freqüência
ciência e a tecnologia do século XX. Praticamente da radiação emitida pelo corpo aquecido e de
tudo que hoje temos na tecnologia, vem daqueles uma constante, que depois veio a ser denominada
trabalhos da virada do século. constante de Planck. No entanto, ele entendia que
esta constante era tão somente um artifício mate-
IHU On-Line – Quais as decorrências das des- mático para ajustar a curva espectral. Naquela
cobertas de Einstein que o senhor destaca? mesma época, havia outro problema, circunscrito
Carlos Alberto dos Santos – Quase tudo que ao eletromagnetismo. Era o efeito fotoelétrico, isto
temos hoje no nosso cotidiano (em termos tecno- é, quando uma chapa metálica era irradiada por
lógicos) vem das descobertas de Einstein. Para as algum tipo de radiação eletromagnética (por
situações mais óbvias, o caminho é simples e cla- exemplo, radiação ultravioleta), ela adquiria car-
ro: quantização da radiação eletromagnética – ga elétrica positiva. Na verdade, o fato essencial
modelo atômico de Rutherford e Bohr26 – mecâni- era que ela emitia elétrons. Para resolver esse pro-
ca quântica – física nuclear – semicondutores – blema, Einstein tomou emprestada a idéia de

26 Niels Henrick Borh (1885-1962), físico dinamarquês, apoiando-se em pesquisas de Nelson Ernest Rutherford, físico neo-zelandês
(1871-1937) e de Max Plack (ver nota abaixo) concebeu uma teoria atômica que destacou-se pela exatidão. (Nota da IHU
On-Line).
27 Sigla de Global Positioning System. Trata-se de um sistema de rádio navegação, baseado em satélite. Determina a posição do

usuário 24 horas por dia, sob qualquer condição climática e em qualquer local do mundo. (Nota da IHU On-Line).
28 Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858-1947), físico alemão, considerado o pai da teoria quântica (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Planck e a estendeu para a radiação: ele propôs IHU On-Line – Como o senhor avalia o ensi-
que a radiação eletromagnética, isto é a luz, era no de Física no Brasil? As suas dimensões e
composta de corpúsculos, também denominados projeções “miraculosas” vêm sendo com-
quantum. Hoje esses corpúsculos são conhecidos preendidas adequadamente?
como fótons. Essa foi a grande revolução do início Carlos Alberto dos Santos – Há um problema
do século XX. Ao explicar o efeito fotoelétrico, muito sério para o ensino das ciências no Brasil: a
Albert Einstein deu vida à constante de Planck. baixa valorização do professor, sobretudo no ensi-
Oito anos depois, Niels Bohr a usaria no seu mo- no médio, onde esta situação é mais crítica. Na
delo atômico (na verdade, modelo proposto por universidade, recebemos alunos com a mente
Rutherford). Então, ao conectar termodinâmica e completamente deformada. Muito esforço tem
eletromagnetismo, Einstein deu o grande passo que ser feito para quebrar os misconceptions (ou
para a formulação da teoria quântica. concepções espontâneas) e iniciar um processo
razoável de ensino-aprendizagem. Com a baixa
IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre a remuneração, os professores são obrigados a as-
aplicação dos conceitos quânticos em ou- sumir uma exagerada carga didática, impedindo o
tras áreas do conhecimento humano? necessário aperfeiçoamento.
Carlos Alberto dos Santos – Vejo com muita
preocupação o exagero que se comete na genera- IHU On-Line – Para o ensino das ciências
lização dos conceitos quânticos. Freqüentemente naturais, o que são alunos “com a mente
não passa de charlatanismo ou uso inadequado completamente deformada”?
de analogias. Carlos Alberto dos Santos – Em suma, uma
mente é “deformada” em ciência, quando, na so-
IHU On-Line – O senhor pode relacionar al- lução de qualquer problema, deixa de usar os
gumas das analogias que lhe parecem força- conceitos fundamentais da matéria pertinente.
das e/ou temerárias? Isso se manifesta claramente pela falta de uso da
Carlos Alberto dos Santos – Você já viu um livro intuição. Por exemplo, ao perguntar o que acon-
cujo título é algo como Administração Quânti- tece quando largamos uma pedra (simplesmente
abrimos a mão e a deixamos livre), a maioria dos
ca29? O professor Moacir Araújo Lima (participa
alunos tenta responder, apelando para conceitos
com freqüência dos programas da TV Guaíba)
complexos, alguns dos quais eles não têm a me-
costuma dizer que a teoria quântica, ao estabele-
nor idéia do que significam. Falam em campo gra-
cer que a medida depende do observador, justifi-
vitacional, força gravitacional, etc. Quase nenhum
ca os ensinamentos espíritas. É esse tipo de exage-
diz a resposta óbvia: A PEDRA CAI. Essa é a prime-
ro que me preocupa. A teoria quântica só vale no
ira resposta a ser dada. É tão simples, não? Mas a
mundo microscópico. Sequer vale na cosmologia!
deformação de uma educação inadequada impe-
Como será possível extrapolá-la para o comporta-
de que o aluno PENSE SIMPLES!
mento humano, ou espiritual? Infelizmente, não
posso entrar em detalhes, pois não costumo me-
IHU On-Line – Considerando que o termo
morizar as abordagens exóticas em torno da física.
“milagre” designa basicamente um fenôme-
No livro Imposturas intelectuais30, do Sokal,
no inexplicável pelas leis naturais, não é cu-
há uma boa coleção.

29 Provavelmente o entrevistado refira-se ao livro Em busca da empresa quântica, de Clemente da Nóbrega. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1996. Está esgotado, já em sua segunda edição. (Nota da IHU On-Line).
30 Sokal, Alan e Bricmont, Jean. Imposturas intelectuais. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999 (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

rioso que o ano de 1905, quando foram pu- ral Anni Mirabiles) para se referir aos anos de
blicados os artigos paradigmáticos de Eins- 1664-1666, quando Newton realizou seus estudos
tein, seja denominado de “ano milagroso” sobre ótica. Acho que qualquer pessoa, por mais
pelos cientistas? agnóstica que seja, sempre manifesta espanto
Carlos Alberto dos Santos – Esse termo vem com as grandes descobertas. Esse espanto é mani-
do latim Annus Mirabilis, e já foi utilizado (no plu- festado pela admissão de um “milagre”. Acho que
é uma espécie de figura de linguagem.

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A ciência contemporânea ainda funciona de acordo
com o determinismo cartesiano

Entrevista com Alfredo Gontijo de Oliveira

Alfredo Gontijo de Oliveira é professor do mesmo essas, regidas por relações de incertezas.
Instituto de Ciêncas Exatas da Universidade Fede- Outro aspecto é que, da mesma forma que a escri-
ral de Minas Gerais (UFMG). É mestre em Física ta abre novos níveis de Realidade para o conheci-
pela UFMG, doutor em Física pelo Instituto de mento, a física quântica também o faz, ao unificar
Cristalografia. Universitat Freiburg (Albert-Ludwigs), a realidade das manifestações ondulatórias com
A.L.U.F., Alemanha, e pós-doutor pelo Imperial as manifestações corpusculares, trocando um
College Londres, IC, Inglaterra e pela Universitat “ou” por um “e”. Várias outras rupturas têm a
Zurich, U.ZURICH, Suiça. Também é diretor do mesma dimensão para o conhecimento. Na atua-
Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares lidade, eu citaria a revolução da informática.
da UFMG. Juntamente com Chaves. A.S. e Silva.
C.E.T.G, é autor do livro Proceedings of the IHU On-Line – As evidências científicas aci-
Fourth Brazilian School of Semiconductor ma referidas ainda são pouco compreendi-
Physics. Londres: Word Scientific, 1990. das pelas demais disciplinas. Tal fato pare-
ce indicar a ausência de um debate trans-
IHU On-Line – As descobertas da física disciplinar. Como iniciá-lo? Como o senhor
quântica são tidas como análogas à inven- avalia, de maneira geral, a postura das insti-
ção da escrita. Em termos leigos, por quê? tuições responsáveis por tal iniciativa?
Alfredo Gontijo de Oliveira – O que une os Alfredo Gontijo de Oliveira – A dificuldade
dois conceitos é que eles geraram grandes ruptu- com a física quântica está na compreensão de sua
ras na história do conhecimento e da humanida- base conceitual. Como ferramenta de cálculo, ela
de. Com a invenção da escrita, nossa memória mostrou toda a sua robustez e as previsões feitas
pode ser aliviada para desenvolver atividades pela teoria quântica foram comprovadas para
mais criativas. Criou-se também a base para a além de qualquer imprecisão referenciada em pa-
construção da cultura e da história, registrada em râmetro antropológico. A grande diversidade de
documentos. No final do século XIX, acreditou-se formulações da física quântica é outro aspecto
que a ciência havia chegado ao fim, com base na complicador de sua base conceitual. A interlocu-
formulação das leis clássicas da física, para descre- ção entre áreas se dá pela transposição de concei-
ver a interações gravitacionais e eletromagnética tos e menos por aspectos matemáticos e funciona-
com equações determinísticas que permitiam en- is da teoria. As unificações se dão pelas universali-
tender o passado, presente e “prever” o futuro. A dades que as teorias contêm. As lógicas das for-
física quântica veio subverter essa ordem, no sen- mulações quânticas estão sendo utilizadas para
tido de introduzir um aspecto probabilístico. So- fundamentar teorias nas áreas em que o conheci-
mente podemos fazer previsões probabilísticas e, mento é complexo. Assim, o conceito de emara-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nhamento de estados quânticos (ou de uma forma ria dedicada ao ensino da ciência contemporâ-
simples, um sistema pode estar quanticamente em nea, ou seja, aquela do século XX com destaque
dois estados físicos diferentes, simultaneamente) para a física quântica, a ciência da complexidade,
tem sido utilizado para, metaforicamente, funda- fenômenos não-lineares. Qual é a dificuldade
mentar novas lógicas harmonizadoras de contra- para fazer isso? Trata-se de uma nova prática e a
ditórios. Esse é o caso da “lógica do terceiro incluí- resistência será muito grande.
do” em que, existindo elementos A e não-A, existe
também um elemento T que é simultaneamente A IHU On-Line – Em linhas gerais, quais os
e não-A. Esse tipo de transposição pode ser feito principais debates da física na atualidade
metaforicamente entre várias áreas do conheci- e quais serão seus possíveis reflexos na
mento. O risco é que, em muitos casos, essas sociedade?
transposições metafóricas sejam feitas, violando Alfredo Gontijo de Oliveira – Essa questão é
os princípios básicos de uma das duas áreas e aí muito abrangente e começarei fazendo uma abor-
temos o que tem sido designado de “impostura in- dagem também abrangente. Existe hoje aquilo
telectual”, ou seja, a transposição perde sua vali- que podemos chamar de as três principais frentes
dade. No que se refere à incorporação desse de- de trabalho científico: o muito grande (questões
bate pelo sistema educacional, temos algumas di- que envolvem, por exemplo, a origem do mun-
ficuldades. Primeiro: ele ainda é fortemente regi- do); o muito pequeno (que cai no domínio da físi-
do por práticas pedagógicas que encontram seus ca quântica); e o muito complexo (que cuida de
fundamentos na ciência do século XIX: linear, de- questões em que “o todo é mais que a soma das
terminístico, individualista, competitivo, e várias partes”). Um grande desafio para a física hoje é
outras características dessa natureza. Segundo: o uma teoria que consiga “unificar” o muito grande
ensino de ciências ressente-se da falta de educa- com o muito pequeno. Entretanto, do ponto de
dores preparados para levar uma mensagem cien- vista antropológico, as questões do muito comple-
tificamente consistente à população. Temos tam- xo é que parecem ser as mais interessantes. Por
bém um enorme poder sedutor das tecnologias, exemplo, como explicar o fenômeno da consciên-
que são vistas como brinquedos, advindo da apli- cia? Na ausência de uma teoria reducionista que
cação da ciência contemporânea, ou seja, usu- nos permita responder (no momento?) questões
frui-se da ciência mais como se ela fosse um orá- dessa natureza, resta-nos a opção de trabalhar leis
culo, inacessível ao cidadão. Provocativamente, da natureza, de forma empírica. As ciências bioló-
eu pensaria em formular um conteúdo de ensino gicas fizeram isso com competência no século XX.
de física em que, independente da carga horária, Retornando à questão das transposições metafóri-
ele estaria dividido em duas partes iguais de tem- cas, encontramos no conceito de autopoiésis31,
po. A primeira metade seria dedicada ao paradig- gerado por Maturana32 e Varela33 na biologia,
ma cartesiano (mais ou menos o estado da ciência uma formulação que consegue estabelecer uma
do final do século XIX) de uma forma pedagogica- sólida ponte com a ciência da complexidade, que
mente correta, ou seja, trabalhando um “conjunto tem sido preferencialmente trabalhada por físicos.
manuseável de exemplos”. A segunda metade se- Ele consegue, também, estabelecer conexões com
áreas das humanidades.

31 O termo autopoieses, designa os processos de funcionamento de sistemas auto-organizáveis vivos, mas que engloba também
outras dimensões, como processos sociais, produção de conhecimento e inteligência artificial. Foi criado por Humberto
Maturana e Francisco Varela (Nota da IHU On-Line).
32 Humberto Maturana e Francisco Varela são biólogos chilenos. Entre outros, escreveram El Arbol Del Conoscimiento.

Santiago do Chile: 1994. Editorial Universitária. Santiago do Chile, 1994 (Nota da IHU On-Line).
33 Francisco J. Varela (1946-2001): Ph.D. em Biologia. Nascido no Chile, foi diretor de pesquisas do Centro Nacional de

Pesquisas Científicas (CNRS) no Laboratório de Neurociências Cognitivas do Hospital Universitário da Salpêtrière, em Paris,
além de professor da Escola Politécnica, também em Paris. (Nota da IHU On-Line).

37
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Como o senhor analisa a trans- ensino começa com cinemática e costuma não
posição dos conceitos da física quântica para abordar a Física do século XX. Esta continua ina-
outros campos do conhecimento? Quais os cessível e hermética para o profissional formado
limites desejáveis à transdisciplinaridade? na universidade. No século XX, a Física reinou
Alfredo Gontijo de Oliveira – Já abordei um como ciência emblemática: pela explicação da na-
pouco sobre essa questão da transposição. Gosta- tureza na sua versão clássica, pela geração de rup-
ria mais de reforçar agora a necessidade de apren- turas como a produzida pela física quântica, pela
der ciência. Por exemplo, podemos nos questio- metodologia de contrapor experiências e teorias e
nar em que extensão os fenômenos biológicos (a pela produção de uma base conceitual que permi-
consciência, por exemplo) são regidos pelas leis tiu que a engenharia produzisse dispositivos que
da física quântica. Nesse caso, seria importante disponibilizou inúmeros artefatos tecnológicos para
uma mais ampla disseminação do mundo quânti- a sociedade. No século XXI, esse papel da Física
co para todas as outras áreas do conhecimento, será mais sutil, por exemplo, mostrando que as teo-
para se fazer as apropriações metafóricas. Sobre rias do muito complexo podem ser transpostas legi-
os limites da transdisciplinaridade, eu gostaria de timamente para outras áreas do conhecimento.
pensar que a inexistência de limites é uma de suas
características. O estabelecimento de limites co- IHU On-Line – O senhor gostaria de acres-
lapsa a transdisciplinaridade em disciplinaridade centar outros comentários?
(com suas vertentes na multi e na inter). Nesse Alfredo Gontijo de Oliveira – Acredito que, na
sentido, as metodologias transdisciplinares devem segunda metade do século XX, a humanidade vi-
procurar trabalhar unificações abertas, no sentido veu uma ruptura conceitual que somente encon-
de operar nos espaços vazios das disciplinas e no tra similar na Renascença. Embora a base concei-
traspassamento entre elas. Unificação aberta re- tual científica para fundamentar essa nova relação
presenta a impossibilidade de unificação absoluta. do homem consigo mesmo e com a natureza, já
Trata-se de uma utopia? Talvez. Mas essa indefini- esteja razoavelmente bem posta, ela ainda não foi
ção da transdisciplinaridade será, no mínimo, popularizada. Uma grande dificuldade é que, em-
uma forte força propulsora das abordagens disci- bora a ciência contemporânea já tenha em si o in-
plinares levando as pessoas a trabalharem ques- determinismo inerente das questões antropológi-
tões, problemas, temas, etc., com o olhar do ou- cas, ela ainda funciona de acordo com o determi-
tro. Rompe-se com o olhar individualista, mas nismo cartesiano. Várias tecnologias estão agora
preserva-se a individualidade que, como elemen- cuidando dessas questões e vemos, por exemplo,
to de um coletivo, contribui para o surgimento de no estudo de “imagens inteligentes” uma nova di-
uma propriedade, segundo a qual o todo é mais mensão com potencial de harmonizar a ciência e a
que a soma das partes, como já foi mencionado. tecnologia e criar as condições para a populariza-
ção da ciência. Temos um bom potencial para
IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre o atingirmos uma ciência e tecnologia humanizado-
ensino da Física no Brasil? Em que medida ras, posicionando o homem como sujeito do fazer
ele corresponde à dimensão social que a Fí- científico e tecnológico, e não o seu objeto.
sica assumiu?
Alfredo Gontijo de Oliveira – Na minha avali- IHU On-Line – O que o senhor quer dizer,
ação, o grande problema com o ensino de Física quando afirma que a ciência contemporâ-
está relacionado com o conteúdo. Trabalhamos nea “ainda funciona de acordo com o deter-
com conteúdos anacrônicos e, conseqüentemen- minismo cartesiano”?
te, desinteressantes para professores e alunos. Alfredo Gontijo de Oliveira – Essa é realmente
Essa situação tem um forte componente inercial. uma questão crucial. Eu acredito que já tenhamos
Por exemplo, na maioria dos cursos superiores, adentrado uma cultura em que a ciência já permi-
em que a Física é ensinada como ferramenta, o te pensar de acordo com um novo paradigma.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Entretanto, os dispositivos e, conseqüentemente, computação quântica, quando, e se, se tornar


a tecnologia daí advinda, é clássica, no sentido de uma realidade, será exemplo de uma tecnologia
satisfazer a lógica científica do século XIX. Por baseada numa teoria do século XX (a física quânti-
exemplo, embora tenhamos necessitado da física ca). Como temos uma cultura que é muito mais
quântica para projetar o transistor, a lógica de fun- fortemente determinada pela tecnologia do que
cionamento do transistor é clássica, mais precisa- pela ciência, afirmo que estamos ainda sob o im-
mente, uma lógica buliana34 de “sim ou não”. A pério do determinismo cartesiano do século XIX.

34 Trata-se do aportuguesamento do termo “booleana”, que designa os princípios da lógica booleana, criada pelo matemático
inglês George Boole (1815-1864). A referida lógica oferece métodos para distinguir sentenças verdadeiras de falsas. Suas
variáveis assumem apenas valores 0 e 1 – verdadeiro e falso (Nota da IHU On-Line).

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Inteligência artificial e robótica

Entrevista com Farlei Jose Heinen

Farlei Jose Heinen é professor e coordena- IHU On-Line – Para que um robô imite o
dor do curso de Engenharia da Computação da pensamento humano, ele precisa ser pro-
Unisinos. Graduado em Informática – Análise de gramado com uma lógica baseada em re-
Sistemas, pela Unisinos, com a monografia intitu- gras, como os computadores. Como o se-
lada Robótica Autônoma: Integração entre planifi- nhor poderia explicar isso a um público
cação e comportamento reativo. Este trabalho foi leigo?
publicado com o mesmo título pela Editora Unisi- Farlei Heinen – A maioria dos robôs mais sim-
nos, em 2000. O professor também é mestre em ples tem sua programação baseada em uma lógi-
Computação Aplicada pela Unisinos, tendo sua ca de regras. Quando um robô é programado, uti-
dissertação o título Sistema de Controle Híbrido lizando-se regras, o programador deve informar
para Robôs Móveis Autônomos. todas as situações e ações necessárias para a exe-
cução das tarefas. Vamos imaginar um aspirador
IHU On-Line – Quais são os desafios con- de pó robótico: este robô se moveria pela casa, as-
temporâneos da robótica e da inteligência pirando a sujeira de forma autônoma; para que
artificial? ele consiga executar esta tarefa (relativamente
Farlei Heinen – Apesar de todos os avanços da simples), são necessárias muitas regras. Um exem-
robótica e da inteligência artificial nos últimos plo simplificado de regra seria em relação ao nível
anos, ainda existem muitos desafios pela frente. de bateria – SE (BATERIA FRACA) ENTÃO (ANDE
Um dos principais desafios é desenvolver a capa- ATÉ O RECARREGADOR). A própria ação ANDE
cidade dos robôs interagirem com os seres huma- conteria outras regras, e assim por diante. A quan-
nos de uma forma amigável. Esta interação im- tidade de regras para executar, até os comporta-
plica: melhorar a capacidade dos robôs nas áreas mentos mais simples, é enorme. Para viabilizar o
de reconhecimento de gestos, faces e voz; melho- desenvolvimento de robôs inteligentes, os pesqui-
rar a capacidade de locomoção em ambientes sadores têm desenvolvido diversas técnicas para
construídos para pessoas (com escadas, elevado- aprimorar o processo de programação dos robôs.
res, obstáculos, etc.); construir robôs capazes de Podemos citar: Redes Neurais Artificiais35, Lógica
lidar com situações inesperadas (que não foram Fuzzy36, Aprendizado por Reforço, entre outros.
previamente programadas). Outro grande desa-
fio que a robótica e a inteligência artificial enfren- IHU On-Line – Existem exemplos de robôs
tam, é a viabilização da aplicação prática das inteligentes hoje? O que eles são capazes
pesquisas realizadas nos laboratórios de todo o de fazer? Quais os maiores avanços nas pes-
mundo. Permitir que a tecnologia restrita aos am- quisas do Brasil e do mundo?
bientes de pesquisa se transforme em algo de útil Farlei Heinen – Utilizar a palavra “inteligente”
para a sociedade. para definir um robô ainda é motivo de muita

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

controvérsia. Podemos afirmar que atualmente mano seria capaz de efetuar, como aquelas
existem robôs capazes de executar tarefas muito que envolvem tarefas de raciocínio, planeja-
complexas, que exigem planejamento, coopera- mento, estratégia e percepção?
ção com outros robôs, reação às situações inespe- Farlei Heinen – A robótica tem evoluído muito
radas (situações para as quais os robôs não foram nos últimos anos. Diversas aplicações, antes restri-
programados de forma explícita). Exemplos de tas aos ambientes de pesquisa, vem se tornando
comportamento inteligente podem ser encontra- disponíveis para o grande público. Robôs huma-
dos em vários times de robôs que participam da nóides capazes de dançar, animais de estimação
RoboCup (Copa de Futebol de Robôs), em que os robóticos que jogam futebol e são capazes de re-
robôs precisam trabalhar em conjunto para conse- conhecer o rosto do próprio dono, aspiradores de
guir ganhar as partidas. Outro exemplo é o projeto pó robotizados que limpam toda a casa sozinhos,
COG desenvolvido no MIT (Massachusetts Institu- entre outros.
te of Technology). COG é um robô construído
para aprender pela interação com os seres huma- IHU On-Line – Quais as conseqüências da
nos e com o ambiente. No Brasil, as pesquisas são existência de robôs inteligentes para a
desenvolvidas em várias áreas, podemos citar: na- sociedade?
vegação robótica, utilizando visão computacional, Farlei Heinen – A evolução da robótica, até o
controle hierárquico de robôs, localização de ro- ponto de existirem robôs inteligentes, só deve tra-
bôs por mapas, entre outros. zer benefícios para a sociedade. Não acredito na
visão fantasiosa de robôs, dominando o mundo
IHU On-Line – O que são as redes neurais ou tendo sentimentos como os seres humanos. É a
e o mecanismo de estímulo/resposta em própria sociedade que dita as regras da evolução
inteligência artificial? O senhor pode dar tecnológica, e um robô inteligente só vai existir se
exemplos? isso for uma demanda real, uma necessidade para
Farlei Heinen – As redes neurais artificiais as pessoas. Sendo assim, os robôs inteligentes do
(RNAs) são uma das ferramentas utilizadas pelos futuro terão um papel muito importante, aumen-
pesquisadores da área de inteligência artificial tando a qualidade de vida e permitindo que as
para programar os robôs por meio de um proces- pessoas direcionem seus esforços físicos e mentais
so similar ao pensamento humano. As RNAs são para tarefas voltadas para a evolução do próprio
inspiradas nas redes bioelétricas do cérebro, for- ser humano.
madas pelos neurônios e suas ligações (sinapses).
Os robôs que utilizam redes neurais artificiais po- IHU On-Line – Qual a participação da Unisi-
dem “aprender” um determinado comportamen- nos na pesquisa sobre robótica e inteligên-
to ou tarefa. Este aprendizado ocorre por meio de cia artificial?
exemplos: uma situação (ou estado) conhecida ou Farlei Heinen – Na Unisinos, as pesquisas sobre
esperada é apresentada ao robô, ao mesmo tem- robótica e inteligência artificial são realizadas pelo
po é dito ao robô que ação deve ser executada Grupo de Inteligência Artificial (GIA), composto por
para aquela situação. Após apresentar várias situ- professores do Mestrado em Computação Aplicada
ações, o robô já é capaz de reagir a todas as situa- (PIPCA) e pesquisadores colaboradores; pelo Gru-
ções apresentadas, e ainda mais, é capaz de reagir po de Pesquisa de Veículos Autônomos (GPVA,
inclusive a situações inesperadas, generalizadas que desenvolve pesquisa nas áreas de veículos in-
por treinamento. teligentes, visão computacional e sistemas de apoio
ao motorista. O GPVA é formado por uma equipe
IHU On-Line – Quais as previsões da robóti- multidisciplinar de professores das áreas de enge-
ca para o futuro próximo? É possível pensar nharia, computação e matemática. Mais informa-
que existirá, em breve, um robô capaz de ções em: http://www.exatec.unisinos.br/~autonom
entender atividades que somente um ser hu- e http://ncg.unisinos.br/robotica/

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Um debate sobre o lugar do ser humano na
imprevisibilidade imanente ao mundo

Mesa-redonda com Karen Gloy, Günther Küppers e Cirne Lima

IHU On-Line reuniu os professores douto- Grande do Sul (UFRGS). Entre seus livros publica-
res Karen Gloy, Günther Küppers e Carlos Rober- dos, citamos: Realismo e Dialética. A analo-
to Velho Cirne Lima para um debate sobre a Teo- gia como dialética do Realismo. Porto Alegre:
ria dos Sistemas, a Teoria do Caos e a Teoria da Globo, 1967; Sobre a contradição. Porto Ale-
Auto-organização. gre: Edipucrs, 1993; Dialética para Principian-
A Prof.ª Dr.ª Karen Gloy iniciou a sua for- tes. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002. As
mação na Universidade de Hamburgo, concluin- questões da mesa-redonda foram propostas pela
do o doutorado e a livre-docência na Universität IHU On-Line, e o debate foi conduzido por Cirne
Heidelberg. É professora de Filosofia e História Lima.
das Mentalidades na Universidade de Lucerna
(Suíça) e professora visitante na Universidade de Cirne Lima – Estamos aqui com a professo-
Viena (Áustria). ra doutora Karen Gloy, da Universidade de Lucer-
Günther Küppers é professor e diretor do na e da Universidade de Viena, e com o professor
Institut für Wissenschafts-und Technikforschung doutor Küppers, da Universidade de Bielefeld,
(IWT) da Universidade de Bielefeld (Alemanha). para falar sobre a Teoria dos Sistemas, a Teoria
Estudou Física na Universität Würzburg e Mün- do Caos e a Teoria da Auto-organização. Este en-
chen. Posteriormente, obteve doutorado em Físi- contro não é, então, uma investigação científica,
ca Teórica e habilitação no campo dos estudos ci- nem uma palestra científica. Queremos, de forma
entíficos pela Universität Wien. Suas áreas de pes- unicamente jornalística, dar uma entrevista sobre
quisa são a Física do Plasma, a Hidrodinâmica, a uma temática já conhecida, sobre a qual repetida-
Filosofia e a História da Ciência, a Teoria dos Sis- mente se diz algo, mas, na discussão, certamente
temas e a Teoria da Auto-organização. Entre ou- emergirão alguns aspectos novos. Vou usar pri-
tras atividades, Günter Küppers é membro da meiramente a palavra e levantar a questão, espe-
Associação de Cientistas Alemães, da Sociedade rando que os colegas respondam e, então, surgirá
Americana de Cibernética e da Sociedade para os o colóquio. A primeira questão proposta é a se-
Estudos Sociais e da Ciência. guinte: No cenário desenhado pelos novos estu-
Cirne Lima é professor no PPG em Filoso- dos sobre as teorias dos Sistemas, do Caos e da
fia da Unisinos. É graduado em Filosofia pelo Auto-organização, onde se posiciona o ser huma-
Berchmannskolleg, em Pullach (Alemanha), é dou- no como “sujeito social”?
tor em Filosofia pela Universität Innsbruck, (Áustria) Günther Küppers – Esta é realmente uma
e livre-docente pela Universidade Federal do Rio questão difícil, porque há situações diferenciadas.

42
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Numa posição extrema, se encontra Luhmann35, em que Maturana diz claramente que sistemas so-
que exclui o ser humano do sistema social e que ciais não são sistemas autopoiéticos37. Aí já entra
só concebe a comunicação como elemento e novamente a polêmica entre o que é autopoiesis e
como princípio constitutivo de todos os sistemas. o que é auto-organização, e, se autopoiesis se dis-
Aí o indivíduo praticamente não desempenha ne- tingue de auto-organização. A autopoiesis tem a
nhum papel; o sistema social só se desenvolve propriedade adicional de que ela também temati-
pela comunicação e há um acoplamento – este é za o problema da autoprodução, deixando total-
um termo técnico introduzido por Maturana36, – mente de lado a auto-organização, falando ape-
um acoplamento entre os sistemas psíquicos, que nas da auto-estruturação. A paisagem teórica não
representam os indivíduos e os sistemas sociais, é unitária, ela é polêmica, tendo cada um razões
que determinam a vida social, as estruturas sociais pessoais para sua posição.
e a dinâmica social. Esta é uma posição extrema
que é criticada por muitas pessoas; eu, pessoal-
mente, penso que também se pode construir uma O duplo sentido do “sujeito social”
teoria de sistema social no qual se incluem indiví-
duos como elementos, ou seja, propor uma outra Karen Gloy – Talvez ainda se possa acres-
construção, diferente da de Luhmann. O que, en- centar algo significativo e fundamental sobre a re-
tão, promove esses sistemas sociais e promove lação entre o indivíduo e o sistema social. O siste-
seu surgimento? Minha proposta é a de que isso ma se constitui com base na ação conjunta dos in-
decorre da percepção de incerteza, uma incerteza divíduos, ou o sistêmico, o sistemático, é algo
que requer regulação, levando a que corporações novo, uma totalidade, e as partes individuais são
sociais apareçam e comecem a dirigir e estipular apenas partes integradas desse, assim chamado,
determinados regramentos que são, então, acei- sistema?. Aí há posições diversificadas: se os indi-
tos socialmente e se tornam obrigatórios, estrutu- víduos particulares formam um sistema social, ou
rando a vida social, e, com isso, formam, como se um sistema social é sempre uma determinada
conseqüência, instituições sociais, iniciando uma idéia ou interpretação, na qual as partes indivi-
escala temporal, uma dinâmica bem diversa do duais se integram. Por exemplo, se temos um
que a dos indivíduos que interagem nesses siste- pensamento composto de muitas partes, o todo é,
mas. Aí ocorre a possibilidade de que certos indi- então, algo novo, que é um falar com uma lingua-
víduos particulares pertençam a sistemas sociais gem em face das muitas partes individuais. E aí se
bem diversificados, subsistemas, como a socieda- poderia perguntar se o sistema de relações, cha-
de, a política científica, a economia e outros sub- mado “indivíduo”, deveria realmente ser reduzido
sistemas da sociedade. Entre estas duas posições, a dois sistemas, ou a um sistema que perfaz um or-
se movimenta a discussão, a qual, creio, não está ganismo vivo, organismos um ao lado do outro, e
definida. Cada um tem suas razões para argumen- o sistema seria, então, a idéia de uma comunica-
tar por que a coisa é assim como é. Luhmann ti- ção e da vida em comum, o que, porém, está or-
nha assumido a posição de Maturana e posso me ganizado de uma forma diferente da do organis-
recordar da discussão entre Maturana e Luhmann, mo vivo. Isso ainda é uma problemática.

35 Niklas Luhmann (1927-1998): sociólogo alemão. Filiado à Teoria dos Sistemas, sua obra incorpora influências, concepções
que vêm das ciências exatas, especificamente da Biologia. Em 15 de março de 2005, no evento Abrindo o Livro, promovido
pelo Instituto Humanitas Unisinos, o Prof. Dr. Leonel Severo Rocha, da Unisinos, apresentou El derecho de la sociedad,
obra de Niklas Luhmann (Nota da IHU On-Line).
36 Humberto Maturana: biólogo chileno, criador da autopoiese e um dos propositores do pensamento sistêmico. (Nota da IHU

On-Line)
37 Os sistemas autopoiéticos interatuam entre si sem perder a identidade. Referem-se à idéia de autopoiese, introduzida por

Humberto Maturana e Francisco Varela (filósofo e biólogo chileno) como uma forma de organização sistêmica, na qual os
sistemas produzem e substituem seus próprios componentes, numa contínua articulação com o meio. (Nota da IHU On-Line)

43
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Cirne Lima – Tenho uma posição que é que zumbem. E assim se pode hoje, pela Teoria
mais radical do que a dos meus colegas. Aqui se dos Conjuntos, chegar mais perto do indivíduo.
pergunta pelo sujeito social. E sujeito pode aqui Se Baumann39 quer, então, nomear o indivíduo
ter duplo sentido: o indivíduo e o sujeito social como singular, isso não funciona. Nem no idealis-
como uma sociedade organizada. Eu começaria mo alemão, nem na Filosofia analítica40, segundo
com o indivíduo, que é social. Na tradição, Aristó- Quine41 e alguns dos melhores seguidores da Filo-
teles tomou o indivíduo como primeiro. E o indiví- sofia analítica. Portanto, o indivíduo singular,
duo é social. E o social é carregado por dois indiví- como o entendemos cotidianamente, ele, tu, isso
duos com base em uma relação, isto é, nós temos não existe. Não pode ser pensado, nem pode ser
substâncias que são individuais, segundo Aristóte- expresso. Por conseguinte, só há indivíduos socia-
les, e, acima delas, temos uma relação, e este é o is. E estes indivíduos sociais só podem subsistir
ponto crucial, que pode ser e, eventualmente, numa rede. E esta rede, do ponto de vista científico,
pode não ser. Isso significa que o social não per- são conjuntos que estão organizados, e cada con-
tence, necessariamente, a esta dimensão. Eu de- junto tem naturalmente sua característica, que é
fendo exatamente a opinião oposta, que é apre- um predicado e é universal. Por exemplo: os suí-
sentada por pensadores alemães, sobretudo por ços que fumam. E estes indivíduos só são capta-
Hegel: o indivíduo singular só existe como nó de dos por aquilo que está acima. E quando vários
uma rede. Isso quer dizer que nem sequer pode- conjuntos se misturam, temos, assim, esta colori-
mos falar do indivíduo singular, sem que se fale si- da mistura que é a nossa sociedade. Se nós, ago-
multaneamente do indivíduo social. Isso nem é ra, com nossos atos de vontade, estabelecemos
possível. E Hegel, no primeiro capítulo da Feno- conexões entre os subsistemas, então temos,
menologia38, mostra que o singular nem sequer como é ensinado na Teoria dos Sistemas, a hierar-
pode ser pronunciado, mas só pode ser apontado quia dos sistemas, em que há um sistema superior
com o dedo. Quando se pressupõe que o indiví- e globalmente abrangente, e neste, muitos subsis-
duo sempre é somente um nó numa rede, deve-se temas, nos quais o indivíduo singular no sentido
perguntar, em segundo lugar, quais são os fios clássico desapareceu, sendo cada indivíduo social.
que amarram esse nós. Bem. Estes fios são hoje E agora, social no sentido moderno, em que somos
explicados pela Teoria dos Sistemas e pela Teoria solidários com outros, é conseqüência, quando a
da Auto-organização. A Teoria dos Sistemas con- percebemos que estamos nessa rede, que, quando
siste, se o expressarmos matematicamente, de seis a destruímos, também somos destruídos. É bem
séries de conjuntos teóricos, portanto uma grande este o pensamento que se adiciona.
quantidade, que tem uma estrutura, e indivíduos Karen Gloy – Posso contradizer um pouco?
no sentido da modernidade, no sentido de Aristó- As conseqüências deste modelo são certamente
teles, mas uma estrutura, um exemplo clássico tí- muito perigosas, enquanto o indivíduo, segundo o
pico para um conjunto. Por exemplo, o conjunto velho princípio clássico, é concebido como inefá-
de todos os suíços no qual se pode considerar um vel, é inominável, é indizível, é totalmente deter-
subconjunto. Por exemplo, todos os suíços que fu- minado. Falamos agora de um indivíduo inserido
mam. Considerar um outro conjunto e aí o dos suí- numa função, definimos o indivíduo como um nó,
ços que não fumam seria automático, mas nós po- com um complexo de funções, e aí existe o perigo
demos considerar, por exemplo, todos os suíços de se poder manipular o indivíduo. E estou na

38 Fenomenologia do Espírito, obra de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, publicada originalmente em 1807. No Brasil, foi
publicada parcialmente na coleção Os pensadores. São Paulo: Abril, 1980. Uma edição integral foi publicada pela Editoras
Vozes, de Petrópolis (RJ), em 1997. (Nota da IHU On-Line)
39 Martin Baumann: filósofo e teólogo alemão. (Nota da IHU On-Line)

40 A filosofia analítica tem como foco principal a linguagem e é também denominada filosofia da linguagem. Destaca o papel da

Filosofia como investigação, apoiada nos desdobramentos da linguagem. (Nota da IHU On-Line)
41 Willard Van Orman Quine (1908-2000): filósofo estadunidense. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pesquisa do indivíduo no sentido clássico, como quase uma quebra de simetria, se o posso expres-
zôon politikón, no conceito aristotélico-platônico, sar assim – quando o homem faz uma distinção
no qual o indivíduo, ou o ser humano, é um ente entre si e todos os objetos, ou entre os objetos que
político, social, e também só pode ser pensado no ele encontra no ambiente, destaca um objeto que
campo, na convivência com outros indivíduos. O é como ele e que poderia ser ele. E nisso imediata-
progresso para a modernidade foi o acento na teo- mente descobre um risco assustador, o risco que,
ria da subjetividade, que constatamos no idealis- com os mesmos objetivos, ele pode utilizar os ob-
mo. Naturalmente, então, o sujeito é egocêntrico, jetos do meio ambiente para seu próprio proveito,
tem sentimentos de expansão, sendo a função so- explorá-los, etc., e então, ao descobrir que há, no
cial deixada para o segundo plano. A liberdade e ambiente, um objeto que é como ele, imediata-
responsabilidade, porém, estão sempre vincula- mente se sente obrigado a fazer um manuseio de
das ao sujeito, e não a um complexo de distribui- risco. E, nesse manuseio de risco, ele precisa esta-
ções de funções. O indivíduo quase submerge belecer regras sociais. Ele precisa tratar de entrar
nestas diversas funções que foram determinadas numa discussão com o outro, chegar a um acor-
ou na máscara (que era o sentido originário de do, que, em tal ou tal caso, aja de tal ou tal manei-
pessoa). Eu, por conseguinte, considero um tanto ra. E isso inicialmente é bem elementar, o surgi-
perigoso dissolver a liberdade e a responsabilida- mento do social como um processo realmente
de do indivíduo numa rede onde o indivíduo é complexo de regulação, e o social só atua onde – e
apenas um ponto nodal de diversas relações. Isso aí a idéia da rede é muito boa – há tais processos
talvez seja uma concepção que propriamente não de regulação, e, na minha linguagem, se trata da
pertence à nossa cultura, que o Oriente talvez co- redução de insegurança, de risco de qualquer es-
nheça bem, onde se leva em consideração o ou- pécie. O primeiro também foi uma forma de inse-
tro, mas toda a nossa tradição foi a acentuação do gurança. Precisamos, realmente, manter separa-
indivíduo, e não sua anonimização e massifica- dos os sistemas psíquicos, os sistemas sociais,
ção. Nisso vejo um certo problema, se esta é sua também o homem como sistema típico e em sua
opinião sobre a referida teoria. individualidade. O problema é apenas que, no so-
cial, se tem muita dificuldade de decidir qual é
propriamente o meu sistema psíquico, pois esta-
O surgimento do social como processo mos socialmente contaminados. Quando eu dese-
de regulação jo um automóvel, eu não sei se o desejo como
Günther Küppers ou como vítima de uma socie-
Günther Küppers – O que me agrada é a dade de consumo. Isso significa que traçar limites
representação da rede e dos nós. Não me agrada entre o sistema social e o individual, o psíquico – e
que isso seja pensado em termos de estrutura. E aí ainda se acrescenta o sistema cognitivo –, é
nós aprendemos que passamos da estrutura para muito difícil, porque o social tem precisamente
processos. Aí precisamos entender como surge e um efeito muito amplo, não há quase nada que
como se desenvolve isso. O social, se assim o qui- não se precise regular socialmente. E por isso eu
sermos, é uma conquista da evolução. Não esteve diria que esta rede com os nós é uma imagem
desde o começo no mundo. Em determinado mo- muito bonita, quando ela é concebida dinamica-
mento, o social surgiu como sistema de conheci- mente. Neumann42 diria que aí ainda haveria
mento e é preciso perguntar como, pois há muitos sempre uma reserva, porque o diverso dá o siste-
indivíduos biológicos, animais que não vivem so- ma típico, a outra dinâmica surgiu simplesmente
cialmente; outros, que já o fazem... Isso não é uma porque o sistema cognitivo podia observar-se a si
característica que só atinge o homem, e eu creio próprio e, dessa forma, se tornou consciente de si.
que o social veio ao mundo naquele momento – é Desta auto-observação de si surgem os conceitos

