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= ee Ps = = 4 i “oe = ist oS a 2 Uma introducao & Repuiblica de Platao hes de Arisvételes até a atualidade. Tal clareza e penetracio si fraros dos longos anos de frequentacdo do texto platénico, insubstituiveis sobretudo quando se trata de uma obra intro- dutéria basilares da filosofia ocidental As indicagées bibliogrdficas dadas pelo autor no final do volume, particularmente @ tradugdo portuguesa de M. H. da Rocha Pereira, é valido acrescentar a referéncia a duas tra dugdes brasileiras da Repiiblica, publicadas recentemente: a realizada por Ana Lia A. de Almeida Prado, Sio Paulo, Mar. tins Fontes, 2006 (reimpressio 2009). Introdugéo de Roberto ho, que traz uma Geil nora bibliogréfica ao final; € aquela de J. Guinsburg (org,). So Paulo, Perspectiva, 2006, edicdo revista ¢ atualizada, com notas explicativas, por Luis A.M. Cabral e Daniel R. N, Lopes; mencione-se, ainda, Re- iéblica. Livros VI e VII. Comentarios de M. Dixsaut. Lisboa, Didactica Editora, 2000. Procuramos interferir 0 minimo possivel na tradugéo de Maria da Graga G. de Pina, ¢ preservar na integra as opedes de tradugao que 0 autor faz dos trechos citados da Republica e de outros didlogos. Modificamos apenas algumas palavras € expresses menos usuais no portugués brasileiro. Que esta seja mais uma “rota e caminho” (cf. Rep. $32e3) a conduzir os leitores, iniciantes ou experientes, pel rarios desta odisséia filos6fica, a Reptiblica universo complexo de um dos text itine- Mauricio Pagotto Marsola. eae Premissa Este volume pretende ser uma simples introdugdo & Repti blica platoni convite e uma provocagao, além de ser um guia a leitura € a0 aprofundamento pessoal do didlogo. A Repiiblica é um dos diélogos mais importantes de Pla do e, depois das Leis, 0 mais longo. Pode-se dizer que nele esto presentes todos os temas ¢ problematicas da Filosofia platénica, da teoria das ideias a teoria da alma, embora sejam tratados sob um horizonte que poderiamos definir generica- mente “politico”. Digo ‘genericamente’ porque, de fato, a perspectiva gnoseolégica e epistemolégica, a ética, a teorética, a politica para Plato esto intimamente ligadas entre si, Por isso, este didlogo pode constituir uma éeima introdugdo ao estudo da filosofia platénica. Apés cer dado breves noticias sobre a vida ¢ as obras de Platdo, sobre este didlogo em es- pecial, estrutura e personagens, oferego um resumo dos der ivros que o compéem e, por fim, identifico alguns dos temas € problemas mais importantes que o caracterizam, que sao 0s temas ¢ 08 problemas que mais preocupam 0 Autor. O testo platénico que utilizei foi o de J. Burnet, Platonis Opera, vol. 1v, Oxford, 1902, mas tive também em conside racdo o de S. R. Slings, Oxford, 2003, Para uma leitura mais veloz para quem nao conhece o grego, transliterei as palavras RITKTKLLLLLL RELL TLE LETIAITTTITTATT de Platao gregas pelo seguinte sistema: as vogais longas foram sublinha- das (por exemplo, alétheia); o iota subscrito foi colocado a seguir vogal longa (por exemplo, [6got) e, por conseguinte, nao se deve ler; o espirito brando no ¢ indicado, 0 aspero indicado pelo uso do h antes da vogal (por exemplo, hedoné) © acento é posto sempre na vogal tonica e, nos ditongos, ao contrario do que sucede no grego, é posto na primeira vogal (por exemplo, hedondi, sophdi). Agradeco, como sempre, a Graca, pela sua presenca e pela tradugao para portugués deste texto, ¢ a0 Mauricio, por me ter convidado a escrever este volume e por té-lo revisto. GEE Vida e obras de Platao Platao (Atenas, 428/42’ 347 a.C.) escreveu os seus didlogos grosso modo num arca de quarenta anos, Antes do seu encontro com Sdcrates (que ocorreu em 408), parece que estudara