42 John von Neumann (1903-1957): matemático húngaro. (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de eu, de si mesmo e de estranho. Temos situa- pela dinâmica da percepção e da regulação, con-
ções muito complexas em que se formaram, no duzem sempre a modificações, novas ocorrências
decurso da evolução, o que hoje descrevemos do meio ambiente, que conduzem a novos trata-
como psique, cognição e social. mentos de incertezas. Assim, temos sistemas so-
Karen Gloy – Posso fazer uma pergunta? ciais muito dinâmicos, e o indivíduo é, nesta rede,
Nós partimos do fato de que um sistema social é o nó naturalmente é avassalado e superestimula-
um produto emergente, isto é, você parte do indi- do pelo social e, muitas vezes, nem sequer conse-
vidual. Mas, com Buber43, também posso partir da gue mais decidir se é ele que está em questão, ou a
dualidade, da relação eu-tu. Primária é a família e sociedade.
ela já é um sistema elementar, antes que o sistema Cirne Lima – Estou de acordo com quase
social aflore. tudo. Converge para aquilo que eu disse antes e o
Günther Küppers – Se assim o queres, o que disse Karen no final. Ela falou primeiro do in-
social se constitui da relação eu-tu. Eu reconheço divíduo, da posição aristotélica, mas, em seguida,
no ambiente alguém que é como eu: tu. E segun- ela falou da relação eu-tu introduzida por Buber e
do isso, devemos falar. Esta é a fonte do social. E o que eu queria propor era precisamente isso.
agora acresce que contatamos com maior núme- Portanto, a relação institui o indivíduo singular.
ro, surgindo unidades como a família, o clã etc. Nem sequer posso ter o indivíduo singular fora da
em que sempre novos sistemas sociais surgiram - relação, e por isso, a rede, e por isso, os subsiste-
e, sob certas circunstâncias, até desapareceram de mas. Eu penso, pois, que aquilo que popularmen-
novo, - porque eles precisavam regular determi- te chamamos de indivíduo é um subsistema, cons-
nadas coisas. Muitas vezes, também ocorre que tituído de subsistemas inferiores, subsistemas,
sistemas sociais se cindem. Por exemplo, a nova sangue, pulmão, respiração, digestão, as bactérias
ciência surgiu, porque o sistema “eu sei o que que estão em nossos intestinos... No momento em
creio e eu creio que eu sei” se bipartiu, e fé e certe- que nos encontramos com o outro, temos uma es-
za se tornaram, de repente, duas coisas diferencia- pécie particular de conexão de dois subsistemas. E
das, em que a certeza, pelo acesso experimental, aí surgem as diversificadas tensões e relações que
se tornou uma atividade operacional. E aí a ciên- Günther mencionou. Entretanto, eu faço uma dis-
cia podia dizer: “não temos nada a fazer com vo- tinção: penso que os sistemas sociais não podem
cês, com a fé, mas nós temos competência social ser concebidos apenas no sentido estrito em que o
para aquilo que realmente é”. Aí temos os apare- pensaram meus dois colegas. Tomamos “social”
lhos, as teorias, os conceitos que, de certa forma, em sentido literal: o social é de homem para ho-
permitem responder a essas questões. Contudo, mem. Onde não há homens, não existe o social.
constatamos que surgem sempre novas tipologias Minhas relações com meu cachorro não são sociais.
de incertezas, que conduzem à diferenciação de E eu penso que hoje precisamos ampliar a palavra
novos sistemas sociais e que determinadas incer- social, não só sobre os cães, não só sobre os ma-
tezas entraram em descaminhos, e isso significa cacos no jardim zoológico, mas também em rela-
que sistemas sociais desaparecem. Aí temos algo ção às plantas, aos rios: aí se encontra a raiz da
tremendamente dinâmico, podendo se dizer que ecologia, porque o social, em sentido real, é o sis-
sociedade é algo que abrange todos os sistemas tema global. Não no sentido estrito, e meus dois
sociais. Não sei se isso teria sentido; mas, ao me- colegas o tomaram nesse sentido, e, em sentido
nos, teria sentido dizer: há estes múltiplos sistemas estrito, não consideraram que há ulteriores subsis-
sociais em que todos se organizam com base no temas, concebendo o social, a meu ver, em senti-
manuseio de determinados problemas de risco, do muito restrito.
que existem e operam para este período, que,

43 Martin Buber (1878-1965): filósofo judeu-polonês. (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

A insustentável distinção entre acaso e gorosas regulamentações, por pequenas varia-


necessidade ções em sua dinâmica interna, mostram em seus
parâmetros uma conduta totalmente caótica, apa-
Karen Gloy – Isso é muito interessante, mas rentemente casual, tornando-se, assim, alheios ao
é a posição de Hegel do eu perante a natureza. cálculo e imprevisíveis. A velha concepção que se
Para mim, é a introdução do pensamento ecológi- possa encarar o mundo como uma espécie de re-
co, porque, para Hegel, a natureza é o outro de lógio, onde se lê o transcurso do tempo, podendo
mim mesmo, é a alteridade que, na base, é o mes- a partir de um momento posterior calcular o tem-
mo sistema que é o eu, só que na alteridade (di- po, se demonstrou como demasiado serial e sim-
versidade). Se desta forma não se considera a na- ples, pois há uma imprevisibilidade que é imanen-
tureza como algo estranho, mas como um sujeito, te. Sempre se acreditou que há âmbitos do mundo
só que um outro, então se chega ao pensamento sobre os quais não sabemos ainda o suficiente.
ecológico, e não se pode mais operar mecanicisti- Por exemplo, nos sistemas sociais: há tantos indi-
camente com a natureza, manipular, dirigir, como víduos que podem fazer tantas coisas e uns o fa-
cientistas naturais fazem experimentalmente, tor- zem de um modo e outros de outro, e dessa forma
nando a natureza, como diz Heidegger, uma “ar- são colocados limites ao saber. Todavia, há a con-
mação” (Gestell). Aí se assume outra relação, e cepção de que podemos acumular suficientes co-
este sistema de relações parece ser sua concepção nhecimentos, estabelecendo estações de mensu-
da Teoria dos Sistemas com base em Hegel, se ração, podendo, em última análise, predeterminar
bem o interpretei. tudo. A concepção clássica da meteorologia, há
Günther Küppers – Brevemente, para evi- uns trinta anos, era a de que se podia espalhar
tar um mal-entendido: eu ampliaria o social, por- pelo planeta estações de medição que nos permi-
que me parece que isso inclui os animais, e o pen- tiriam calcular o clima não só para três dias, mas
samento me parece interessante de ampliá-lo tam- para um mês, e assim por diante. Isso se demons-
bém para a natureza, vendo-o como um todo, o trou como falso. Precisamente por esta razão, a
que então nos ajuda no trato com a natureza. imprevisibilidade que inabita o caos, que inabita a
Cirne Lima – Temos, pois, aqui, uma con- complexa dinâmica regulamentada, que é suficien-
cordância recíproca, o que é raro. O que até aqui temente complexa, esta imprevisibilidade é ine-
discutimos é a ponta da pesquisa sobre a Teoria rente e não pode ser afastada por nenhum proces-
dos Sistemas. Mas temos outra pergunta sobre so. Não há possibilidades sistêmicas de contor-
caos e auto-organização, se eles estão inter-rela- ná-lo ou solucioná-lo por uma futura teoria me-
cionados. O professor Küppers poderia fazer uma lhor, que um dia poderíamos sabê-lo – isso jamais
pequena síntese? saberemos. Há, porém, um segundo efeito, o da
Günther Küppers – Quando se levanta a auto-organização, que está diretamente relacio-
questão sobre a constatação da pesquisa do caos, nado com o caos, no sentido de que ele causa o
se poderia dizer, primeiramente, que distinções contrário, que conecta coisas entre si, mas tam-
que fazíamos antes não são mais sustentáveis: a bém liga coisas estruturais a conexões não-linea-
distinção entre acaso e necessidade, saber e igno- res. E existe a possibilidade de que esta dinâmica
rância, ordem e desordem; que o mundo deve, auto-organizadora, na qual causa e efeito se con-
por assim dizer, ser ordenado de outra maneira. A dicionam e se conectam reciprocamente de modo
pesquisa sobre o caos mostrou que o conceito circular, fazendo surgir situações ou estados orde-
desta distinção entre necessidade e acaso se refe- nados que são muito simples e que também apre-
ria sempre ao que era irregular, atribuindo-o ao sentam uma dinâmica muito simples e que, de
acaso. E hoje se levanta a questão se realmente maneira simples, também são predizíveis em seu
existe algo como o acaso, se isso pode ter sentido. desenvolvimento, mas sempre ainda correm o ris-
A pesquisa sobre o caos mostrou que sistemas co. A auto-organização ainda tem em si deter-
bem determinísticos, que transcorrem segundo ri- minados momentos, determinados pontos em

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que o desenvolvimento espontaneamente passa entram em colapso e conduzem a novos sistemas.


de um estado para outro, passa de uma ordem Eu não vejo, porém, que, na Teoria do Caos, seja
para outra, mas também pode passar de uma or- pensado algo novo, que esta combinação de ne-
dem para um estado caótico. E que a coisa é as- cessidade e acaso também conta com impondera-
sim, mostram, por exemplo, hoje os grandes mo- bilidade e imprevisibilidade de tipo sistêmico. E
delos que temos sobre a pesquisa climática, e as assim falamos de uma auto-organização do siste-
simulações climáticas que seriam impossíveis, se ma sob estas condições.
não houvesse na natureza a redução de complexi-
dade, de modo que podemos imitar essa dinâmi-
ca no computador, não calculá-la, veremos como A origem da Teoria dos Sistemas
o desenvolvimento de tais complexos sistemas se
desenvolve nos últimos 30-40 anos. Estamos nes- Cirne Lima – Meus colegas não abordaram
te ponto e há grandes problemas, auto-organiza- a origem da Teoria dos Sistemas e da Teoria do
ção e caos são dois momentos reciprocamente Caos. A Teoria dos Sistemas surgiu em Viena, nas
confrontados. mãos e na cabeça de um zoólogo, que tinha estu-
Karen Gloy – Nós introduzimos a Teoria dado Filosofia, de nome Ludwig von Berta-
dos Sistemas como inovação. Quando, de certa lanffy44. Ele viajou ao Canadá e aos Estados Uni-
forma, abrangemos historicamente a Filosofia e dos e, com outros colegas, viu que tudo isso deve
temos os conceitos de necessidade e acaso, não ser pensado conjuntamente, senão não teria senti-
vejo nesta teoria evolucionária muita diferença do. Devemos lembrar que isso ocorreu precisa-
em face da combinação de necessidade e acaso. mente na época da construção da bomba atômi-
Não se trata de um sistema linear, de um determi- ca, e a pesquisa de ponta teve, então, problemas
nismo, em que se pode prever tudo, mas as muta- que precisavam ser solucionados. E Bertalanffy e
ções que surgem e que descrevemos como impre- a Teoria dos Sistemas tinham avançado muito
visíveis ocupam a posição do acaso. De modo que nas pesquisas e Küppers trouxe agora bastantes
temos agora sistemas dinâmicos, sistemas evoluti- informações a respeito. Mas Bertalanffy não é o
vos que se auto-organizam, mas que, de certa for- pai da Teoria dos Sistemas. Ele escreveu um livro
ma, mantêm as velhas concepções de acaso e ne- sobre a Teoria dos Sistemas cujo tema é o cardeal
cessidade. Não vejo verdadeiro progresso nisso. Cusanus45, da grande Renascença, neoplatônico,
Ainda poderíamos dizer, e sobre isso já discuti- e que hoje ninguém conhece. Bertalanffy não
mos, que a evolução transcorreu darwinistica- apenas fez uma longa introdução, mas também
mente e que, com base no meio ambiente, ele for- uma tradução ampliada, e só então, por meio de
neceu os critérios que melhor se adaptam a um Cusanus, ele entendeu o conceito de unidade. E o
sistema, segundo suas mutações, ou não. Agora, pensamento da unidade é bem simples. Meus co-
estes sistemas que se autodesenvolvem e auto-or- legas falaram profissionalmente; permitam-me fa-
ganizam e que novamente se tornam instáveis, lar bem brasileiramente. O que é um sistema, dito

44 Ludwig von Bertalanffy (1901-1972): autor do livro General systems theory – Essais on its foundation and
development. New York, 1968. Tradução francesa: Théorie générale des systems: physique, biologie, psycologie,
sociologie, philosophie. Paris. 1973. Publicou também The Theory of open systems, General System Yearboock. 1956.
A primeira edição brasileira de Teoria Geral dos Sistemas foi publicada pela Editoras Vozes, de Petrópolis (RJ), em 1968.
(Nota da IHU On-Line)
45 Nicolau de Cusa (1401-1464): teólogo alemão. Secundou a ação dos papas na Alemanha. Foi educado com os Irmãos da vida

comum em Deventer, onde sofreu a influência do misticismo alemão. Estudou na Universidade de Heidelberg, foco de
nominalismo, e na de Pádua, onde aprendeu Matemática, Direito e Astronomia. Ordenado padre, teve parte notável no
concílio de Basiléia (1432). Foi legado pontifício, cardeal, bispo. Viveu seus últimos anos na Itália. As obras fundamentais de
Nicolau de Cusa são três: De docta ignorantia, De conjecturis, Apologia doctae ignorantiae. As fontes prediletas e
principais são o misticismo alemão (Mestre Eckart), o platonismo e o neoplatonismo cristão e os autores de tendência
neoplatônica, em geral. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de um modo que um brasileiro possa entendê-lo? faz uma bifurcação. Matematicamente, desde Pla-
Um jogo de futebol. No jogo de futebol, temos tão, não se sabe como surge isso. Apareceram
onze jogadores de um lado e onze jogadores do curvas caóticas, o que, para o cientista, foi um
outro, uma bola, um juiz, um campo, duas golei- choque. Todos ficaram chocados, mas no mo-
ras... Isso é um jogo de futebol? Não. Um habitan- mento em que Wiliams o propôs, e Robert May47
te de Marte que venha para cá, diria: bobagem: descobriu que a população das abelhas age exata-
por que ele não segurou a bola com a mão? Se mente segundo esse cálculo, se começou a adotar
pensarmos no famoso gol de Maradona, em que a Teoria do Caos em todos os campos e obter êxi-
“a mão de Deus” teria “chutado” a bola no gol... to. Muitos problemas não resolvidos e engaveta-
O que acontece num jogo de futebol? Além da dos pelos cientistas, estão vinculados à Teoria
movimentação do jogo que se pode fotografar e dos Sistemas e acoplados à Teoria do Caos. Mui-
filmar, há regras, princípios, que não se podem fo- tos falam bobagens sobre a Teoria do Caos, mas
tografar, que se precisa observar e extrair dos fatos ela é bem determinada, algo determinístico, feito
e expressar. Isso é um sistema. O sistema não é em computador, e um simples cálculo, se ele é sufi-
apenas a soma das partes, mas uma ordem que cientemente repetido, não só despertará bifurca-
organiza essas partes. E isso resulta no que meus ções platônicas, mas também uma linha caótica
dois colegas comentaram. E sistema não é apenas que passa depois para uma nova ordem e não po-
uma invenção da modernidade, do século XX, ou demos dizer previamente qual. E por isso a vida é
de Bertalanffy; não, sistema é um problema neo- tão complicada, e o homem e a sociedade são tão
platônico, uma solução neoplatônica para condu- complicados, porque, a cada momento, este fenô-
zir o mundo a uma unidade. Isso já vemos em Pla- meno é redespertado. E a velha maneira de pen-
tão, no Timeu, é bem claro em Plotino, e a idéia sar desapareceu completamente: se conhecemos
da emergência do novo já encontramos além de todas as leis e se reconhecemos o ponto de partida
Plotino, em Aristóteles. São velhas traduções que de um sistema, podemos predizer tudo. Isso mere-
sintetizamos e passamos para a linguagem das ce ser pensado e revisto por meio desta teoria.
ciências modernas, e vejam, a velha Filosofia se Este é um passo gigantesco na ciência e é um pon-
adapta exatamente às modernas ciências, e resol- to em que Ciência e Filosofia se aproximaram lou-
ve problemas que a ciência moderna não resol- camente, inclusive no âmbito da necessidade, da
veu. Por exemplo: o que significa um ser vivo? contingência e da liberdade, porque a liberdade é
Este era um problema sem solução até a chegada a emergência do novo. E a liberdade se exerce
de Bertalanffy. E assim em outros campos. O que neste espaço onde algo surge pela emergência do
o colega de Bielefeld mencionou sobre o clima: há novo.
um americano, Williams46, que é o primeiro ho-
mem na história mundial que tem suficiente capa-
cidade computacional. E, como havia a guerra, “A novidade da Teoria dos Sistemas é
era tremendamente importante que os lançadores a sua constante neo-organização”
de bombas soubessem exatamente que clima fa-
ria. Os americanos investiram, então, somas fabu- Karen Gloy – Na história da Teoria dos Sis-
losas em pesquisa meteorológica. Assim se pode temas, há diferenças fundamentais, de modo que
dizer: “O.K., Williams nos fará tal mapa meteoro- não se pode reconduzir tudo à opinião clássica,
lógico, que nos permite bombardear com toda antiga. A Antigüidade foi de opinião de que não
exatidão os nossos alvos”. E o que Williams des- há nada de novo debaixo do sol. Em Platão, o sis-
cobriu? A Teoria do Caos. Uma curva de formas tema se auto-relaciona e se conserva a si próprio,
bem simples, que, com um pequeno movimento, e não se modifica, e não se gera a si próprio. Na

46 Garnet P. Williams: meteorologista estadunidense, formulador da Teoria do Caos. (Nota da IHU On-Line)
47 Robert May (1936): biomatemático australiano radicado nos Estados Unidos. (Nota da IHU On-Line)

49
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

forma aristotélica, um homem gera um homem. este processo era inverso. Em Platão, e sobretudo
Até Cusanus... são sistemas estáticos, que se auto- em Plotino, se partiu do Ser mais perfeito que es-
conservam e auto-reproduzem. E o novo na Teo- tava bem no alto, e quanto mais fundo se descia
ria dos Sistemas é este pensamento do desenvol- na pirâmide, menos perfeição havia, menos or-
vimento, esta constante neo-organização que é dem, menos necessidade. Isso hoje é precisamen-
instável, que requer fluxos de equilíbrio, a recons- te o inverso. Nosso ponto de partida não é a perfei-
tituição de algo estável ou a busca por um estado ção, o kalón kai agatón de Platão, ou de Aristóte-
estável que também pode ser ultrapassado. Creio les; no Timeu de Platão, não se tinha tanta certe-
que este é o aspecto inovador dos séculos XIX e za, já havia duas perspectivas, mas, em seu todo,
XX, desde que Bertalanffy e o Círculo de Viena48 se partia do mais perfeito para o menos perfeito,
desenvolveram esta Teoria dos Sistemas, que tra- até o ínfimo. E hoje o movimento é praticamente
ta de sistemas dinâmicos que não se auto-repetem inverso. Partimos de dados que são muito sim-
em determinados lapsos de tempo, mas que, no ples, e esta é praticamente a definição da Teoria
todo, perfazem desenvolvimentos e que buscam do Caos: formas bem simples, se elas são suficien-
sua estabilidade pela auto-reprodução, porque temente repetidas, e isso só se pode fazer em com-
são determinados pelo ambiente ou por fatores in- putadores, geram imagens e estruturas de uma ri-
ternos que os fazem perder o equilíbrio. Este é o queza que nem sequer se pode imaginar. E essa é,
aspecto novo, que vai além da História, da Anti- então, uma tremenda diferença. Penso que, na
güidade e da Idade Média: o fato de que temos es- Antigüidade, havia uma evolução, só que se par-
ses sistemas dinâmicos, fluidos, não tendo, para tia do perfeito para o imperfeito. Agora o inverte-
isso, uma prefiguração na tradição. Somente com mos e esta inversão coloca os colegas, pois eu sou
o historicismo, no século XIX, emergiu a historici- puramente filósofo, ou ante um dilema, ou ante
dade de sistemas, que também passa para outros uma solução: porque os colegas físicos, até o sécu-
âmbitos, de modo que já não falamos “da” ciên- lo XVIII sempre esperaram, no mais íntimo do seu
cia com “tais” critérios científicos, mas de um de- ser, que cada processo fosse reversível. E então
senvolvimento, de uma evolução, de uma substi- um vienense que elaborou a estrutura do gás,
tuição de paradigmas, como Kuhn49 os chamava, Boltzmann50, viu que o mundo é temporalmente
ou como quer que queiramos denominar. Portan- orientado. Não se pode inverter o tempo.
to, brevemente: não a automanutenção de um sis- Karen Gloy – Ele também assumiu a po-
tema, no sentido do sistema estático, mas a busca sição inversa. É puramente subjetivo o que
de novas formas de organização, já que o mundo Boltzmann diz. A lei da entropia e sua inversão.
se tornou extremamente complexo, e talvez sem- Isso é meramente subjetivo. Assim como o ho-
pre o tenha sido, mas que agora deve ser integra- mem na terra está acostumado a se ver como
do na maneira de pensar. Este me parece o pensa- ponto central, em baixo e não em cima, assim
mento inovador da Teoria dos Sistemas. também se pode inverter o tempo. São intervalos
Cirne Lima – Não estou em tudo de acordo muito pequenos que se observam, e era esta
com o que Karen Gloy disse. Acrescentarei outros idéia do equilíbrio a que se tendia, mas o próprio
aspectos sobre a diferença entre o antigo e o mo- Boltzmann concordou com a inversão, que há
derno. Segundo Platão e Plotino, por exemplo, leis meramente subjetivas da entropia presentes
havia uma evolução, havia um processo, só que na termodinâmica.

48 Movimento filosófico originalmente austríaco, criado de uma corrente de pensamento intitulada positivismo lógico, reagindo à
filosofia idealista e especulativa. (Nota da IHU On-Line)
49 Thomas Kunh (1922-1996): historiador da ciência e epistemólogo estadunidense. Escreveu A estrutura das revoluções

científicas, publicado no Brasil pela Editora Perspectiva, de São Paulo. (Nota da IHU On-Line)
50 Ludwig Edward Boltzmann (1844-1906): matemático e físico austríaco, Sistematizou o conceito de entropia, segundo o qual

há uma tendência natural de a energia se dispersar e da ordem evoluir invariavelmente para a desordem. Explica o
desequilíbrio natural entre trabalho e calor. (Nota da IHU On-Line)

50
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Cirne Lima – Quem, então, teria descober- reza: como as partes se juntam num todo, o que
to a flecha do tempo, se não Boltzmann? então preenche uma certa finalidade. Como ocor-
Günther Küppers – Mas o problema ainda re isso? Por exemplo: a mão, ou a cabeça, ou o
continua não-resolvido. Nivelamentos cinéticos Estado, etc., quando há muitos fenômenos. Isso já
de gás também são considerados na mecânica se viu na Antigüidade. Mas não se tinha a mecâni-
como choques entre partículas. É uma dinâmica ca, via-se o fenômeno, mas não se sabia como as
relativa. Pela mediação para uma descrição ma- partes e o todo se conectam, se condicionam mu-
croscópica, em que o conceito de entropia real- tuamente e como se pode dizer que o todo é mais
mente pode ser descrito, em que, havendo muitos do que a soma de suas partes? Essa é uma senten-
conjuntos, muitas possíveis distribuições alternati- ça muito estranha, que também foi formulada por
vas, ela introduz sua irreversibilidade, isto é, sem- Aristóteles, e a moderna pesquisa do caos e da au-
pre ainda temos o problema de entender, como to-organização mostrou precisamente que isso se
entra, no puro movimento mecânico, no qual encontra na não-linearidade das ações e efeitos
nada mais há do que os gases com determinada recíprocos. A não-linearidade dá a idéia de que as
velocidade se chocando em determinadas veloci- partículas não estão mais interconectadas de for-
dades e determinadas distribuições no espaço, ma determinista, mas se encontram como num
como acontece, de repente, que nunca esses ga- cordão de borracha: se puxo num lado, não vão
ses se juntariam num canto deste espaço? Isso é junto algumas partículas vizinhas. Há também a
uma irreversibilidade. Prigogine51 colocou forte- possibilidade de que perturbações críticas, de re-
mente em primeiro plano esta descoberta da irre- pente, se ampliem e se estendam pelo cordão de
versibilidade, quando, durante séculos, se admiti- borracha para todo o sistema do qual preciso mu-
ram estados de equilíbrio, quando determinada dar o arranjo. E eu considero isso o novo que se
força atua sobre algo. Estados de ordem só se re- acrescentou pela Física, por esses sistemas, por
conheciam em situações de equilíbrio. A desco- essa energética etc. e tudo o que tem a ver com a
berta de Bertalanffy inverteu o sistema de relações auto-organização.
ambientais e apontou para a abertura dos siste-
mas. Constatou-se, de repente, que a vida como
tal, a dinâmica como tal, e tudo que realmente po- O conceito de Teoria dos Sistemas
demos observar aqui na Terra, ocorre em proces- substituiu a lógica
sos e no desequilíbrio. O desequilíbrio é perma-
nente e dinamicamente livre, quer sempre nive- Cirne Lima – O professor Küppers falou
lar-se. Todo desequilíbrio procura conquistar ni- agora de maneira bem complicada. E eu gostaria
velamento e precisa ser externamente conduzido de dizer a mesma coisa de maneira bem simples.
pelo meio ambiente, compensar o desgaste e tra- Segundo Boltzmann, de maneira anedótica, o de-
zer energia e matéria para este estado. Estes são senvolvimento do mundo seria para baixo. Esta-
os sistemas produtivos, sistemas de equilíbrio po- ríamos agora despendendo tanto calor, que cami-
dem ser estruturados ou caóticos, eles estão mor- nharemos para a morte, e morte gelada. E o mun-
tos e neles nada ocorre; deve-se bater neles com o do se direcionaria de tal modo que cada físico po-
martelo para algo acontecer. Nos sistemas de de- deria calcular que o fim do mundo chegará, quan-
sequilíbrio está a música. do o frio for total. Entretanto, foi muito bem frisa-
Quanto ao progresso na concepção: natural- do que o novo, na auto-organização, é que, além
mente havia também, na Antigüidade, o conceito dessa força que puxa para baixo, para a morte tér-
de sistema, e o problema era visto com muita cla- mica, há uma outra força que conduz para cima,

51 Ilya Prigogine (1917-2003): cientista de origem russa Recebeu o Prêmio Nobel de Química em 1977. Na 62ª edição, de 2 de
junho de 2003, IHU On-Line dedicou-lhe a editoria Memória e, dele, publicou o artigo A dimensão ”narrativa” do universo,
na 64ª edição, em 16 de junho de 2003 (Nota da IHU On-Line)

51
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pelo surgimento do novo, e dessa forma introduz cisamente a esta pretensão: que ela realmente está
um fluente equilíbrio, que tem essa estrutura que o agora em condições de esclarecer, tanto como
professor Küppers mencionou. surgem estruturas biológicas como também expli-
Karen Gloy – Não sei se já não é superado car como ocorrem determinados fenômenos no
que na teoria tradicional se tinha, de um lado, a mundo físico, padrões em florestas e outros mode-
segunda lei da termodinâmica que conduzia à en- los na natureza, conchas etc., onde podemos mos-
tropia e à morte térmica e que, de outro lado, te- trar que, por trás, não há mais duas teorias dispo-
mos o exemplo da Biologia, na constante neo-or- níveis: uma que trata do fenômeno do equilíbrio e
ganização de espécies, gêneros etc., que introdu- a outra que trata de algo desconhecido na Biolo-
zia sistemas altamente complicados. Lembro-me gia. Um mesmo mecanismo opera e houve mais
de uma passagem de Weizsäcker52, em que ele um passo, porque, na sociedade, também é exata-
não aduz estruturas orgânicas, mas cristalinas, mente assim, no nosso cérebro também é exata-
que estão quase enrijecidas, e aí há estruturas alta- mente assim: não há nenhum lugar no universo
mente complexas, de modo que não podemos onde isso não seja assim. Isso também para mim é
mais encarar simplesmente os dois modelos teóri- uma grande unificação.
cos, em que um conduziu num sistema fechado à Cirne Lima – Esta é a razão por que, segundo
morte térmica, tendo nós, de outro lado, o modelo minha concepção, o conceito de Teoria dos Siste-
biológico que leva avante a Teoria dos Sistemas. mas substituiu a lógica, porque é uma teoria univer-
A obtenção de sistemas mais organizados e com- sal que conecta precisamente isso. Dali, então, po-
plexos parece ser contraditória, mas são simples- dem, especializadamente, ser encarados a natureza,
mente modelos que não podem ficar apenas con- os não-vivos, os viventes e as estruturas sociais.
trapostos um ao outro. De um lado, porque o tem- Karen Gloy – Fica uma pergunta: como
po de que dispomos no pensamento da entropia é pode ser tudo explicado na natureza, na artificiali-
muito, muito curto, e há pressupostos para o siste- dade, no sistema social, segundo esta norma, uma
ma fechado sobre como podemos observar isso. vez que se trata de uma estrutura cognitiva pela
Também existe a experiência em que se solta uma qual podemos interpretar tudo? Chegamos, as-
gota de tinta que se espalha, permanecendo a es- sim, ao problema da auto-referência, que é bem
trutura absolutamente igual e não conduz a uma complicado. E passamos para problemas de Filo-
mistura; só que, para nossos olhos, tudo fica, en- sofia transcendental e de dialética. Se, em nosso
tão, cinza. De outro lado, temos o sistema biológi- cérebro, há estruturas, pelas quais interpretamos o
co. Eu creio que seria nossa tarefa interligar esses mundo, tanto os animais, as plantas, o comporta-
dois lados. Não deixar a coisa ficar nestes dois mo- mento climático, as curvas populacionais, que são
delos rígidos, mas unificá-los numa nova teoria. construtos de nosso cérebro, poderíamos assim
Cirne Lima – Estou bem de acordo com dizer, estruturas epistêmicas de nosso cérebro que
isso. Eu só queria apresentar os dois extremos, nós extrapolamos. Temos, então, um determina-
porque assim se pensou até há bem pouco tem- do construtivismo. E como devemos constatar sua
po. Há pouco tempo só se tinha uma caricatura, realidade?
Boltzmann e a morte. Agora temos uma outra di- Cirne Lima – Você expôs maravilhosamen-
reção, e a interconexão dialética de ambas signifi- te o ponto de vista kantiano como filósofa, e a
ca o que nós agora representamos aqui. Portanto, questão é puramente filosófica, e eu diria que sou
a melhor compreensão do processo cósmico. um neo-hegeliano todo original, porque modifi-
Günter Küppers – Eu também diria que a quei tantas coisas em Hegel que quase não sou
moderna Teoria da Auto-organização satisfaz pre- mais hegeliano, mas também não sou kantiano. E

52 Carl Friedrich Freiherr von Weizsäcke(1912): físico e filósofo alemão. (Nota da IHU On-Line)

52
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

esta afirmação de Kant53 de que primeiro precisa- se acrescentam. É assim, imagino, que surge a lin-
mos estudar o conhecimento, antes de chegar ao guagem, a epistemologia, não do homem, mas
objeto, me parece que não é válida. É um fruto dos animais, e penso aqui no meu velho professor
podre de sua época. E eu, com alguns autores mo- de Biologia, Karl von Frisch, perguntando o que
dernos e também com os antigos, e com o velho fazem as abelhas para dizer algo às outras. Elas fa-
Hegel, diria: conhecer é agir. Se pego uma colher, zem algo, elas dançam e o fazem de tal forma que
eu inicio finalidades. Conhecimento é, portanto, a dança expressa em que distância e em que
ação inter-humana. Trabalhar com as pessoas faz quantidade há alimento. Isso quer dizer que co-
surgir conhecimento. Para meus estudantes, expli- nhecimento, epistemologia, é, em última análise,
co numa frase boba e simples: há macacos que resultado de um agir, e ação é uma configuração
ainda não falam, mas desceram das árvores e já social, é um subsistema que produz um conjunto,
abandonaram a cauda. E já comeram todas as ba- e eu diria que epistemologicamente estou obriga-
nanas. E há um rio e do outro lado há maravilho- do a fundamentar isso, se tenho condições. Mas,
sas bananas. E os macacos olham e nada conse- Kant, ou você não pode querer previamente que
guem fazer. De repente, um macaco vê que as ár- eu faça epistemologia, para só posteriormente fa-
vores caídas flutuam e ele pensa: “Se derrubo zer a base do sistema.
uma dessas árvores, posso ir para o outro lado e Karen Gloy – Você desenvolveu agora uma
comer bananas”. Mas, tentando erguer a árvore, moderna teoria do conhecimento ou do saber,
vê que é muito pesada e vai buscar três ou quatro que reduz o saber ao know-how. Eu diria que isso
outros macacos que o ajudam a deitar a árvore até é um saber experimental, como você o descreveu
o outro lado, passam, comem as bananas e retor- e que também é feito com macacos numa jaula
nam. Para erguer a árvore, numa expressão ger- com bananas que eles gostariam de ter, com um
mânica, os macacos dizem ho-rück. É o que dizem galho para passar da gaiola para a banana. Por-
os lenhadores alemães quando precisam de cola- tanto, segundo o que você descreveu, um
boração... Se os macacos dizem ho-rück e agem, know-how de como se faz a coisa. Contudo, este é
têm a recompensa. Os que passaram e se sacia- um conceito empírico de experiência, não é o
ram estão deitados de barriga cheia. De repente, conceito de lei da Física ou da moderna ciência.
um macaco levanta, olha os outros e diz: ho-rück. Cirne Lima – Não falemos dos macacos
No primeiro caso, temos uma ação conjunta e um com a árvore, mas da pequena Su, uma chimpan-
sinal, signum, e este signo está conectado com o zé que, há 25 anos, falou com dois biólogos ame-
signatum, conectado de modo meramente sensiti- ricanos. A primeira vez que vi o site, ela sabia mais
vo. As bananas estão aí e o ho-rück está com a de 800 palavras e já dizia algumas palavras: fome,
madeira na mão. Agora a segunda fase desta peça arroz ou banana etc. Já fizera uma espécie de sín-
teatral: sem ter a madeira na mão, um macaco gri- tese. Por isso, penso que não queremos fazer sín-
ta ho-rück. Os outros olham e se perguntam: onde teses altamente especializadas e desmembrá-las,
está a árvore? E um diz: também tenho fome e porque necessitamos dos elementos que estão em
ho-rück é para buscar a árvore e já levanta para vários sistemas. Creio que nós precisamos, falan-
buscá-la. Chega um segundo e um terceiro e no- do antiquadamente, começar com uma ontologia,
vamente buscam bananas. Após dois meses, ou seja, uma teoria de sistemas e, se avançamos
ho-rück significa pegar uma árvore, cruzá-la sobre bastante, levar a sério nela o subsistema “episte-
o rio e buscar bananas. Este é o significado da pa- mologia” e retornar e também pesquisar nossas
lavra ho-rück. Este ho-rück é, então, desmembra- raízes. Assim, se poderia pensar e propor uma
do: há o ho e o rück e mais algumas palavras que epistemologia da língua alemã. Todavia, eu creio

53 Emmanuel Kant (1724-1804): filósofo alemão, em geral considerado o pensador mais influente dos tempos modernos. Ao
referido filósofo IHU On-Line dedicou sua 93ª edição, de 22 de março de 2004. Também sobre Kant é o Cadernos IHU em
formação n. 2. (Nota da IHU On-Line).

53
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que, no começo, precisamos iniciar com a onto- nal onde fazem experimentos com fala. É uma
logia que hoje se chama Teoria de Sistemas, na sala com duas câmeras, que podem movimen-
qual está entretecida a epistemologia. Se então tar-se e mostrar o que vêem, onde macacos jogam
chegarmos tão longe que possamos dizer: “Isto é bola, e eles começam a copiar um objeto numa fo-
o subsistema epistemologia, poderemos recupe- lha. No começo, é muito caótico, mas, em pouco
rá-la e trazê-la à luz do dia”. Esta é minha posição tempo, eles são capazes, com uma fala desenvol-
e, quanto aos símios, tenho grande sensibilidade vida na selva, a designar as coisas e chegar até a
por eles, e se, de repente, entra aqui um macaco uma primitiva interação e dizer: “Me dá o bastão
e diz: “boa tarde”, e se senta, também preciso verde”. Isso significa que a fala, a linguagem se
cumprimentá-lo. desenvolve como algo social, com base na intera-
Günther Küppers – Há experimentos mui- ção e, neste caso, podem mover-se e olhar para o
to interessantes. Em Paris, há um laboratório zo- que têm diante de si.

54
“A simples relação de causa e efeito se tornou complexa”

Entrevista com Günter Küppers

Günter Küppers é professor e diretor do Insti- neuronais são hoje, com êxito, adotados em de-
tut für Wissenschafts-und Technikforschung (IWT) terminados setores, como, por exemplo, no reco-
da Universidade de Bielefeld (Alemanha). Estu- nhecimento de um modelo.
dou Física na Universität Würzburg und München.
É doutor em Física Teórica com habilitação no IHU On-Line – Em que medida as teorias da
campo dos estudos científicos pela Universität selforganization são aplicáveis ao estudo
Wien. Suas áreas de pesquisa são a Física do Plas- dos sistemas sociais?
ma, Hidrodinâmica, Filosofia e História da Ciên- Günter Küppers – O aplicador mais conhecido é
cia, Teoria dos Sistemas e Teoria da Auto-organi- Niklas Luhmann54. É verdade que ele se baseia,
zação. Entre outras atividades, Günter Küppers é para sua aplicação, em conceitos da autopoiese55,
membro da Associação de Cientistas Alemães, da que eu encaro como um caso excepcional de au-
Sociedade Americana de Cibernética e da Socie- to-organização56. Eu mesmo apliquei a Teoria de
dade para os Estudos Sociais e para a Ciência. Sistemas de Auto-organização a processos de gera-
ção do saber e ao ordenamento de sistemas sociais.
IHU On-Line – Qual é a contribuição episte- Indicações bibliográficas encontram-se em meu
mológica da Teoria Quântica para a gera- site http://www.uni-bielefeld.de/iwt/kueppers/
ção do conhecimento humano?
Günter Küppers – Houve diversas tentativas IHU On-Line – Qual é o resultado prático de
(entre outras, de Erwin Schrödinger) de aplicar a tais aplicações?
Mecânica Quântica a processos cognitivos, mas Günter Küppers – Resultados práticos de tais
nenhuma delas foi convincente. Atualmente, se aplicações não podem ser mencionados de forma
vêem, na teoria de sistemas complexos maiores, bem concreta. Entretanto, de modo bem geral,
chances para uma modelagem de processos cog- tais iniciativas conduziram a uma mudança de pa-
nitivos. Modelos de simulação na base de redes radigma na teoria e também na práxis da adminis-

54 Niklas Luhmann (1927-1998): sociólogo e jurista alemão. É o representante mais importante da Teoria dos Sistemas. É autor
de uma vasta obra. Em português, citamos os livros Sociologia do Direito I, Editora Tempo Brasileiro, 1983 e Sociologia
do Direito II, Editora Tempo Brasileiro, 1985. (Nota da IHU On-Line)
55 A teoria autopoiética tem como idéia básica um sistema organizado auto-suficiente. O termo autopoiese foi cunhado pelos

biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela. A teoria autopoiética vem sendo aplicada em várias áreas do
conhecimento humano (Nota da IHU On-Line).
56 O PPG em Direito da Unisinos trouxe à Universidade, nos dias 3 e 4 de novembro de 2004, o professor francês Dr. Jean-Joseph

Clam, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS), que ministrou palestras sobre o Direito
Autopoiético e lançou o livro Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito (Livraria do Advogado Editora),
em co-autoria com Leonel Severo Rocha, coordenador executivo do PPG em Direito da Unisinos, e Germano Schwartz. O
professor Leonel Rocha apresentou o seminário O Direito no paradigma da complexidade, dia 16 de setembro de 2004,
durante o Ciclo de Estudos sobre “O método”, de E. Morin, promovido pelo IHU. Sobre a apresentação, conferir
entrevista concedida pelo professor ao IHU On-Line na 115ª edição, de 13 de setembro de 2004. (Nota da IHU On-Line).

55
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tração. Sistemas sociais já não são mais vistos de estruturas que, em sentido clássico, não podem
como comandáveis de fora. Em vez disso, apon- mais ser explicadas como deterministas.
ta-se, com muito empenho, para a dinâmica inter-
na de tais sistemas. IHU On-Line – Ante o progresso da nova Fí-
sica, qual o destino da Física Clássica?
IHU On-Line – Qual é a principal contribui- Günter Küppers – A Física Clássica, por estes
ção da Teoria do Caos para o conhecimento novos aspectos, que se tornaram patentes por
contemporâneo? auto-organização e caos, não se tornou supér-
Günter Küppers – A Teoria do Caos mostra que flua. Há suficientes fenômenos, para os quais ela
a simples relação de causa e efeito se tornou com- fornece um quadro descritivo adequado. Algo se-
plexa. Retroconexões (ou retroacoplamentos) de melhante ocorre com a Mecânica Quântica e a
causa e efeito explicam fenômenos da formação Teoria da Relatividade. Também estas duas “re-
voluções” nada modificaram na validade da Físi-
ca Clássica. Elas apenas limitaram sua validade.

56
Natureza e liberdade – A Física atual em foco

Por Armando Lopes de Oliveira

Armando Lopes de Oliveira é professor apo- cas, baseadas na filosofia aristotélica, que consti-
sentado da Universidade Federal de Minas Gerais tuía, na época, parte integrante do ensinamento
(UFMG). Graduado em Filosofia pela UFMG, é oficial da Igreja Católica, herança direta da magis-
mestre em Física pela mesma universidade, dou- tral releitura do aristotelismo, feita, na Idade Mé-
tor em Física pelo Centre d’Études Nucleaires de dia, por Tomás de Aquino (1125-1274).
Grenoble (França). O professor Armando partici- Isaac Newton (1642-1727), com sua prover-
pou também do Simpósio Internacional Terra bial timidez, e genialidade introvertida, foi, por
Habitável: um desafio para a humanidade, ironia da sorte, o grande apóstolo da boa nova, in-
promovido pelo IHU, onde ministrou a oficina A tuída, e não inteiramente formalizada por Galileu.
estrutura do universo e os seus códigos físicos, e o Nascido no ano da morte de Galileu, atribui-se a
curso O caos dedilhado em planilhas Excel. A pe- Newton uma frase que acabou se tornando céle-
dido da IHU On-Line, ele escreveu o artigo Natu- bre: “Se tenho algum mérito, é porque me apoiei
reza e liberdade – A Física atual em foco. em ombros de gigantes”. Estava ele se referindo a
Galileu Galilei e a Johannes Kepler (1571-1630).
A obra de Newton é extensa, tendo ele escrito, in-
Introdução clusive, sobre temas teológicos. Chegou-se mes-
mo a afirmar que ele se interessava mais por Teo-
Não constitui exagero algum afirmar que a logia do que por Matemática e Física. Estes dois
Física, como metodologia científica, já nasceu últimos campos citados, no entanto, foram os que
adulta, no século XVII, por obra e graça do profeta definitivamente o consagraram como um dos ma-
Galileu (“o grande livro da natureza está escrito iores gênios da humanidade. Entre suas obras pu-
em uma linguagem matemática”). Sua consolida- blicadas, convém destacar: Philosophiae natu-
ção, no entanto, como ciência inteiramente for- ralis principia mathematica – 1687, Opticks
malizada, deu-se a partir do século XVIII, com a di- – 1704, Methodus fluxionun (concebido em
fusão do legado científico do apóstolo Newton 1671, mas só publicado em 1736).
(“eu não imagino hipóteses inúteis”). Para fazer jus a méritos incontestáveis, foram
Galileu Galilei (1564-1642), com sua geniali- apresentados, em rápidas pinceladas, os perfis
dade polêmica, suas intuições profundas e sua dos dois gênios fundadores da Física Moderna,
conturbada vida, foi o profeta ardoroso da nova Galileu e Newton. Foram colocados em destaque
ciência. Entre as obras escritas que nos legou, res- também os títulos de algumas de suas obras prin-
salto Sidereus Nuncius – 1610, Il Saggiatori – cipais. Grandes matemáticos e físicos dos séculos
1623, Diálogo sobre Dois Novos Sistemas – XVIII e XIX levaram, até às últimas conseqüências,
1632 e Diálogo sobre Duas Novas Ciências – a revolução científico-filosófico-cultural, desenca-
1636. O tufão intelectual violento, causado por deada por Galileu-Newton, aprimorando o que
suas descobertas astronômicas e seus escritos con- acabou por constituir o que se convencionou cha-
tundentes, acabou por varrer, do Ocidente Cris- mar de Física Clássica ou newtoniana, em contra-
tão, velhas convicções insatisfatórias e dogmáti- posição às físicas relativística, quântica, e, na atua-

57
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lidade mais recente, à Física dos Sistemas Caóti- tada de aproximadamente 1852 vezes, ou seja, ela
cos. Essas três últimas vertentes da Física herda- se torna igual à massa de repouso do próton. Isso é
das do século XX serão abordadas, com mais va- um efeito relativístico. O processo de fusão nuclear,
gar, nas seções a seguir. que ocorre naturalmente no sol, formando núcleos
do gás hélio, a partir de dois prótons (núcleos do gás
hidrogênio) e de dois nêutrons, envolve temperatu-
Teoria da Relatividade ras da ordem de dez bilhões de graus celsius. Fusão
nuclear é um efeito relativístico.
A visão científica mudou, e muito, a partir Na nossa vida cotidiana, tornada possível
dos primeiros decênios do século XX. Primeiro pela mediocridade das temperaturas que nos cer-
com a Teoria da Relatividade. Depois, com a Teo- cam e das velocidades que nos transportam, não
ria Quântica. Nas últimas três décadas, com a Te- experimentamos efeitos relativísticos: as distâncias
oria do Caos. não se contraem, o tempo não se dilata, massas
A Teoria da Relatividade aboliu o caráter abso- não se transformam em energia.
luto do espaço e do tempo, como entidades autôno- Espaço, tempo, massa e energia foram relati-
mas e separadas, como era postulado na Física vizados, e, no entanto, a relatividade preserva uma
Clássica ou newtoniana, substituindo tais conceitos visão determinística do mundo: dado o estado do
pelo absoluto do contínuo “espaço-tempo” de Min- universo agora, seu futuro está inteiramente deter-
kovsky, dotado de quatro dimensões (três espaciais minado, e para sempre. No dizer de Albert Einstein
e uma temporal). Isso é tão verdade que Einstein (1879-1955)57, fundador da Teoria da Relativida-
não gostava da expressão relatividade generalizada, de, Deus não joga dados! Esta é uma das suas mui-
preferindo Teoria Geral da Gravidade. Por outro tas afirmações, tornadas célebres. Levando-a radi-
lado, a Teoria da Relatividade põe em realce os calmente a sério, a vida da humanidade seria como
chamados invariantes, grandezas físicas que per- a de colônias de formigas, sujeitas aos tentáculos
manecem constantes, mesmo quando se muda de determinísticos de destinos bem traçados. Universo
referencial. Um desses invariantes é a velocidade pouco confortável... Se, no próprio coração da ma-
da luz. Ela não se compõe nem com a velocidade téria, tudo ocorre de forma determinística, cabe a
do observador, nem com a velocidade da fonte. pergunta: permitiria a natureza alimentar a espe-
Velocidades próximas à velocidade da luz acarre- rança de alguma brecha para a liberdade?
tam contração das distâncias e dilatação do tempo.
Não existem simultaneidades absolutas, porque
nenhuma informação se propaga com velocidade Teoria Quântica
maior que a da luz. Massa pode se transformar em
energia e vice-versa, segundo a famosa equação: Deus joga dados... Com o advento da Teoria
E = m c2 (E, energia; m, massa; c, velocidade da Quântica da matéria, a partir do segundo decênio
luz no vácuo = 300.000.000 m/s). do século XX, de colônias de formigas autômatas,
Efeitos relativísticos aparecem quando as ve- horizonte único que a visão mecanicista, herdada
locidades ou as energias envolvidas são muito dos séculos XVIII e XIX, nos oferecia, passamos à
grandes. Elétron que adquire velocidade 0,99 c (c condição extremada oposta: miríades de ébrios
= trezentos milhões de metros por segundo), em da liberdade, sujeitos aos caprichos de um Deus
um acelerador de partículas, tem sua massa aumen- que joga dados.

57 No evento Abrindo o Livro, promovido pelo IHU, no dia 15 de setembro de 2004, o professor Dr. Paulo Henrique Dionisio,
da Unidade de Ciências Exatas e Tecnológicas da Unisinos, apresentou o livro O ano miraculoso de Einstein: Cinco
artigos que mudaram a face da física, de John Stachel (Organização e introdução). Rio de janeiro: UFRJ, 2001. Sobre a
obra, o professor Paulo Henrique Dionisio concedeu uma entrevista ao IHU On-Line, na 115ª edição, de 13 de setembro de
2004 (Nota da IHU On-Line).

58
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Um dos postulados da Teoria Quântica pres- leis é a da alta sensibilidade às condições iniciais:
creve a impossibilidade de se determinar com pre- o bater de asas de uma borboleta, na Amazônia,
cisão absoluta posição e velocidade de partículas pode desencadear um tornado de grandes pro-
atômicas e subatômicas. Este é o chamado princí- porções na Flórida. Trata-se de uma metáfora,
pio de indeterminação de Werner Heisenberg mas ilustrando aspectos importantes: a hipersensi-
(1901-1976). Com ele rui a visão rigidamente me- bilidade dos fenômenos caóticos às condições ini-
canicista da matéria, estritamente determinística. ciais e a sua imprevisibilidade, o que poderíamos
O coração da matéria passa a proibir o determi- chamar de solidariedade (não necessariamente
nismo estrito no seu destino. Se fosse possível co- destrutiva, como nos tornados!) ou conjuração de
nhecer com precisão absoluta a velocidade de um toda a natureza. Existem caos benéficos, como o
elétron, pertencente, por exemplo, a um átomo de da atmosfera terrestre, que, livre da ordenação
hidrogênio, a indeterminação que afeta a sua po- nefasta de turbulências, permite, por exemplo, o
sição, o transformaria em partícula absolutamente vôo tranqüilo de aeronaves.
não-localizada, e ruiria por terra o próprio concei- Quem já se extasiou com figuras geradas no
to de átomo de hidrogênio. computador, oriundas da iteração de equações
Na Teoria Quântica, posição é uma função simples, que juraríamos terem sempre comporta-
de onda de probabilidade. De ciência do ser, ela mento inteiramente determinístico, mas têm rotas
transforma tudo em ciência do poder ser. Está para o caos, pode aprofundar vivências importan-
aberta uma brecha para a liberdade... tes: brincando de modificar ligeiramente as condi-
Aprimoremos, no entanto, um pouco mais o ções iniciais, experimenta: a) como, em determi-
enquadramento epistemológico da Teoria Quân- nados casos, se desencadeiam fenômenos caóti-
tica. As funções de onda de probabilidade da Teo- cos e, em outros, não; b) como a universalidade
ria Quântica têm evolução matemática determi- de padrões gerados por sistemas caóticos, apre-
nística. Isso parece comprometer, em parte, o que sentam total indiferença à imprevisibilidade e à
chamamos de brecha para a liberdade... sucessão caótica dos detalhes pontuais (um belís-
Prossigamos ainda, um pouco mais, no simo exemplo é o do Conjunto de Mandelbrot –
emoldurar epistemológico da Teoria Quântica. Os Benoit Mandelbrot58, 1924-...).
quadrados das suas funções de ondas de probabi-
lidade têm realismo físico, significando densida-
des de probabilidades. Acontece que o quadrar Conclusão
delas, com o colapso de suas partes imaginárias,
significa projetá-las no universo macroscópico da A Teoria do Caos e a dinâmica de sistemas
nossa vida cotidiana, e este é regido por leis deter- complexos, embora aqui não caibam aprofunda-
minísticas do tipo da Física Clássica ou newtonia- mentos, abrem novas e incontestáveis brechas
na. Novo golpe na brecha para a liberdade... para a liberdade... Existem, no entanto, determi-
nistas inveterados. Não raro ouve-se a seguinte ar-
gumentação: entre os sistemas complexos, o mais
Teoria do Caos complexo de todos é o cérebro humano. Como-
damente, postula-se, então, o fatalismo do patri-
Deus joga dados, e o diabo sacode a mesa... mônio genético. Por que condenar um matador
Apesar de tudo, caos virou ciência. Uma de suas profissional? Ele age assim, por conta do gene da

58 O Conjunto de Mandelbrot foi analisado na exposição do evento Abrindo o Livro do dia 3 de novembro, ocasião em que o
Prof. Dr. Ney Lemke, da Unidade de Ciências Exatas e Tecnológicas da Unisinos, apresentou a obra The Computational
Beauty of Nature: Computer Explorations of Fractals, Chaos, Complex Systems and Adaptation, de G. W. Flake.
Cambridge: The MIT Press, 2000. O professor Ney concedeu uma entrevista à IHU On-Line, publicada na matéria de capa da
120.ª edição, de 25 de outubro de 2004, na qual comenta aspectos da obra apresentada. (Nota da IHU On-Line).

59
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

violência, dirá alguém. Este alguém está, no en- cas, existe a subjetividade do ser humano que as
tanto, redondamente enganado. Mesmo na hipó- decodifica como percepções distintas: púrpuro
tese de se admitir que todo comportamento hu- não é amarelo ouro. Trata-se de percepções dis-
mano é, em última análise, geneticamente deter- tintas, subjetivas, sim, mas o que há de fictício ne-
minado, isso não fornece motivo algum para es- las? O prazer estético existe. Extasiar-se diante da
cusar assassinos, sejam eles profissionais do crime contemplação do belo existente, seja na natureza,
ou não. Se genes correspondem realmente a ca- seja em autênticas obras humanas de arte, onde o
racterísticas fatais, a genes de agressividade se uníssono de cores bem orquestradas fala mais
contraporiam genes de autocontrole, mas é claro alto, é um dos muitos apanágios do ser humano.
que devemos ir mais longe, em nossa análise. Não A liberdade tem o seu lado estético. Devemos cul-
existe determinismo genético. Genes não atuam tivá-lo com carinho. O ser humano percebe-se
assim. O que nós somos não está irrevogavelmen- como livre. Não há nada de fictício nisso. Somos
te escrito em nossos genes. Por outro lado, o míni- livres, mas parece importante não fazer escolhas
mo que se pode dizer, a respeito de comporta- incorretas, sob o ponto de vista dos padrões éticos
mento social responsável, é que a elaboração de de comportamento. Escolhas incorretas criam, no
padrões éticos é uma estratégia de sobrevivência mínimo, vazios de valor. Não é confortável convi-
na linha evolutiva da humanidade, uma constante ver com vazios!
histórica benéfica e indispensável.
Alguém poderia ainda insistir: no fundo, a li-
berdade não seria uma ilusão, uma mera ficção? Agradecimento
Minha resposta é pela negativa a tal pressuposto.
Quem ainda não se extasiou diante da beleza de Ao grande amigo e físico teórico, Nilton Pe-
uma rosa púrpura ou de uma orquídea amarelo nha da Silva, deixo consignado aqui o meu agra-
ouro? Mas o púrpuro e o amarelo ouro são ilu- decimento. Com efeito, amigo é para estas horas.
sões, insistirá alguém, argumentando: a distinção Apesar de atarefado, ele não se poupou ao traba-
entre essas cores repousa apenas na diferença dos lho de ler o presente artigo, sugerindo-me algu-
comprimentos de onda das vibrações eletromag- mas modificações, às quais espero ter atendido
néticas luminosas que as caracterizam. Tudo, no corretamente, em nome de maior clareza e rigor
entanto, não se resume apenas nisso. Do outro nesta breve exposição sobre temas tão fascinantes
lado da objetividade das vibrações eletromagnéti- e intrigantes da atualidade científica.

60
A imperiosa criação e recriação dos códigos de entendimento do
universo e as revoluções causadas pela Teoria da Relatividade

Entrevista com Armando Lopes de Oliveira

Armando Lopes de Oliveira é professor apo- IHU On-Line – Quais as principais teses que
sentado da Universidade Federal de Minas Gerais o senhor apresenta sobre O caos dedilhado
(UFMG). É licenciado, bacharel em Física, mestre em planilhas Excel?
em Física pela UFMG e doutor em Física pelo Cen- Armando Lopes de Oliveira – Faz algum tem-
tro de Estudos Nucleares de Grenoble (França). É po, li alguma coisa desconcertante afirmada pelo
pós-doutor em Física pelo Imperial College (Lon- filósofo francês Michel Serrès59: “Como se pode
dres). O físico coordenou, durante o Simpósio levar a sério a filosofia da ciência se agora até o
Internacional Terra Habitável: um desafio caos está com status de ciência?” O título do meu
para a humanidade, a oficina A estrutura do curso pode criar a ilusão de que o congressista,
universo e os seus códigos físicos e ministrou o que não tiver familiaridade com planilhas Excel,
curso O caos dedilhado em planilhas Excel. estaria perdendo o seu tempo se inscrevendo
nele. Não é nada disso. Meu esforço consiste em
IHU On-Line – Quais as principais teses demonstrar que lidar com o caos cientificamente
que o senhor apresenta sobre A estrutura é, sob vários aspectos, tão simples como entender
do Universo e os seus códigos físicos? extratos bancários de contas correntes, com ape-
Armando Lopes de Oliveira – A estrutura do nas duas entradas (débito-crédito) e uma saída
universo desafia a curiosidade e a inteligência (saldo).
dos físicos e de toda mente inquiridora em geral,
com os seus códigos surpreendentes, na maioria IHU On-Line – De que forma a Física contri-
das vezes paradoxais, quando não enredados no bui, e poderia contribuir mais ainda, para
que parece indecifrável. Como conciliar contí- pensar o desafio da Terra habitável?
nuo-descontínuo, absoluto-relativo, determinis- Armando Lopes de Oliveira – No início, ao re-
mo-indeterminismo, necessário-contingente, or- ceber o convite para orientar uma oficina e minis-
dem-caos? Meu objetivo principal consiste em trar um curso no Simpósio Internacional Ter-
afirmar, e tentar mostrar, como, criando e recrian- ra Habitável, tive ímpetos de responder: “Sin-
do seus próprios códigos de entendimento do uni- to-me muito honrado com o convite, mas como
verso, a ciência consegue levantar, em parte, o físico, talvez, o que gostaria de explorar não te-
véu do mistério e do paradoxo, com que se reves- nha nada a ver”. Acontece que o convite já veio
tem os códigos físicos do universo. com cartas marcadas, talvez porque o Prof. Cirne

59 Michel Serrès: filósofo francês, estuda a situação humana nas várias dimensões da vida e das ciências: existência, espiritualidade,
cultura, economia, política, biologia, genética, tecnologia. (Nota da IHU On-Line)

61
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Lima60 tenha soprado no ouvido da comissão or- físicos. E eis uma questão mais complicada ainda:
ganizadora: “Convide o Armando para falar coi- como falar sobre relatividade de Einstein, num
sas ligadas à estrutura do universo, à complexida- congresso de dialética, promovido por filósofos,
de, aos fractais, ao caos”. Resolvi enfrentar o de- se a dialética não constitui a ferramenta de traba-
safio. Afinal de contas, a tecnologia se serve da Fí- lho da Física? A tarefa, eu a encarei como desafi-
sica muitas vezes de forma perversa, poluindo, ante e, ao mesmo tempo, estimulante. Felizmente,
soltando bombas atômicas, detonando artefatos o grupo do professor Cirne Lima está envolvido
nucleares a título de pesquisa. Por que não apre- com a Teoria dos Sistemas, o que, em grande par-
sentar os bons usos que se pode fazer da Física? te, facilita as coisas. As reflexões feitas foram cen-
tradas na quebra de réguas, relógios e massas
IHU On-Line – Como as teorias do Caos e da clássicos, na vertigem do confronto de distâncias
Complexidade ajudam a compreender as que se contraem, tempo que dilata e massa que se
estruturas do universo? transforma em energia.
Armando Lopes de Oliveira – Tem tudo a ver,
do big bang à era atual, o universo evolve, e os se- IHU On-Line – Quais são as revoluções cau-
res vivos evoluem, em estranho e apaixonante sadas pela Teoria da Relatividade? Como
jogo de aspectos conflitantes, apresentando estru- ela ajuda a compreender o universo?
turas simples das quais emergem complexidades e Armando Lopes de Oliveira – As revoluções
ausências de estruturas ou caos que eclodem em causadas pela Teoria da Relatividade, no que têm
auto-organização. de mais contundente, são totalmente estranhas à
nossa vida quotidiana, na qual não ocorrem velo-
IHU On-Line – Tendo como objetivo o desa- cidades imensas nem temos o nosso planeta Terra
fio da Terra habitável, quais as mudanças turbilhonando na linha de horizonte dos buracos
mais importantes pelas quais deve passar a negros. Para que uma régua clássica de 1,00 m ti-
universidade e suas estruturas? Como a Físi- vesse o seu comprimento reduzido para 44 cm,
ca pode contribuir para uma visão do mundo ela deveria estar dentro de uma nave espacial e
e um fazer científico mais transdisciplinar? apontando para o mesmo sentido do seu movi-
Armando Lopes de Oliveira – A universidade mento, o qual deveria se dar a uma velocidade de
hoje é uma ficção. O que existe atualmente são 972 milhões de quilômetros por hora. Nada acon-
pluriversidades. Tendo como objetivo-vetor-co- teceria com a largura da régua. Nesse caso, a pes-
mum habilidade e auto-sustentabilidade, deve-se soa que a estivesse empunhando, em pé dentro
incentivar a transdisciplinaridade em uma rede de da nave, estaria transformada em uma réplica de
interações unificadoras das grandes culturas da si própria, com o próprio perfil emagrecido, para
humanidade: a religiosa, a artística, a filosófica e a menos da metade do diâmetro da própria barriga,
científica. e nada lhe teria acontecido com respeito à altura.
Seria uma espécie de dieta cósmica! Por outro
IHU On-Line – Quais as principais reflexões lado, vamos supor que o passageiro da nave se
que o senhor apresenta sobre o universo e a chame João, e tenha deixado na Terra um irmão
Teoria da Relatividade? gêmeo de nome Paulo. Os dias para João estariam
Armando Lopes de Oliveira – Minhas reflexões dilatados para 537h 3’ e 36”, e, caso ele fosse por-
pretendem levantar um pouco o véu do mistério, tador de algum tumor maligno, o seu câncer evo-
que a Teoria da Relatividade ainda costuma re- luiria em ritmo diminuído também na mesma pro-
presentar, como se estivesse condenada a ser uma porção. Mas seria um erro dizer que a Teoria da
espécie de visão do mundo acessível apenas aos Relatividade não afeta em nada a nossa vida do

60 Carlos Roberto Velho Cirne Lima integra o PPG em Filosofia da Unisinos. Dele, publicamos a entrevista Karl Rahner defendeu
idéias, antes do tempo, cedo demais, na 102ª edição, de 24 de maio de 2004. (Nota da IHU On-Line)

62
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

dia-a-dia. Se no Sol, a massa não se transformas- nexão com a Teoria do Caos Determinístico
se em energia, em reações de fusão nuclear, que e com a Geometria Fractal. Para poder ex-
apenas a Teoria da Relatividade explica, de, há pressar esta Totalidade em sua hierarquia
muito, ele se teria apagado, o que vai acontecer de um Todo que está dentro de outro Todo,
apenas daqui a, aproximadamente, 12 bilhões de foi introduzida a Teoria dos Sistemas”.
anos. Outra coisa, a tabela periódica dos elementos Como explicaria esta afirmação para um
químicos tem propriedades que só a Teoria da Re- público leigo?
latividade permite entender, de forma complemen- Armando Lopes de Oliveira – A afirmação é
tar à Física Quântica. Uma delas, a cor amarela do do professor Cirne Lima. Os fractais gozam de in-
elemento químico ouro, é um efeito relativístico. variância com respeito à escala. Isso significa que,
ao se aplicarem “zooms”, tantas vezes quantas
IHU On-Line – O que a Teoria da Relativida- quisermos, os detalhes podem mudar, mas os pa-
de não consegue resolver? drões se repetem, em um conceito que, em mate-
Armando Lopes de Oliveira – A Teoria da Re- mática, se denomina auto-similaridade. Teoria
latividade generalizada supõe o encurvamento do dos Sistemas é realmente muito afim com a di-
contínuo espaço-tempo. Continuidade não é uma mensionalidade fractal.
propriedade topológica que se encaixe bem com
os pressupostos da Teoria Quântica. Outra coisa é IHU On-Line – Quais as relações mais im-
o seu determinismo, incompatível com o probabi- portantes realizadas nesse evento entre dia-
lismo quântico e, mais grave ainda, com o caráter lética, tempo e natureza?
errático da Teoria do Caos. Einstein dizia que não Armando Lopes de Oliveira – Tenho proposi-
aceitava um Deus que jogasse dados. Niels Bohr ções específicas, calcadas na Filosofia da Natu-
uma vez lhe retrucou: “E quem é você para dizer o reza, elaborada pelo Padre Henrique Cláudio de
que Deus deve ou não deve fazer?”. Hoje os físi- Lima Vaz61, de quem tive o privilégio de ser aluno.
cos vão mais longe ainda: dizem que Deus joga Muita coisa, entretanto, está inédita. O importante
dados, e o diabo sacode a mesa! é que, na década de 1960, Lima Vaz elaborou
IHU On-Line – Como vai se construindo a uma extraordinária visão filosófica da natureza,
ponte entre os grandes sistemas clássicos incorporando o que havia de mais atualizado no
da dialética com as ciências contemporâ- campo da Matemática e da Física. O método dia-
neas? Por que o senhor considera importan- lético, por ele inaugurado, incluindo Indução His-
te esse diálogo? tórica, Redução Crítica e Elaboração Categorial,
Armando Lopes de Oliveira – O diálogo não continua inteiramente atual e eficiente, podendo
só é importante como imprescindível. Por outro ser retomado para incorporar o que de lá para cá
lado, a Teoria dos Sistemas é uma boa ferra- apareceu como novidade: fractais, sistemas com-
menta teórica para fazer a ponte entre os gran- plexos e caos. O mesmo se pode falar, em relação
des sistemas clássicos da dialética e as ciências aos vertiginosos avanços das ciências biológicas,
contemporâneas. já em parte levados em conta por Lima Vaz, na
sua última versão da Filosofia da Natureza, ela-
IHU On-Line – Na apresentação do evento borada na década de 1980. Dialética, tempo e na-
(Congresso Nacional DIA/2005) afirma-se tureza têm vinculações que podem e devem ser
que “a Teoria da Evolução, por sua vez – explicitadas em lógicas ascendentes e descenden-
isso foi por nós demonstrado – está em co- tes, como acontece nas elaborações do grupo Cir-

61 Na editoria Memória, publicada na edição 142ª da IHU On-Line foi realizada uma entrevista com o próprio Armando Lopes
de Oliveira, celebrando o terceiro aniversário do filósofo. Henrique C. de Lima Vaz, filósofo, padre jesuíta, autor de uma vasta
obra filosófica foi tema da IHU On-Line número 19, de 27/05/2002. (Nota da IHU On-Line)

63
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ne Lima e Eduardo Luft62. Existem, no entanto, de metros. E as possibilidades de recuo no tempo


densidades ontológicas subjacentes às grandes não são menos impressionantes, desvendando o
teorias matemáticas, físicas e biológicas da atuali- big bang, o início do espaço-tempo, ocorrido há
dade, as quais seria muito oportuno tentar reexa- pelo menos 10 bilhões de anos.
minar sob uma perspectiva vaziana.
IHU On-Line – O senhor gostaria de acres-
IHU On-Line – Como as mudanças das con- centar mais algum comentário que julgue
cepções de tempo e espaço provindas das pertinente?
novas tecnologias influenciam na compre- Armando Lopes de Oliveira – O efeito de suc-
ensão do universo? ção, postulado por Cirne Lima, em esforço hones-
Armando Lopes de Oliveira – Dotam a huma- to e persistente, para elevar o nível acadêmico da
nidade da capacidade de avançar na compreensão Unisinos, deve ser levado adiante com afinco, e é
da imensidade cósmica, até o limite de quintilhões o que estou percebendo que estão fazendo des-
de anos-luz, e mergulhar no abismo do coração da bravadores incansáveis, com quem tive o privilé-
matéria, desvendando o que ocorre no universo gio de trocar idéias, como os padres Marcelo de
dos quarks63, cuja escala é de 10 quintilhonésimos Aquino64 e Inácio Neutzling65.

62 Eduardo Luft é jornalista, mestre e doutor em Filosofia pela PUCRS e Universidade de Heidelberg (Alemanha) respectivamente.
Autor dos livros Para uma crítica interna ao sistema de Hegel. Porto Alegre: Edipucrs, 1995 e As sementes da dúvida.
São Paulo: Mandarim, 2001. (Nota da IHU On-Line).
63 Designação genérica de partículas elementares hipotéticas, com cargas iguais à fração da carga elementar, que seriam os

constituintes das outras partículas elementares. (FERREIRA, Aurélio B. de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2.ed. rev. e
aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986). Prótons e nêutrons são feitos de quarks. Tudo o que sabemos sobre o tamanho
dos quarks é que são muito pequenos para se medirem com os aceleradores atuais e os métodos experimentais existentes.
Logo, os teóricos os tratam como se fossem partículas pontuais. (Nota da IHU on-Line)
64 Marcelo Fernandes de Aquino é vice-reitor da Unisinos e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da

Universidade. (Nota da IHU On-Line)


65 Inácio Neutzling é diretor do Instituto Humanitas Unisinos e professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em

Ciências Sociais Aplicadas da Unisinos. (Nota da IHU On-Line)

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Teoria da Relatividade: uma leitura filosófica

Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira

Manfredo Araújo de Oliveira é professor do losoficamente a Teoria da Relatividade, dizendo o


Departamento de Filosofia da Universidade Fede- seguinte: a filosofia tem uma parte, que é seu nú-
ral do Ceará. Manfredo é graduado em Filosofia cleo central, que se faz por meio de uma reflexão
pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza, mestre sobre o puro espírito humano sobre si mesmo.
em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoria- Nesse momento, ela busca chaves de compreen-
na de Roma (Itália) e doutor em Filosofia pela Uni- são do mundo, do universo, do homem e das coi-
versität München Ludwig Maximilian (Alemanha), sas. Mas quando chega a hora de, com base nes-
com a tese intitulada Subjetividade e mediação: sas chaves de inteligibilidade que ele trabalhou no
estudos sobre o desenvolvimento do pensamento primeiro momento, compreender realmente o
transcendental em Kant, E. Husserl e H. Wagner. universo, ele não pode vir do puro permanente,
É autor de, entre outros, Filosofia transcen- tem que vir das ciências. Então a Teoria da Relati-
dental e religião. São Paulo: Loyola, 1984; A vidade pôs em questão, não destruiu, pôs em
Filosofia na crise da modernidade. São Pau- questão, alguns conceitos fundamentais da Física
lo: Loyola, 1989; Ética e racionalidade mo- Clássica, ou seja, a mecânica de Newton. E a par-
derna. São Paulo: Loyola, 1993; Ética e econo- tir daí elaborou uma visão do mundo natural que,
mia. São Paulo: Ática, 1995; Diálogos entre ra- em muitos aspectos, discorda da posição de New-
zão e fé. São Paulo: Paulinas, 2000; Desafios ton, portanto, abre o espaço para uma nova com-
éticos da globalização. São Paulo: Paulinas, preensão da natureza. Ora, a tese do autor que eu
2001; Para além da fragmentação. São Paulo: trabalho é que o filósofo, quando trata exatamen-
Loyola, 2002; Dialética hoje. Lógica, metafí- te das coisas do homem, do universo, não pode
sica e historicidade. São Paulo: Loyola, 2004. fazer isso, fundamentado na pura reflexão, mas
Manfredo de Oliveira participou na Unisinos do tem que, em primeiro lugar, considerar as ciênci-
Congresso Nacional DIA/2005 – Dialética, tempo as. Só que as ciências empregam conceitos para
e natureza, onde ministrou a conferência Leitura falar do mundo e não trabalham propriamente es-
filosófica da Teoria da Relatividade. ses conceitos. Ora, o filósofo teria como tarefa ex-
plicitar o que está implícito nos conceitos que as
IHU On-Line – Qual é a leitura filosófica da ciências trabalham e descobrir neles uma cone-
Teoria da Relatividade? xão. Isso significa dizer que a filosofia do real, de
Manfredo de Oliveira – A minha abordagem é agora em diante, não pode mais passar sem as
a posição de um professor alemão, Dieter ciências. Ela tem que partir das ciências e fazer
Wandschneider66, que faz uma tentativa de ler fi- todo o seu trabalho como uma espécie de explici-

66 Dieter Wandschneider: formado em Física em Hamburgo. Foi professor de Filosofia na Universidade Tübingen (Alemanha) na
Universidade de Hamburgo e na de Padeborn. Desde 1988, é professor de Filosofia e Teoria do Conhecimento na Universidade
de Aachen, situada na fronteira entre a Bélgica e a Holanda. Entre suas publicações, citamos Das Problem der Dialektik
(Studien zum System der Philosophie, Bd. 3), hg. von Dieter Wandschneider, Bonn (Bouvier) 1997. (Nota da IHU On-Line).

65
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tação de conexões necessárias que estão presen- sem algo que se movimenta, portanto sem a maté-
tes no trabalho da ciência, mas não estão consci- ria, e é impossível pensar a matéria sem movimen-
entes para o cientista. Já a preocupação dele é to. Trata-se de um esforço em pensar, de uma for-
muito mais explicar como o mundo acontece, ou ma integrada, conceitos que, na Física Clássica, ti-
como as coisas acontecem no mundo. Não está nham ficado separados. Isso significa dizer que va-
preocupado com seus próprios conceitos, com a mos na direção de uma visão muito mais integra-
conexão de conceitos etc. da do mundo do que a Física Clássica poderia
dar, embora a Teoria da Relatividade não é uma
IHU On-Line – Qual é a importância da teoria do mundo, até porque Einstein teve muita
Teoria da Relatividade para compreender dificuldade em aceitar a Física Quântica por uma
o universo? série de razões. E hoje se diz exatamente que a Teo-
Manfredo de Oliveira – Veja bem, em primeiro ria da Relatividade ainda é uma física do macro-
lugar, é preciso notar o seguinte: foi espalhada cosmos, enquanto a Física Quântica é subatômi-
pelo mundo a idéia de que se trata de uma Teoria ca, do microcosmos. E a teoria verdadeiramente
da Relatividade, mas, na realidade, quando estu- unitária da realidade cósmica só apareceria,
damos, vemos que Einstein combinou dois princí- quando fôssemos capazes de juntar o micro e o
pios: o princípio da relatividade dos movimentos macro, ou seja, em termos físicos, a Teoria da Re-
dos corpos e o princípio absoluto da não-variabili- latividade e a Física Quântica. É o que tenta fazer
dade da velocidade da luz. Portanto, a Teoria da hoje, por exemplo, a Teoria das Supercordas, que
Relatividade tem um princípio do absoluto da ve- ainda está em embrião, surgindo, mas a intenção
locidade da luz e um princípio da relatividade dos ou, por exemplo, teóricos do todo, como o físico
corpos em relação ao princípio. Existe até um psi- Lee Smolin67, cujo livro A vida nos cosmos (tra-
cólogo alemão, Wertheim, que diz que a Teoria duzido pela Unisinos), vai atrás de um elemento
da Relatividade poderia ser chamada também de comum que perpassa tanto os seres anorgânicos
teoria da absolutidade, porque a própria relativi- quanto os orgânicos, mentais e a realidade social.
dade do movimento só aparece quando fazemos
a referência de todos os corpos em movimento a IHU On-Line – Como se relacionam os gran-
algo que não tem referência a nada, que é exata- des sistemas clássicos da dialética com as
mente o movimento absoluto neste sentido da luz. ciências contemporâneas?
Então, o interessante da Teoria da Relatividade é Manfredo de Oliveira – Hoje só podemos fazer
como ela se esforça por pensar junto aquilo que, essa relação se fizermos certas correções dos gran-
na física anterior, tinha ficado separado, por des sistemas dialéticos do passado. Se tomarmos
exemplo, movimento e repouso. A Teoria da Re- sobretudo a referência deste congresso, que é He-
latividade diz que é impossível pensar movimento gel, ele imaginava que o filósofo podia, puramen-
sem repouso, é impossível pensar repouso sem te com base na reflexão, não só descobrir a estru-
movimento. Matéria e movimento. Antigamente, tura do pensamento, as estruturas básicas de toda
se dizia que matéria é aquilo que não muda, e mo- a realidade, mas também pensar concretamente
vimento é aquilo que muda; o movimento é um toda e qualquer realidade, puramente como se diz
acidente, a matéria, substância. Com a Teoria da em Filosofia, a priori, independentemente da ex-
Relatividade, é impossível pensar o movimento periência, por pura reflexão. Hoje, mesmo guar-

67 Lee Smolin é professor de Física na Universidade da Pensilvânia (EUA). Como físico teórico, tem contribuído com idéias-chave
nas pesquisas pela unificação da Teoria Quântica com a Cosmologia e a Teoria da Relatividade. Apresentamos na IHU
On-Line, na 111ª edição, de 16 de agosto de 2004, do livro de Lee Smolin A Vida do Cosmos, publicado pela Editora
Unisinos, em 2004, o prólogo e a introdução, escritos pelo autor, que dão uma visão do alcance e do significado da obra.
Também publicamos, na editoria Livro da Semana, da edição n. 130, de 28 fev. 2005, da IHU On-Line a resenha deste livro,
de autoria do professor Dr. Ney Lemke, da Unidade de Ciências Exatas e Tecnológicas da Unisinos. (Nota da IHU On-Line)

66
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

dando o esquema hegeliano de dizer que a Filoso- mo barco, mas não porque concordemos em
fia tem que buscar a inteligibilidade de todas as tudo. Estamos na mesma busca. Inclusive do pon-
coisas, ela não pode ser reduzida apenas a uma to de vista físico, essas teorias todas não estão
teoria do espírito humano, que pensa o mundo, mais conectadas entre si. Agora, é claro que ele
mas tem que fazer isso também, portanto, tem que disse que o nosso trabalho está consistindo nisso.
pensar a racionalidade que está imanente em O exemplo da Teoria da Evolução e da Teoria dos
cada realidade, em cada coisa. Mesmo admitindo Sistemas é muito elucidativo. Pega-se, por exem-
esse propósito, temos que dizer para Hegel e para plo, uma semente que depois vai crescendo e de-
os dialéticos do passado que, para fazer isso, pre- senvolvendo-se. Então, o universo, para um pen-
cisamos ouvir as ciências. Hegel dividia a ciência sador como Hegel, embora no tempo dele não hou-
em dois grandes campos. O primeiro é a filosofia vesse isso, e ele só imaginava evolução no pensa-
lógica, que teria como tarefa tematizar essas gran- mento, ele não tinha idéia de que a natureza mesma
des chaves de compreensão, os conceitos funda- era um processo de evolução. Isso não é difícil de
mentais com os quais nós podemos pensar o acoplar, porque tem todas as bases filosóficas, sis-
mundo. O segundo é a filosofia do real, em que o temáticas que permitem essa história de pensar o
filósofo, com esses grandes conceitos, pondera a real como evolução, porque, no fundo, é a mesma
natureza e o homem. Só que Hegel pensava que estrutura fundamental que vai se desenvolvendo.
isso podia ser feito puramente mediante a reflexão O desenvolvimento não leva à fragmentação. É
do pensamento sobre si mesmo. Nós, hoje, dize- isso que a Teoria dos Sistemas compõe e que é
mos que isso é impossível sem ouvir o trabalho do uma idéia fundamental de Hegel. O real constitui
cientista, ver como ele concatena seus conceitos uma unidade na diversidade. São muitas realida-
para falar do real. des diferenciadas, mas todas estão unificadas, de
tal maneira que viver é conviver, ou seja, uma rea-
IHU On-Line – Como a pesquisa no Brasil lidade está sempre em relação com todas as ou-
está levando em conta esse diálogo com os tras. Nesse sentido, o que a Teoria dos Sistemas
clássicos? quer explicitar é que o real é uma totalidade, e que
Manfredo de Oliveira – Muito incipiente. Acho essa visão fragmentária, analítica ao extremo, que
que a Unisinos é uma exceção, porque Cirne nós tivemos com as ciências modernas, tem gran-
Lima sempre teve uma consciência clara de que des avanços, porque ela se tornou menos preten-
essas correções com os grandes dialéticos do pas- siosa, no sentido que queria ver o campo da reali-
sado têm que ser feitas e que cultivou o conheci- dade, só que levou a uma especialização enorme,
mento das ciências, de modo que ele pode, talvez que permitiu uma grande manipulação desses
mais do que qualquer outro filósofo no Brasil, fa- campos. Mas o preço foi muito grande também,
zer essas ligações necessárias hoje. Não só no Bra- porque se perdeu a unidade do universo, e fica-
sil, no mundo é coisa incipiente. Estamos saindo mos com a consciência totalmente fragmentada,
de uma época em que os filósofos achavam que separada, em gavetas, e isso é o que caracteriza o
as ciências não tinham importância para eles. homem moderno, analítico, científico.