pintura e escrevera também poesias, cantos liricos ¢ tragédias. Decerto interessou-se pela filosofia de Herdclito e de Parménides. O encontro com Sécrates, quando tinha cerca de vinte anos, mudou profundamente a sua vida enguanto homem e pensador: a ideia de “filosofia”, tal como é expressa cm todas as suas obras, nasceu certamente por frequentar Sécrates, € poder-se-ia dizer também que toda a obra platénica no fundo responde 4 exigéncia de expor a “verdadeira” filosofia de Sé- crates, personagem central de quase todos os didlogos platé- nicos. Embora exponha a verdadeira filosofia de Sdcrates, em polémica com outros fildsofos que também se reclamavam do ensino socratico, Platao, de fato, apresenta a propria Filosofia, Com efeito, a sua fidelidade ao ensino do mestre no consiste tanto em repetir as doutrinas de Sécrates (porque, em rigor, nao podemos falar historicamente de doutrinas “socraticas”, vvisto que Sécrates deliberadamente nao escreveu nada), mas em reafirmar a validade do método de investigacao socrético Ao contrario dos fildsofos que o precederam, Sécrates defendeu que a filosofia se construia em vivo didlogo com os outros homens interessados em alcangar a verdade. Parrindo da diversidade de opinides que cada um possui, confrontando ¢ refutando as diversas opinides e também as opinides opostas, Socrates estava convencido de que, com o didlogo, podia-se alcangar um acordo, uma opiniao “comum” que obtivesse © consenso de todos os dialogantes. Segundo Plato, esta con vicgio ia contra toda a tradicao filoséfica anterior: ja ndo se tratava da “transmissio” de um saber que um sébio comuni- cave aos seus discfpulos, mas da “construcéo” de um saber comum que os homens procuravam juntos. Quando Sécrates afirmava que “sabia que nada sabia”, reafirmava precisamente @ sua recusa em accitar e transmitir um saber pré-constituido, abria portas para o horizonte de um saber entendido comio investigacdo continua e como conquista ¢ posse consciente da alma de cada ser humano. Plato manteve-se sempre fie! 2 este ideal. E esta é a razao também da sua decisio de escrever somente dilogos, em que as varias personagens se confrontam, 4s vezes se afrontam, procurando chegar a conclusées comuns: em suma, 0s didlogos de Platdo nao sdo tratados de filosofia, mas sdo uma representacao real de “como se faz filosofia” Plato escreveu didlogos por um grande periodo de tem- po. Apos a morte de Sécrates (399 a.C.), por volta dos seus 29 anos, ele foi a Mégara com outros socréticos e depois fe2 uma série de viagens que o levaram a visitar Creta, 0 Egito, a Magna Grécia, entrando assim em contato com os ambientes cientificos ¢ filoséficos mais importantes da cultura do seu tempo, tal como a escola matematica de Cirene ¢ o ambiente pitagérico de Tarento, onde conheceu o grande fildsofo e ho- mem politico pitagérico Arquitas, de quem se tornou amigo. De regress a Atenas, entre 395 € 388, isto é, entre os seus 33 € 05 40 anos, Plato escreveu os seus primeiros didlogos: 2 Apologia de Sécrates, 0 Criton, o fon, o Eutifron, 0 Carmides, SEES inc iniracueio & Raps © Lagues, 0 Lisias, 0 H da Republica, 0 Protégoras, o Gorgias Em 388, Plato realiza a sua primeira viagem a Siracusa, a corte do tirano Dionisio, o Velho. Lé, faz amizade com Dion, © cunhado do ticano, que fica fascinado pelo ideal filosdfice: -politico que Platdo estava a construir. Mas quer Dionisio quer 2 corte siracusana corrupta ficam muito aborrecidos com as criticas livres de Plato, que se vé obrigado a fugir de Siracusa e a regressar a Atenas. Em Atenas, em 387, funda a sua “escola”, isto é, um centro de discussdes, licdes, estudos ¢ debates, que pudesse realizar aquela maneira de pensar e de viver em conjunto que