IHU On-Line – Na apresentação do Congres- IHU On-Line – Quais as relações mais im-
so, afirmou-se que foi demonstrado que a Teo- portantes realizadas neste evento entre dia-
ria da Evolução está em conexão com a Teo- lética, tempo e natureza?
ria do Caos Determinístico e com a Geome- Manfredo de Oliveira – Há diferentes aborda-
tria Fractal. Qual é sua opinião a respeito? gens possíveis. A minha diz mais respeito à idéia
Manfredo de Oliveira – Naturalmente, é um de que não podemos pensar tempo sem espaço,
pouco de otimismo demais a expressão de que nem espaço sem tempo. Eles constituem uma uni-
“está demonstrado”. Cirne Lima acha que de- dade indissolúvel. São aquilo que Hegel chamava
monstrou, mas está longe. Estamos todos no mes- de determinações reflexivas: uma não pode ser

67
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pensada sem a outra. E a matéria é aquele mo- pensar esses conceitos básicos que estão na Física,
mento do repouso que está no movimento espa- espaço, tempo, matéria, vendo a sua mútua imbri-
ço-temporal. Assim, coisas que antes apareciam cação, ou seja, para retomar a idéia de que a natu-
como realidades separadas, agora aparecem inte- reza é essa totalidade de múltiplas faces.
gradas. A dialética é exatamente a tentativa de

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Por que as leis naturais são como são?

Entrevista com Antônio Augusto Passos Videira

Antônio Augusto Passos Videira é professor zontes, realizado na Unisinos, de 21 a 24 de se-


do Departamento de Filsosofia da Universidade tembro de 2004.
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Videira é
doutor em Filosofia pela Université de Paris VII e IHU On-Line – O quê é a Cosmologia moder-
pós-doutor pelas Universidades de Évora (Portu- na e qual a sua importância para a ciência?
gal), pela Unicamp de São Paulo, pela Universida- Augusto Videira – A importância da Cosmolo-
de Federal da Bahia e pela Universidade Federal gia moderna para a ciência é fundamental. Entre
de Santa Maria. Publicou artigos em revistas nacio- outras questões, a Cosmologia se coloca a seguin-
nais e estrangeiras, o livro Henrique Morize e o te: qual é a origem das leis naturais? Nós sabemos
ideal de ciência pura na República Velha. que a ciência moderna acredita na existência de
Rio de Janeiro: FGV Editora, 2003, e organizou leis naturais, mas por que o problema da origem
vários livros, entre os quais citamos: Einstein e o delas é importante? Por que as leis naturais têm a
Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995; O forma que elas têm? Por que elas são como são?
que é vida? Para entender a biologia do sé- Ou ainda: por que os fenômenos, ao obedecerem
culo XXI. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000; àquelas leis, o fazem de uma determinada forma?
Temas de Filosofia da Natureza. Rio de Janei- Para que essas leis não sejam tão arbitrárias, seria
ro: UERJ, 2004. O professor Videira coordena o interessante se nós pudéssemos compreender as
grupo de trabalho em Filosofia da Ciência da suas origens. No campo da ciência, a disciplina
Associação Nacional de Pós-Graduação em Filo- que poderia perguntar-se a respeito desse tema,
sofia (Anpof). Ele é também secretário adjunto da seria a Cosmologia, pois ela se preocupa com a
Anpof e secretário da Associação de Filosofia e origem do universo. Em outras palavras, caso seja
História da Ciência do Cone Sul (AFHIC). Para o possível compreender a origem do universo, po-
professor Dr. Antônio Augusto Passos Videira, a fi- deremos compreender a origem das leis, pois elas
losofia da ciência deve perceber a ciência “não se teriam originado com o universo e, de acordo
apenas como um tipo específico de conhecimento, com a formação responsável pelo surgimento do
mas percebê-la em seu processo de desenvolvi- universo, essa mesma formação também seria res-
mento histórico, de interação com outras formas ponsável pelo surgimento das leis. Assim, a Cos-
de conhecimento e nas suas relações com os dife- mologia poderia nos ajudar a compreender aspec-
rentes grupos que constituem a sociedade”. Entre- tos muito importantes da ciência. Outro aspecto
vistado pela IHU On-Line, ele declarou-se “favo- importante é a relação entre a consciência e o co-
rável a um diálogo da Filosofia com a ciência, a sua nhecimento ou, como alguns cosmólogos costu-
história”, já que disso podem resultar “transforma- mam dizer, qual é a relação entre a existência da
ções profundas no fazer filosófico, pois talvez o consciência e a existência de um universo. Para
objetivo da Filosofia se modifique”. O professor muitos, a consciência seria responsável pelo
Videira ministrou a conferência Cosmologia e Fi- modo segundo o qual o universo é. Dito de outra
losofia da Ciência, durante o Colóquio Internacio- forma, o universo é como é, porque existe uma
nal Filosofia e Ciência: Redesenhando Hori- consciência que é a nossa. Esse tipo de argumento

69
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

é conhecido como o “princípio antrópico”, para o outro lado da ciência ou da Teologia. Não pode-
qual existem várias formulações diferentes, de acor- mos utilizar conseqüências cosmológicas, baliza-
do com o grau de radicalidade que se queira dar ao das e validadas pela ciência para justificar forma-
papel da consciência. É um assunto controverso. ções teológicas. O exemplo mais conhecido, é o
da criação do universo. Nós sabemos que a Cos-
IHU On-Line – Como dialogam a Cosmo- mologia ainda não dispõe de conhecimentos sufi-
logia e a Filosofia? Qual a importância cientes para explicar como o universo se originou,
desse diálogo para compreender a socie- e alguns teólogos, no que, às vezes, são acompa-
dade contemporânea? nhados por alguns cosmólogos, dizem que aí está
Augusto Videira – Eu acho que a Cosmologia um limite para a ciência, que nada poderia falar
tem, paulatinamente – e eu digo paulatinamente, sobre a origem do universo. Então, se abriria um
porque isso ainda é controverso, nem todos os espaço para um discurso teológico. De todo o
cosmólogos, nem todos os cientistas aceitam modo, independentemente da resposta que se
questões como as antes referidas –, cresce o nú- queira dar, a minha posição atual é que nós deve-
mero de cosmólogos favoráveis a um diálogo mui- mos respeitar a possibilidade de que esse diálogo
to forte com a Filosofia, pois percebem que a Cos- aconteça. Parece-me que a Cosmologia e a Teolo-
mologia tem possibilitado que se façam questões gia podem manter um diálogo, mesmo que ele
que a Filosofia já propõe há muito tempo. Por não resulte numa posição consensual. Mas não
exemplo, a Cosmologia vem incorporando per- podemos ignorar que existem teólogos interessa-
guntas como “por que as leis naturais são como dos em se basear em conclusões cosmológicas em
são?”, que é uma questão tipicamente filosófica, favor dos seus discursos teológicos. Ou o contrário:
pois indaga pelo motivo. Segundo o cosmólogo que temos cosmólogos interessados em manter os
Geoge Ellis68, dependendo das indagações que teólogos distantes, não permitindo o uso das suas
são atribuídas ao escopo da Cosmologia, nós en- conclusões. Até que ponto a Cosmologia pode nos
contraremos questões da Filosofia. Então, me pa- ajudar a dar sentido à nossa existência? Essa inda-
rece que o diálogo é natural. Por outro lado, falar gação é delicada, porque, tradicionalmente, a ciên-
sobre a importância desse diálogo para a socieda- cia moderna não se preocupa com esse tipo de
de contemporânea é extremamente complexo. tema. É importante reconhecer a complexidade des-
Sabemos que a Cosmologia, historicamente, en- se tema ao invés de colocá-lo debaixo do tapete. É
volve perguntas do tipo “o que é o homem?”, “o preciso possibilitar o diálogo, pois se não chegarmos
que é o mundo?” e “qual é o lugar do homem no a uma resposta, poderemos chegar a algo importan-
mundo?”. E sabemos que essas indagações foram te que é estabelecer as diferenças. E respeitá-las a
respondidas não apenas pela Cosmologia ou pela partir daí, o que eu acho fundamental.
Filosofia, mas também pela Teologia. Portanto,
na sociedade contemporânea, dependendo do IHU On-Line – Qual é a influência exercida
escopo que se queira dar à Cosmologia e o que pela metafísica sobre a ciência?
vai influenciar o tipo de diálogo que a Filosofia vai Augusto Videira – Considerando a vastidão do
manter com a Cosmologia, nós poderemos nos tema, vou me limitar apenas à relação entre meta-
deparar com o diálogo entre a Cosmologia e a física e Cosmologia. Essa relação é bem evidente:
Teologia. Trata-se de uma questão que deve ser a metafísica pode ser definida como um discurso
abordada cautelosamente. Nesse momento, esta- sobre a estrutura mais fundamental do mundo ou
mos mexendo com idéias muito caras para um ou da natureza, e a Cosmologia precisa desse discur-

68 George Ellis é professor de Sistemas Complexos na Universidade Cape Town no Departamento de Matemática. É co-autor,
com Stefphen Hawking, do livro The Large Scale Structure of Space-Time, publicado em 1973 e é considerado um dos
principais cosmólogos do mundo. No ano de 2004, ele recebeu o Templeton Prize por sua pesquisa sobre os aspectos
filosóficos da Cosmologia. Ele também lutou ativamente contra o apartheid do seu país. (Nota da IHU On-Line).

70
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

so, na medida em que ela não tem como compro- pectiva é muito restrita. A Filosofia devia olhar
var muitas das suas conclusões. A Cosmologia so- para a ciência, como vem acontecendo de uns
fre de uma certa restrição às suas observações. anos para cá, não apenas como um tipo de conhe-
Por exemplo, ela trata do universo, definido cimento, mas como um tipo de práxis, pois a ciên-
como sendo o todo, tudo aquilo que existe – ainda cia envolve outros princípios que não são apenas
que essa existência seja determinada pelas leis físi- relativos à sua estrutura como um certo tipo de co-
cas, o que exclui a consciência. De todo o modo, nhecimento. Sem dúvida, esses princípios existem
ainda que tenhamos uma restrição desse tipo, para muitos, a ciência seria um tipo de conheci-
essa totalidade, que é constituinte da definição da mento distinto da religião, por exemplo, mas a
Cosmologia, não pode ser objeto de observação. ciência é muito mais do que isso. O que eu acho
Mesmo porque nós, seres humanos, que construí- que cabe fazer agora é perceber que a ciência tem
mos a Cosmologia, integramos essa totalidade. uma dimensão social e política que é inerente a
Não temos como sair dessa totalidade e obser- ela mesma. Nós não podemos compreender o
vá-la, a não ser por meio da nossa capacidade que é ciência, se nós não nos preocuparmos em
teórica. Ou seja, a metafísica é importante para a perceber de que modo ela consegue influenciar as
Cosmologia, na medida em que ela nos ajuda a nossas vidas, a sociedade. Não podemos pensar,
estabelecer definições que permitem à Cosmolo- por exemplo, que a divulgação científica é uma
gia se fundamentar em certos princípios, sobre atividade marginal à ciência. Ela faz parte intrínse-
uma certa base sem a qual ela não pode funcio- ca da ciência, pois é por meio dela que a ciência
nar, não pode se constituir. Então, a Cosmologia pode falar com o mundo que não é ciência, mas
não apenas mantém uma relação com a metafísi- que depende dela. E a ciência precisa disso, por-
ca, mas mantém relação de dependência, não to- que é extremamente cara e o destino dos recursos
tal e completa, mas trata-se de uma relação pre- nela aplicados exigem critérios transparentes. Isso
sente e atuante. E é bom que os cosmólogos a re- não é marginal, mas só recentemente os filósofos
conheçam. De uns anos para cá, eles têm se mos- estão se preocupando com esse tipo de problema.
trado um pouco mais liberais quanto a essa rela- Mas nós não sabemos ainda como incorporar es-
ção. Se, durante muito tempo, a ciência queria sas discussões, incorporar um problema relativo à
ver a metafísica o mais longe possível, a partir do transparência e distribuição dos recursos sem que
momento em que a Cosmologia surgiu como as questões concernentes à natureza da ciência
uma disciplina científica – e hoje ela é uma disci- como conhecimento sejam abandonadas. O gran-
plina científica – os cientistas reconheceram que a de desafio é juntar essas indagações. Precisamos
Cosmologia mantém uma relação muito forte redesenhar esses horizontes, como diz o título do
com a metafísica. colóquio realizado pela Unisinos.

IHU On-Line – Quais são os grandes desa- IHU On-Line – Como o saber científico e es-
fios que persistem no diálogo entre a Filo- pecialmente as universidades podem com-
sofia e a ciência e destas com a sociedade prometer-se mais com a sociedade?
contemporânea? Augusto Videira – Nós temos que pensar no
Augusto Videira – Normalmente, o diálogo en- contexto da aplicação. Vamos desenvolver um co-
tre Filosofia e ciência foi organizado da seguinte nhecimento? Mas para quem? Para quê? A que
questão: que tipo de conhecimento é a ciência? preço? Quais são as conseqüências positivas e ne-
Ou seja, a Filosofia preocupa-se com a ciência gativas desse conhecimento? Isso não deve ser
apenas como uma forma de conhecimento, inte- pensado, como ainda é regra, como uma limita-
ressada em saber quais as características inerentes ção à ciência. Não podemos manter uma postura
à ciência justificam aquilo que a ciência considera que ainda é a principal, segundo a qual o cientista
ser, isto é, verdadeira, objetiva, intersubjetiva, en- desenvolve uma teoria e não se preocupa com os
tre outros aspectos. O problema é que essa pers- usos, que seriam de responsabilidade dos políti-

71
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

cos. No que diz respeito à estrutura da universida- co de conhecimento, mas percebê-la em seu pro-
de, no momento em que nós ensinamos, forma- cesso de desenvolvimento histórico, de interação
mos os nossos alunos. Nós ainda não sabemos com outras formas de conhecimento e nas suas re-
transmitir-lhes esse tipo de responsabilidade, o lações com os diferentes grupos que constituem a
que é uma falha muito séria. A universidade deve sociedade. No fazer filosófico, sou favorável a um
incorporar a responsabilidade social à nossa for- diálogo da Filosofia com a ciência, a sua história,
mação, ao lado do ensino da pesquisa. Deve defi- a ética... E isso pode resultar em transformações
nir como vamos integrar o nosso conhecimento profundas no fazer filosófico, pois talvez o objetivo
ao mundo, que está para além das fronteiras da da Filosofia se modifique. Portanto, é preciso ha-
universidade ou da ciência. Esse desafio deve ser ver diálogo.
enfrentado o mais rapidamente possível em fun-
ção dos riscos de toda a ordem que estamos en- IHU On-Line – Quais são os principais de-
frentando, como os ambientais e sociais. safios que o ecossistema global represen-
ta para o pensamento econômico e social
IHU On-Line – Qual é o impacto de uma re- contemporâneo?
flexão filosófica sobre a ciência em sua in- Augusto Videira – Penso que seria obrigatório
serção sociocultural contemporânea? Qual incorporar esse tipo de tema às nossas reflexões.
a ressonância desse impacto nas condições Temos que pensar na preservação da natureza,
do fazer filosófico? por exemplo. Não há como sustentar que todo e
Augusto Videira – Respondendo à primeira in- qualquer tipo de progresso é válido, ou que qual-
dagação: eu acho que é fundamental, pois nós te- quer tipo de modelo econômico é válido. De ma-
mos que ver a ciência não como um elemento dis- neira alguma. E não digo isso porque o meio am-
tinto da cultura. A ciência é uma forma de produ- biente está ameaçado, mas é preciso considerar o
ção cultural e tem que se perceber como um ele- impacto sobre as nossas vidas do tempo que per-
mento estruturante que pode estar em igualdade demos nos deslocando, considerar como estão se
com os outros elementos constituintes da socieda- dando as relações entre os seres humanos... Te-
de. Considerando a visão de mundo que nos do- mos que pensar que os critérios econômicos não
mina, percebemos a ciência como um elemento, são decisivos de modo algum, pelo contrário. O
se não inteiramente, à parte, ocupando um lugar índice mais importante na economia não deve ser
distinto dos demais. A ciência tem que evitar se o da confiança dele na economia. Ou eu só existo,
colocar num pedestal, precisa dar espaço, por porque consumo? Se quisermos manter uma rela-
exemplo, à posição de quem não deseja comer ção equilibrada e estável com os outros e com o
alimentos transgênicos – e isso não significa que meio ambiente, não poderemos continuar consu-
essa recusa seja proveniente de uma pessoa sem mindo do jeito que consumimos. Qual é a capaci-
cultura. Como incorporar essa posição? O proble- dade de sustentação que o planeta tem diante
ma, muitas vezes, é que, devido à presença da dessa voracidade consumista? Estamos nos acos-
ciência no nosso mundo, até que ponto as conclu- tumando de modo perigoso a viver em shoppings
sões científicas devem ser impostas ou incorpora- centers. E o shopping de São Leopoldo é igual ao
das pelos outros? Quanto à segunda parte da per- do Rio de Janeiro que é igual ao de Londres. Isso
gunta, embora esse tema me interesse, eu não te- é triste e ruim. Acho que devemos incorporar es-
nho uma resposta organizada. O que eu diria, no ses temas nas nossas reflexões, incorporar essas
campo da filosofia da ciência, é que ela deve per- preocupações às nossas práticas como pesquisa-
ceber a ciência não apenas como um tipo específi- dores e professores.

72
A lógica quântica e a transdisciplinaridade exigem
a mudança de nossos hábitos mentais

Entrevista com Basarab Nicolescu

Basarab Nicolescu é professor de Física Teóri- nos deixando desarmados diante do dilema de
ca na Universidade Pierre e Marie Curie (Paris), um bem-estar exterior, acompanhado de um em-
onde foi fundador do Laboratório de Física Teórica pobrecimento (até o aniquilamento) de nossa vida
e de Altas Energias. É um dos mais atuantes e res- interior? A ciência se encontra na posição daquele
peitados teóricos do cenário científico contemporâ- que é chamado a limpar uma casa considerada
neo. É também presidente do Centro Internacional sublime e a encontra em mau estado. Uma vez
de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (Ciret), que seu trabalho é concluído, ele observa que o
fundado na França, em 1987. Na última década, proprietário da casa fica muito tempo ausente,
Nicolescu produziu diversos textos que procuram que ela está vazia. Como não ficaria ele tentado a
desvendar as relações entre arte, ciência e tradição, tomar posse deste lugar inabitado? A ciência fun-
propondo novos modelos de pensamento que pos- damental enterra suas raízes na terra nutridora das
sam resgatar à cultura e à sociedade um ser huma- interrogações comuns a todo campo do conheci-
no mais completo, capaz de enfrentar os desafios mento humano: Qual é o sentido da vida? Qual é
da complexidade, a intrincada teia de relações en- o papel do homem no processo cósmico? Qual é o
tre conhecimentos, disciplinas e sistemas (naturais, lugar da natureza no conhecimento? A ciência
culturais e econômicos), que caracteriza o mundo fundamental tem, então, as mesmas raízes que a
contemporâneo. Nicolescu integra o corpo de pes- religião, a arte ou a mitologia. Entretanto, gradati-
quisadores do Centro de Educação Transdiscipli- vamente, suas questões foram consideradas
nar (Cetrans), de São Paulo. Seus livros publicados não-científicas e foram rejeitadas no inferno do ir-
em português são Ciência, Sentido & Evolução racional, campo reservado do poeta, do místico
– A cosmologia de Jacob Boehme. São Paulo: ou do filósofo. A causa essencial desta mudança
Attarl, 1995; O Manifesto da Transdisciplinari- de paradigma foi o triunfo indiscutível, sobre o
dade. 2. ed. São Paulo: Triom, 2001. plano da materialidade direta, do pensamento
IHU On-Line – O senhor afirma que o pro- analítico, reducionista e mecânico. Bastava postu-
cesso de decadência das civilizações é mar- lar leis vindas não se sabe de onde. Em virtude
cado pela defasagem entre a mentalidade dessas leis, dessas equações de movimento, tudo
de seus atores e as necessidades internas podia ser precisamente predito, uma vez que as
do desenvolvimento de um tipo de socieda- condições iniciais estivessem fixadas. Tudo estava
de. O senhor poderia, em traços largos, de- determinado, mesmo pré-determinado. Neste
monstrar a defasagem que existiria entre os universo de falsa liberdade (tudo estando, desta
objetivos dos principais atores das socieda- forma, determinado), era surpreendente que algo
des contemporâneas e as exigências de uma pudesse realmente acontecer. Testemunha de
nova civilização? uma ordem absoluta, estática e imutável, o cien-
Basarab Nicolescu – Quem poderia negar que tista não podia mais ser, como em outra época,
a ciência, pela sua conseqüência mais visível – a um filósofo da natureza – ele era obrigado a tor-
tecnologia – está transformando nossas vidas e nar-se um técnico do quantitativo. Uma prolifera-

73
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ção anárquica e caótica do mental invade inevita- as relações de incerteza – em direção às aplicações
velmente o mundo. Uma tecnociência sem dire- práticas que dizem respeito à nossa vida cotidia-
ção produz um número cada vez maior de máqui- na. Uma teoria nova – A Teoria Quântica da Infor-
nas, verdadeiros prolongamentos dos órgãos dos mação – nasce, graças ao feliz e inesperado casa-
sentidos69. Este movimento destruidor da nature- mento entre a Teoria da Informação e a Teoria
za engendra, necessariamente, uma aceleração da Quântica. Expressões novas, como “criptografia
mecanização, da fragmentação, do aniquilamento quântica” e “computadores quânticos” fazem sua
e da interação. Os sinais da nova barbárie são per- aparição nas publicações científicas mais presti-
ceptíveis no mundo inteiro. A fonte da nova bar- giadas. E mesmo uma palavra como “teletrans-
bárie me parece residir na mistura explosiva do porte”, que fascina a imaginação dos leitores das
pensamento binário, aquela do terceiro excluído obras de ficção científica, ou jovens espectadores
(“sim” e “não” – verdade absoluta e falsidade ab- dos filmes deste gênero, faz sua entrada no mun-
soluta), em oposição aos dados da ciência funda- do sério da ciência: o “teletransporte quântico”.
mental contemporânea e uma tecnologia sem ne- Uma verdadeira explosão de publicações nestas
nhuma perspectiva humanista. novas áreas é acompanhada de investimentos fi-
nanceiros consideráveis. E se o dinheiro se mistu-
IHU On-Line – O senhor considera que o ra a isso, quer dizer que não se trata certamente da
computador faz surgir ferramentas e metá- metafísica ou da poesia. Trata-se de quê? No cen-
foras que contribuem de maneira inédita tro de todos estes desenvolvimentos, encontra-se
para a compreensão dos destinos da huma- o princípio de superposição quântica, ilustrado
nidade? A idéia, segundo a qual “o mundo é pelo célebre gato quântico de Schrödinger morto
feito de informação”, poderá nos conduzir a e vivo ao mesmo tempo. Este gato estranho está
uma compreensão fértil do destino potencial vivo com uma certa probabilidade, morto com
da humanidade? uma outra, sendo a soma destas duas probabilida-
Basarab Nicolescu – Os efeitos quânticos não des 100%. Nenhuma medida em nosso mundo,
se limitam à escala do infinitamente pequeno. Sis- mostrando-nos claramente que o gato está vivo
temas macroscópicos como os feixes laser, o hélio ou morto pode abolir o que acontece no mundo
superfluido ou os metais supercondutores apre- quântico, onde o gato não está morto nem vivo.
sentam efeitos quânticos em grande escala. Toda- É precisamente este princípio de superposição
via, apesar de tudo, o mundo quântico continua quântica que engendra todos os supostos para-
sendo, para o grande público, um mundo distan- doxos quânticos e as grandes dificuldades de
te, paradoxal, ambíguo, na fronteira do real e do compreensão dos fenômenos quânticos, quando
imaginário. No entanto, um acontecimento extraor- eles são analisados por meio da matriz do realis-
dinário produziu-se no final do século XX, como se mo clássico. Mas o mesmo princípio poderia con-
o conhecimento científico quisesse celebrar, de duzir ao nascimento de uma nova espécie de
sua maneira, o centenário do nascimento da Me- computadores – os computadores quânticos. É
cânica Quântica: a passagem repentina das idéias uma casualidade que o primeiro pesquisador
que pareciam reservadas, a apenas alguns anos, que tenha pensado na possibilidade de computa-
aos debates dos iniciados – a não-separabilidade, dores quânticos seja o grande físico teórico Ri-
o indeterminismo, a redução do pacote de ondas, chard Feynman70, figura emblemática da Física

69 Conferir entrevista com David Le Breton na IHU On-Line n. 121, de 1º de novembro de 2004, no sitio www.unisinos.br/ihu.
(Nota da IHU On-Line)
70 Richard Feynman, (1918-1988): físico norte-americano que ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1965. Considerado um dos

maiores físicos do século XX e famoso por suas excelentes palestras, foi participante do Projeto Manhattan e grande divulgador
da ciência. Suas características pessoais mais marcantes eram a sua grande curiosidade e o seu gosto por problemas lógicos,
sempre investigando as causas e implicações desde pequenos fenômenos do quotidiano até os aspectos mais profundos da
matéria. (Nota da IHU On-Line).

74
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

do século XX e homem de grande abertura a ou- nossa vida cotidiana nas próximas décadas. O fe-
tras áreas de conhecimento? nômeno de intricação (intrication) dos estados
quânticos permite a transição de uma “mensagem
IHU On-Line – No que consiste um compu- quântica” à distância. Não se trata da teleportação
tador quântico? de um objeto, de uma pessoa ou de uma alma,
Basarab Nicolescu – A idéia fundamental dos mas das propriedades quânticas. Estamos longe
computadores quânticos é relativamente simples. de Star Trek72, porém nos encontramos em um
Todo o mundo sabe que toda informação sobre mundo tão perturbador quanto este.
um texto, uma imagem ou um som é codificada
em nossos computadores por uma série de 0 e de IHU On-Line – O senhor poderia discorrer
1. A unidade fundamental de informação é o bit sobre outra decorrência do iminente mundo
(palavra que vem do inglês binary digit), que pode quântico?
ter dois valores: 0 e 1. Este bit já é, por sua nature- Basarab Nicolescu – O princípio de sobreposi-
za, quântico, pois significa uma propriedade ção quântica tem conseqüências importantes so-
quântica: um spin, uma polarização ou um nível bre a criptografia, termo que designa a elaboração
energético. Entretanto, sua leitura, em nossos de um código decifrável somente pelo emissor e o
computadores atuais, é clássica: um bit será des- destinatário. A idéia de uma criptografia quântica
crito por um número, dois – por dois, três – por foi emitida em 1983-1985. A particularidade do
três, n – por n. Sua leitura quântica será radical- “código quântico” é que ele é imbatível: todo es-
mente diferente: o bit quântico – ou kilobits – terá pião que tentar decifrar a mensagem transmitida
simultaneamente os valores 0 e 1, cada valor sen- encontrará uma falsa mensagem, pois sua própria
do afetado por uma certa probabilidade. Então, intervenção abolirá as leis quânticas. Terminar-se-á,
dois kilobits serão descritos por 4 coeficientes, três assim, com o pesadelo do roubo de nossos códi-
– por 8 coeficientes e n – por 2 coeficientes. Por gos de cartões bancários. Indo mais além, os efei-
exemplo, se n = 50, então 1015 números são ne- tos quânticos têm mesmo uma influência certa so-
cessários para descrever todos os estados do com- bre nossa própria vida biológica e psicológica. Um
putador quântico, o que ultrapassa as capacida- exemplo é a combinação aleatória de moléculas
des de nossos computadores atuais. À medida de DNA no momento da concepção de uma crian-
que o cálculo é desenvolvido, os estados quânti- ça. Os efeitos quânticos desempenham, certa-
cos se tornam mais “intricados” (intriqués)71: a mente, também um certo papel no funcionamento
não-separabilidade quântica desempenha plena- de nosso cérebro e de nosso consciente. O mundo
mente seu papel. Tudo acontece como se um quântico não está finalmente tão distante. Ele está
computador quântico fosse o equivalente de um em nós e, em breve, estará conosco, em nossa
imenso número de calculadores clássicos, calcu- vida cotidiana. Em seu célebre conto filosófico La
lando, simultaneamente, cada um num mundo Conférence des oiseaux (A Conferência dos pás-
paralelo ao nosso. Evidentemente, estamos ainda saros), o poeta persa do século XII, Attar73, nos
muito longe da realização efetiva destes computa- descreve a longa viagem dos pássaros em busca
dores quânticos, pois a incoerência ameaça a sua de seu verdadeiro rei, Simorg. Os pássaros atra-
existência. Mas os progressos – ao mesmo tempo vessam sete vales, cheios de perigos e de maravi-
teóricos e experimentais – são muito rápidos, e es- lhas. O sétimo vale é o vale das coisas surpreen-
tes calculadores poderiam fazer sua aparição em dentes. Nele, faz ao mesmo tempo dia e noite, é

71 Expressão que também designa a não-separabilidade. (Nota da IHU On-Line).


72 Série televisiva de ficção científica conhecida no Brasil como Jornada nas Estrelas. (Nota da IHU On-Line).
73 Farid Uddin Attar (1119-1229): poeta e místico persa. Sua obra principal é o Mantic Uffair ou A Conferência dos pássaros,

um texto clássico do sufismo persa, que sacudiu como um furacão a espiritualidade do século XII. Relata a viagem que todos os
pássaros da terra desejam fazer para o Simung, origem e destino de todo pássaro viajante e de qualquer um que busca o
desenvolvimento da consciência. (Nota da IHU On-Line).

75
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

possível e impossível ver se existe e se não existe, mento está aberto para sempre. Existe certamente
as coisas são ao mesmo tempo vazias e cheias. Se uma “coerência” entre os diferentes níveis de rea-
o viajante se prende com toda convicção aos seus lidade, ao menos no mundo natural. De fato, uma
hábitos, ao que ele já conhece, torna-se prisionei- vasta autoconsistência – um bootstrap74 cósmico –
ro do desencorajamento e do desespero – o mun- parece reger a evolução do universo, do infinita-
do lhe parece absurdo, incoerente, insano. Mas se mente pequeno ao infinitamente grande, do infi-
ele aceita abrir-se a este mundo desconhecido, nitamente breve ao infinitamente longo. Um fluxo
este mundo novo se revela a ele em toda a sua de informação se transmite de uma maneira coe-
harmonia e coerência. E se fosse nosso próprio rente de um nível de realidade a um outro de nos-
mundo o Vale Surpreendente? so universo físico. A transdisciplinaridade nos per-
mite aproximar racionalmente esta coerência.
IHU On-Line – Como a emergência das lógi-
cas quânticas nos conduz à transdisciplina- IHU On-Line – O senhor considera possível a
ridade? coexistência da transdisciplinaridade com
Basarab Nicolescu – A transdisciplinaridade diz as premissas do mercado? Como construir
respeito à travessia dos níveis de realidade. Essa um novo humanismo, quando a produção
travessia pode se operar graças a uma nova lógi- do conhecimento é prisioneira dos paradig-
ca, uma lógica quântica, a do “terceiro incluído”, mas do mercado?
que nos diz que “existe um terceiro termo T, que Basarab Nicolescu – A transdisciplinaridade
é, ao mesmo tempo, A e não-A”. Este terceiro in- nos permite, muito particularmente, renunciar à
cluído é inscrito no cerne da Física Quântica pelo idéia demasiado simplista, e portanto perigosa, de
postulado de sobreposição dos estados quânticos. progresso sem percorrer um evangelho de perdi-
Se continuamos num único nível de realidade, ção. Podemos, assim, considerar toda a riqueza
toda manifestação aparece como uma luta entre de uma “evolução” imprevisível, pois ela está liga-
dois elementos contraditórios (por exemplo, onda da à consistência do ser humano. O progresso é o
A e corpúsculo não–A). O terceiro dinamismo, o deus supremo da sociedade de consumo, como
do estado T, se exerce em um outro nível de reali- foi no passado o deus constitucional da sociedade
dade, no qual o que aparece como desunido comunista. O deus relojoeiro do pensamento ma-
(onda ou corpúsculo) é, na verdade, unido (quan- quinal é substituído hoje pelo deus mercado. A fe-
tum), e o que aparece contraditório é percebido licidade ao alcance do bolso. O progresso é mas-
como não-contraditório. A lógica do terceiro in- culino – ele significa o fantasma de um poder ilimi-
cluído é a da complexidade e talvez a lógica privi- tado, de uma penetração sem limites no mistério
legiada, na medida em que ela permite atravessar, do humano. A evolução é feminina, descontínua,
de uma maneira coerente, os diferentes campos fundada sobre a receptividade do que é, aqui e
do conhecimento. A lógica do terceiro incluído é agora, numa travessia sem fim dos níveis de reali-
capaz de descrever a coerência entre todos os ní- dade. A transdisciplinaridade é, a meu ver, o vetor
veis de realidade por um processo interativo, que de uma nova forma de ligação entre o ser humano
continuará infinitamente até o esgotamento de to- e o mundo. Ela aparece como mediadora do diá-
dos os níveis de realidade, conhecidos ou conce- logo entre as diferentes culturas e as diferentes
bíveis, sem nunca poder chegar a uma teoria total- religiões.
mente unificada. Nesse sentido, nós podemos fa-
lar de uma evolução do conhecimento, sem jamais IHU On-Line – O senhor considera que o
chegar a uma não-contradição absoluta, impli- mundo acadêmico está atento ao pensamen-
cando todos os níveis de realidade: o conheci- to complexo e transdiciplinar? Como o se-

74 Método computacional intensivo aplicado à Estatística em situações nas quais os métodos existentes não podem ser aplicados
diretamente. (Nota da IHU On-Line).

76
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nhor imagina que ele possa prosperar, abran- impossível efetuar as experiências de física que
gendo as instituições sociais e seus atores? conduzem à formulação da mecânica quântica e,
Basarab Nicolescu – A chave do problema é a por conseqüência, ao questionamento da valida-
educação. A educação transdiciplinar está próxi- de universal da lógica clássica.
ma das idéias de Paulo Freire em sua dimensão
humanista. Os aspectos epistemológicos da trans- IHU On-Line – O senhor também afirma que
disciplinaridade, apresentados aqui, foram estu- o espaço entre e além das disciplinas “está
dados, no plano prático, em 1997, no Congresso cheio”. O que contém esse espaço e como
Internacional de Locarno Quelle Université pour esse conteúdo pode ser conceitualizado?
demain? Vers une évolution transdisciplinaire de Basarab Nicolescu – Este espaço contém um
l’éducation, organizado pelo Centre International novo tipo de informação – a informação quântica.
de Recherches et Études Transdisciplinaires (Ci- Seu conteúdo é conceitualizado pelos três postu-
ret)75, sob os cuidados da Organização das Na- lados fundamentais da transdisciplinaridade: os
ções Unidas para a Educação, Ciência e Cultura níveis de Realidade e de percepção, a lógica do
(Unesco). Experiências conformes às recomenda- terceiro incluso e a complexidade.
ções do Congresso de Locarno já estão sendo efe-
tuadas em vários países: no Brasil, no Canadá, na IHU On-Line – Como a nova produção de
França, na Suíça, na Espanha e na Romênia. O um novo conhecimento, para além dos im-
congresso de Locarno estimulou também uma re- portantes debates no âmbito acadêmico,
flexão teórica e a invenção dos métodos de edu- está influenciando a política, a economia,
cação em relação com as novas tecnologias da in- as questões sociais? Como se manifesta a
formação e da comunicação. A educação trans- “lógica quântica” na vida concreta?
disciplinar é uma educação da liberação, que nos Basarab Nicolescu – O processo de mundiali-
permitirá estabelecer laços entre as pessoas, os fa- zação é um grande desafio para toda a humanida-
tos, as imagens, os campos de conhecimento e de de. A transdisciplinaridade pode conduzir a uma
ação, de descobrir os erros do aprendizado duran- mundialização de feição humana, para uma edu-
te toda a vida e de construir seres em permanente cação transcultural e transreligiosa. Se os políticos
questionamento e integração. desejam verdadeiramente evitar os conflitos mor-
tíferos, eles devem adotar uma atitude transdisci-
IHU On-Line – O senhor gostaria de acrescen- plinar. De modo todo particular, eles devem pôr
tar outros comentários ao tema em questão? em dúvida o modelo atual do “todo econômico”.
Basarab Nicolescu – Estou contente de consta- A economia não deve mais dominar nossa vida,
tar o interesse crescente do Brasil pela transdisci- mas se pôr ao nosso serviço, incluindo a todos. As
plinaridade. Cada vez que vou ao Brasil, me sinto relações sociais serão profundamente mudadas,
em casa. pondo em evidência o terceiro incluído em cada
situação complexa. A lógica quântica se manifesta
IHU On-Line – O senhor se refere ao adven- por uma mudança total de nossos hábitos men-
to da mecânica quântica como um “escân- tais. E nossos hábitos mentais determinam nossas
dalo intelectual”, visto que ela abala a lógi- ações.
ca clássica. Em que medida esse abalo está
efetivamente influenciando a produção de IHU On-Line – Em que outros campos do co-
conhecimento? nhecimento a transdisciplinaridade fez, efe-
Basarab Nicolescu – A técnica tem um grande tivamente, progressos? Quais são os limites
papel neste abalo. Sem os progressos técnicos, é e obstáculos que se apresentaram?

75 Ver o site Internet http://perso.club-internet.fr/nicol/ciret/)

77
Basarab Nicolescu – A partir da _omputaç tam- da transdisciplinaridade. A pesquisa científica
bém se pode mencionar o domínio da saúde. No continua demasiado especializada e demasiado
domínio dos handicaps mentais e físicos, a trans- concentrada em minúsculos territórios do conhe-
disciplinaridade é muito pertinente. Também para cimento. Mas, a pesquisa científica se ressente,
os cuidados das pessoas em final de vida e dos lac- inevitavelmente, da precisão de transdisciplinari-
tentes. Enfim, a transdisciplinaridade é capital no dade, como, por exemplo, no domínio da neurofi-
domínio da psiquiatria e da psicanálise. Os limites siologia e da genética. Os países mais avançados
são aqueles impostos artificialmente pela estrutura no domínio da transdisciplinaridade são o Brasil,
atual das instituições. Os obstáculos provêem de o Canadá, a Suíça, a Romênia e a Austrália.
nossos hábitos mentais, de uma outra época que Alguns passos importantes se operam atualmente
não esta do século XXI. na África do Sul.

IHU On-Line – É possível avaliar o grau de IHU On-Line – Como podem ser abordadas
adesão das instituições geradoras de co- as relações da lógica quântica com a Teoria
nhecimento ao conceito de “transdiscipli- dos Sistemas? Qual a contribuição desta
naridade”? Quais as reações na pesquisa para o “escândalo intelectual” acima men-
científica? É possível realizar um diagnósti- cionado? Pode-se dizer que a lógica quânti-
co mundial, mesmo preliminar, relativa- ca recuperou e restituiu, em favor do conhe-
mente à compreensão e adoção deste con- cimento humano, a herança da Teoria dos
ceito nas diversas regiões do mundo? Sistemas?
Basarab Nicolescu – Pode-se falar em geral do Basarab Nicolescu – Há um grande parentesco
“grau de adesão” das instituições, mas não pode entre a transdisciplinaridade e a Teoria dos Siste-
haver uma adesão global. Esta adesão se faz por mas, sobretudo no reconhecimento do papel da
pequenos passos, em cada região do mundo e, complexidade no conhecimento. Mas, o que falta
sobretudo por iniciativas locais tomadas por per- na teoria dos sistemas e na teoria da complexida-
sonalidades conscientes dos percalços da transdis- de é a noção central da transdisciplinaridade – a
ciplinaridade. Do local ao global – tal é o caminho de “níveis de Realidade”.

78
Dialética para entender a cultura

Entrevista com Paulo Margutti

Paulo Margutti é professor de Filosofia do das, já que esta é a terceira vez que participo deste
Departamento de Filosofia da Universidade Fede- evento. Nas vezes anteriores, eu elaborei avalia-
ral de Minas Gerais (UFMG). Margutti trabalha na ções mais ou menos amplas da perspectiva ofere-
área de Lógica e Filosofia da Ciência. É membro cida pelo Prof. Cirne Lima. Desta vez, avancei um
do grupo de estudos em Dialética, liderado pelo pouco mais, aproveitando certos trabalhos que es-
Prof. Carlos Cirne Lima, da Unisinos. Graduou-se tou fazendo nos estudos de pensamento filosófico
em Filosofia pela UFMG, e é Ph.D. em Filosofia brasileiro. Mostrei que a perspectiva que o Prof.
pela University of Edinburgh, Scotland, UK. É au- Cirne Lima está oferecendo, baseada na transdis-
tor de Iniciação ao Silêncio (Análise do Tracta- ciplinaridade de tipo hegeliano, não explica tudo
tus de Wittgenstein). São Paulo: Loyola, 1998 e o que ele gostaria que fosse explicado. Parece-me
Introdução à Lógica Simbólica. Belo Hori- que essa perspectiva é bem sucedida na Biologia.
zonte: Editora UFMG, 2001. No livro Dialética e Nas comunidades dos seres vivos e, principalmen-
Auto-organização. São Leopoldo: Unisinos, te, nas comunidades humanas, em que entra a lin-
2003, organizado por Carlos Cirne Lima e Luiz guagem e toda a problemática correspondente,
Rohden, publicado pela Editora Unisinos em tenho a impressão de que a abordagem dele en-
2003, escreveu o capítulo Dialética, Lógica For- frentará muitas dificuldades. Minha proposta, en-
mal e Abordagem Sistêmica, em que discute as tão, foi apresentar um problema nesta área, mos-
idéias de Cirne Lima trando que nela ainda não há elementos para che-
garmos até o ponto referido, por mais boa vonta-
IHU On-Line – Quais as reflexões que o se- de que tenhamos. É verdade que sou simpatizante
nhor apresenta sobre dialética e tempo? da perspectiva transdisciplinar, embora não no
Paulo Margutti – Tendo em vista que participo viés hegeliano do Prof. Cirne Lima. Acho, por
do GT Dialética como crítico das perspectivas que exemplo, que uma das boas idéias sobre essa
são oferecidas – sou um filósofo de tendência ana- abordagem apareceu com o Capra76, no livro A
lítica, e normalmente os analíticos não se dão mui- Teia da vida. Entretanto, quando ele tenta expli-
to bem com a dialética, de modo geral –, eu trouxe car a sociedade, no último livro que escreveu, cha-
uma contribuição um pouco diferente das passa- mado As conexões ocultas77, falha. E demonstra

76 O austríaco Fritjof Capra é físico, mas seu trabalho há muito transcende os limites desta ocupação. Cientista, ambientalista,
educador e ativista, Capra surgiu para o mundo, após lançar O tao da física, no qual discorre sobre os paralelos, a princípio
impossíveis, entre a Física Quântica e o misticismo oriental. Estabeleceu-se no posto de pensador holístico com O ponto de
mutação, explorando as mudanças no paradigma social que acompanham as descobertas científicas. Atualmente vivendo em
Berkeley, na Califórnia, Capra fundou o Center for Ecoliteracy, uma instituição que forma profissionais para ensinar ecologia
nas escolas,. Também é professor do Schumacher College, um centro de estudos ecológicos na Inglaterra. Em português,
foram publicados, entre outros, os livros: Pertencendo ao universo. São Paulo: Cultrix, 2003; As conexões ocultas. São
Paulo: Cultrix, 2002; O tao da física. São Paulo: Cultrix, 2000; A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1997; Sabedoria
incomum. São Paulo: Cutrix, 1995; O ponto de mutação. São Paulo: Cutrix, 1982. (Nota da IHU On-Line)
77 As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix, 2002. (Nota da IHU On-Line)

79
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que ainda há muita coisa por fazer. Desse modo, tária. Ela aponta na direção de uma explicação
parece que a perspectiva transdisciplinar, no mo- melhor do que aquela meramente física do que
mento, pelo menos no que diz respeito à explica- constitui o nosso universo, até a vida. Contudo,
ção de fenômenos mais complexos como a socie- acima dela, principalmente nas relações entre se-
dade humana, ainda está mais numa fase progra- res vivos e seres humanos entre si, a coisa se com-
mática do que, propriamente, numa fase de reali- plica – neste ponto, a abordagem transdisciplinar
zações. Em minha apresentação, trabalhei uma está apenas na fase programática.
questão ligada à cultura, ligada, portanto, à lin-
guagem, à comunidade humana e, pelo que me IHU On-Line – Como mudanças das concep-
parece, essa situação não seria facilmente explicá- ções de tempo e espaço, provindas de novas
vel naquela perspectiva. Expus, ainda, que há ou- tecnologias, influenciariam na compreen-
tras maneiras de compreender a dialética que po- são do universo?
deriam explicá-la. A principal contribuição que Paulo Margutti – Essas mudanças influenciam
trouxe para este evento foi a tentativa de dizer que de uma maneira inteiramente revolucionária.
é possível fazer, por exemplo, uma interpretação Nesse aspecto, até mesmo a abordagem transdis-
da cultura brasileira, utilizando uma dialética mui- ciplinar ainda é precária para entender. Vou dar
to pouco hegeliana, que, na verdade, se opõe a um exemplo que pode ajudar a esclarecer alguma
ela: a dialética de Kierkegaard78. Essa interpreta- coisa. Se pensarmos no que acontece com a Teo-
ção teria algum fundo de verdade, e não seria fa- ria da Relatividade, veremos o seguinte: ela esta-
cilmente explicável pelo viés transdisciplinar, por- belece que, em vista de a velocidade da luz ser
que está um pouco além do seu alcance. constante no universo, significa que três observa-
dores diferentes podem ver dois fenômenos em
IHU On-Line – Quais as relações mais im- sucessões temporais completamente diversas. O
portantes que foram estabelecidas em dia- observador A pode ver o fenômeno 1 como ante-
lética, tempo e natureza? rior ao fenômeno 2; o observador B pode ver os
Paulo Margutti – Do ponto de vista da dialética, dois fenômenos como simultâneos; o observador
tempo e natureza, alguma coisa já foi feita, pelo C pode ver o fenômeno 2 como anterior ao fenô-
menos no que diz respeito à explicação dos seres meno 1. Isso coloca em questão a própria suces-
vivos. Desde a grande explosão até o aparecimen- são temporal e a dialética, por exemplo, se baseia
to dos seres vivos, parece que há a possibilidade numa idéia clara de que o tempo caminha numa
de explicar alguma coisa, utilizando o aparato que direção específica. Alguns autores sugerem, por
está sendo desenvolvido, mas daí para a frente, exemplo, que a Teoria da Relatividade nos indica
fica difícil. Quando pensamos, por exemplo, no que, na realidade, existe um estoque de eventos
tempo da Física, há uma possibilidade de essa no universo. Assim, dependendo da posição em
perspectiva teórica explicá-lo; quando pensamos que o observador se encontre, aquele estoque de
na natureza formada por seres vivos, mas não, eventos vai aparecer para ele em uma sucessão
propriamente, ainda, do ponto de vista das suas temporal determinada. Mas isso vai fazer da su-
relações sociais, também há alguma possibilidade cessão temporal uma coisa que não é a mais im-
de nos apoiarmos na referida perspectiva teórica. portante de todas. Com efeito, se dois fenômenos
Entretanto, principalmente quando se trata da cul- podem ser observados como simultâneos ou su-
tura, a abordagem transdisciplinar se torna defici- cessivos, inclusive em ordens inversas, fica difícil

78 Soren Kierkegaard (1813-1855): filósofo e pensador religioso dinamarquês, nascido em Copenhague. Kierkegaard é
geralmente considerado um dos fundadores do existencialismo. Exerceu grande influência no pensamento religioso, na
Filosofia e na Literatura. Suas diversas obras preocupam-se com a natureza da fé religiosa. De modo mais específico, ele se
interessava pelo problema do que significa ser um verdadeiro cristão. Kierkegaard dirigiu duras críticas a todas as tentativas de
tornar a religião racional. Sustentava que Deus quer que obedeçamos a ele e não que argumentemos com ele. (Nota da IHU
On-Line)

80
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

acharmos que o tempo tem alguma importância que a da luz. A resposta vai ser instantânea. Isso
na estrutura do universo. Ele pode ter importância sugere a existência de relações não-locais entre
para nós, como observadores particulares em esses objetos; não-espaciais, ou em alguma região
uma determinada posição, o que não significa, “abaixo” do espaço. É o que geralmente se chama
porém, que esse tempo seja o tempo. Ora, a pers- de “buraco de minhoca”, ligando dois pontos do
pectiva dialética parte do pressuposto de que te- espaço, na forma de um atalho, que poderia ser
mos um tempo único, que é o tempo da história... percorrido numa velocidade superior à da luz. Isso
modifica profundamente a concepção de espaço.
IHU On-Line – Como um tempo absoluto...? Eu não sei se a abordagem sistêmica dá conta des-
Paulo Margutti – Isso. Como um tempo absolu- sas modificações, se ela seria a mais adequada.
to. Além disso, parece que as mudanças afetam
também a concepção do espaço. Einstein cons- IHU On-Line – Como está ocorrendo a liga-
truiu um experimento mental, conhecido como o ção entre os grandes sistemas clássicos da
paradoxo de Einstein-Podolsky- Rosen79, porque dialética com as ciências contemporâneas?
foram esses três autores que colaboraram neste Por que esse diálogo é importante?
problema, envolvendo o seguinte: se a Mecânica Paulo Margutti – Quem considera realmente im-
Quântica estiver certa, então dois fótons, emitidos portante essa ligação, essa ponte, é o professor Cir-
de uma mesma fonte e que estão imbricados, en- ne Lima. Ele faz questão de mostrar que a Teoria
contram-se relacionados de uma forma tal que o dos Sistemas do Bertalanffy, por exemplo, tem ori-
que acontecer com um vai repercutir no outro, gem em Nicolau de Cusa e que esses autores estão
embora estejam a uma distância tão grande que ligados aos platônicos. Ele faz questão de mostrar
não possa ser percorrida a tempo pela velocidade isso, já que a própria filosofia hegeliana tem uma li-
da luz. Como a velocidade da luz é constante no gação muito grande com esses autores, mas me pa-
universo e é a velocidade máxima que pode ser rece que essa ligação é mais metafórica do que lite-
atingida, Einstein considerava isso uma prova de ral. O que aqueles autores disseram no passado
que a Mecânica Quântica estava equivocada. Mas pode, realmente, ter alguma semelhança com o
já foram feitos experimentos, admitindo que, efe- que nós estamos dizendo. Pode até servir como
tivamente, esses fótons gêmeos, assim chamados fonte de inspiração. A maneira, porém, como a
porque estão imbricados, são, realmente, emiti- problemática está sendo tratada é muito diferente.
dos da mesma fonte, mesmo que estejam suficien- Envolve uma mudança de perspectiva que não é
temente longe um do outro, para que a comunica- facilmente explicável por estes sistemas clássicos.
ção entre eles exija uma velocidade superior à da
luz, um repercute no outro. Se efetuarmos a medi- IHU On-Line – Envolve circunstâncias
ção num deles, o outro vai dar uma resposta, ape- diferentes...?
sar de a informação, que vai de um para o outro, Paulo Margutti – Sim. E, sendo essas circunstân-
não conseguir percorrer a distância entre eles com cias tão diferentes, eu sentiria certa dificuldade
a velocidade necessária, que teria de ser maior para fazer uma aproximação mais forte. Há liga-

79 Para entender o Paradoxo de Einstein-Podolsky-Rosen, ou Paradoxo EPR, é preciso conhecer o motivo do seu surgimento.
Einstein foi o fundador da Teoria Quântica. Com base nela, surgiram correntes de pensamento e não era com todas que
Einstein concordava. Dentre essas, encontrava-se a Escola de Copenhague, liderada por Niels Bohr. Essa escola apregoava
que muitos eventos eram impossíveis de serem determinados, cabendo apenas à estatística defini-los. Einstein discordava
disso, pois para ele tudo obedecia a certas regras e bastava descobrirmos essas “variáveis ocultas” para chegarmos exatamente
ao resultado. Uma dessas incertezas que Bohr e seus companheiros propunham era que o elétron possui vários eixos de
rotação e é impossível determinar em torno de qual ele irá girar, pois o próprio ato de medir já definiria o eixo. Para Einstein,
bastava descobrirmos as “variáveis ocultas” que tudo estaria certo. Foi aí que, numa célebre polêmica sobre a Teoria Quântica,
Einstein propôs um paradoxo, pensando em derrubar a teoria de Copenhague. Esse paradoxo ficou conhecido como
Paradoxo de Einstein-Podolsky-Rosen, ou Paradoxo EPR. (Nota da IHU On-Line)

81
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ções, mas elas talvez não sejam tão fortes como, um desvio diferente. Esses caminhos, que vão sur-
por exemplo, o professor Cirne Lima pretende. gindo de uma maneira mais ou menos aleatória,
mais ou menos caótica, determinariam o que seria
IHU On-Line – Na apresentação do evento a “evolução”, ou melhor, a deriva natural. Nessa
afirma-se que “a Teoria da Evolução, por deriva natural, apareceriam os sistemas auto-or-
sua vez – isso foi por nós demonstrado - está ganizados, como, por exemplo, uma estrela. Ela
em conexão com a Teoria do Caos Determi- nada mais é do que o resultado da força gravita-
nístico e com a Geometria Fractal. Para po- cional sobre uma quantidade muito grande de gás
der expressa essa Totalidade em sua hierar- hidrogênio, por exemplo. As partículas de gás vão
quia de um Todo que está dentro de outro se atraindo mutuamente e, num determinado
Todo, foi introduzida a Teoria dos Siste- ponto, elas formam um aglomerado. Esse aglo-
mas”. Como explicaria essa afirmação para merado vai atraindo mais partículas, gerando
um público leigo? uma compressão muito grande dos átomos que se
Paulo Margutti – O que eu posso dizer a respeito encontram no interior, produzindo reações nu-
da Teoria da Evolução é que, para que seja encai- cleares e gerando uma força de expansão. Se a
xada na perspectiva transdisciplinar, ela teria que força de atração for suficientemente grande para
ser pensada não como evolução – até essa palavra compensar a força de expansão, a estrela vai se
teria que ser trocada. Evolução significa que va- manter equilibrada e produzirá luz e calor. Na sua
mos do inferior para o superior, do pior para o evolução, num determinado momento, ela explo-
melhor, implica, inclusive, uma forma de teleolo- de. Ela começa como uma estrela de hidrogênio,
gia, algum finalismo, parece que o universo foi mas produz um elemento mais pesado, o hélio.
projetado para um determinado fim e a evolução Aos poucos, vamos tendo estrelas de outros ele-
significa que o universo está caminhando em dire- mentos, e as explosões das estrelas vão gerando
ção àquele fim para o qual ele foi projetado. Na restos de explosões estelares. Estes restos é que
abordagem sistêmica, o máximo que nós pode- vão gerar planetas, pela força da gravitação, e
mos dizer, de acordo com uma das teorias existen- nesses planetas vão surgir estruturas dissipativas
tes, é que o universo surgiu de uma grande explo- que seriam os seres vivos. Assim, a Teoria da Evo-
são; em que o espaço e o tempo se teriam origina- lução estaria em conexão com a Teoria do Caos
do. A explicação para isso é a de que é possível Determinístico. Para entender as estruturas dissi-
construir um modelo matemático que permite pativas, que correspondem aos seres vivos, imagi-
isso. Imagine algo em forma de um sino invertido. nemos uma outra situação. Se tivermos uma ba-
O ponto no vértice inferior do sino é a origem de nheira fechada, com água, ela ficará parada. Se ti-
tudo. Antes dele não há nada. Então, o espa- rarmos a tampa do ralo, a água começará a descer
ço-tempo se desenvolve dessa grande explosão, e, espontaneamente, formará um redemoinho.
expressa nesse modelo. Essa explosão gerou Esse redemoinho é uma estrutura auto-organiza-
aquilo que poderíamos chamar de uma “deriva da que se preserva até certo ponto, pois, se o atra-
natural”. Ao invés de usarmos a expressão evolu- palharmos com um movimento da mão, ele com-
ção, o nome mais adequado seria esse, conforme pensará a perturbação e voltará a se formar. Ele é
sugere Maturana. A explicação da evolução por auto-organizado, com mecanismos de retroali-
esse viés poderia ser entendida com o auxílio de mentação que o mantêm naquele processo em re-
uma metáfora. Vamos imaginar uma montanha e demoinho. Isso constitui o que Prigogine chama
alguém que joga água no cume. A água vai des- de estrutura dissipativa. Ela se mantém organiza-
cendo e os caminhos que ela escolhe aleatoria- da através da dissipação de energia. Essa estrutu-
mente para descer correspondem à deriva natural. ra é um modelo interessante para entendermos a
Ela vai encontrá-los à medida que desce; se ela se- nós mesmos: seríamos estruturas dissipativas.
guir por um lado vai encontrar tal desvio à direita Não somos redemoinhos de água, mas somos re-
ou à esquerda; se seguir por outro, vai encontrar demoinhos químicos. Somos estruturas que se or-

82
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ganizaram oportunisticamente, neste universo. uma perspectiva única que seja capaz de unir as
Estamos dissipando energia mas, ao mesmo tem- duas teorias. Isso talvez signifique um obstáculo
po, mediante a dissipação, mantemos uma deter- muito difícil de ser transposto em relação ao que
minada estrutura constante. Ora, a noção de evo- foi comentado na pergunta anterior, porque é pre-
lução, não como evolução, e sim como deriva na- ciso que as diversas teorias sejam capazes de con-
tural, seria um modelo importante para explicar vergir na explicação. Se não houver essa conver-
como chegamos a esse ponto. E. para estudarmos gência, vai ser difícil. Nesse caso, vamos ter que
essas estruturas dissipativas, precisamos de uma nos contentar com uma pluralidade descritiva:
matemática especial, como a dos fractais, e de te- mais de uma teoria, teorias alternativas para expli-
orias especiais, como a do Caos... car campos, domínios da realidade diferentes, po-
dendo ser um desses domínios aquele que a abor-
IHU On-Line – Nesse aspecto seria salutar dagem transdisciplinar explica. Em alguns outros
que as diversas teorias convergissem na rea- aspectos, muito possivelmente a abordagem
lização desse estudo? transdisciplinar não daria conta do recado.
Paulo Margutti – Sim. Nós estamos chegando a
um ponto em que, se as diversas perspectivas não IHU On-Line – Mas isso não acabaria au-
convergirem na explicação, não se associarem, mentando a fragmentação, que já é bastan-
não vamos conseguir fazer muita coisa. te grande, das áreas de conhecimento?
Paulo Margutti – Possivelmente sim, mas o que
IHU On-Line – O que a Teoria da Relativida- se há de fazer? O ideal seria encontrar uma pers-
de não consegue explicar? pectiva integradora e, no momento, todos se es-
Paulo Margutti – Parece que há fenômenos, em forçam nessa direção. Pessoalmente, simpatizo
relação ao quântico, que a Teoria da Relatividade muito com a perspectiva transdisciplinar e penso
não consegue explicar. Aliás, existe hoje um con- que ela constitui a nossa melhor aposta no mo-
flito entre a Teoria da Relatividade e a Mecânica mento, em que pesem as suas dificuldades. Toda-
Quântica. Como os campos, os domínios de apli- via, se nós não encontrarmos uma perspectiva su-
cação dessas teorias são diferentes, isso não está ficientemente ampla, integradora, que seja capaz
ainda criando um conflito maior, mas possivel- de reunir tudo, vamos ter que nos contentar com
mente irá criar uma dificuldade em se conseguir as descrições parciais. O futuro dirá o que vai
acontecer.

83
“É preciso combater a idéia de que há uma solução técnica
e simples para qualquer problema”

Entrevista com Thomas Michael Lewinsohn

Thomas Michael é professor da Universidade mentais, estamos plenamente de acordo. Trata-se


Estadual de Campinas (Unicamp). Ele é graduado de conviver com a incerteza e de trabalhar com
em Biologia, mestre em Ecologia, doutor em Eco- ela, ou seja, não esperar que tenhamos plena cer-
logia pela Unicamp e pós-doutor pelo Center For teza, não contar com a possibilidade de produzir
Population Biology Imperial College (Inglaterra) e um modelo exato, preciso, rigorosamente deter-
pelo National Center For Ecological Analysis And minado em relação aos sistemas biológicos, ecoló-
Synthesis (Estados Unidos). Lewinsohn é também gicos ou sociais. Esses modelos não existem e não
livre-docente pela Unicamp. Publicou Plant- existirão. O que nós precisamos e estamos fazen-
Animal Interactions. Nova York: John Wiley, do, tanto na Biologia como nos âmbitos que o
1991 e Biodiversidade Brasileira: Síntese do professor Küppers80 mencionou é desenvolver ou-
Estado Atual do Conhecimento. Brasília: tros modelos que trabalham com o desconheci-
Contexto, 2002. “O ‘tecnojeito’ é a idéia de que mento, que incorporam a incerteza e a elaboram
todo o problema pode ser simplificado e que exis- como um dado natural. Todo ecólogo trabalha
te uma solução técnica simples para qualquer pro- com sistemas que são intrinsecamente complexos,
blema”, disse Thomas Lewinsohn, argumentando que não podem ser simplificados até que se tor-
que é preciso mudar essa idéia. No Simpósio nem previsíveis e capazes de ser manejados com
Internacional Terra Habitável: um desafio tranqüilidade. Nós vamos ter que dar conta desses
para a humanidade, ele proferiu a conferência sistemas, incorporando toda a sua complexidade.
O Impacto humano sobre a vida na Terra.
IHU On-Line – O senhor sustenta que é im-
IHU On-Line – O senhor afirma que há um perioso não respeitar a lógica econômica.
grau de incerteza muito grande nos proces- Essa não é uma posição unilateral e, por-
sos biológicos. A Teoria da Auto-Organiza- tanto, perigosa?
ção vale-se também da incerteza para bus- Thomas Lewinsohn – Não, pois o que eu defen-
car uma certa previsibilidade dos processos do é que não haja a primazia do econômico. Eu
em geral. Pode-se dizer que as ações em de- não sustentaria que nós ignoremos essa lógica ou
fesa da biodiversidade acompanham essa as demandas econômicas. A minha posição é a de
abordagem da auto-organização? não aceitar que, desde o início, elas tenham uma
Thomas Lewinsohn – Estão muito próximas de posição privilegiada em relação a outros critérios e
caminharem no mesmo sentido. Mesmo que nós outras escalas de valor. É nesse sentido que eu
possamos divergir de um ou outro modelo especí- considero imperioso não nos submetermos à lógi-
fico da auto-organização, nos aspectos funda- ca econômica. Valores ou prioridades econômicas

80 Refere-se a Günter Küppers, físico alemão, cuja entrevista também foi publicada neste número. (Nota da IHU On-Line)

84
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

são componentes de um sistema, mas não devem to é mais importante do que o conhecimento dos
ser os primeiros componentes de um sistema de demais. Então a transdisciplinaridade é necessária
decisão mais complexo. Eles devem ser colocados e alcançável, mas ela não se produz instantanea-
lado a lado com valores sociais, espirituais e afeti- mente. As pessoas têm que se dispor a trabalha-
vos. A vida é mais do que a satisfação de necessi- rem juntas, a se ouvirem por bastante tempo, an-
dades materiais estabelecidas com base num crité- tes que ela comece a produzir frutos genuínos.
rio de custo e benefício.
IHU On-Line – A expressão biodiversidade
IHU On-Line – Essa resposta seria uma for- tem freqüentado exaustivamente a mídia. O
ma de combater o que o senhor chamou de senhor acha que ela tem sido compreendida
“tecnojeito”? na sua complexidade?
Thomas Lewinsohn – Não diretamente. O pro- Thomas Lewinsohn – Não inteiramente. Tenho
blema do “tecnojeito” é distinto. O “tecnojeito” é a impressão de que a visão pública que se tem
a idéia de que todo o problema pode ser simplifi- hoje da biodiversidade é ainda bastante parcial.
cado e que existe uma solução técnica simples Ela abrange só alguns aspectos e, principalmente,
para qualquer problema. Nós produzimos essas valoriza o que nós chamamos de “espécies-ban-
soluções técnicas, mas a dificuldade não está na deiras”, as mais carismáticas, que atraem a aten-
solução, propriamente dita, e sim no desconheci- ção pública, como o mico-leão e outras espécies
mento dos novos problemas que essas soluções ameaçadas de extinção. Por isso, não há muita
criam. É aí que falhamos. Nós olhamos para um clareza sobre a existência de uma imensa diversi-
rio, consideramos que há um problema de cons- dade de pequenos organismos, que, normalmen-
tante alagamento na sua margem, retificamos o te, não são notados: pequenos insetos, animais de
rio e aumentamos o fluxo de água. Isso é uma so- solo... E também há pouco conhecimento da tre-
lução técnica. O problema não está na solução em menda importância que esses pequenos organis-
si, mas nos novos problemas que ela cria e que, mos têm para o funcionamento e para a manuten-
muitas vezes, vão ser mais complicados ou mais ção dos ecossistemas. Ainda há muito por melho-
graves do que o problema inicial que estaria sen- rar nessa compreensão pública da biodiversidade.
do aparentemente resolvido.
IHU On-Line – Sobre as ações do governo re-
IHU On-Line – Isso nos leva para a transdis- lativas à biodiversidade, nós podemos ser
ciplinaridade. Qual é a sua opinião sobre também otimistas, ainda que contidamente?
esse debate? O País, as universidades têm Thomas Lewinsohn – Em parte, sim. Não falo
se posicionado bem? Podemos ser otimis- só do governo federal, mas também dos estaduais
tas nesse campo? e municipais, que, às vezes, adotam iniciativas
Thomas Lewinsohn – Cautelosamente otimistas. com as quais, há dez anos, nem sonhávamos. Há
Otimistas no sentido de ver como muito saudável muitas iniciativas de âmbito local e regional que
a circulação dessa idéia, a preocupação com essa são interessantes; há também no âmbito federal,
idéia. A cautela vem do fato de que a transdiscipli- no Ministério do Meio Ambiente, em alguns dos
naridade e a interdisciplinaridade não são passí- seus grupos de técnicos, uma compreensão e ini-
veis de legislação, não se estabelecem por uma ciativas que merecem atenção e apoio. Por outro
decisão institucional. A transdisciplinaridade só é lado, nessa área, como em outras, o governo nem
construída de fato com muita persistência, com sempre é consistente, há divergências fortes entre
um convívio longo e paciente de pessoas que tra- diferentes setores do próprio governo. Em particu-
zem experiências e bagagens diferentes das suas lar, eu tenho que mencionar o fato de que os pes-
disciplinas e que se dispõem a aprender o vocabu- quisadores, os cientistas brasileiros, hoje enfren-
lário e um pouco do conhecimento dos outros, tam dificuldades muito grandes, particularmente
sem achar a priori que o seu próprio conhecimen- com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

85
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Ele tem rém acertaram o cavalo do mocinho, deixando a
regulamentado a atividade de pesquisa com no- gente realmente a pé.
vos instrumentos legais que, na prática, represen-
tam uma camisa-de-força. Embora sejam instru- IHU On-Line – Não estamos permanente-
mentos bem-intencionados que têm por objeti- mente em busca de uma Terra habitável?
vo, por exemplo, coibir a biopirataria, eles aca- Thomas Lewinsohn – Há certos problemas que,
baram atingindo muito fortemente a atividade de por mais antigos que sejam, são atuais, porque
pesquisa genuína, que é altamente necessária nunca estão inteiramente resolvidos. Digamos
para o País, com resultados, no momento, bas- que o tema desse simpósio talvez possa ser tradu-
tante contraproducentes. O que eu tenho dito é zido não pela indagação se teremos um futuro ha-
que, preocupados com a biopirataria, alguns bitável, mas pela interrogação sobre qual será a
desses órgãos federais, miraram o bandido, po- qualidade da habitação, como será a habitabilida-
de da Terra, como nós gostaríamos que ela fosse.

86
A Cosmologia está mudando a forma humana de pensar

Entrevista com Mário Novello

Mário Novello é professor do Centro Brasilei- IHU On-Line – A Cosmologia passou a ser
ro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, considerada ciência recentemente. No que
onde é coordenador do Laboratório de Cosmolo- ela consiste e por que não era considerada
gia e Física Experimental de Altas Energias. É mes- uma ciência?
tre em Física pelo CBPF e doutor em Física pela Mário Novello – Por uma razão muito simples. A
Université de Genève (Suíça), com a tese Algebre Cosmologia tratava de uma totalidade chamada
de l’espace-temps, pós-doutor pela University of universo, isto é, espaço, tempo, matéria e energia,
Oxford (Inglaterra) e doutor honoris causa pela e as pessoas argumentavam que toda a experiên-
Universidade de Lyon (França). Conquistou prê- cia feita pelo homem é limitada no espaço e no
mios internacionais, destacando-se a menção hon- tempo. Como tal, a totalidade do espaço e do
rosa por teses em Cosmologia e Teoria da Gravita- tempo não teria possibilidade de ser observada.
ção, concedida pela Gravity Research Foundation Isso foi descartado, porque, em 1929, Hubble81
(USA). É autor de mais de 150 artigos e dos livros: mostrou que as observações que ele estava fazen-
Cosmos et Contexte. Paris: Masson, 1987; Cos- do de estrelas e galáxias, apontavam que havia
mos e Contexto. Rio de Janeiro: Forense Univer- um processo global do universo e que podia ser
sitária,1989. Cosmologie. Paris: Ellipses, 1992 interpretada como sendo a expansão do volume
(com Elbaz E.); Cosmology and Gravitation; do universo. Ou seja, o volume total do universo
Paris: Frontières, 1994 (org.); Cosmology and estava variando com o tempo e, conseqüente-
Gravitation II. Cingapura: Frontières, 1996 mente, o volume total podia ser observado como
(org.); O Círculo do Tempo: Um olhar científi- tal, quer dizer, não era uma região pequena do
co sobre viagens não-convencionais no tem- espaço-tempo que estava sendo observada, mas
po. Rio de Janeiro: Campus, 1997; Cosmology era um processo global, passível de ser observa-
and Gravitation. Paris: Atlantisciences, 2000 do. Conseqüentemente, a Cosmologia, como
(org.); Os sonhos atribulados de Maria Luísa. qualquer ciência, tinha o seu objeto de estudo: o
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; Le cercle du universo.
temps. Paris: Atlantica-Seguier, 2001; Artificial
Black Holes. Cingapura: World Scientific Publis- IHU On-Line – O universo passa a ser
hing Co., 2002 (org. com Volovik, G. e Visser, M.); observável?
Os jogos da natureza. Rio de Janeiro: Campus, Mário Novello – Sim. As experiências, as obser-
2004; Máquina do tempo – Um Olhar Científi- vações até então, eram localizadas no espaço e no
co. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. tempo. Quando a experiência é feita em um labo-

81 Edwin Hubble (1889–1953): astrofísico norte-americano. Descobriu a natureza verdadeira das galáxias, determinou a
distância de várias delas, evidenciou o movimento que as leva a se afastarem umas das outras e encontrou uma relação entre
sua velocidade de recessão e sua distância, a qual é considerada uma prova de expansão do universo. Um satélite
norte-americano recebeu o seu nome (1993). (Nota da IHU On-Line)

87
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ratório, que é um sistema fechado, espacialmente compromisso entre as duas coisas. Isso está nos
falando, a experiência tem um certo tempo de du- mostrando que o movimento de pensar a totalida-
ração. Quando olhamos para estrelas, mesmo es- de é muito amplo. A cosmologia está nos dando
sas observações são limitadas no espaço e no tem- essa abertura para esse modo de pensar e libertan-
po. Hubble mostrou que se poderia observar o do o homem dos grilhões que o aprisionaram du-
todo. rante milhares de anos, impedindo-o de ter uma vi-
são global do mundo em que vivemos – nesse
IHU On-Line – Pode-se dizer, então, “este é caso, me refiro ao universo em que vivemos.
o universo”?
Mário Novello – Exatamente. Passou-se a poder IHU On-Line – Há duas verdades?
dizer: este é o universo, o qual a Cosmologia vai Mário Novello – Ambas as visões são somente
tratar de entender. pedaços da verdade. O que está se descobrindo é
que assim como os constituintes elementares da
IHU On-Line – Quais são as decorrências da matéria, a microfísica, influenciam o universo, a
evolução dos estudos da Física e da Cosmo- macrofísica, o universo, tem uma importância
logia para uma Terra habitável? muito grande na própria caracterização dos está-
Mário Novello – Temos dois aspectos. Um estri- gios fundamentais da matéria, o que era inimagi-
tamente técnico, prático, do conhecimento da Fí- nável há pouco tempo. Na verdade, estamos des-
sica, que pode ter conseqüências no conhecimen- cobrindo que há uma dialética nesse movimento,
to da Terra. Outro, um aspecto mais profundo de mas é uma dialética que não se esgota nesse
conhecimento do pensamento, porque ao fazer processo.
Cosmologia nós nos envolvemos com uma estru-
tura de pensamento, contendo a totalidade do IHU On-Line – Como podem ser relaciona-
que existe e, no fundo, ao examinarmos essa es- dos esses avanços da abordagem cosmoló-
trutura global, fazemos referências, conexões e gica com as teorias do Caos e dos Sistemas?
inferências sobre processos que são limitados no Mário Novello – A Teoria do Caos nada mais é
espaço e no tempo, mesmo sobre processos de do que um processo que ocorre em teorias
pensamento localizado, como, por exemplo, a ló- não-lineares. No final da segunda metade do sé-
gica. A Cosmologia está mudando certos hábitos culo XX, os físicos entraram de vez nos processos
de pensamento. Atualmente, já se começa a pen- não-lineares, na Física. Embora algumas das teo-
sar que as propriedades que nós temos na Terra rias mais importantes, como a Teoria da Relativi-
têm muito a ver com as propriedades do universo, dade Geral, de Einstein, de 1915, já fosse uma teo-
e não o contrário. ria não-linear. Por várias razões, não se usou a Teo-
ria da Relatividade Geral como paradigma das
IHU On-Line – O senhor pode exemplificar? teorias não-lineares. Demorou muito tempo até
Mário Novello – Antigamente, se pensava que a que essa teoria fosse entendida, em certas circuns-
totalidade era um processo a ser definido de duas tâncias, como um processo que podia admitir
pequenas partes. Seria um processo evolutivo que uma interpretação de sistema dinâmico. Mas é
começava pelos quarks, as partículas elementares, claro que o sistema dinâmico é apenas um modo
e ia num crescendo. Hoje vemos a contrapartida pelo qual se pode ver o processo evolutivo. A Cos-
disso, ou seja, o movimento global do universo, mologia é muito mais rica do que isso. Podemos
produzindo situações que são descritas como con- encontrar processos caóticos em alguns aspectos
seqüência da evolução do universo em proprieda- da Teoria da Gravitação e em alguns aspectos da
des localizadas – as partículas elementares. Isso Cosmologia. Por exemplo, uma teoria em voga
demonstra que nem uma direção nem a outra são nos anos 1970 argumentava que muitas das pro-
preponderantes e não deveriam ser o único modo priedades do universo observável, como a isotro-
pelo qual o homem descreve o que existe. Há um pia espacial, nada mais eram do que a conse-

88
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

qüência de uma fase caótica que teria ocorrido em ço-tempo pode ser uma estrutura construída. Isso
uma região extremamente condensada do univer- é um golpe tremendo na nossa imagem mental do
so, que teria homogeneizado o espaço. Na Cos- mundo. Isso ataca o nosso orgulho como espécie.
mologia, em vários exemplos, pode ser detectada Por um lado, temos orgulho porque somos nós
a aplicação de sistemas dinâmicos. que estamos tentando construir essa estrutura ma-
temática que descreve o universo; por outro lado,
IHU On-Line – Em relação à Cosmologia, não estamos utilizando o nosso mundo mental
qual o lugar do ser humano no universo? para representar o que existe. Ainda vamos levar
Mário Novello – Há centenas de bilhões de galá- alguns anos, talvez décadas, para conciliar essas
xias e de estrelas no universo, mas somos nós que concepções. Trata-se de uma revolução mental.
estamos tentando entender isso. Embora o nosso Esses processos representam uma revolução em
papel seja aparentemente insignificante no uni- marcha, as preocupações que motivaram o Sim-
verso, não deixa de ser interessante que estejamos pósio Terra Habitável demonstram isso. Mas há
conseguindo entender essa quantidade fabulosa uma revolução de caráter diferente, mais profun-
de objetos, de energias, de matérias que existem da, com a discussão desses aspectos da Cosmolo-
no universo. Eu não acho que deva se extrair da gia, na produção dessa passagem de um colapso
Cosmologia – não nesse momento – um modo para uma expansão do universo, que mexe com
pelo qual se comporta uma sociedade, mas eu conceitos que estão lá atrás, no nosso imaginário
acho que se pode extrair algumas circunstâncias mais remoto e que nem sequer são discutidos no
envolvendo a espécie humana. A espécie humana cotidiano.
sofreu, ao longo da história, como disse Freud,
três golpes profundos no seu orgulho. Primeiro, IHU On-Line – As universidades estão dan-
foi quando se mostrou que a Terra não era o cen- do a atenção necessária para esses deba-
tro do universo, no século XV. Depois, quando tes? A discussão desses assuntos está indo
Darwin mostrou que havia um processo evolutivo bem?
das espécies e que talvez a própria raça humana Mário Novello – Não, não vai bem. Uma catás-
fosse uma conseqüência dele. E o terceiro grande trofe que atinge os sistemas universitários brasilei-
golpe veio do próprio Freud, que disse essas frases ro e mundial é a separação em departamentos.
e demonstrou que alguns momentos do nosso co- Temos uma universidade que não é uma
tidiano, os quais apresentamos como racionais “uni-versidade”. A maior parte das universidades
têm, na verdade, motivações altamente irracio- brasileiras tem institutos separados física e geogra-
nais, pois a Cosmologia está mostrando que há ficamente uns dos outros, nos quais o pessoal de
um quarto golpe, sendo desferido sobre a espécie Geografia interage com o pessoal de Geografia, o
humana, que consiste no fato de que, talvez, a pessoal de Física com o de Física, o de Química
própria linguagem newtoniana, com a qual nós com os químicos e assim por diante. Disso resul-
tentamos descrever o que existe, não é aplicável tam técnicos e profissionais que têm uma vaga
em todas as circunstâncias. O que isso quer dizer? idéia do que está acontecendo na vizinhança. Há
Quer dizer que, no momento em que o universo movimentos tentando unir os conhecimentos,
passa de uma fase “colapsante” para uma fase de como este Simpósio, que também ocorrem em
expansão, há circunstâncias que podem ser des- outros lugares, mas isso é muito pouco. Na verda-
critas como se houvesse coisas materiais que não de, no cenário da inteligência brasileira, isso é mui-
são representadas no espaço e no tempo. Ora, é to pouco. Muito mais deveria ser feito nas univer-
quase inimaginável para todo o mundo pensar sidades. Essas barreiras deveriam ser quebradas,
que se possa aplicar a palavra “existir” para algo e quebradas violentamente, porque elas não se-
que esteja fora do espaço e do tempo. Para nós, rão quebradas por dentro. As pessoas, que têm
existir é ser representado no espaço e no tempo. O seus institutos programados e uma estrutura de
que os físicos estão mostrando é que o espa- poder interno muito bem delineada, não vão abrir