constituia o ideal socrético, A escola chamava-se Academia porque estava situada num parque dedicado ao heréi Academo. Nela eram admitidas mulheres, algo excepcional para a antiguidade, se se excluiz, antes de latdo, a escola pitagérica. Neste periodo, entre 387 © 367, o é, entre as 41 € os 61 anos, Plato escreve 0 Ménon, 0 Fédon, 0 Eutidemo, 0 Banquete, os livros 1-x da Repiiblica, © Cratilo, 0 Fedro. Em 367 Plato faz a segunda viagem a Siracusa. A morte de Dionisio, o Velho, sucede-lhe o filho Dionisio, 0 Jovem, ¢ Dion, © tio do novo tirano, chama novamente Platdo a Siracusa para procurar realizar as reformas da constituigao politica que nao se tinham conseguido realizar com o velho tirano. Bem cedo a realidade se demonstra diferente das expectativas: Dionisio suspeita que 0 tio queria tomar posse do poder e desterra-o, € 86 muito dificilmente permite que Plato regresse a Atenas. Aqui, entre 365 ¢ 361, isto é, entre os 63 ¢ os 67 anos, Plato escreve o Teeteto, o Parménides e 0 Sofista. Em 361, Platdo realiza a terceira viagem a Siracusa. Dio- nisio, © Jovem, esperando ainda obter conselhos do filésofo, convence-o a empreender uma nova viagem, afirmando que s6 com a sua presenca teria trazido de volta Dion do seu exilio. A amizade que nutria por Dion ¢ o sonho de poder realizar as -se sempre mais ¢ Plato, por ter mostrado abertamente estar do lado do amigo, ¢ aprisionado na cidade, S6 a intervengao de Arquitas de Tarento conseguiré resolver a situacdo ¢ fazer com que Platio regresse a Atenas. Ai, entre 360 ¢ 348, isto &, ntre 0s 68 ¢ os 80 anos, escreve 0 Politico, o Timeu, 0 Critias incompleto}, 0 Filebo, as Leis (em 12 livros, incompleto),a vi Carta, dirigida aos an racusanos apés 2 morte de Dion (353), na qual conra as aventuras das suas viagens e defende a sua perspectiva filosGfica e politica. Morre em Atenas, por volta dos 80 anos, em 348, Nestes iltimos anos, Plato revé, ceescreve em parte ¢ debruga-se novamente sobre todos os didlogos escritos: segundo um antigo relato, no momento da sua morte, foi encontrada junto a sua cama uma tabua na qual estava a transcrever € a modificar o proémio da Republica. Portanto, a Republica € uma obra a que Plato dedicou muitos anos da sua vida de escritor de pensador. O titulo grego original, nome com o qual nos foi legado, era Politeia, que significa “regime politico”, “forma de governo” de uma cidade. Polis era precisamente a cidade grega, dotada de uma certa-constituigao e, por conseguinte, caracterizade por um certo modo de vida; ¢ 0 verbo politéuo significave literalmente “viver como cidadao segundo uma cerva constituigo”, Diogenes Laércio, um escritor grego que viveu em meados do século 11 4.C.,, autor de uma obra em dez ntitulada Coletanea das vidas e das doutrinas dos fildsofos, no terceiro livro, que é dedicado precisamente a Platdo, menciona nao s6 08 titulos de todos os dislogos platénicos, mas também os subtitulos ¢ a indicacao do.género literdrio a que cada didlogo pertence. Para a Repsblica, 0 subtitulo é “Sobre o justo” € o género é “politico”. Desde a anriguidade, portanto, este didlogo platénico era visto como uma obra politica que tratava do assunto mais importante no campo da politica: a justiga. Na realidade, como dissemos, a Repsiblica € um didlogo em que se tocam todos os temas da teflexdo platénica, do problema da alma ao do conhecimento, da ética, da justiga, do mito e da sua importancia, da educacdo. HEE A estrutura do didlogo. © lugar e o tempo Eseruturalmente, a Repiiblica é uma longa narrago que Sécrates faz a alguns amigos. Ele conta sobre o dia em que desceu, acompanhado pot Glaucon, de Atenas ao Pireu, 0 porto da cidade, para assistir as festas em honra da deusa Béndis, uma deusa de origem tracia celebrada precisamente no Pireu, No regresso, Sécrates ¢ Gliucon encontram Polemarco, Adimanto ¢ outros amigos, que os convencem a acompanha- clos 8 casa de Céfalo, o pai de Polemarco, onde esto reunidos outros amigos. Com eles Sécrates entretém-se. discutindo sobre a justica e outros assuntos. A Reptiblica € portanto © relatério que Sécrates faz do didlogo em casa de Céfalo. Com base na classificago que, no 111 livro, 0 proprio Plato nos fornece dos géneros literérios, ela é um exemplo de obra “diegético-mimérica”; de fato, € constituida por uma narracao (diégesis), no interior da qual se relatam os didlogos tal como se desenvolveram entre as varias personagens (mimesis, isto é, representagao teatral). © dialogo contado por Sécrates dé-se em casa de Céfalo, no Pireu, no dia da primeira celebracdo da festa das Bendi deias, uma ceriménia noturna oferecida pelos Trécios residen- tes no Pireu em honra da sua deusa Bendis. Geralmente diz-se que esta festa se fizera pela primeira vez por volta de 429/428 a.C. Portanto esta seria a “data dramética” do didlogo, isto 6 aquela em que se pretende colocar a cena descrita no dia- logo. Pelo contrario, ¢ muito mais dificil determinar a “data real”, ou seja, aquela em que Plato eferivamente escreveu 0 didlogo. Um ponto de referéncia poderia ser 392/391 a.C., Gievanni Casertome 1 ano em que se representou em Arenas a comédia As mulheres na Assembleia (Ecclesiazusae) de Aristéfanes, que satiriza as ideias comunistas que circulavam na Atenas da época. Isto porque no livro v da Repiiblica, ou seja, 0 livro em que aque- las ideias se defendem, Socrates diz que teme precisamente 3 derisio dos poetas cémicos. Mas, sendo a Republica um texto muito longo, é provavel que a sua redacio tenha ocupado Platdo por muitos anos. Talvez a sua verdadeira composigo se tenha iniciado no intervalo entre 2 primeira e a segunda viagem de Plato a Siracusa, entre 387 ¢ 367, isto é, no rempo da fundacao da Academia, embora seja verosimil que o pri- eira livro tivesse sido escrito anteriormente como auténomo (ralvez com 6 ticulo Trasimaco) e depois inc com algumas modificacdes, no corpo do didlogo, FZ As personagens de dialog [As personagens principais do didlogo sdo. além de Socrates, cinco: Polemarco, Céfalo, Trasimaco, Gléucon ¢ Adimanto. Céfalo era um rico “industrial” de Atenas: vindo de Siracusa a Atenas por convite de Péricles em 447 grosso modo, instalou uma fabrica de escudos no Pireu, que dirigit por cerca de crinta anos. Polemarco é filho de Céfalo: amante da filosofia, tomava abertamente o partido da fac&o democré- tica e foi vitima da repressdo antidemocrética do regime dos Trinta Tiranos, que o obrigaram, em 404, a beber a cicuta Os outros filhos de Céfalo, irmaos de Polemarco, so Lisias, © famoso orador atico, ¢ Eutidemo, que estéo presentes no didlogo, mas nao intervém. A personagem mais importante no primeiro livro é certa- mente Trasimaco de Calcedénia, famoso sofista de tendéncias antidemceraticas, que faz polémica contra Sécrates sobre a ideia da justica. Esto ainda presentes, sem desempenhar um papel importante no primeiro livro, mas destinados a assu- pel de interlocutores capirais de Sécrates nos outros vtos da Republica, os dois irmaos de Platio © irmao mais velho, com um feitio moderado ¢ refle Glaucon, o irmao mais nov ‘0, com um feitio arg moso Nicias que dew © nome a paz estabelecida em 421 entre Esparta e Atenas, também ele vitima do regime oligdrquico dos Trinta Tiranos, Carmantidas, que foi discipulo de Sdcrates provavelmente também de Isécrates. Outros amigos, enfim, nao nomeados, esto presentes na discuss3o, Como se vé, 0 ambiente no qual se recria a discussio isto: esto presentes de forma significativa