89
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mão dele. No fundo, o que temos é um jogo de diferentes áreas. Isso é muito mais profundo,
poder, não é o conhecimento que está sendo bus- como a Cosmologia está demonstrando. Ela pre-
cado. Nessas estruturas, o que se procura não é cisa de toda a gama de físicos para tentar esboçar
conhecimento, e sim, manter o status quo para ge- uma idéia mais simples possível do universo e, no
rar uma estrutura política. É desagradável o que fundo, estamos jogando com diferentes áreas do
eu estou falando, mas é o que eu vejo no cotidia- conhecimento. Ora, isso só é possível se houver
no das nossas universidades. Para mudarmos uma troca, que não está acontecendo no cotidia-
isso, esse tipo de reunião que está ocorrendo aqui no. Formamos pessoas como se formássemos
deveria acontecer cotidianamente, em todas as operários extremamente competentes numa de-
universidades. Como se vê, é quase impossível terminada área. Talvez isso seja mesmo resultado
que isso se dê. Por isso, eu acho que deveria haver do sistema em que vivemos: um capitalismo selva-
uma revolução stricto sensu na educação. Esta- gem. Na verdade, todo o sistema universitário
mos formando pessoas altamente competentes, brasileiro não busca o conhecimento. Claro que
em várias áreas, mas sem o poder de compreen- isso não é exclusivamente um problema brasilei-
der as coisas globalmente, e isso é a pior coisa que ro, isso reflete o momento que estamos vivendo.
existe. Vemos, por exemplo, que o movimento Por isso, se deveria quebrar a estrutura do poder
ecológico está tentando demonstrar que há cone- intelectual acadêmico universitário.
xões muito maiores do que imaginávamos entre

90
A dimensão espiritual do cosmos

Entrevista com Paul Schweitzer

Paul Alexander Schweitzer é professor da complexas. O cérebro humano permite que nossa
PUC-Rio. Graduado em Teologia e Matemática e consciência chegue a um nível de reflexão e auto-
mestre em Filosofia, o pesquisador é doutor em conhecimento. Teilhard fala também do poder es-
Matemática pela Universidade de Princeton (Esta- piritual da matéria. Ele vê o espírito de Deus agin-
dos Unidos) e pós-doutor pelo Instituto de Estudos do em toda a realidade, não somente o espírito fi-
Avançados da mesma universidade. nito, o ser humano com toda a sua consciência,
também o espírito de Deus que age em toda a na-
IHU On-Line – Quais foram as principais tureza. Ele afirma que há uma direção na evolu-
idéias desenvolvidas na oficina A dimensão ção, no progresso, no desenvolvimento. Não é
espiritual da realidade do cosmos? que tudo seja meramente aleatório. O espírito está
Paul Schweitzer – Eu me detive bastante na re- presente, guiando e fortalecendo essa evolução.
lação entre matéria e espírito. Teilhard de Chardin
referia-se à lei da complexidade e da consciência. IHU On-Line – Como a Matemática ajuda a
Sua idéia é que a consciência é uma realidade que compreender os desafios do mundo habitável?
está presente em tudo o que existe, desde a menor Paul Schweitzer – A Matemática hoje não se re-
partícula até o ser humano. Ela se manifesta à me- fere tanto às questões de números, embora haja
dida que a matéria se organiza em formas mais isso. Vemos, nas palestras deste Simpósio, muitos
complexas que permitem o funcionamento da gráficos com números que mostram a degradação
consciência. Descartes separa matéria e espírito, do Planeta, os problemas quantificados, mas é na
Teilhard, por sua vez, reconhece que matéria e es- área das modelagens que a Matemática pode aju-
pírito são dois aspectos reais do mundo. O ser hu- dar mais. Ela oferece estruturas de pensamento,
mano tem consciência reflexiva: somos os únicos estruturas abstratas, que podem ser aplicadas
que sabemos, e sabemos que sabemos, mas há para modelar um processo, podendo ajudar a pla-
consciência em animais e organismos mais primi- nejar a maneira de encontrar os meios para che-
tivos. Aspectos da consciência estão presentes em gar a implementar o projeto ecológico, como o
todo o universo, e essa consciência se manifesta à prof. Latouche82 falava, um projeto de decresci-
medida que a matéria se organizada em formas

82 Serge Latouche é professor na Universidade de Paris-Sul e presidente da Associação Linha do Horizonte. É autor de diversos
livros. Entre eles, Les Dangers du marché planétaire (Os perigos do mercado planetário). Paris: Presses de Sciences, 1998;
La déraison de la raison économique. Paris: Albin Michel, 2001; La pensée créative contre l’économie de l’absurde.
Paris: Parangon, 2003; Justice sans limites – Le défi de l’éthique dans une économie mondialisée (Justiça sem
limites. O desafio da ética numa economia globalizada), Paris: Fayard, 2003. Latouche publicou, no Brasil, A Ocidentalização
do Mundo. Petrópolis: Vozes, 1994. Serge Latouche foi entrevistado pela IHU On-Line na edição nº 100, de 10-05-2004 e
na 141, de 16-05-2005. Latouche fez a conferência Crescimento econômico e decrescimento. Os desafios da vida da Terra
para a economia contemporânea no Simpósio Internacional Terra Habitável: um desafio para a humanidade, na
manhã do dia 18 de maio de 2005. (Nota da IHU On-Line)

91
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mento em vez do crescimento maior da economia lhava em vários campos diferentes, que unia as di-
e chegar, assim, a uma vida sustentável. versas disciplinas numa visão global, o que é mui-
to difícil. Na universidade, é necessário que haja
IHU On-Line – Qual foi o impacto de Teilhard uma base de informação e formação em cada dis-
em seu tempo? ciplina, senão ficamos na superficialidade. Entre-
Paul Schweitzer – Foi positivo. O fato de a Igre- tanto, a estrutura da vida moderna deixa a pessoa
ja Católica ter assimilado a teoria da evolução, sob pressão o tempo todo e gastamos muito tem-
sem fazer a bobagem de condená-la, deve-se, em po em engarrafamentos de trânsito, trabalhamos
grande parte, ao trabalho de Teilhard. Ele era um o dia todo e continuamos o trabalho em casa. As
visionário. A idéia de planetização, de noosfera, universidades não têm uma vida fora das aulas.
em que não somente haveria seres humanos indi- Ideal seria que o aluno tivesse tempo livre para es-
viduais espalhados pela Terra, mas a formação de tar, pensar, conversar com os colegas, cultivar
uma rede de intercomunicação cada vez mais for- essa visão mais global.
te foi prevista por ele. Nos últimos 15 anos, assisti-
mos ao desenvolvimento da Internet, a comunica- IHU On-Line – Como Teilhard se teria senti-
ção instantânea, essa comunicação em rede que do se tivesse participado deste evento?
está acontecendo, e ainda vai provocar resultados Paul Schweitzer – Certamente muito feliz. O
imprevisíveis. grande problema dele foi não ter muitas oportuni-
dades de discutir suas idéias com o público. Ele foi
IHU On-Line – Como a universidade poderia proibido de publicar certas obras. E foi, mais ou
preparar-se melhor para os desafios que menos, exilado na China. Então teria ficado muito
apresenta uma Terra habitável? feliz de estar em um lugar no qual pudesse apre-
Paul Schweitzer – O exemplo de Teilhard nos sentar suas idéias e escutar as respostas. Esse in-
ajuda a pensar isso. Ele era uma pessoa que traba- tercâmbio teria sido maravilhoso para ele.

92
Filosofia, bioinformática e tecnoumanismo

Entrevista com Timothy Lenoir

Timothy Lenoir é coordenador do Programa rentes de perguntas, tipos diferentes de questões


em História e Filosofia da Ciência da Universidade que a filosofia da ciência tradicional não aborda”.
de Stanford (Estados Unidos). É doutor em Histó- Segundo ele, houve uma explosão no passado,
ria e Filosofia da Ciência pela Universidade de em torno das guerras da ciência, em que o cientis-
Indiana. Ocupa a Kimberly Jenkins Chair da Uni- ta e o filósofo simplesmente não se compreendiam.
versidade de Duke. É pesquisador com interesse “Chegar a um entendimento e criar uma filosofia
interdisciplinar em humanidades, ciências e enge- da ciência mais compatível, que aborda as verda-
nharia. Possui extensa lista de publicações sobre a deiras preocupações da ciência, que eu chamo de
história da matemática no século XVII, história da ‘tecnociência’, me parece ser a principal questão
biologia e fisiologia alemã no século XIX, sobre o hoje”, salienta Lenoir.
impacto do uso da informática nas ciências, sobre
conceito e implicações da tecnociência e sobre a IHU On-Line – Quais são os principais desa-
produção de materiais digitais para a pesquisa na fios para um diálogo entre a Filosofia e a
área de filosofia e história das ciências. Entre seus ciência hoje?
temas de interesse atual, está a discussão da ne- Timothy Lenoir – Há várias questões-chave em
cessidade de se repensar um papel para as huma- que a Filosofia e a ciência se confrontam. Um dos
nidades à luz dos grandes avanços tecnológicos, principais problemas tem sido a falta de compre-
propondo o que chama de tecnoumanismo. Ti- ensão dos filósofos sobre o tipo de coisas que os
mothy Lenoir foi o responsável por duas confe- cientistas buscam. Há um estilo antigo da filosofia
rências no Colóquio Internacional Filosofia e da ciência, em particular, que tende a enfocar a
Ciência: Redesenhando horizontes. A primei- explanação científica, a predição e a lógica da
ra teve o seguinte título: Réquiem para o Cyborg, ciência. E a ciência contemporânea está indo na
e a segunda, que encerrou o Colóquio, Inventan- direção de um casamento com a tecnologia. Este
do a Universidade empreendedora: Stanford e a casamento da tecnologia com a ciência cria tipos
co-evolução do Vale do Silício. diferentes de questões, que a filosofia da ciência
Durante o Colóquio, foi lançada a tradução tradicional não aborda. Houve uma explosão no
portuguesa do livro de T. Lenoir, Instituindo a passado, em torno do que nós, nos Estados Uni-
Ciência. A produção cultural das discipli- dos, chamamos de guerras da ciência, em que o
nas científicas. São Leopoldo: Editora Unisi- cientista e o filósofo simplesmente não se compre-
nos, 2004. Agradecemos o auxílio da professora endem. Chegar a um entendimento e criar uma fi-
Dr.ª Anna Carolina Regner, professora no PPG losofia da ciência mais compatível, que aborda as
de Filosofia da Unisinos e coordenadora do Coló- verdadeiras preocupações da ciência, que eu cha-
quio Internacional, que serviu de intérprete da mo de “tecnociência”, me parece ser a principal
entrevista. questão hoje. Isso perpassa tanto os aspectos téc-
Para o professor Dr. Timothy Lenoir “A ciên- nicos da ciência como suas dimensões maiores so-
cia contemporânea está indo na direção de um ca- ciais que não podemos simplesmente evitar na
samento com a tecnologia, o que cria tipos dife- discussão sobre a construção do saber científico.

93
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Essas questões são parte da construção da tecno- Valley. A partir do começo dos anos 1950, houve
logia científica, e o outro aspecto disso, que é uma o desenvolvimento da eletrônica e da eletrônica
preocupação muito atual, são as dimensões éticas de estado sólido e transistores, depois veio a onda
da construção científica. do desenvolvimento dos semicondutores, seguida
pela dos computadores microprocessadores e
IHU On-Line – Como acontece este diálogo pela da Internet, que aconteceu no começo dos
na Universidade de Stanford? anos 1990 e continua até hoje. Acima disso tudo,
Timothy Lenoir – Creio que, em Stanford, o diá- abrangendo o período de meados dos anos 1970
logo acontece de várias maneiras diferentes. Nós até o presente, há o que se pode chamar de bio-
temos um Departamento de Filosofia muito im- tecnologia, na qual há um enorme influxo de ino-
portante, um grupo de filosofia da ciência muito vações. Stanford tem participado em todas estas
forte, um grupo de história e filosofia da ciência. ondas de inovações. Você está perguntando sobre
Na Faculdade de Medicina, existe um programa qual o valor adicionado ao ambiente local, adicio-
muito forte de ética da biomedicina que já ganhou nado à estrutura econômica da região por um lu-
um grande número de subvenções federais subs- gar como Stanford. Não é tanto na área de produ-
tanciais para realizar uma variedade de projetos. zir tecnologias individuais ou criar invenções na
Além disso, finalmente, na Faculdade de Enge- universidade que podem ser lançadas nas compa-
nharia, é exigido que todos os alunos façam, pelo nhias. Um pouco disso acontece, o que é muito
menos, uma disciplina de Ética da Engenharia. importante, mas a universidade é importante para
Então, há uma variedade de oportunidades nestes o que eu chamo de tecnologias convergentes em
contextos para o diálogo entre cientistas, enge- que há tecnologias e desenvolvimentos científicos
nheiros e filósofos. À parte disso, Stanford é uma de diferentes áreas que convergem para este am-
universidade incrivelmente interdisciplinar. Este é biente e criam possibilidades tecnológicas com-
o nome do jogo em lugares como Stanford, que pletamente novas e revolucionárias. Por exemplo,
são universidades com alta prioridade na pesqui- podemos olhar para o desenvolvimento da bioin-
sa, onde a colaboração entre engenheiros e cien- formática, um campo que está transformando
tistas da computação, por exemplo, ou entre en- muito a prática da Biologia hoje, um campo que
genheiros, cientistas da informática e biomédicos, se formou em Stanford, mas também em outros
é rotineira. Quando olhamos os trabalhos que são lugares, com a colaboração de bioquímicos e cien-
feitos, as patentes que são registradas pelo corpo tistas da computação que deslancharam uma
docente de Stanford, que sempre encontra oferta companhia que fundamentalmente transformou o
no mercado, vemos que existe muito desta inter- campo. Poderíamos olhar para outras áreas de
disciplinaridade na universidade e eu, pessoal- atividades semelhante. A convergência de dife-
mente, a considero um ambiente muito acolhedor rentes tipos de tecnologias acontece em ambien-
para pessoas como eu com interesses nos aspec- tes universitários onde a indústria não teria tanto
tos sociais, éticos e técnicos da ciência. Este diálo- interesse em pesquisar o que eles considerariam
go acontece regularmente. É um ambiente incen- problemas a longo prazo que não rendem para as
tivador de diálogo. suas necessidades tecnológicas imediatas. A uni-
versidade contribui para isso, mas o mais impor-
IHU On-Line – O que deve ser considerado tante é que Stanford, diferentemente de outras
para obter resultados eficientes nas rela- universidades, tem enfocado sua abordagem na
ções entre a universidade e a economia in- adaptação da universidade ao seu ambiente local.
dustrial da região onde a universidade se Stanford depende, quase inteiramente, de fundos
encontra? federais para as suas operações, surpreendente-
Timothy Lenoir – Quando olho a história da re- mente, e isso significa que Stanford se adapta ao
lação de Stanford com o Silicon Valley, penso que seu ambiente, aproveitando a ciência e a tecnolo-
tem havido várias ondas de inovação no Silicon gia inovadora que se encontram nos âmbitos de

94
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

várias companhias e vários outros laboratórios, foram em colaboração com outros cientistas,
trazendo as pessoas para a universidade a fim de compartilhando arquivos, criando bases de dados
estabelecer novos programas. Foi isso que aconte- e programas para visualizar a produção e o que é
ceu, por exemplo, no caso do programa de Física especialmente importante para a ciência e a enge-
do Estado Sólido em Stanford. Física do Estado nharia contemporânea é a construção de simula-
Sólido não é um campo desenvolvido numa uni- ções. Bem, estas coisas são digitais; se olharmos
versidade – estava sendo elaborado na Bell Labo- os arquivos da ciência contemporânea, encontra-
ratories. Os pró-reitores (decanos) de Stanford da rá trabalhos científicos publicados em revistas,
engenharia e ciências viram isso como uma opor- mas as outras coisas que os historiadores da ciên-
tunidade para desenvolver o campo e incorpora- cia e tecnologia usam como documentos de labo-
ram algumas das pessoas mais importantes da ratórios, cadernos de laboratórios, etc., encon-
Bell Laboratories que construíram o programa in- tram-se todos em forma digital. Então, para po-
teiro da Física de Estado Sólido. Eu poderia conti- dermos acessar estas notas, precisamos aprender
nuar com outros tipos de exemplos, mas essencial- como preservá-las corretamente, precisamos ad-
mente, o que fizeram foi treinar uma geração de quirir ferramentas diferentes para fazer este tipo
doutores que, fundamentalmente, transformaram de pesquisa por causa das tecnologias com as
a área. Então há este relacionamento fantástico, quais lidamos. Todos estes projetos, dos quais es-
esta co-evolução da Stanford como uma universi- tamos falando, são multidisciplinares e disponibi-
dade de pesquisa, Stanford como uma universi- lizados para muitas pessoas. Envolvem cientistas e
dade altamente produtiva de idéias novas e novas engenheiros de várias disciplinas, que auxiliam na
tecnologias, que está profundamente dependente sua colaboração e na sua construção, como a bio-
da área local, de Silicon Valley, mas também do informática, por exemplo, que foi desenvolvida
ambiente de fundos federais para sustentar estas pelo trabalho de bioquímicos que não sabiam mui-
inovações. É um relacionamento muito dinâmico. to sobre computação, que tiveram ajuda de cien-
tistas da computação e cientistas da informação
IHU On-Line – Poderia falar um pouco mais para desenvolver aspectos do campo. Esta cola-
sobre os seus projetos sobre a história da boração desenvolveu recursos internos próprios.
interação entre o homem e o computador e Para podermos fazer isso, do que precisamos?
a história da bioinformática? Dominar todas as diferentes disciplinas para po-
Timothy Lenoir – Os projetos da história da inte- der escrever uma história das pesquisas? Poucas
ração entre o homem e o computador e a história pessoas podem fazer isso, assim temos um núme-
da bioinformática surgiram de uma preocupação ro cada vez menor de historiadores da ciência e da
sobre o que os historiadores do futuro irão preci- tecnologia que podem escrever de uma maneira
sar para documentar e pesquisar a história da menos superficial. Para podermos fazer isso, te-
ciência e tecnologia contemporânea. Para colocar mos que desenvolver novos tipos de ferramentas
isso em perspectiva, todo o trabalho que eu havia que permitem a nossa cooperação com cientistas
feito anteriormente sobre a história da ciência e e engenheiros para eles documentarem a sua pró-
tecnologia de antes da Segunda Guerra Mundial, pria história, e eles colaborarem conosco ao escre-
enfocava, basicamente, a ciência da tecnologia vermos as suas histórias. Isso não significa que
alemã e a sua relação com a indústria no século lhes damos autoridade para escreverem a sua pró-
XIX e começo do século XX. E se alguém faz pes- pria história. Nós os auxiliamos porque a história
quisa nisso, o que encontra é uma linda área para da interação entre o homem, o computador e a bio-
trabalhar, pois toda a documentação está registra- informática foi elaborada com estes objetivos em
da em papel. A ciência contemporânea, desde por mente, para desenvolver ferramentas que iriam
volta de 1960, surpreendentemente, armazena criar ambientes colaborativos que permitiriam a
seus documentos em ambiente digital. Os projetos cientistas e engenheiros ajudar a elaborar docu-
que as pessoas têm desenvolvido freqüentemente mentos que criariam recursos que nós, historiado-

95
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

res e cientistas sociais, usaríamos ao escrever as ferentes origens. A maioria dos conferencistas filó-
nossas histórias. Entre algumas destas ferramentas sofos teve sua formação em muitas das mesmas
que desenvolvemos para fazer isso acontecer, es- instituições nas quais eu também fiz a minha. Mui-
tão, por exemplo, as linhas de tempo, linhas de tas das pessoas tiveram os mesmos professores, as
tempo colaborativas, que permitem que os própri- mesmas professoras. Um dos meus professores
os cientistas estruturem os tipos de eventos que mais importantes veio da Argentina para os Esta-
acham importantes e para estabelecer relaciona- dos Unidos onde eu trabalhei com ele, o Alberto
mentos entre estes eventos, para discutir traba- Coffa. Então há muita colaboração cruzada já
lhos-chave, reuniões-chave, contribuições impor- acontecendo no desenvolvimento do campo. O
tantes para a indústria, e assim por diante, num que eu vejo acontecendo, não sei como funciona
ambiente altamente interativo que está em cons- aqui no Brasil, é um movimento nos Estados Uni-
tante revisão. É um lugar de jogo para o cientista e dos e nas comunidades de estudos científicos em
o engenheiro, para ajudar a assimilar os detalhes geral, de aproximação ao cientista, e não de afas-
básicos do seu campo e outras coisas importantes tamento dele. O que é importante é tentar desco-
ao seu ver. Creio que isso tenta resolver algumas brir como podemos estabelecer um discurso críti-
das dificuldades que vemos surgir nas guerras de co, como podemos trabalhar com cientistas e en-
cultura, nas guerras de ciência em que temos cien- genheiros e manter um discurso crítico que não
tistas sociais e filósofos de fora, criando histórias seja ofensivo e que permita que o diálogo conti-
sobre o que acontece na ciência. Aqui nós temos a nue. Creio que isso foi um problema no passado e
colaboração entre cientistas e filósofos na discus- me parece que seria uma das oportunidades de
são sobre os esboços do campo. Não significa que uma conferência como esta. Outro ponto que me
seja a história final, mas se não desenvolvermos parece muito importante para os filósofos no Bra-
ferramentas assim, para arquivar, para preservar e sil são os problemas sobre a ética da ciência e tec-
outros tipos de ferramentas para acessar e analisar nologia e o rápido desenvolvimento industrial e
essas histórias, não poderemos fazer pesquisa no tecnológico, aqueles que levam a deslocamentos
futuro. na terapia médica e em outras áreas e que nós,
nos Estados Unidos, não ficamos sabendo certo
IHU On-Line – Por que o senhor acha im- como são. Os filósofos da ciência e os cientistas
portante realizar colóquios como este que brasileiros que trabalham com essas questões,
está acontecendo na Unisinos? contribuem mais diretamente e enormemente
Timothy Lenoir – É difícil dizer quais vão ser os para o tipo de direção que estamos buscando,
resultados que evoluirão a partir desse colóquio. É portanto eu prevejo que isso tenha um resultado
uma oportunidade importante para pessoas de di- valioso.

96
Há urgência de pensar uma nova ética global

Entrevista com Nelson Gonçalves Gomes

Nelson Gonçalves Gomes é professor titular IHU On-Line – Em que consiste a lógica / dia-
da Universidade de Brasília desde 1976, onde lógica numa comunicação ideal?
coordena o Mestrado em Filosofia. Doutor em Fi- Nelson Gomes – A lógica / dialógica consiste,
losofia pela Universidade de Munique (Alema- basicamente, num sistema no qual se discute uma
nha), obteve o título de pós-doutor em Filosofia na tese no contexto de um diálogo entre duas pessoas:
Universidade de Munique e na London School of o proponente e o oponente. O proponente apre-
Economics (Departamento de Filosofia). Nessas senta uma tese, por exemplo, “amar a natureza é
instituições, na Universidade de Oxford, Universi- uma coisa boa, positiva”. O proponente e o opo-
dade Hebraica de Jerusalém e no Centro Interna- nente, seu interlocutor, debatem-na. A discussão
cional de Fundamentos das Ciências, em Salzbur- não acontece de qualquer maneira. Há regras que
go (Áustria) fez estágio sênior. É também bolsis- devem ser observadas. E, ao final do diálogo, se,
ta-pesquisador do CNPq desde 1985, membro do por ventura, o oponente é levado a uma espécie
Comitê Assessor de Filosofia do CNPq e do Con- de situação sem saída, não pode ou não tem mais
selho de Ensino e Pesquisa da UnB. Tem publica- objeções a fazer, ele perdeu o diálogo. Ganhou o
ções nas áreas de lógica, história da filosofia com proponente.
ênfase no positivismo, ética e filosofia da psicolo-
gia. É organizador do livro Hegel. Brasília: Edito- IHU On-Line – O que essa lógica / dialógica
ra Universidade de Brasília, 1981. O professor Dr. teria a dizer em um mundo marcado por
Nelson Gonçalves Gomes vê, com otimismo, a fundamentalismos?
possibilidade de formular uma nova ética que leve Nelson Gomes – A lógica / dialógica é apenas
em conta os problemas de sobrevivência do ecos- um instrumento. Ela não é ética. A ética é outro
sistema. “Há muitos problemas que estão no ca- assunto. A lógica / dialógica pode ser um instru-
minho, mas creio que hoje temos que colocar a mento da reflexão ética. É uma forma de mostrar
universalidade da ética na globalização, porque a como as pessoas podem dialogar. A parte da Filo-
globalização universalizou os problemas. Não sofia que reflete sobre todas as questões do mun-
queremos soluções que atinjam simplesmente do contemporâneo, cada vez mais difícil, é a ética.
uma determinada comunidade. Temos uma inter- Não é propriamente a lógica / dialógica. Evidente-
dependência entre todas as comunidades existen- mente, o fundamentalismo é a negação do diálo-
tes no Planeta. Como a ecologia está se transfor- go, ele consiste simplesmente em afirmar-se uma
mando numa questão de sobrevivência da Terra, posição.
uma ética voltada para problemas ecológicos é
uma exigência do nosso tempo”. Durante o Coló- IHU On-Line – Como o senhor vê a possibili-
quio Internacional Filosofia e Ciência: Re- dade de uma ética universal que privilegie a
desenhando horizontes, o professor Nelson foi relação do ser humano com o ecossistema?
o responsável pelo debate Lógica dialógica e co- Nelson Gomes – Eu vejo isso com otimismo. Há
municação ideal. possibilidades reais de pensarmos nisso. Há mui-

97
tos problemas que estão no caminho, mas creio a eles” (Mateus 7, 12)84 poderia ser base
que hoje temos que colocar a universalidade da para uma ética universal?
ética na globalização, porque a globalização uni- Nelson Gomes – Essa frase é mais bem formula-
versalizou os problemas. Hoje não queremos so- da negativamente. É melhor colocar assim “não
luções que atinjam simplesmente uma determina- fazer ao outro aquilo que eu não quero que seja
da comunidade. Temos uma interdependência feito a mim”. Por exemplo, uma pessoa masoquis-
entre todas as comunidades existentes no Planeta. ta pode querer que façam coisas ruins para ela, e
Pensar em termos de uma ética universal é muito isso não é bom, porque não é por isso que ela po-
natural. Como a ecologia está se transformando derá fazer coisas ruins para os outros. A formula-
numa questão de sobrevivência da Terra, uma éti- ção negativa é melhor. Essa regra “não fazer ao
ca voltada para problemas ecológicos é uma exi- outro aquilo que eu não quero que seja feito a
gência do nosso tempo. mim” chama-se, em ética, “regra de ouro”. E essa
regra está presente no ensinamento de inúmeras
IHU On-Line – Qual pode ser a contribuição religiões e de inúmeros sistemas éticos. É uma re-
das religiões para uma ética global? gra, sem dúvida nenhuma, central no pensamento
Nelson Gomes – Realmente não tenho uma ético. Muitas teses éticas podem ser derivadas daí.
boa resposta para dar, ou pelo menos uma res-
posta que seja fruto do raciocínio e da reflexão, IHU On-Line – Quais os principais desafios
mas posso dar uma resposta parcial. Entre os gre- que o senhor vê no diálogo entre ciência e
gos antigos, havia a crença de que o mundo era Filosofia?
habitado por deuses. Cada objeto, por exemplo Nelson Gomes – O principal desafio no diálogo
uma árvore, teria um Deus dentro de si. O mar te- entre ciência e Filosofia consiste, em primeiro lu-
ria deuses dentro de si. Isso é algo que pode levar gar, em se definir o que a Filosofia pode fazer,
as pessoas a terem uma relação de maior respeito para que se entenda melhor a ciência. Em segun-
para com a natureza. As diversas religiões hoje do lugar, em que a ciência pode enriquecer a Filo-
estão levando as pessoas, pelo menos em alguns sofia. Essas questões são, até hoje, mal resolvidas.
casos, à guerra, à violência. Em todo o Planeta, O naturalismo, uma corrente filosófica, diz, em úl-
há várias guerras que têm como base a religião. É tima análise, que a Filosofia pode fazer muito pou-
só pensar nos problemas gravíssimos que o Oci- co, ou talvez nada, para que a ciência tenha um
dente tem com os muçulmanos. Nesses confron- entendimento melhor de si mesma. Na verdade,
tos, o elemento religioso é importante. Ou se o filósofo, segundo os naturalistas, seria incapaz
pensarmos na Irlanda do Norte, problemas entre de trazer contribuições importantes para o enten-
católicos e protestantes, o elemento religioso é dimento da ciência. Em outras palavras, a ciência
importante. Eu não saberia definir as religiões poderia ser entendida estudando-se a própria
com precisão, porque elas podem ser muito úteis ciência. A ciência é que estaria em condições de
para aproximar os homens em muitos casos, mas levar ao entendimento dos seus próprios proce-
também podem levá-los à destruição. Infelizmen- dimentos. Este é o desafio contemporâneo: en-
te, temos exemplos históricos das duas coisas. contrar uma boa resposta para essa questão. Pre-
Mas, com certeza, as religiões são fontes de rela- sentemente, os naturalistas têm um grande pres-
ções éticas e morais. tígio filosófico. Há estudos muito importantes e
crescentes sobre o naturalismo. E se o naturalis-
IHU On-Line – Como a frase evangélica mo tem razão, a Filosofia não ajuda no entendi-
“tudo o que vocês desejam que os outros fa- mento da ciência. Essa é uma questão a ser
çam a vocês, façam vocês mesmos também esclarecida.

84 A tradução é da Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Edições Paulinas. (Nota da IHU On-Line)

98
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – O senhor acha que haveria cial. No final das contas, a ciência deve aperfeiço-
também uma necessidade de maior diálogo ar o homem. Essa já é uma frase de Spinosa. E eu
entre ciência, Filosofia e os problemas da diria que a Filosofia também. Essa é uma preocu-
sociedade contemporânea? pação fundamental.
Nelson Gomes – Sim. Mas acho que temos de
manter as coisas separadas. Uma coisa é a relação IHU On-Line – Que momento está vivendo a
entre ciência e Filosofia, outra coisa é a relação Filosofia?
dos problemas da sociedade com os problemas da Nelson Gomes – De um modo geral, eu não di-
Filosofia e com os problemas da ciência. São coi- ria que a Filosofia esteja vivendo um momento
sas que não devem ser colocadas no mesmo con- particularmente brilhante. Não estamos na situa-
junto de preocupações. ção em que estávamos, por exemplo, em 1950,
1960, ou até nas décadas anteriores, quando, en-
IHU On-Line – Mas não estaria faltando às ins- tão, a Filosofia era discutida pelo trabalho de
tituições científicas, às universidades, uma grandes cabeças, como Heidegger ou Bertrand
abertura maior aos problemas da sociedade? Russel, Husserl, Sartre, etc. No momento, esses
Nelson Gomes – Esta é uma outra questão: sa- grandes nomes não estão aí. Há filósofos famosos,
ber, por exemplo, como a universidade deve for- sem dúvida nenhuma, pensadores, como Locke,
mar o seu pessoal, alunos, professores, no sentido mas não há aqueles grandes trabalhos. Com res-
de pensar em profundidade as questões da socie- peito ao Brasil, temos hoje 27 programas de
dade. É importante que as questões não sejam Pós-Graduação, entre mestrados e doutorados, e
mescladas, porque saber se a Filosofia tem algo a houve um crescimento quantitativo da Filosofia e
dizer sobre a ciência é uma coisa. Saber que pro- da produção filosófica. Quanto a isso não há dúvi-
blemas sociais o filósofo pode ajudar a resolver, é da. Ainda falta o crescimento qualitativo. Haven-
outra. São blocos diferentes de problemas: Filoso- do o crescimento quantitativo, evidentemente au-
fia, ciência, sociedade. Não há a menor dúvida de menta a probabilidade de um crescimento qualita-
que a preocupação em torno da sociedade é cru- tivo, mas esse ainda não aconteceu

99
O ensino de ciências está longe da formação de cidadãos conscientes

Entrevista com Susana Lehrer de Souza Barros

Susana Lehrer de Souza Barros é professora inicial, são colchas de retalhos, que não cobrem
no Instituto de Física da Universidade Federal do ninguém...
Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em Física pela
Universidade de Buenos Aires (UBA), a professora IHU On-Line – Quanto ao cenário interna-
é mestre em Física pela Manchester University cional, onde se posiciona o Brasil, no que
(Inglaterra). se refere ao ensino mencionado? É possível
e/ou útil fazer tais comparações?
IHU On-Line – Qual é o cenário brasileiro do Susana de Souza Barros – A situação interna-
ensino das ciências naturais em geral e da cional é também preocupante. Existem países
Física em especial? Em que medida os con- com maior grau de interesse pela educação e que
ceitos ensinados propiciam uma reflexão dão prioridade à formação em ciências para pro-
sobre as suas relações com a sociedade? vocar o desenvolvimento tecnológico (Coréia, Ja-
Susana de Souza Barros – Um cenário confu- pão, Taiwan, alguns países europeus). A idéia de
so, com muita atividade de pesquisa em educação ensinar ciências para formar o cidadão conscien-
em ciência e pouca transferência desse conheci- te, que possa “salvar” este planeta, está ainda mui-
mento para a escola, que se encontra num estado to longe de ser atingida, mas hoje estamos com
de abandono notório. O interesse dos governos uma nova visão, e isso é importante.
tem sido aumentar a matrícula escolar, como disse
há pouco o Presidente Lula: “A escola agora pre- IHU On-Line – Em que medida a chamada
cisa ensinar...” Concordo. O ensino de ciências, “nova Física” é conhecida pelos estudantes
por outro lado, precisa de muito apoio e in- brasileiros? No nosso ensino, predomina a
fra-estrutura, que não são conseguidos de um dia física convencional?
para outro. Não depende apenas da vontade polí- Susana de Souza Barros – A nova Física não po-
tica dos governantes. Precisamos de professores derá ser oferecida para os nossos alunos no contexto
com bom conteúdo científico e de pedagogia e atual de ensino. Precisamos de um ensino básico de
que tenham compreensão da natureza da ciência ciências que contemple um bom ensino de Matemá-
e de seus métodos. Para isso é necessário que a tica, de Português e de Ciências Observacionais. Os
formação inicial seja boa, o que não é verdade alunos que não possuem esses pré-requisitos dificil-
para a maioria do nosso professorado. Neste mo- mente poderão aproveitar o ensino de Física atual.
mento, o governo, ciente da situação, oferece pos- No limite, poderão ser informados.
sibilidades de educação continuada para muitos
professores, por meio das suas Secretarias de IHU On-Line – Quais as medidas necessá-
Educação, do Ministério de Educação e Cultura rias para que o ensino de Física permita a
(MEC), da Coordenação de Aperfeiçoamento de efetiva compreensão da ciência, “do univer-
Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Financia- so, da natureza e suas inter-relações”?
dora de Estudos e Projetos (FINEP), etc. Essas Susana de Souza Barros – 1. Formar o bom
ações pulverizadas NÃO substituem a formação professor de ciências. 2. Uma escola que atenda

100
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

suas obrigações com seriedade e crie condições tor principal de melhoria. Estudos feitos nos Esta-
de trabalho escolar (infra-estrutura, coordenação, dos Unidos mostraram que 50 anos de computa-
biblioteca, novas tecnologias e laboratórios para dor na sala de sala não fizeram muita diferença.
todos). 3. Salários condignos para os professores.
4. Avaliação e coordenadorias escolares. IHU On-Line – A senhora gostaria de acrescen-
tar outros comentários ao tema em questão?
IHU On-Line – Nos últimos anos, tanto nas Susana de Souza Barros – Corro o risco de re-
ciências físicas como nas biológicas, os es- petir-me. Precisamos bons professores, boas esco-
pecialistas vêm se inspirando no computa- las e governos que dêem prioridade à educação
dor como ferramenta e metáfora. Como sem demagogia, criando sistemas que desenvol-
abordar temas afins se o universo computa- vam um bom ensino, de acordo com as necessida-
cional está, muitas vezes, distante da sala des do educando, com continuidade e não tro-
de aula? Como aproximar os estudantes quem programas e currículos do dia para a noite,
dessa nova abordagem do estudo do univer- avaliando continuamente e modificando com co-
so e dos corpos que o habitam? nhecimento de causa. Um aspecto ainda muito es-
Susana de Souza Barros – Não será por meio quecido: a INCLUSÃO de todos na escola, porta-
das novas tecnologias que o nosso ensino será dores de deficiências, crianças pequenas e aque-
melhorado. Pode ser um fator que contribua, mas les que não tiveram ocasião de ser educados na
não resolverá o problema da educação. O interes- idade certa. Temos que compreender que o ensi-
se de levar o computador para TODOS, é objeti- no de ciências, especificamente, não pode ser
vo-mor de todos os governos, acreditando ser fa- bom sem uma educação geral que corresponda.

101
Copenhagen: montagem paulista sobre a questão nuclear

Elogiada por críticos como Alberto Guzik e A peça


Bárbara Heliodora, a peça teatral Copenhagen,
montagem paulista do Núcleo Arte Ciência no Copenhagen é uma trama de suspense, ami-
Palco, da Cooperativa Paulista de Teatro, foi zade, mistério e espionagem, tendo a questão nu-
apresentada no Anfiteatro Padre Werner, dia 17 clear, a ética e a responsabilidade dos cientistas
de maio de 2005, integrando a programação do como temas centrais. Fala de um explosivo e mis-
Sempre às Terças e do Simpósio Internacio- terioso encontro que mudou o rumo da história.
nal Terra Habitável: um desafio para a hu- Em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, os
manidade. Com texto de Michael Frayn, direção pais da Física Quântica, Niels Bohr, judeu dina-
de Marco Antonio Rodrigues e tradução de Aimar marquês, e Werner Heisenberg, alemão encarre-
Labaki, com Carlos Palma (Werner Heisenberg), gado do programa nuclear de Hitler, têm uma
Oswaldo Mendes (Niels Bohr) e Selma Luchesi breve e secreta conversa sobre a construção da
(Margarethe Bohr) no elenco, Copenhagen parti- bomba atômica, em Copenhague, então sob
cipou da programação do 9.º Porto Alegre em ocupação nazista. As diferentes versões desse en-
Cena e foi contemplado com o Prêmio Estímulo contro entre os dois renomados cientistas são re-
Flávio Rangel 2001 (Governo do Estado de São vistas com os personagens já mortos, agora com
Paulo) e Prêmios Qualidade Brasil 2001: melhor a presença de Margarethe Bohr, mulher de Niels.
direção e melhor espetáculo. O espetáculo revela as implicações das decisões
A peça é recomendada para pessoas a partir humanas e um profundo pensar sobre o mundo e
de 16 anos e tem duração de 150 minutos, em nossas vidas, usando a ciência como metáfora
dois atos. para fortes emoções.