defensores quer da parte democrética quer da oligérquica, e ambos sao crit! cados por Sécrates. Com efeito, o programa pol da Replica, 0 famoso “comunismo” platénico que Sécrates expde no didlogo, ¢ expresso de uma visio politica revolucio. dria que ndo se identifica nem com o programa democrai nem com 0 oligérquico que se combatiam dramaticamente paqueles anos turbulentos da historia interna de Atenas ¢ das outras cidades da Grécia. Também é sintomatico o fato de que duas personagens do didlogo, Polemarco e Sécrates, aliados na polémica contea Trasimaco, sejam ambos vitimas da repressio politica: Polemarco por obra da repressao an. tidemocratica dos Trinta Tiranos em 404, Sécrates pot obra da repressdo da democracia restaurada em 399. ico central TReapHIS BBE Livro | (327a-354e: Sécrates discute com Céfale, Polemarco, Trasimaco e Gléucon) O velho Céfalo inicia a discussio, com palavras de corte- sia dirigidas a Sécrates, falando das desvantagens ¢ das van- tagens da velhice, defendendo que a riqueza ajuda a suportar a velhice. Sécrates pergunta-lhc em que medida a riqueza pode ajudar 0 sbio a comportar-se honestamente e com justica Géfalo responde que o maior bem que deriva da riqueza é nao dever cometer agdes injustas ¢ nao ficar em divida pare com deuses e homens. Sécrate: se pode identificar a justica com a devolucao do que se recebeu, dando 0 exen plo de um amigo que empresta as armas a outro e depois, enlouquecido, as pede de volta: seré justo devolvé-las? Na verdade, o que é a justiga? Polemarco defende a tese de que cla € querer dizer sempre a verdade e devolver a outrem o que Ihe é devido, por outras palavras, fazer bem ao amigo e m: a0 inimigo (327a-332b), Socrates objeta entio que é preciso distinguit os que so realmente amigos dos que parecem tais, para evitar prejudicar quem parece inimigo ¢ na realidade ¢ amigo: na verdade, o homem justo nao deve prejudicar nem fazer mal a ninguém. Por toda a discusséo, Trasimaco procu- tara mais do que uma vez intervie, Numa pausa da discussio, “como um animal feroz, atirou-se para cima de nés como se SALEELISALUL TTT ETT aaarttaaaai PRB one introduce & Repiblice de Matto nos quisesse dilacerar”. Trasimaco, cujo nome em grego sig- nifice precisamente “audaz em batalha”, critica Socrates por saber apenas interrogar, refutar, e fugir, com a sua habitual ironia, ao pedido de quaisquer definicdes. Mas Sécrates ndo pode responder porque nao sabe e, portanto, pede que seja Trasimaco a dat a definigdo de justica. Trasimaco ndo foge e dé a sua definigao: a justica € “o aril do mais forte”, e por mais forte entende-se 0 governo que detém o poder numa cidade (332b-339b}, Sdcrates: o mais forte também pode enganar-se, por isso, obedecer-lhe pode significar prejudicé-lo ¢ no fazer aquilo que lhe € dtil. Trasimaco: quem governa, enquanto governa, ndo pode enganar-se, como ndo se engana 0 artesdo, dado que é comperente na sua técnica. Séerates: cada técnica tem como objetivo ndo a propria utilidade, mas utilidade do seu objeto: assim, o médico visa o Gril do doente, 0 pastor, 0 til dos seus rebannhos. Trastmaco: tu pensas que os pastores ¢ 05 boieiros procuram o bem do rebanho ou dos bois, e estas tao longe de entender o que € 0 justo e a justica, 0 injusto ea stiga, que ignoras que a justica e o justo na realidade sao “am bem alheio”, isto é, so a utilidade de quem é mais forte ¢ detém o poder, e 0 dano exaramente de quem obedece e é dominado. Pelo contrario, @ injustica comanda a ingenuidade dos justos € 0s stiditos fazem o atil de quem € mais forte, € ao servi-lo, tornam-no feliz, mas certamente ndo se tornam felizes, A injustica perfeita é a que da a quem a comete a maxima felicidade, e dé a quem a softe e no a quer praticar a maxima desventura. Esta € a tirania: quando se descobre alguém a cometer uma injustica qualquer individualmente, essa pessoa é presa ¢ coberta de desonra. Mas quando um homem, além das riquezas dos cidadaos, se apropria também dos cidadaos e os reduz & escravidao, em vez de ser chamado com um nome vergonhoso, é dito feliz e bem-aventurado, Porque os que criticam a injustiga fazem-no ndo porque te- mami agir injustamente, mas por medo de sofrer essas acdes ee 15 (339b-35ia). Sécrates: a injustica perfeita no pode exist, porque qualquer que seja a ‘agregaco’ em que ela se gere, torna-a incapaz de agir devido aos conflitos int dissensdes. Quando dizemos que algumas pessoas, mesmo sendo injustas, cumpriram eficazmente uma a¢ em comum, nao dizemos uma coisa verdadeira, porque essas pessoas nao teriam conseguido evitar agredir os outros e serem agredidas por eles se na realidade fossem tozalmente injustas. E claro que, no fundo, havia neles um certo grau de justia que os impedia de fazerem injustica uns aos outros, Ora, 0 que temos que verificar é se os justos vivem melhor do que 68 injustos ¢ se so mais felizes. Na minha opiniao, conclu Sécrates, parece gue € assim, O homem justo vive bem € © injusto, mal. E quem vive bem é bem-aventurado € feliz, 0 contrario para quem vive mal. Portanto 0 justo é feliz, 0 injusto é desventurado; mas ser desventurado nao é vantajoso, pelo contrario, ser feliz, sim. De qualquer maneira, enquanto no souber 0 que é a justiga, ndo se pode saber se é uma viride ou ndo, € se quem a possui é infeliz ou feliz (35ia-354e). res © as BSE Livro || G57a-383e: Sdcrates discute com Glaucon e Adimanto) Os dois irmaos intervém na discussio, declarando que Socrates, nas respostas a Trasimaco, nao os persuadit: com pletamente sobre 0 fato de que o justo é melhor que o injusto. Gléucon especifica que existem trés espécies de bens: os que se desejam por si mesmos, como, por exemplo, a alegria € os prazeres que dao s6 alegria; 0s que se desejam quer por si mes- mos, quer pelas vantagens que nos dao, como, por exemplo, a satide e a inteligéncia; os que se desejam nao por si mesmos, mas pelas vantagens que nos dao, como, por exemplo, ser curados em caso de doenga e exercer as atividades que dio riqueza material. Nestas trés espécies, onde esta a justiga? Se- fue Glducon estd a defender, a justica esta na terceira espécie (357a-358a). Gléucon afirma que se deve procurat a origem da justiga como tentativa de encontrar uma via intermédia entre o que por natureza é melhor e procurado por todos, isto €, praticar a injustica sem sofrer as consequéncias, € 0 que por natureza é pior, isto é, sofrer injustiga sem poder vingar-se. Dado que se mostra evidente que o justo tem uma Vida infeliz e o injusto uma vida feliz, é preciso examinar em profundidade @ figura do homem completamente justo ¢ a do homem completamente injusto (358a-361d). Adimanto intervém, defendendo que o que se busca nao é set justo, mas a reputacao de sex um homem justo, pelos bens que oferece nesta vida e na outra. Na verdade, a opiniao da maioria ¢ a opiniao dos poetas reforcam a convicgio de que conquistar a justica € dificil e cansativo, conquistar a injustica é facil e agradavel, © que por isso para os homens é melhor a injustica masc da de justiga, porque mesmo os deuses so indulgentes para com os homens que se dirigem a eles com preces ¢ sacrificios. Portanto, Sécrates, em ver de falar de maneira absirata da superioridade da justica, demonstre qual é 0 efeito da justica € 0 da injustica, e s6 depois poderd afirmar que a justica é bem ea injustica, um mal (361d-367e). Sécrates, apés ter exaltado Gléucon e Adimanto nao tanto pelo que disserar quanto pelo fato de terem