102
Mirada ao passado para fazer uma Terra habitável

Por Attico Chassot

que vira, ao mesmo tempo, uma das melhores au-


las de História e Filosofia da Ciência e de Didática.
Recordo que, então, com alguns colegas, sonha-
mos em trazê-la à Unisinos, mas nos demos conta
(fazendo contas) que era inviável. Assim são so-
bradas as razões para vibrar com a oportunidade
que teremos no dia 20 de maio, às 18 horas, no
Niels Bohr, Margarethe Bohr e Werner Heisenberg
Anfiteatro Pe. Werner. Este texto é também a ma-
nifestação pública de minha gratidão aos fazeres
O Prof. Dr. Attico Chassot, do PPG em Edu- do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
cação da Unisinos, comenta o espetáculo Cope-
nhagen no artigo que segue, elaborado especial-
mente para a IHU On-Line. Attico Chassot é Copenhagen
mestre em Educação pela UFRGS, doutor em
Educação pela mesma universidade, com tese inti- Saber que Copenhagen – uma peça premia-
tulada Para que(m) é útil o ensino de Química? E da em vários países – estará entre nós, encenada
pós-doutor pela Universidade Complutense de pela Companhia Paulista de Teatro, que já é de-
Madri Ele é autor de diversos livros, entre os quais tentora de vários prêmios pela produção e apre-
citamos: Para que(m) é útil o ensino de Quími- sentação desta peça, nos obriga a uma prepara-
ca?. Canoas: ULBRA, 1995; Alfabetização cien- ção para o melhor desfrute da oportunidade. A es-
tífica: questões e desafios para a educação. tréia de Copenhagen foi em Londres, em 1998.
Ijuí: Editora Unijuí: 2001. Educação conSciên- Seu autor é o dramaturgo (também repórter e tra-
cia. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2003; A Ciência é dutor) Michael Frayn84 (Londres, 1933), detentor
masculina? É, sim senhora! São Leopoldo: Edi- de muitos prêmios recebidos por uma longa lista
tora Unisinos, 2003. (Coleção Aldus, 16). de produções, especialmente para teatro.
Sem tirar nada do suspense e até da trama
Li, com entusiasmo, no IHU On-Line núme- envolvente do texto Copenhagen, vale olharmos
ro 139, que, durante o Simpósio Internacional um pouco o cenário para onde somos transporta-
Terra Habitável: um desafio para a humani- dos pela magia do teatro. Viveremos, então, em
dade, teríamos o privilégio de ver, na Unisinos, o 1941, em meio aos momentos mais dramáticos da
espetáculo Copenhagen. Em 25 de setembro de guerra que iniciara em 1939 e ainda se estenderia
2002, quando assisti a esta peça, apresentada até 1945. Estamos em Copenhague, capital da Di-
pelo grupo Amaná-Key, registrei em meu diário namarca, ocupada pelos nazistas, situação igual à

84 Michael Frayn: dramaturgo, colunista, repórter e tradutor inglês, nascido em 1933, em Londres. Para saber mais, consulte o
sítio http://www.imagi-nation.com/moonstruck/clsc74.html (Nota da IHU On-Line)

103
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

parte significativa de uma Europa dilacerada. As cabra para vencer a guerra. Heisenberg estava en-
atrocidades que hoje vemos no Iraque, para refe- carregado de desenvolver a bomba atômica ale-
rir um dos conflitos dolorosos de nossos dias, mã; Bohr contribuiu para a confecção da bomba
eram barbarizadas, naquela época, com batalhas estadunidense, que destruiria, em 1945, as cida-
de nações contra nações. des japonesas de Hiroxima e Nagasáqui e deter-
minaria a rendição do Japão e término da Segun-
da Guerra Mundial.
Niels Bohr e Werner Heisenberg Quais as razões pelas quais Heisenberg pro-
cura seu antigo professor para um jantar que
Em Copenhagen, vamos nos encontrar com acompanhamos intrigado durante as 2h30min de
apenas três personagens, que tiveram histórias ex- espetáculo? Essa pergunta sem resposta é o pivô
cepcionais: o dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) da peça e é sobre ela que surgem as especulações
e o alemão Werner Heisenberg85 (1901-1976), que envolvem a história da ciência e a filosofia da
dois dos maiores físicos do século XX. O primeiro ciência, permeadas por profundas discussões éti-
recebeu prêmio Nobel de Física em 1922, “por cas. Esta é a dimensão que ainda hoje traz atuali-
seu trabalho na investigação da estrutura do áto- dade às discussões e, com razão, se faz presente
mo e das radiações emanadas a partir dele”86 e o em um simpósio que se propõe discutir propostas
segundo, o prêmio Nobel de Física em 1932 “pela para que tenhamos uma Terra habitável.
criação da Mecânica Quântica, e sua aplicação Algumas hipóteses podem ser levantadas so-
que, entre outras descobertas, levaram à identifi- bre o encontro: Heisenberg pretendia extrair de
cação de formas alotrópicas do hidrogênio”87 Mas Bohr segredos do programa nuclear dos aliados?
há uma terceira personagem: está em cena, com Teria ido alertá-lo para o projeto de Hitler de fabri-
muito destaque, Margarethe Bohr (1890-1984)88, car a bomba? Teria ido se aconselhar com ele? Ou
esposa de Niels, numa trama de idas e vindas que foi a Copenhague para sondar o grau de desen-
passa em revista as diferentes hipóteses (inclusive volvimento do projeto nuclear dos aliados (que só
a do próprio Michael Frayn), sem a pretensão de começou em 1942)? Será que foi tentar roubar se-
determinar a suposta versão “verdadeira” do en- gredos de seu antigo orientador para adiantar a
contro histórico dos dois eminentes físicos. construção da bomba para Hitler? Ou será que foi
Bohr e Heisenberg foram, em outros tempos, propor um pacto de paz, segundo o qual os cien-
antigos colaboradores. O o físico alemão trabalha- tistas nazistas e aliados se recusariam a construir
ra em Copenhague, sob orientação de Bohr, nos armas de genocídio?
anos 1920, mas agora, separados pelas circuns- Michael Frayn traz para o jantar discussões
tâncias, estão em lados opostos do conflito, porém acerca das contribuições dos dois físicos, que são
com um envolvimento comum: a bomba atômica, aquelas pelas quais um e outro foram laureados
que daria, ao lado que a detivesse, a cartada ma- com o Nobel de Física. Bohr com base na propos-

85 Werner Karl Heisenberg (1901-1976): físico alemão, vencedor de Prêmio Nobel e um dos fundadores da mecânica do
quantum. Heisenberg foi o líder do programa da energia nuclear da Alemanha nazista. (Nota da IHU On-Line)
86 Fonte: http://nobelprize.org/physics/laureates/ (Nota do autor)

87 Fonte: Idem nota anterior. (Nota do autor)

88 Margarethe Norlund, filha de um farmacêutico, nasceu em uma pequena cidade distante menos de 100km de Copenhague.

Casou com Niels em 1912. Enquanto ele trabalhava na Inglaterra, houve trocas de lindas cartas entre ambos, nas quais ele
dava detalhes de seus trabalhos que desenvolvia em Cambridge com Rutherford. O casal teve seis filhos, o quarto, Aage Bohr,
nasceu no ano em que seu pai foi laureado com o Nobel de Física, recebeu o mesmo prêmio que o pai em 1975. Margarethe
foi, durante muitos anos, assistente de Niels, não apenas datilografando seus textos, mas, segundo reconhecimento dele e dos
filhos, inspiradora de muitas de suas idéias científicas. Niels, mesmo batizado cristão, quando da ocupação nazista na
Dinamarca, teve sérios problemas, pois era filho de mãe judia. Em 1943, com recrudescimento das perseguições da Gestapo, a
família Bohr fugiu para a Suécia. (Nota do autor)

104
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ta de um átomo nuclear de seu professor Ernst ro vale repetir que ciência não é um ente. São os
Rutherford89 (1871-1937), prêmio Nobel de Quí- homens e as mulheres que fazem ciência, que têm
mica 1908, define que os elétrons só poderiam gi- ações que são boas ou são más. Permitam-me
rar em torno do núcleo em órbitas predetermina- uma simplificação: uma faca sobre o mesmo cor-
das, e só emitiriam ou absorveriam quantidades po pode matar ou salvar a vida. Depende de
discretas de energia (quanta). A contribuição de quem a usa.
Heisenberg pode ser considerada uma comple- Há um tempo, eu dicotomizava a ciência
mentação com formulação do princípio da incer- como sendo ora uma fada benfazeja, ora uma
teza, segundo o qual seria impossível medir com bruxa. Depois de fazer uma leitura, em que reabi-
exatidão a posição e a velocidade de um elétron lito bruxas, que está em meu livro Educação
simultaneamente. É indiscutível que os dois mu- conSciência90, passei a dizer que a ciência pode
daram a Ciência do Século XX. Aqui vale um aler- ser ora uma fada benfazeja, ora um ogro maligno;
ta: essas concepções são trazidas com tal abun- agora, para fugir a esta polarização, trago uma ou-
dância de metáforas que um leigo em Física partici- tra metáfora para a ciência, dizendo que ela me
pa da ágape com um saborear especial, catalisado parece mais o Golem (Goilem), aquele ente da
pelas intervenções quase ardilosas de Margarethe. mitologia judaica que se parece com um gigante
Ela medeia as réplicas e as tréplicas dos dois físicos, de barro que desconhece sua verdadeira força e
tornando os diálogos fascinantes. se assemelha muito a um bobão, mas que tem
ações, às vezes, de sábio e outras de sabido91.
Oxalá as discussões que devem catalisar Co-
A ciência como Golem penhagen sirvam para que ajudemos o Golem a
ser menos tolo e colaborar, para que, ao fazer-
É um olhar à ciência como esse desencadea- mos ciência, o façamos para transformar o mun-
do por Copenhagen que ressurge a constante dis- do para melhor. Só assim teremos uma Terra
cussão acerca de ser a ciência boa ou má. Primei- habitável.

89 Ernst Rutherford (1871-1937): físico britânico, ganhador do prêmio Nobel por seus trabalhos inovadores na Física nuclear e
por sua teoria da estrutura do átomo. Rutherford foi um dos mais importantes pesquisadores da Física nuclear. (Nota da IHU
On-Line)
90 CHASSOT, Attico. Educação conSciência. Santa Cruz do Sul: EdUNISC. 2003. (Nota do autor)

91 Adaptado de COLLINS, Harry; PINCH, Trevor. O golem: o que você deveria saber sobre ciência. São Paulo: Editora da UNESP,

2003. (Nota do autor)

105
Copenhagen: um desafio à inteligência e à sensibilidade

Em uma trama de suspense, amizade, misté- Entre a platéia que acompanhou as duas ho-
rio e espionagem, o espetáculo teatral Copenha- ras e meia de apresentação, encontrava-se Simo-
gen teve como temas centrais a questão nuclear, a ne Mundstock Jahnke, bióloga, professora substi-
ética e a responsabilidade dos cientistas, remeten- tuta na UFRGS. Impactada com o caráter humano
do-se a um misterioso encontro em 1941 entre os da peça, a professora salientou a capacidade de
pais da Física Quântica, Niels Bohr, judeu dina- fazer refletir sobre a origem e o caráter dos confli-
marquês, e Werner Heisenberg, alemão encarre- tos do mundo. “Muitos de nós já ouvimos falar da
gado do programa nuclear de Hitler. história da discussão em Copenhague, mas a peça
A montagem é do Núcleo Arte Ciência no trouxe um novo olhar, nos fez vê-la mais de perto.
Palco, da Cooperativa Paulista de Teatro, com Gostei da participação da esposa de Bohr. Ela fica
texto de Michael Frayn, tradução de Aimar Laba- como espectadora e vê os dois lados. Demonstra a
ki. No elenco, Carlos Palma (Werner Heisenberg), sua revolta em relação aos outros personagens e
Oswaldo Mendes (Niels Bohr) e Selma Luchesi começa a entrar na trama com uma postura pró-
(Margarethe Bohr). pria. Achei importante como a peça nos mostra a
Para Marcel Bursztyn, diretor do Centro de percepção de que os conflitos do mundo todo, são
Desenvolvimento Sustentável da UnB e ministran- gerados no próprio ser. Os conflitos internos se re-
te do curso Desenvolvimento Sustentável. Funda- fletem também no mundo político, na Física, no
mentação teórico-prática no Simpósio Interna- mundo exterior”.
cional Terra Habitável: um desafio para a Para Jony Johann, jornalista e aluno de Mes-
humanidade, a apresentação da peça encaixa trado em Ciências Sociais na Unisinos, Copenha-
perfeitamente no tema por ele abordado. “Algo gen foi a melhor peça de teatro que ele já viu.
fundamental quando se pensa em desenvolvi- “Densa. Carregada de ciência e de emoção ao
mento sustentável e meio ambiente é o controle mesmo tempo. Ela faz refletir, na figura do Hei-
ético da ciência. Eu me refiro a um autor, mate- senberg, sobre o pensamento da clássica Filosofia
mático judeu, polonês, que fugiu da guerra, foi alemã diante daquele horror do holocausto. Foi
para a Inglaterra e participou do projeto da cons- muito bom, estou realmente emocionado”.
trução da bomba, Jacob Bronowski92, como um Gabriela Mühlbach, estudante de Comunica-
dos artífices das equações que a viabilizaram. ção Digital na Unisinos e ex-estudante de teatro,
Quando ele foi convidado a visitar Nagasáqui, assistiu à peça pela terceira vez. “Acho incrível
logo após o bombardeio, depois do que ele viu, como eles conseguem emocionar com a Física.
questionou-se sobre a missão do cientista: Até que Um texto superdifícil. O tempo todo falam de Físi-
ponto, ultrapassamos os limites da própria ciên- ca e conseguem relacionar isso à vida, às questões
cia? Quais são os limites que ela deve ter? Felicito éticas, à Filosofia”.
o evento por ter acolhido essa peça”.

92 Jacob Bronowski (1908-1974): filósofo e matemático inglês. (Nota da IHU On-Line)

106
Protagonistas de Copenhagen falam sobre a peça

Duas horas antes de a peça entrar em cena, Margarethe Bohr com um olhar crítico, fora da
IHU On-Line conversou com os três atores que discussão desses dois homens. Eles foram lá para
protagonizam Copenhagen: Carlos Palma (Wer- se encontrar e, nesse encontro, houve a ruptura
ner Heisenberg), Oswaldo Mendes (Niels Bohr) e de uma amizade de anos. É um fato histórico. O
Selma Luchesi (Margarethe Bohr). Enquanto teor da conversa é um mistério, porque, a partir
Oswaldo ia arrumando detalhes da cenografia, daí, eles nunca mais se falaram. Margarethe ques-
Selma sentava no piso do palco, do lado de tiona o que esses dois ícones da Física estavam
Oswaldo, para iniciar a conversa, e Carlos testava conversando no momento. É um olhar imaginário
as roupas que usaria como o personagem Werner que tenta encontrar algumas pistas sobre o que
Heisenberg. “Nós somos um casal dinamarquês, e eles podem ter conversado de tão grave”, disse
Carlos é um físico alemão, Werner Heisenberg, Selma.
que vem nos visitar”, explica Oswaldo, resumindo Carlos também destaca, em Copenhagen, a
a trama. O trio vem apresentando Copenhagen, qualidade do texto. “Teatro é essa composição de
que já ganhou diversos prêmios, desde 2001. literatura, cenografia, iluminação. A receita desse
“Acho a peça interessante. O texto é muito bom, espetáculo funcionou, mas o texto é a base de
um dos melhores textos de teatro dos últimos 30 toda peça teatral, e este texto é muito provocante.
ou 40 anos. Está entre os grandes textos da dra- Provoca perturbações nas pessoas de diferentes
maturgia mundial”, comenta Oswaldo. Pergunta- ordens, não só emocional, mas de uma reflexão
do sobre as razões do sucesso, responde como o profunda sobre nossas escolhas. A peça está falan-
fez o autor Michael Frayn. Quando escreveu Co- do de escolhas. Somos responsáveis por nossas
penhagen, Frayn fez um texto muito complexo de escolhas e carregamos as causas e as conseqüên-
três horas de duração, falando de Física Quântica, cias delas”. O intérprete de Heisenberg afirma que
ficção nuclear, princípios da incerteza. Ele achou a peça fala de duas teorias científicas fundamen-
que seria uma peça com uma carreira curta e se tais para a quântica: a complementaridade e a in-
surpreendeu com o sucesso no mundo todo. certeza. “Não importa se não sabemos tecnica-
Quando perguntaram a Michael Frayn sobre o mente sobre isso como platéia, e sim se entende-
sucesso da obra ele respondeu o seguinte: “O pú- mos o conceito na peça, que está entrelaçado com
blico gosta de ser desafiado na sua inteligência, a vida dos personagens: Heisenberg e Bohr.
sensibilidade e emoção, o que este espetáculo Então começamos a pensar sobre nossas incerte-
consegue fazer”. A peça exige do público uma zas. A vida é feita de incertezas. Não podemos
presença ativa intelectual e afetivamente. A pes- achar que tudo é causa e efeito, o acaso também
soa sai muito excitada por causa de todos os te- faz parte da vida”. Para o ator, o princípio da in-
mas levantados na peça. Para Selma, o público certeza de Heisenberg e a complementaridade de
pode vê-la pelo olhar de cada um dos persona- Bohr fazem parte da nossa vida.
gens, as pessoas escolhem a personagem por cujo O elenco de Copenhagen considera que a
olhar vai acompanhar a peça. Ela chama a aten- peça diz muito no contexto do Simpósio Inter-
ção para a participação da mulher de Bohr, Mar- nacional Terra habitável. “Copenhagen discu-
garethe, papel que ela representa. “O autor coloca te o papel da ciência e do conhecimento e da nos-

107
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

sa responsabilidade diante desse planeta com esse personagem, mas não podia parar ali. Então tive a
conhecimento. A própria Margarethe faz este idéia de fazer o projeto Arte Ciência no Palco e
questionamento: “O que vai sobrar, se todo co- trabalhar de maneira sistemática temas da ciência,
nhecimento levar à bomba, à destruição? O que de todas as áreas, mas principalmente as naturais”,
vai ser da Terra, nosso adorado planeta, nossa explica. Segundo o ator, as naturais eram uma te-
casa, que está destruída, mas é nossa casa? A peça mática que o teatro não abordava por achar difi-
discute a responsabilidade e a ética, aborda a culdades em levar ao palco a Química, a Física ou
ciência, que não é neutra, afeta as pessoas e o a Biologia.“ Achei que podia ser importante para
nosso habitat para o bem ou para o mal. Por isso, a sociedade, para o teatro e para nós, atores,
a importância da peça neste evento, unindo-se ao como maneira de trabalho e de sobrevivência.
questionamento sobre a responsabilidade de to- Imediatamente montamos uma peça infantil, de-
dos os cientistas e de todo ser humano”, salienta o pois Copenhagen e hoje temos oito espetáculos
ator. circulando. Vamos a Portugal, onde ficaremos 26
dias, para inaugurar um teatro científico, no qual
faremos quatro espetáculos. Um país que não tem
Um dos grandes textos do século XX conhecimento científico é um país dependente.
Temos que despertar os jovens para a ciência e te-
Os atores afirmam que Copenhagen é um mos que despertar o público leigo, como eu e os
dos grandes textos do século XX e, como todos os outros atores, para a importância da ciência e to-
clássicos é atemporal, mergulha nas profundezas das as implicações dela com o mundo, as regras
da alma humana. “O tempo não atrapalha, ao que devem norteá-la e de que maneira intervir
contrário, como diz Brecht, às vezes, temos que nessas regras”, argumenta Carlos. Segundo ele,
olhar os fatos de longe. O teatro épico de Brecht, entender os fenômenos da natureza leva a uma
do distanciamento, teatro mais político, de cons- maior compreensão da própria vida. “Na hora que
ciência, parte da necessidade de se afastar do fato, sinto que nada sou diante do universo, apenas o
porque se estiver dentro dele, não o vemos”, ex- resultado de uma série de modificações físicas da
plica Oswaldo. Selma lembra que críticos muito natureza do universo, eu vou compreender melhor
conceituados consideram o texto de Copenhagen meu colega e a natureza desse planeta e respeitá-la.
como um grande clássico da dramaturgia, “Esses Assim vou viver mais feliz”, disse o ator.
textos acabam não tendo tempo e espaço, eles re- Atualmente, o núcleo Arte Ciência no Palco
fletem a questão do humano, e o teatro tem essa está integrado por 14 pessoas, entre técnicos e
característica: o central é o ser humano”. atores. O grupo não tem um diretor, optou por di-
versos diretores, de linguagens diferentes para
cada encenação. “O que faz as pessoas se unirem
Projeto Arte Ciência no Palco é o projeto Arte Ciência, não é a figura de um dire-
tor. Agimos assim para ter uma linguagem mais
Carlos Palma foi o criador do Núcleo Arte diversificada”, diz o criador do projeto.
Ciência no Palco. Ele explica que o projeto surgiu A experiência pessoal dos atores, interpre-
com a peça Einstein, um texto canadense, ao qual tando peças científicas, está sendo muito enrique-
ele assistiu no Chile. “Apaixonei-me pelo texto, fui cedora para suas vidas profissional e pessoal.
atrás, comprei os direitos e montei Einstein. Então “Para mim, que nunca mergulhei na área das
conheci, de fato, Einstein e toda a sua preocupação ciências exatas, este texto tão complexo está sen-
pela ética da ciência. Ao ser encenada, notei que a do uma reelaboração da minha vida no sentido de
peça atraía pessoas de diversas áreas. O principal repensar nossa responsabilidade para com esse
ponto de atração era a responsabilidade científica. planeta hoje tão sofrido e baqueado”, explica
Um ano depois, eu tinha ganhado um prêmio pela Selma.

108
Copérnico e Kepler. Como a Terra saiu do centro do universo

Entrevista com Geraldo Monteiro Sigaud

Geraldo Monteiro Sigaud é professor do De- de seu modelo, por permanecer ligado às idéias
partamento de Física da PUC-Rio. Graduado, aristotélicas que ainda prevaleciam durante a Re-
mestre e doutor em Física pela PUC-Rio, é tam- nascença. Foi Kepler, sessenta anos depois, que
bém pós-doutor pelo Institut Für Kerphysik J W percebeu a real dimensão do modelo de Copérni-
Goethe Universität de Frankfurt (Alemanha). co quando abandonou o dogma do movimento
circular uniforme ao enunciar que as órbitas dos
IHU On-Line – Sua palestra, intitulada Co- planetas eram elipses, e não círculos. Isso ocorreu
pérnico e Kepler: Como a Terra saiu do cen- porque Kepler era dotado de um senso de extre-
tro do universo, abriu o Ciclo de Estudos ma precisão e não se conformava com as diferen-
Desafios da Física para o século XXI: uma ças mínimas entre os resultados teóricos do mode-
aventura de Copérnico a Einstein, em 3 de lo de Copérnico e as observações astronômicas
agosto de 2005. Sobre o que, exatamente, o disponíveis. Foram suas três leis que, de fato, “ti-
senhor tratou neste encontro? raram a Terra do centro do universo”, e foi basea-
Geraldo Sigaud – Meu objetivo principal foi do nelas que Newton chegou à Lei da Gravitação
mostrar como o trabalho desses dois astrônomos universal.
contribuiu para a ciência, tal com a conhecemos
hoje, particularmente no que diz respeito à busca IHU On-Line – Em linhas gerais, em que con-
de modelos consistentes, reprodutíveis, e princi- sistia a Teoria Heliocênctrica proposta por
palmente gerais, para descrever fenômenos ob- Copérnico e por que ela incomodou tanto o
servados em um contexto comum. poder instituído? Quais foram os avanços fei-
tos por Kepler em relação a Copérnico?
IHU On-Line – Quais foram as grandes des- Geraldo Sigaud – Durante algum tempo, o mo-
cobertas e proposições feitas pelo matemá- delo heliocêntrico de Copérnico teve muito pou-
tico e astrônomo Nicolau Copérnico e pelo ca repercussão. No entanto, à medida que foi se
astrônomo Johannes Kepler? Em que medi- tornando mais conhecido, o modelo começou a
da elas fizeram “a Terra sair do centro do despertar a ira principalmente dos religiosos pro-
Universo”? testantes – luteranos e calvinistas – sem maiores
Geraldo Sigaud – Copérnico, ao buscar uma manifestações contrárias ao seu trabalho, vindas
descrição mais simples do que a existente na épo- da Igreja Católica. Estas só vieram mais de seten-
ca, baseada essencialmente no trabalho do astrô- ta anos depois, principalmente porque Galileu
nomo grego Ptolomeu, para o movimento dos apoiou e defendeu o modelo heliocêntrico. As ra-
corpos celestes, retomou e aperfeiçoou a idéia he- zões para isso vêm da interpretação da bíblia
liocêntrica que já havia sido proposta por Aristar- com relação a alguns aspectos importantes,
co de Samos dezessete séculos antes. Entretanto, como, por exemplo: se o céu participa do movi-
Copérnico não percebeu o verdadeiro significado mento da Terra, participa de suas imperfeições.

109
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Como então ele pode ser a residência de Deus? apoio da iniciativa privada à pesquisa é ainda
Além disso, a retirada da Terra do centro do uni- muito pequeno.
verso representava uma queda no status do ser
humano criado “à imagem e semelhança de IHU On-Line – Há um certo preconceito
Deus”. contra a Física. O senso comum costuma
taxá-la de hermética, inacessível. É possí-
IHU On-Line – Obras de Stephen Hawking e vel discutir essa ciência numa linguagem
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão com- mais acessível ao grande público?
põem a sua lista de textos para leitura a fim Geraldo Sigaud – É claro que isso é possível!
de aprofundar o assunto que o senhor apre- Este é um trabalho que vem crescendo nos últi-
sentou no Ciclo de Estudos Desafios da Fí- mos anos com os esforços dos divulgadores cientí-
sica. Quais foram as contribuições que am- ficos: pesquisadores e estudiosos como Stephen
bos os pesquisadores oferecem à Física e Hawking e Ronaldo Mourão. Apesar de a Física
qual o motivo que o levou a escolher esses utilizar uma linguagem matemática, com suas
livros como suporte à sua fala? equações e leis, existem outros aspectos impor-
Geraldo Sigaud – Tanto o físico Stephen Haw- tantes a serem abordados. A “tradução” desta lin-
king quanto o astrônomo Ronaldo Mourão são guagem para uma mais acessível, explorando os
pesquisadores extremamente ativos em suas áre- aspectos qualitativos e mais fascinantes desta
as e têm dado contribuições muito importantes. ciência, é um desafio que exige grande esforço,
Eu escolhi livros destes pesquisadores porque am- conhecimento e experiência por parte dos físicos.
bos possuem uma outra característica, bem mais Para contornar essas dificuldades, é muito impor-
rara, que é a de divulgadores da ciência para o pú- tante que este movimento de divulgação, desliga-
blico não-especializado. do da linguagem matemática, esteja presente na
formação dos novos físicos e professores do Ensi-
IHU On-Line – Antigamente, as novas teo- no Médio.
rias físicas causavam furor ao poder institu-
ído, que temia ser questionado e, por isso, IHU On-Line – Como percebe o ensino da
perseguia figuras como Galileu Galilei. Física no Brasil, em nível médio e universi-
Como a Física dialoga com as outras ciênci- tário? Que medidas poderiam ser imple-
as hoje e qual é a sua recepção em termos mentadas a fim de suprir a carência de pro-
governamentais e sociais? Há incentivos fessores nessa área de conhecimento?
para a pesquisa continuar seu desenvolvi- Geraldo Sigaud – O ensino da Física no nível
mento no Brasil? médio contribui muito para a criação do “mito”
Geraldo Sigaud – Há, hoje, uma forte intera- da Física como uma ciência inacessível. Em geral,
ção entre a Física e várias outras ciências, em es- a abordagem da Física no Ensino Médio é muito
pecial a Química e a Biologia. As descobertas árida e abstrata com muitas “fórmulas” e esque-
mais recentes de todas essas ciências levam ne- mas desprovidos de qualquer significado para os
cessariamente à interdisciplinaridade, já que tan- estudantes. Assim, não é surpresa alguma a rejei-
to os conceitos básicos quanto as aplicações es- ção pela Física na escolha de carreira deles. Por-
tão fortemente correlacionados. No Brasil, conti- tanto, como eu já afirmei, é muito importante que
nuamos ainda tendo grande parte do apoio à um trabalho de valorização dos aspectos mais
pesquisa sendo dado pelos governos federal e es- qualitativos da Física comece nas universidades, e
taduais. Diferentemente dos países mais desen- chegue até o Ensino Médio por intermédio de seus
volvidos, como Alemanha e Estados Unidos, o professores.

110
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – O Ano Mundial da Física está a origem da vida na Terra. O primeiro tema tem
sendo comemorado em 2005, alusivo a recebido grande interesse recentemente, princi-
1905, quando Albert Einstein publicou palmente depois da entrada em operação do te-
suas cinco teses revolucionárias. Quais são lescópio espacial Hubble, que tem enviado infor-
os principais desafios ainda não resolvidos mações livres da interferência da atmosfera sobre
por esta ciência? Quais são os grandes te- o universo. Os outros dois estão fortemente rela-
mas hoje em discussão? cionados aos imensos avanços recentes na área
Geraldo Sigaud – Acho que os principais desafi- de biologia e genética, bem como de física atômi-
os estão relacionados essencialmente à busca das ca e molecular, física atmosférica e astrofísica.
origens: a origem do universo, a origem da vida e

111
Da caricatura empirista a uma outra história

Entrevista com Fernando Lang da Silveira

Fernando Lang da Silveira é professor do os cientistas inventam e especulam, a história em-


Departamento de Física da UFRGS. Graduado e pirista se cala sobre as idéias que não se mostra-
mestre em Física pela UFRGS e é doutor em Edu- ram bem sucedidas. Somente as idéias corretas
cação pela PUCRS, com a tese intitulada Uma merecem um lugar nesta história, pois, para quem
epistemologia racional-realista e o ensino da segue o método científico, como poderia incorrer
Física. em erro? Na palestra, apresentarei a caricatura
empirista de três grandes protagonistas das revo-
IHU On-Line – Que aspectos o senhor desta- luções científicas modernas (Galileu) e do século
cará em sua explanação no Ciclo de Estu- XX (Einstein e Bohr)93 e depois contarei uma outra
dos sobre a Física? Como o senhor relacio- história sobre a Teoria da Queda dos Graves, a
nará Galileu, Pisa e plano inclinado com Teoria da Relatividade Restrita e a Teoria do Áto-
Einstein, os experimentos de Michelson- mo de Bohr. Mostrarei que a gênese das suas teo-
Morley; Bohr e os espectros de emissão atô- rias é diferente e muito mais interessante do que a
mica no mesmo encontro? versão conhecida por meio dos livros-texto de Fí-
Fernando Lang – O objetivo principal da minha sica. Os três episódios considerados na palestra
palestra é mostrar que a “história da ciência” que exemplificam que “a epistemologia sem contato
encontramos nos livros-texto de Física é uma cari- com a ciência se torna um esquema vazio. A ciên-
catura de uma história muito rica e complexa. Esta cia sem epistemologia – até o ponto em que se
caricatura está baseada na epistemologia empiris- pode pensar em tal possibilidade – é primitiva e
ta. O empirismo, como concepção sobre o conhe- paralisada” (Einstein).
cimento científico, afirma que os cientistas obtêm
as teorias científicas (leis, princípios, etc.), basea- IHU On-Line – Quais os impactos na histó-
dos na observação, na experimentação, em medi- ria do conhecimento e da humanidade das
das. Ao relatar um episódio de descoberta científi- descobertas da física quântica?
ca, a história da ciência empirista apresenta os da- Fernando Lang – Do ponto de vista epistemoló-
dos, os resultados observacionais/experimentais gico e ontológico, a física quântica se constitui em
com base nos quais o cientista, aplicando as re- uma revolução, revelando que o mundo micros-
gras do método científico, produziu conhecimen- cópico possui propriedades surpreendentes, con-
to. A caricatura empirista distorce e supersimplifi- tra-intuitivas. A nossa intuição macroscópica atri-
ca a história da ciência, omitindo os pressupostos bui aos corpos determinadas propriedades que
extracientíficos, metafísicos sempre presentes na não são aplicáveis aos entes quânticos, pois eles
real atividade científica. Por não reconhecer que parecem não possuir posição e momentum defini-

93 Sobre Einstein e Bohr, conferir a IHU On-Line número 135, de 4 de abril de 2005. (Nota da IHU On-Line)

112
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

dos, além de exibir comportamentos ondulatórios. de fazer isso é, no mínimo, problemática, já que
Assim também a energia de um elétron ligado a nem os físicos possuem um consenso sobre tais
um átomo não pode variar de maneira contínua, conceitos, sobre as questões de interpretação e
mas de forma discreta, quantizada. Estes são al- significado. Essa literatura, de um modo geral,
guns exemplos do que aprendemos com a física peca porque tenta passar a idéia de que, no âmbi-
quântica. As aplicações práticas, tecnológicas da to da física, existe uma única interpretação; a in-
física quântica estão incorporadas ao cotidiano terpretação adotada nesses textos é a interpreta-
sem que a maioria das pessoas tenha consciência ção da Escola de Copenhagen (defendida por
disso. Ao utilizarmos qualquer tecnologia eletrôni- Bohr, Born, Heisenberg94, ...), que está lastreada
ca, como, por exemplo, um aparelho de telefonia em uma filosofia idealista subjetiva, mais especifi-
celular, estamos nos valendo da física quântica. camente, positivista. A interpretação da Escola de
Ou seja, sob qualquer ângulo, a física quântica Copenhagen, forjada no final da década de vinte
tem um enorme impacto no mundo atual. do século passado, coincide e se alimenta da filo-
sofia da ciência que então era predominante: a fi-
IHU On-Line – Como o senhor avalia a pos- losofia positivista do Círculo de Viena95. O mais
sibilidade de aplicação dos conceitos da fí- impressionante é que os representantes das ciên-
sica quântica para outros campos do conhe- cias sociais e humanas que se aventuram nessa ta-
cimento? É possível um debate transdisci- refa de extrapolar os conceitos da física quântica
plinar sobre a física? para outros domínios acreditam que a interpreta-
Fernando Lang – Apesar de todo o sucesso tec- ção de Copenhagen” seja um rompimento com o
nológico da física quântica, nem os físicos conver- positivismo!!
gem quanto às questões de interpretação e signifi-
cado desta nova teoria. É paradigmático o debate IHU On-Line – Em linhas gerais, quais as
sobre a mecânica quântica entre os dois grandes principais divergências nos debates da físi-
cientistas Einstein e Bohr, somente encerrado com ca na atualidade e quais serão seus possíve-
a morte do primeiro. Bohr defendia uma interpre- is reflexos na sociedade?
tação idealista subjetiva, enquanto Einstein era Fernando Lang – Como tentei demonstrar an-
um realista. Atualmente, há diversas interpreta- tes, o debate sobre as questões de interpretação
ções para a física quântica e ninguém pode dizer da física quântica está em aberto mesmo no domí-
que possui a interpretação correta. No domínio nio da física. Na minha opinião, urge que os cien-
das ciências humanas e sociais, prolifera literatura tistas humanos e sociais deixem de procurar na fí-
que tenta extrapolar os conceitos da física quânti- sica a solução para os seus problemas, deixem de
ca para outros domínios. Ora, qualquer tentativa acreditar que a última teoria física iluminará os
seus caminhos.

94 Werner Heisenberg: físico alemão encarregado do programa nuclear de Hitler. Durante o Simpósio Internacional Terra
Habitável: um desafio da humanidade, realizado na Unisinos em maio deste ano, foi apresentada a peça teatral
Copenhagen, que teve como temas centrais a questão nuclear, a ética e a responsabilidade dos cientistas, remetendo-se a um
misterioso encontro, em 1941, entre os pais da física quântica, Niels Bohr e Werner Heisenberg. (Nota da IHU On-Line)
95 Círculo de Viena: movimento filosófico iniciado nas duas primeiras décadas do século XX, responsável pela criação uma

corrente de pensamento intitulada positivismo lógico. Este movimento surgiu na Áustria, como reação à filosofia idealista e
especulativa que prevalecia nas universidades alemãs. (Nota da IHU On-Line)

113
Investigar fenômenos, utilizando abstrações matemáticas

Entrevista com Ney Lemke

Ney Lemke é professor do Programa Inter- do métodos matemáticos rigorosos; comparação


disciplinar de Computação Aplicada da Unisinos. das predições com experimentos e observações
É graduado, mestre e doutor em Física pela quantitativas.
UFRGS. No dia 3 de novembro de 2004, durante o
evento Abrindo o Livro, o professor Ney apre- IHU On-Line – Quais as diferenças entre
sentou a obra The Computational Beauty of Cosmologia e Astronomia?
Nature: Computer Explorations of Fractals, Ney Lemke – Astronomia é a ciência que estuda
Chaos, Complex Systems and Adaptation, os corpos celestes e engloba tanto aspectos teóri-
de G. W. Flake. Cambridge: The MIT Press, 2000. cos como observacionais. A Cosmologia é voltada
Sobre ela, concedeu uma entrevista à IHU ao estudo de todo o universo, enfatizando a mo-
On-Line, publicada na matéria de capa da 120ª delagem matemática.
edição, de 25 de outubro de 2004. Ele também foi
o responsável por apresentar o tema Bioinformáti- IHU On-Line – A cosmologia de Newton
ca: uma nova perspectiva para compreender a pressupunha elementos isolados articula-
vida no evento IHU Idéias, do dia 28 de outubro dos em sistemas graças à ação de certas for-
de 2004. A IHU On-Line entrevistou o professor ças naturais. Quais as conseqüências da
Ney Lemke na 69ª edição, de 4 de agosto de perda implicada por essa fragmentação do
2003, sobre as possibilidades dos softwares livres mundo, por essa ênfase na segmentação
e sua compatibilidade com os comerciais. Tam- dos elementos constitutivos de todos os
bém publicamos, na editoria Livro da Semana, da entes?
edição número 130, de 28 de fevereiro de 2005, a Ney Lemke – A cosmologia de Newton, ou seja,
resenha escrita pelo professor Dr. Ney Lemke do a visão de mundo do ser humano Isaac Newton,
livro A vida do cosmos, de Lee Smolin. não era fragmentada. Ele era um homem profun-
damente religioso e sua visão de mundo incluía
IHU On-Line – Quais as maiores contribui- um ser onisciente e onipotente que regia o cos-
ções de Newton à Física moderna? Que re- mos. Mas, de fato, ele acreditava na idéia de que o
voluções causadas por suas descobertas o cosmos é formado por átomos que interagem me-
senhor destacaria? diante forças. Para os mecanicistas, como Descar-
Ney Lemke – As contribuições de Newton per- tes, estas forças deveriam ser forças de contato.
passam todas as áreas da Física e muitas áreas da Newton se deparou com um problema que ele
Matemática. Entre elas, podemos destacar as nunca conseguiu resolver de forma satisfatória, a
Leis de Newton e a Gravitação Universal. A con- gravitação aparentemente agia à distância e pres-
tribuição mais relevante e perene de Newton, no cindia de qualquer agente físico. Nesta atitude de
entanto, se refere ao método que desenvolveu Newton, encontramos um traço que torna sua
para propor e testar suas teorias, que, em linhas ciência a nossa ciência contemporânea, ou seja, a
gerais, pode ser resumido em: criação de mode- capacidade de investigar fenômenos que não con-
los matemáticos; resolução dos modelos, utilizan- seguimos entender de forma intuitiva, utilizando

114
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

abstrações matemáticas. Eu considero difícil falar car alguns dos problemas que Newton não conse-
das perdas que tal perspectiva acarretou, pois do guiu atacar. O mais crítico deles é que Einstein con-
ponto de vista moderno, a Física desenvolvida por segue propor uma base mecânica para a gravita-
outras abordagens, como a aristotélica, possui um ção universal e abandonar a idéia de ação à distân-
impacto insignificante no pensamento moderno. cia (que era desagradável ao próprio Newton).

IHU On-Line – A física newtoniana pressu- IHU On-Line – Sobre quais físicos Newton
punha essencialmente o movimento e visa- exerceu maior influência?
va a ele, mas um movimento que se expres- Ney Lemke – A evolução da Física passa neces-
sava, sobretudo, como uma temporalidade sariamente por Newton. Nenhuma idéia na Física
reversível, típica do pensamento físico-ma- pós-newtoniana está desconectada do pensamen-
temático. Como é possível aplicar isso de to de Newton. Mesmo a Mecânica Quântica está
forma prática? alicerçada no método de Newton.
Ney Lemke – As aplicações desta abordagem in-
cluem praticamente todos os avanços tecnológi- IHU On-Line – Qual a importância que o
cos obtidos desde então, incluindo de forma direta senhor vê em um debate sobre os desa-
as viagens interplanetárias, a decodificação do fios da Física para o século XXI em uma
DNA, a invenção da televisão, etc. universidade?
Ney Lemke – Os avanços da Física pautaram os
IHU On-Line – Qual a relação entre a cos- avanços tecnológicos da humanidade nos últimos
mologia newtoniana e a Teoria da Gravita- três séculos. Talvez no século XXI, este papel pos-
ção clássica de Newton? sa ser desempenhado pela Biologia. Mas, de qual-
Ney Lemke – A teoria da gravitação de Newton é quer forma, a Física continuará a ser vital para
um dos elementos de sua Cosmologia, mas deve- compreendermos a nossa sociedade e antever o
mos incluir outros, como o espaço e tempo abso- impacto que as novas tecnologias possam causar
lutos, a cronologia bíblica, a influência de Deus na nela.
organização e criação do cosmo.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais
IHU On-Line – E qual a relação da cosmolo- algum comentário sobre o tema?
gia de Newton com a cosmologia relativista Ney Lemke – Eu gostaria de acrescentar que,
de Einstein? pela minha experiência, as pessoas, em geral, têm
Ney Lemke – Einstein retoma muitas das ques- uma visão bastante equivocada da figura humana
tões levantadas por Newton, em especial, a equi- Isaac Newton e de sua visão de mundo. A trajetó-
valência entre a massa gravitacional (proveniente ria de Newton é espetacular e inclui muitos aspec-
da Lei da Gravitação Universal) e inercial (originá- tos surpreendentes, como, por exemplo, sua pai-
ria da lei de Newton) e a discussão do espaço tem- xão por alquimia e suas disputas viscerais com
po absoluto. Na verdade, Einstein consegue ata- Hooke.

115
O “xeque-mate” de genialidade do jovem Einstein. Como separar
o caráter quântico da teoria quântica que busca descrevê-lo

Entrevista com Enio Frota da Silveira

Enio Frota da Silveira é professor do Depar- Relatividade: as leis físicas são iguais nos sistemas
tamento de Física da PUC-Rio. Mestre em Física com velocidade constante. Foi sobre este princípio
pela PUC-Rio, é doutor em Física pela Université que Einstein ergueu sua Teoria da Relatividade. O
Paris Sud (França) e pós-doutor pela Texas A M segundo, Isaac Newton, autor do Principia Mat-
University (Estados Unidos). hematica Philosophie Naturalis, atrelou defi-
nitivamente a Física à Matemática, enunciou as
IHU On-Line – Colocamos em discussão as Leis da Gravitação Universal, da Ação e Reação e
descobertas que viabilizaram o desenvolvi- estabeleceu a importante relação entre massa, for-
mento e aprofundamento do conhecimento ça e aceleração. Defendeu a hipótese de que: 1) a
da Física e sua aplicação em diferentes luz seria formada por partículas – idéia que foi aper-
áreas. Como as vidas e as obras científicas feiçoada por Einstein e que revelou a existência dos
dos personagens que influenciaram o traba- quanta de luz – e 2) o tempo e a simultaneidade de
lho, a vida e a obra de Einstein podem con- eventos são absolutos – consideração que foi ataca-
tribuir para isso? da por Einstein na sua Teoria da Relatividade. Max-
Enio Frota – Segundo Einstein, os quatro cientistas well é o arquiteto do eletromagnetismo e o sintetiza
que mais influenciaram seus trabalhos foram Galileu em quatro equações. Deduz dela que a velocidade
(1564-1642)96, Newton (1642-1727)97, Maxwell das ondas eletromagnéticas (em particular a luz) é
(1831-1879)98 e Lorentz (1853-1928)99. O primei- finita e calcula seu valor. Einstein concilia idéias apa-
ro, autor do livro Diálogo sobre duas novas rentemente contraditórias sobre a natureza da luz e
ciências, reformulou os conceitos de força e movi- propõe que ela seja uma onda localizada no espa-
mento, a Lei da Inércia e enunciou o Princípio da ço. Lorentz, contemporâneo de Einstein, combina

96 Galileu Galilei (1564-1642): grande astrônomo italiano e o primeiro grande físico da Renascença. Fez descobertas
fundamentais no campo da Física e da Astronomia, revolucionando a ciência da sua época. Considerado o primeiro grande
gênio da ciência moderna, valorizou a técnica e a experimentação. (Nota da IHU On-Line)
97 Isaac Newton (1642-1727): físico, astrônomo e matemático inglês. Revelou como o universo se mantém unido por sua Teoria

da Gravitação, descobriu os segredos da luz e das cores e criou um ramo da Matemática, o cálculo infinitesimal. Essas
descobertas foram realizadas por Newton em um intervalo de apenas 18 meses, entre os anos de 1665 e 1667. É considerado
um dos maiores nomes na história do pensamento humano, por causa da sua grande contribuição à Matemática, à Física e à
Astronomia. (Nota da IHU On-Line)
98 James Clerk Maxwell (1831-1879): cientista inglês e um dos maiores matemáticos e físicos do século XIX. Sua enorme fama

deve-se aos estudos de eletricidade em movimento e à Teoria Cinética dos Gases. Foi um grande físico experimental e teórico.
Sua obra mais conhecida é o Tratado de eletricidade e magnetismo, publicado em 1873, e reconhecido atualmente como
o fundamento da Teoria Eletromagnética. (Nota da IHU On-Line)
99 Hendrik Antoon Lorentz (1853-1928): físico holandês, que se tornou conhecido por sua Teoria Eletrônica da Matéria.

Compartilhou o prêmio Nobel de Física de 1902 com o físico holandês Pieter Zeeman pela descoberta dos efeitos do
magnetismo sobre a luz (efeito Zeeman). (Nota da IHU On-Line)

116
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

as Leis de Newton e as Leis de Maxwell para deter- IHU On-Line – Como Einstein aparece nas
minar o movimento dos elétrons nos átomos. Foi o novas descobertas físicas, como a computa-
precursor da idéia de que o tempo não é absoluto e ção quântica?
depende da velocidade do observador. Enio Frota – O físico Richard Feynman102 conce-
beu a computação quântica, que permitiria a rea-
IHU On-Line – Einstein foi um marco, um lização de um computador extremamente rápido
divisor de águas para a Física. Que caracte- e pequeno, de dimensões da escala atômica. Uma
rísticas de sua personalidade e da história possibilidade seria o uso do spin do elétron como
de sua vida podem ajudar a entender como bit na representação de números, o qual está suje-
ele, um cientista tão jovem e inexperiente, ito às leis da Mecânica Quântica. Ao contrário do
com 26 anos, pôde ter elaborado cinco arti- que aconteceu na Teoria da Relatividade, não
gos que mudaram a forma de ver o mundo vejo como central o papel de Einstein nesta ques-
em apenas um ano (1905)? tão. Sua contribuição ocorreu indiretamente, por
Enio Frota – O momento em que Einstein come- meio de trabalhos sobre mecânica estatística dos
çou sua vida profissional foi caracterizado por sistemas microscópicos, como o de 1905 sobre o
uma revolução científica. A visão do universo mu- movimento browniano.
dava. Os átomos e as galáxias estavam sendo des-
cobertos, assim como os elétrons, os raios-X, a ra- IHU On-Line – Por que razão a ciência pura
dioatividade... Encontraram-se evidências con- de Einstein ultrapassou os portões da aca-
cretas de que o famoso éter não existia. Planck100 demia e foi incorporada ao vocabulário das
lançara a idéia dos quanta. Lorentz e Poincaré101 pessoas comuns, ajudando a moldar a cul-
começavam a destrinchar o enigma das observa- tura popular?
ções de fenômenos físicos feitas por observadores Enio Frota – Idéias como a aniquilação da maté-
em velocidades diferentes. O jovem Einstein, com ria, transformado-a em energia, e a dedução de
sua genialidade, deu um “xeque-mate” em vários que o tempo não é absoluto disparam a imagi-
problemas da época. nação de cientistas e de leigos. Armas superpo-
derosas foram construídas e viagens fantásticas
IHU On-Line – Que decorrências, na teoria e intergaláticas ou no tempo são cogitadas. Filmes
na prática cotidiana das descobertas de como Guerra nas Estrelas ou os de James Bond
Einstein, o senhor destacaria? assumem ar de verossimilhança e são sucesso
Enio Frota – Suas descobertas geraram muitas mundial.
aplicações importantes, entre as quais destaco
duas: o entendimento da transformação de maté- IHU On-Line – Que relações podem ser esta-
ria em energia permitiu a construção de centrais belecidas entre a física de Isaac Newton e a
nucleares, e o conceito de emissão estimulada de física de Einstein?
luz levou à construção do laser. Enio Frota – A física de Isaac Newton é a do
dia-a-dia, chegando até mesmo a ser válida na es-

100 Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858-1947): físico teórico alemão. Dedicou-se ao estudo da termodinâmica. O fenômeno de
absorção e emissão de energia radiante o atraía muito. Em 1900, Planck propôs a Lei da Radiação, estabelecendo os
fundamentos para o desenvolvimento da Teoria Quântica. Esta nova teoria revolucionou a Física. Em 1918, Planck foi
agraciado com o prêmio Nobel de Física por suas realizações sobre a radiação do corpo negro. (Nota da IHU On-Line)
101 Jules Henri Poincaré (1854-1912): cientista francês. Foi um dos maiores matemáticos dos tempos modernos. Utilizando a

Matemática como instrumento, fez também pesquisas em diversas outras áreas, como eletricidade, luz e movimentos dos
planetas. Escreveu vários livros e ensaios sobre a filosofia da ciência. Seus livros mais famosos são Ciência e hipótese
(1902), O valor da ciência (1909) e Ciência e método (1909). (Nota da IHU On-Line)
102 Richard Feynman (1918-1988): físico norte-americano. Ganhou o Prêmio Nobel de 1965 por sua teoria das interações entre

os elétrons e os fótons (Eletrodinâmica Quântica). (Nota da IHU On-Line)

117
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

cala planetária. Ela resolve a esmagadora maioria maior poder de computação. Para levar a cabo
dos problemas de mecânica da escala humana, essa operação, é necessário, em particular, um
aqueles relacionados com a engenharia conven- exército de pesquisadores experimentais e teóri-
cional. A física de Einstein é a das altíssimas velo- cos, com boa formação, capazes de interagir com
cidades (próximas à da luz) ou das massas imen- profissionais de áreas afins. A sociedade continua-
sas (como a das estrelas). Nestas condições, a me- rá a receber os frutos dos empreendimentos que
cânica newtoniana falha. financia, seja na forma de respostas a perguntas
do tipo: de onde viemos? como somos feitos?
IHU On-Line – Como o senhor avalia a pos- onde estamos? Etc. ou na forma de ferramentas
sibilidade de aplicação dos conceitos da Fí- capazes de melhorar nossa qualidade de vida ou
sica Quântica para outros campos do co- como impedir que um cometa nos destrua.
nhecimento? É possível um debate transdis-
ciplinar sobre a Física? IHU On-Line – Qual a importância que o
Enio Frota – Possível é, e deve ser tentado. senhor vê em um debate sobre os desafios
Ambos os lados podem lucrar com esta discussão. da Física para o século XXI em uma
O exercício deve ser feito com cautela, entretanto. universidade?
Alguns dos conceitos envolvidos são extrema- Enio Frota – A importância da universidade nes-
mente abstratos, e a Matemática aparece como te processo é formar adequadamente novos pen-
apoio indispensável no seu tratamento. Levar es- sadores, assim como professores, pesquisadores e
tes conceitos para um terreno em que a Matemáti- alunos, gerando novas idéias e desenvolvendo
ca entra de forma limitada pode não ser frutuoso. projetos de mérito.
Um exemplo típico em que um conceito físico
pode aparecer em outra área é o Principio da IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais
Incerteza de Heisenberg103, que estabelece limites algum comentário sobre o tema?
para nosso conhecimento, isto é, em certas cir- Enio Frota – Desvendando boa parte dos
cunstâncias, não há progresso tecnológico possí- fenômenos atômico-moleculares, o homem dis-
vel que permita melhorar a precisão de observa- põe, hoje, de conhecimento e de tecnologia para
ções. Para materializar o conceito: os microscópios atacar problemas complexos. Não desprezando o
óticos são cada vez melhores, mas nunca poderão que aprenderemos no “muito pequeno” e “no
nos mostrar vírus ou objetos menores. muito grande”, tenho a convicção de o século XXI
será marcado pelo grande desenvolvimento cien-
IHU On-Line – Em linhas gerais, quais as tífico na área bio. A Física, atuando com novas
principais divergências nos debates da Físi- abordagens, novos conceitos, instrumentação mais
ca na atualidade e quais serão seus possíveis poderosa, estará sempre presente nesta área.
reflexos na sociedade?
Enio Frota – A Física avança para o muito gran- IHU On-Line – A física vem se revelando um
de (Astrofísica), o muito pequeno (partículas ele- dos mais fascinantes campos do conheci-
mentares) e o muito complexo (plasmas, nano- mento humano. Entretanto, ela parece des-
ciência104, biofísica, por exemplo). Os instrumen- pertar pouco interesse entre os jovens estu-
tos de pesquisa são cada vez maiores, mais com- dantes. Quais as razões desse afastamento,
plexos, mais eficientes e requerem mais energia e na sua opinião? Ele tem diminuído? Quais

103 O princípio de indeterminação ou princípio da incerteza foi desenvolvido pelo físico alemão Werner Heinsenberg (1901-1976),
que se celebrizou por seus estudos de física nuclear teórica. Esse princípio estabelece que é impossível determinar, com alta
precisão, simultaneamente, a posição, a velocidade e a energia de um elétron em movimento. (Nota da IHU On-Line)
104 A revista IHU On-Line número 120, de 25 de outubro de 2004, dedicou sua matéria de capa ao tema das nanotecnologias.

Sítio www.unisinos.br/ihu (Nota da IHU On-Line)

118
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

os aperfeiçoamentos que o ensino da Física derno. Não é por acaso que tem crescido o inte-
está a exigir? resse pela biofísica.
Enio Frota da Silveira – Concordo obviamente
com a afirmação. A física, nos três últimos séculos, IHU On-Line – Entre os aperfeiçoamentos
tem sido uma das molas mestras do progresso cien- referidos na questão anterior, estaria uma
tífico, revelando-nos como é o mundo em que vi- aproximação com a filosofia? Qual é a sua
vemos e fornecendo uma infra-estrutura para o opinião sobre a aplicação dos conceitos
desenvolvimento de outras disciplinas. Sem a físi- quânticos em outros campos do conheci-
ca, os computadores não passariam de ábacos e mento humano?
as telecomunicações por rádio não existiriam. Foi Enio Frota da Silveira – A física básica sempre
também graças a ela que sabemos hoje que o Uni- esteve próxima da filosofia. Temas como o geo-
verso está em expansão há 14 bilhões de anos. De centrismo e a teoria atômica de Demócrito105 ge-
descobertas da física surgiram aparelhos ou técni- raram debates intensos entre físicos e filósofos. A
cas como os raios-X, os lasers, as microondas e a teoria da relatividade e a física quântica continuam
ultra-sonografia, que modificaram profundamen- promovendo discussões entre eles. A aplicação
te a medicina moderna e a telefonia. É quase in- dos conceitos quânticos em outros campos do co-
concebível imaginar a sociedade atual sem o be- nhecimento é tentadora no sentido revolucioná-
nefício de tais avanços tecnológicos. Descobrimos rio, quebrando paradigmas com conceitos clássi-
também que a vida teve início na Terra há quase cos. Um desses conceitos é o Princípio da Incerte-
quatro bilhões de anos e que muito dificilmente za, que postula para determinadas circunstâncias
entraremos em contacto com seres extraterrestres. que a informação possível de ser obtida é limitada
Tais informações “cosmológicas” transcendem a por “princípio”, isto é, ao atingir um certo limite,
própria física e invadem campos como filosofia, não adianta usar um aparelho mais caro ou sofisti-
teologia, antropologia e paleontologia. Quanto à cado, trocar de método, etc. que nunca podere-
redução do interesse pela física entre os jovens, mos aumentar nosso grau de informação. Quanto
seria conveniente perguntar a eles a razão. De mais conhecimento conseguimos sobre uma gran-
qualquer forma, acho que este comportamento é deza, menos sabemos sobre uma outra associada.
mais amplo e profundo, pois inclui a matemática, Esta idéia tem sido estendida a outras áreas, mas
a química e, de certa forma, também as engenha- talvez deva ser apenas em um sentido metafórico.
rias. A sociedade moderna desfruta de muito con-
forto e vemos que freqüentemente as inovações IHU On-Line – Quais são os principais pro-
tecnológicas visam ao consumismo. Pode ser, blemas teóricos enfrentados pela física nes-
então, que muitos jovens julguem que tudo já es- te começo de século? O que, por assim di-
teja inventado e não se sintam motivados ao es- zer, falta “resolver”?
tudo das ciências exatas. Há uma visível fuga do Enio Frota da Silveira – Em linhas gerais, a pes-
tecnológico, ao contrário do movimento das dé- quisa hoje em física está direcionada para o muito
cadas 1950-70. Essa tendência apresenta um grande (cosmologia), para o muito pequeno (par-
grande desafio aos professores. Realizações tículas elementares) e para o muito complexo (de-
como o Museu de Ciência da PUC-RS buscam mais áreas da física). Por exemplo, gostaríamos de
aproximar o público, principalmente o jovem, saber “como” o universo se expande, “como” os
das ciências exatas e tecnológicas. Como em par- quarks interagem e “como” milhões de átomos se
te as necessidades ditam as investigações, talvez reúnem para formar um DNA. Outro problema a
uma forma de motivá-lo seja realçar, no ensino resolver: todos os fenômenos físicos que conhece-
da Física, as questões que afligem o homem mo- mos e que estudamos, podem ser explicados por

105 Demócrito de Abdera (480aC-380aC), filósofo grego que acreditava que tudo estava predeterminado por ser resultado de um
simples jogo de causa e efeito entre os átomos (Nota da IHU On-Line).

119
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

quatro tipos fundamentais de força: a gravitacio- “teoria” quântica que busca descrevê-lo. É um
nal, a elétrica, a nuclear e uma denominada de fato que a natureza é quântica no mundo micros-
fraca. Um grande problema teórico é a unificação cópico. Uma prova disso é que todos os elétrons
dessas quatro interações. ou prótons são absolutamente iguais (indistinguí-
veis) enquanto que asteróides, planetas ou estre-
IHU On-Line – Pode-se dizer que a física las são todos diferentes uns dos outros; outra pro-
quântica nos revelou a existência de um va “visível” do comportamento quântico (não
mundo impossível de apreender objetiva- contínuo) da natureza é que as luzes de algumas
mente? Se assim é, como se pode lidar obje- lâmpadas amarelas, usadas na iluminação pública
tivamente com uma sucessão de fenômenos podem ter intensidades diferentes, mas têm exata-
não-objetivos? mente a mesma cor. Esses fenômenos são bem
Enio Frota da Silveira – Talvez as idéias que te- objetivos. Por outro lado, a teoria que temos para
mos sobre física quântica fiquem mais tangíveis se descrevê-los é tremendamente abstrata. Mas isso
separarmos o “caráter” quântico da natureza da é outra estória...

120
O universo de Einstein

Entrevista com Horácio Alberto Dottori

Horácio Alberto Dottori é graduado em Horácio Dottori – Não conheço, mesmo que
Astronomia pela Universidad Nacional de Córdo- Einstein tenha refletido uma década sobre a TRR.
ba, Argentina, e especialista no mesmo assunto pelo Resulta, porém, impossível de serem enumeradas
Max Planck Institut Fur Physik And Astrophysik, as contribuições. Se pudesse sintetizar em duas
Alemanha. É doutor em Física pela UFRGS, com a palavras seria uma “crítica acertada ao comporta-
tese Espectro de Absorção, Contínuo Óptico e mento da luz”, que levou à unidade dos conceitos
Avermelhamento em Núcleos Normais e Ativos de de espaço e de tempo. Daqui saem milhares de
Galáxias. Fez três pós-doutorados: na Royal resultados.
Greenwich Observatory, Inglaterra; no Centre
National de la Recherche Scientifique, CNRS, IHU On-Line – De que modo as descobertas
França; na Ruhr Universitat Bochum, RU-BO, Ale- de Einstein contribuem para um novo en-
manha. Atualmente é vice-coordenador do tendimento do Universo?
Observatório Educativo Itinerante, coordenador Horácio Dottori – Aqui de novo se aprofunda a
do grupo de Dinâmica de Sistemas Estelares e crítica ao comportamento da luz. O nascimento da
professor do Departamento de Astronomia dessa Teoria da Relatividade Geral parte da crítica ao
universidade. comportamento dos fótons num campo gravita-
cional e como o fóton é afetado pelo campo. Não
IHU On-Line – Quais são os maiores equívo- é que essa idéia fosse nova. Ela já tinha sido esbo-
cos ligados à imagem de Einstein? çada 100 ou mais anos antes, já que na fórmula
Horácio Dottori – Não conheço equívocos. Pro- da aceleração newtoniana não entre a massa da
vavelmente a transformação dele num mito seja partícula acelerada, mas somente a da acelerante,
contraproducente ao desenvolvimento da ciência, portanto um fóton também poderia ser acelerado
embora seja um dos gigantes das ciências. no campo gravitacional. Todavia o limite do mó-
dulo da velocidade da luz da Relatividade Restrita
IHU On-Line – Acredita que a figura de Eins- se mantém na RG, e o fóton é afetado de duas
tein ajude a despertar o interesse das novas maneiras: 1) o campo gravitacional curva a sua
gerações pela Física? trajetória (órbita) e 2) o campo muda a energia do
Horácio Dottori – Eu espero que sim, embora o fóton.
ideal da juventude seja moldado em figuras às ve-
zes antagônicas à de Einstein. IHU On-Line – Quais os aspectos que a
Astronomia mais aproveita das descobertas
IHU On-Line – Einstein refletiu uma década de Einstein?
sobre a Teoria da Relatividade Restrita. Horácio Dottori – Existem inúmeros. Um exem-
Quais são as principais contribuições dessa plo: se observamos uma fonte luminosa (por
teoria? exemplo um Quasar, uma supernova etc.) que se

121
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

movimenta a uma grande velocidade em relação amigo Aníbal Damasceno). Paralelamente, la-
a nós (por exemplo 299.000 km/seg), cuja luz va- mentar a pequenez desta fase da evolução do uni-
ria no nosso relógio com um dado período, sabe- verso à que chamamos consciência, que, na sua li-
mos calcular qual é o período de variação num re- mitação, pode chegar a autodestruir-se, ou acabar
lógio instalado no objeto em questão. Dessa for- com o seu habitat.
ma, podemos compará-los com objetos seme-
lhantes vizinhos da nossa galáxia. IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais
algum aspecto que aqui não abordamos?
IHU On-Line – O que seria mais importante Horácio Dottori – Talvez o desafio das próxi-
comemorar em 2005, Ano Mundial da Física? mas décadas seja salvar o meio ambiente. Isso é
Horácio Dottori – O método científico como paradoxal, pois provavelmente saibamos o que
forma de conhecimento, a regularidade dos fenô- deveria ser feito para compensar a agressão que
menos naturais que faz possível o seu estudo e o ele está sofrendo, mas não tenhamos a menor
estabelecimento de leis (imagine se, de pronto, a possibilidade de implementá-lo. Não sei se isso
assistíssemos um porco voando, como diz o meu tem a ver com Einstein, mas definitivamente tem a
ver com um sistema físico, que é o nosso habitat.

122
A Onipresença transformadora dos princípios quânticos:
desafios e possibilidades

Entrevista com Fernando Haas

Fernando Haas é graduado, mestre e doutor tação quântica, até agora restrita a simulacros de
em Física pela UFRGS, com a tese Sistemas de computadores quânticos, dispondo de um poder
Ermakoy Generalizados, Simetrias e Inva- de cálculo muito pequeno. Para funcionar ade-
riantes. Fez pós-doutorado na Université Henri quadamente, um computador quântico precisa de
Poincaré, UHP, França. um alto grau de isolamento do mundo externo, e é
isso que tem travado a fabricação destas máqui-
IHU On-Line – Em linhas gerais, o que é a nas. Outros desafios envolvem a criação de novos
computação quântica e qual o contexto no algoritmos quânticos, o que exige pensar de acor-
qual surgiu? do com as normas da física quântica. Isso não é fá-
Fernando Haas – A computação quântica é a cil porque estamos acostumados a pensar de acor-
arte de processar informação, utilizando regras da do com uma intuição que vem da nossa experiên-
física quântica, em contraposição à computação cia do dia-a-dia, a qual é uma experiência basea-
clássica, que é a arte de processar informação, da na física clássica.
usando as regras da física clássica. Afora por al-
guns trabalhos pioneiros, a computação quântica IHU On-Line – Quais as diferenças entre fa-
tem sido desenvolvida mais fortemente nos últi- zer computação do modo tradicional e con-
mos dez anos. Isso se deve ao descobrimento de forme as regras quânticas?
certos problemas que podem ser resolvidos ade- Fernando Haas – A computação clássica funcio-
quadamente por computadores quânticos e que na em termos de objetos exclusivistas. Ou zero, ou
não podem, aparentemente, ser resolvidos eficien- um; ou sim, ou não; ou cara, ou coroa; ou colora-
temente nem mesmo pelo melhor supercomputa- do, ou gremista, e assim por diante. A unidade bá-
dor disponível hoje. Além disso, vemos um au- sica da informação clássica é o bit, o qual pode
mento de nossa capacidade de manipular siste- adotar os valores zero ou um. Já a computação
mas microscópicos, como na nanotecnologia. quântica não necessita desta lógica exclusivista,
Estes desenvolvimentos nos dão a esperança de de modo que os objetos básicos da computação
que seja possível fabricar, na prática, computado- quântica sobrevivem como uma superposição de
res quânticos de grande poder de processamento. dois estados. Por exemplo, seria como se uma
moeda pudesse assumir simultaneamente os esta-
IHU On-Line – Quais são os principais desa- dos cara e coroa. Outro aspecto que só existe na
fios da computação quântica para o século computação quântica é uma forte correlação en-
XXI? tre sistemas que estão distantes no espaço. Isso se
Fernando Haas – O desafio principal é criar es- verifica, por exemplo, no fenômeno do teletrans-
tratégias para fazer funcionar na prática a compu- porte, que envolve a transmissão de informação à

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

distância e sem necessidade de nenhum intermediá- sabe, está no arcabouço da teoria da computação
rio como uma onda de rádio ou algo semelhante. e não da física. Espera-se que a colaboração entre
físicos e informatas brasileiros permita ao País
IHU On-Line – Em quais aplicações a com- competir com um mínimo de dignidade nesta área
putação quântica é hoje mais utilizada? que pode até se tornar central na economia mun-
Fernando Haas – Como ainda não dispomos de dial. Quem sabe, sendo otimistas, seja possível
computadores quânticos com grande capacidade contar com maior apoio governamental e de gran-
de processamento, muitas das aplicações imagi- des empresas de informática para pesquisas na
nadas ainda não se concretizaram. Este é o caso, área no Brasil.
por exemplo, do uso de algoritmos quânticos para
quebrar os esquemas de criptografia mais usados IHU On-Line – Que relações podem ser esta-
atualmente. Só para explicar um pouco, cripto- belecidas entre a física quântica e a compu-
grafia é a arte de enviar mensagens em código. tação quântica?
Por exemplo, na hora de enviar uma informação Fernando Haas – Na medida em que as regras
secreta pela Internet (como uma senha de banco), do jogo na computação quântica são regras quân-
se utiliza um esquema de criptografia. Pode-se de- ticas, não faz sentido conceber uma computação
monstrar que mesmo o melhor supercomputador quântica sem a física quântica. Entretanto, indo
atual levaria bilhões de anos para quebrar o es- além desta observação meio óbvia, a computação
quema criptográfico (RSA), que é o mais freqüen- quântica, de certa forma nos ajudou a entender de
temente utilizado. Um computador quântico de modo diferente a própria física quântica. De fato,
médio porte, entretanto, levaria um tempo muito podemos imaginar que a natureza é um grande
mais acessível. Por isso, há tanto interesse por par- computador, transformando continuamente o
te dos departamentos de defesa pelo mundo afora presente no futuro. Já que atualmente a teoria
em desenvolver a computação quântica. Por ou- aceita para o mundo natural é a física quântica,
tro lado, concretamente, já existem alguns esque- podemos interpretar nosso universo como um
mas para transmissão segura de informação, invi- computador quântico, processando informação,
olável a espiões. Estes esquemas se baseiam na te- usando regras quânticas.
oria da informação quântica e já estão sendo
comercializados. IHU On-Line – De que forma a computação
quântica pode auxiliar na pesquisa a respei-
IHU On-Line – Qual é a situação brasileira to da consciência e inteligência artificial?
sobre a pesquisa voltada à computação Fernando Haas – Uma das questões básicas da
quântica? inteligência artificial é responder se seria possível
Fernando Haas – Temos pesquisas de projeção construir uma máquina com os atributos de um
internacional, como no caso do grupo liderado ser inteligente. Esta máquina haveria de ter capa-
pelo professor Luiz Davidovich, do instituto de fí- cidade de escolha autônoma, consciência e assim
sica da UFRJ. Trata-se, mais propriamente, de por diante, embora não seja evidente o que cha-
pesquisa sobre informação quântica, envolvendo mamos de “inteligência”. Caso esta máquina fun-
fenômenos tais como o teletransporte, incluindo cionasse seguindo as regras da física clássica, é de
avanços teóricos e experimentais. No entanto, aos se imaginar que os algoritmos envolvidos no seu
poucos os departamentos de computação brasilei- processamento haveriam de ser tenebrosamente
ros estão despertando para a nova realidade, ti- complicados. Da complexidade emergiria a inteli-
rando dos departamentos de física a exclusividade gência. Entretanto, é de se questionar se uma má-
no assunto. Por exemplo, o Laboratório Nacional quina determinista poderia ser chamada de “inte-
de Computação Científica, no Rio de Janeiro, ligente”, e este questionamento seria extensível a
conta com um grupo de pesquisas sobre algorit- nossa própria inteligência como seres humanos.
mos quânticos. A teoria dos algoritmos, como se Para os computadores quânticos, há mais espaço

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

para pensar em coisas diferentes, já que as regras vador. Esta visão se opõe àquela advogada por
quânticas não são totalmente deterministas. Em Einstein e outros, denominada visão realista, que
particular, faz mais sentido imaginar que exista li- acredita na existência de uma natureza indepen-
vre-arbítrio num universo quântico, que não é um dente de se fazer ou não experiências, buscando
universo determinista. De um determinado pre- descobrir suas propriedades. Estas questões epis-
sente, é possível que surjam diferentes futuros, temológicas sobre a natureza do conhecimento
cada um com uma probabilidade. oferecido pela física quântica não foram decidi-
das, sendo objeto de debate atual. O próprio Eins-
IHU On-Line – Qual é a importância de abor- tein, apesar de suas contribuições ao desenvolvi-
dar a computação quântica no Ciclo de Estu- mento da mecânica quântica, acreditou até o fim
dos “Desafios da Física para o Século XXI: da vida no advento de uma teoria mais geral, livre
uma Aventura de Copérnico a Einstein”? das dificuldades de interpretação da mecânica
Fernando Haas – Einstein foi um dos maiores quântica. Por outro lado, nas áreas mais tecnoló-
impulsionadores da mecânica quântica, apesar de gicas, a mecânica quântica tem também um papel
ter sido, até o final da vida, um adversário da in- fundamental. Estima-se que 30% do PIB mundial
terpretação padrão que se dá a este ramo da físi- dependem de fenômenos que só podem ser devi-
ca. Como a computação quântica é inconcebível damente explicados pela física quântica. O com-
sem a física quântica, a escolha do assunto da putador, por exemplo, só pôde evoluir da formu-
computação quântica dá margem a discutirmos lação teórica de Alan Turing108 para a máquina
uma possibilidade científica e tecnológica atual real que conhecemos, após a invenção do transis-
aberta pelo legado einsteniano. Ao mesmo tem- tor. O transistor, como uma série de dispositivos
po, são importantes todas as oportunidades de eletrônicos, se apóia na física dos semicondutores,
tentar tornar acessíveis ao público em geral temas a qual só pode ser propriamente entendida por
da física moderna. meio de princípios quânticos. Nesse mesmo cami-
nho, a crescente miniaturização dos dispositivos
IHU On-Line – Qual é a contribuição da físi- eletrônicos exige, cada vez mais, a aplicação de
ca quântica para as demais áreas do conhe- princípios quânticos, quando se trata de incre-
cimento humano? mentar a capacidade de processamento dos com-
Fernando Haas – A física quântica (também putadores. Isso sem contar com o novo paradig-
chamada de mecânica quântica) influenciou e in- ma da computação quântica, que pode levar a
fluencia, de modo importante, uma série de áreas uma nova revolução na informática, caso possa
do conhecimento. Na filosofia do século XX, por ser implementado na prática, e não apenas na te-
exemplo, é difícil ignorar as questões levantadas a oria. Não podemos também esquecer as aplica-
partir da formulação da mecânica quântica, nos ções da física quântica na geração de energia, já
idos da década de 1920. Nesse sentido, ficou fa- que uma parcela significativa da energia elétrica
moso o debate entre Einstein e Bohr106, este talvez mundial provém de reatores à base de fissão nu-
o líder da chamada escola de Copenhagen, a cor- clear, um processo descrito pela física nuclear, que
rente majoritária entre os físicos, quando se trata é um capítulo da física quântica. Na mesma linha,
de dar uma interpretação à mecânica quântica. a pesquisa sobre reatores nucleares, a fusão, tida
Segundo a escola de Copenhagen107, não existe por muitos como a saída para a crise do fim dos
uma realidade intrínseca, independente do obser- combustíveis fósseis, exige o domínio da física

106 Refere-se ao debate entre Albert Einstein e Niels Bohr, relativamente ao indeterminismo ontológico sugerido pela mecânica
quântica (Nota da IHU On-Line).
107 A Escola de Copenhagem reuniu os principais formuladores da mecânica quântica (Nota da IHU On-Line).

108 Alan Mathison Turing (1912-1954), matemático inglês. Idealizou a “máquina de Turing”, antecessora dos computadores,capaz

de calcular qualquer função matemática mediante um determinado conjunto de instruções (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

quântica. Do ponto de vista indubitavelmente ne- questão fundamental que é entender a biologia
gativo, há que se lembrar que as armas nucleares, em termos de modelos físico-matemáticos mais
quer se queira admitir, quer não, só puderam ser profundos. Por outro lado, no mundo das partícu-
desenvolvidas a partir da física nuclear, um setor las subatômicas, teremos, nos próximos anos, o
da física quântica. No âmbito da física, a cosmolo- funcionamento de um novo acelerador de partí-
gia, a física das partículas elementares, as teorias culas, o Large Hadron Collider (LHC), que nos
de grande unificação, são todas pensadas atual- permitirá acessar a novas escalas de energia, o
mente no paradigma da mecânica quântica, ou que admitirá testar devidamente a teoria atual-
seja, as áreas mais nobres da física, que buscam mente aceita sobre as forças da natureza, baseada
nos dar respostas sobre a natureza última do uni- no conceito de supersimetria. Eventualmente, no-
verso, estão apoiadas na física quântica. vos fenômenos poderão ser observados. A super-
simetria, como o nome diz, envolve um princípio
IHU On-Line – A aplicação dos conceitos de simetria, de invariância. A idéia de que por trás
quânticos nessas áreas está consolidada? da aparente desordem do mundo deve existir um
Fernando Haas – Sobre as aplicações da mecâ- princípio matemático unificador, de simetria, re-
nica quântica estarem consolidadas, a resposta é monta a Platão. Mais recentemente, Einstein, com
não, já que, diariamente, surgem novas e instigan- a sua teoria da relatividade especial, foi o grande
tes possibilidades nesse sentido. Por exemplo, te- responsável pela importância dos princípios de si-
mos, hoje, o desenvolvimento dos nanomateriais, metria na física. Mais exatamente, na teoria da re-
ou seja, dispositivos microscópicos (da escala atô- latividade geral, não há um observador privilegia-
mica), criados para tarefas específicas como fazer do no mundo, o que é um tipo de princípio de si-
o papel de transistores. Há também uma série de metria. Todos os sistemas de referência são igual-
conjecturas sobre o papel da física quântica na mente aceitáveis, qualquer que seja seu tipo de
emergência do que chamamos “consciência”. Nes- movimento. Portanto, sem Einstein possivelmente
sa linha, antigas questões como a existência ou não teríamos a supersimetria nem qualquer das
não de livre-arbítrio podem ser examinadas sob teorias em voga na física das partículas subatômi-
uma nova luz, a luz da física quântica. Temos tam- cas. Para completar, Einstein contribuiu decisiva-
bém, finalmente, muitas questões físico-filosóficas mente no desenvolvimento da mecânica quânti-
que ainda demandam exame, sobre a interpreta- ca, subjacente a todas estas questões.
ção da mecânica quântica ou sobre a transição do
mundo do muito pequeno para o mundo macros- IHU On-Line – Persiste como amplamente
cópico, onde os fenômenos quânticos freqüente- válida a estrutura causal do mundo, revela-
mente são desprezíveis. da pelo exame da propagação da luz realiza-
do por Einstein?
IHU On-Line – Quais são os principais de- Fernando Haas – Que eu saiba, não há contes-
bates e pesquisas, envolvendo a física atu- tação experimental à teoria da relatividade. Além
almente? Eles são tributários diretos das disso, o princípio de causalidade, ou seja, de que
descobertas de Einstein? as causas precedem os efeitos, permanece aceito.
Fernando Haas – Provavelmente, a resposta a Nesse sentido, a existência de uma velocidade li-
esta pergunta varia tremendamente, dependendo mite, a velocidade da luz, impõe restrições, já que
de quem está sendo entrevistado. Na minha opi- a ocorrência de dado “efeito” num dado ponto do
nião, temos duas frentes principais. Uma delas se espaço só pode ocorrer após um certo tempo, de-
refere à física dos sistemas complexos, que se rela- terminado pela distância até a “causa” e a veloci-
ciona com a aplicação da física aos fenômenos da dade da luz. Existem certas situações admissíveis
vida, da biologia. Estamos apenas iniciando nesta na mecânica quântica, como no experimento

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Einstein-Podolsky-Rosen (EPR)109, em que há IHU On-Line – Como o senhor avalia o está-


aparente violação do princípio da causalidade. gio do ensino e da pesquisa da física no Bra-
Entretanto, segundo a visão majoritariamente sil? Nesse cenário, qual é a posição da
aceita, esta violação é apenas aparente, não ha- Unisinos?
vendo propagação de informação a uma veloci- Fernando Haas – A física brasileira vive uma si-
dade que exceda a da luz. tuação paradoxal. Por um lado, temos uma pro-
dução acadêmica qualificada, com boa inserção e
IHU On-Line – Como a física quântica se re- reconhecimento internacionais. Por outro lado,
laciona com a teoria dos sistemas e a teoria não temos, no momento, uma geração de pesqui-
do caos? Quais as decorrências práticas sadores de destaque do nível da geração de um
desse diálogo? César Lattes110, por exemplo. Temos, também,
Fernando Haas – Confesso que não sou o perso- por incrível que pareça, uma legião de jovens
nagem mais apto a falar sobre a Teoria dos Siste- doutores e pós-doutores, que não conseguem po-
mas, que conheço apenas superficialmente. Acre- sição no meio acadêmico, sendo obrigados fre-
dito, porém, no poder de fogo dos princípios de si- qüentemente a executar malabarismos para so-
metria, tão caros à mecânica quântica e certamen- breviver. O que fazer com estes jovens doutores e
te úteis também no caso da Teoria dos Sistemas. pós-doutores, como fazer para não jogar pelo ralo
Quanto á Teoria do Caos, existe o chamado caos o seu investimento pessoal e o investimento esta-
quântico, que se manifesta por uma distribuição tal na forma de bolsas que foram dadas a eles, é a
desorganizada dos níveis de energia no caso de questão humana mais premente que vejo no mo-
sistemas cujo limite clássico é caótico. Trata-se, mento. Diferentemente da época da corrida arma-
porém, de um caos menos bombástico do que o mentista, na qual, por óbvias e nada nobres ra-
caos evidenciado nos sistemas clássicos. Tudo de- zões, se reconhecia, de imediato, a sua importân-
vido à estrutura matemática linear da mecânica cia, hoje, é necessário convencer a sociedade da
quântica, que, neste pormenor, é muito mais relevância da física. Nós, físicos, pelo jeito não so-
“bem comportada” do que a mecânica clássica. mos muito bons em promoção pessoal ou da área.
Provavelmente é dos únicos aspectos em que o Quanto à Unisinos, no momento, é modesta a
mundo quântico é mais habitável do que o mun- pesquisa em física na Universidade, com apenas
do clássico. alguns projetos de pesquisa em andamento e sem
pós-graduação na área. Acredito, porém, que a
Universidade esteja pronta a incentivar novas pro-
postas de qualidade no setor.

109 A sigla EPR designa os autores (Albert Einstein, Boris Podolsky e Nathan Rosen (os dois últimos são físicos norte-americanos)
de um experimento destinado a demonstrar a incompletude da mecânica quântica. Insere-se no debate Einstein-Bohr, antes
mencionado (Nota da IHU On-Line).
110 Físico brasileiro, de nome Cesare Mansueto Giulio Lattes. Nascido em 1924, faleceu em 08-03-2005. Sobre ele, IHU

On-Line publicou na sua 132ª edição, de 14-03-2005, os textos “César Lattes – 1924/2005”; “Físico César Lattes morre aos
80 anos” e “”César Lattes, herói da física nacional”. (Nota da IHU On-Line).

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