demonstrado concretamente na sua vida, com as ages, no considerar a injustiga superior 4 justica, propde que se examine o que é a justica num quadr mais amplo do que o do individuo, isto é que se examine a justiga na cidade. Com efeito, a cidade nasce pelo fato que ne- ‘shum homem basta a si mesmo, mas tem muitas necessidades comida, habitacdo, vestuario. Se nesta cidade primitiva cada homem desemperha s6 a atividade para a qual é predisposto ascem espontaneamente as categorias dos artesdos, dos co- es e dos soldados (367e-372c merci cidade mais rica e ores confortos, e entdo Sécrates afirma que € preciso ampliar as categorias dos ci exemplo, a dos que se dedicam exclusivamente & guerra e & defesa da cidade: estes s40 0 guardides. Eles devem possuir do tes de mansidao e ao mesmo tempo de animosidade, tal co: © cao de guarda de raca nobre. Mas o guardiio também deve ser fildsofo, isto é, desejoso de aprender e capaz de disting quem é amigo de quem nao é: deve ter uma boa educago (372c-376e). A educacéo deve ser do homem completo, do seu corpo e da sua alma: a alma deve ser educada com a miisica (por educaco musical se entende a literdtia: os poemas, as poesias, na Grécia, eram sempre acompanhades por musica © corpo com uma boa educacio fisica. Da educacéo musical liminam-se todas as fabulas miticas narradas pelos poetas, que sao falsas e dio uma imagem de deuses ¢ herdis sujeitos as mesmas maldades e aos mesmos vicios que pertencem aos homens (376e-378e). Os discursos poéticos devem representar 0s deuses como realmente sio, baseando-se em duas regras. A primeira é que a divindade é boa ¢, por isso, € causa s6 de bens ¢ ndo de males; a segunda é que a divindade nao muda porque ¢ perfeita. Portanto, os deuses ndo enganam endo sao falsos nem com palavras nem com aces: é necessario proibir 08 poetas que apresentem as divindades como enganadoras € mentirosas (378e-383c) ladaos, por RE Livro Ill (3860-417b: Sécrates discute com Adimanio e Glaucon) Se se devem educar os guardides na coragem, € necessirio climinar da sua é€ducagio musical todos os mitos e as poesias que causam medo da morte, especialmente se forem belos, tal como é preciso eliminar as poesias gue representam os herdis € 08 deuses a chorar ou a sofrer, ou que os representam como seres intemperantes e avidos. Tudo isto ¢ mentira, e s6 0s go- yl yaya = vernantes, ou os médicos, tém o direito de mentir no interesse dos governados, ou dos doentes. De fato, a educagdo music deve suscitar a temperanga nos guardides (386-391c). Mas sé depois de se ter definido a justiga se poderd dizer como deverdo set os discursos ¢ as poesias de uma nova educagio musical. Com efeito, existem trés formas de obra litera a forma narrativa simples, a imitativa € a mista, isto é, que deriva da combinacdo das duas primeiras. A forma narrativa mista 6a dos poemas em que o poeta fala na primeira pessoa, mas depois reproduz os discursos feitos pelas suas persona- gens como se fossem elas a falar (é 0 caso, por exemplo, dos poemas homéricos ¢ de todos os poemas épicos): a narracao imitative é aquela em que 0 poeta representa um discu:so como se fosse outra pessoa, plasmando a linguagem ao fei- tio da personagem o mais possivel (é 0 caso, por exemplo, das tragédias e das comédias); por fim, a narragao simples € aquela em que é sempre 0 poeta a contar na primeira pessoa (é 0 caso, por exemplo, da poesia lirica). E € aportano que os guardides nio se dediquem a imitagao, a nao ser no caso de ditos e ages de homens honestos (391¢-396e}. Portanto, para o poeta imitador nde haverd lugar na cidade perfeita, tal como dever-se-d expulsar da educagao dos guardides todas as melodias ¢ harmonias que nao lhes convém, como as cho- rosas, as languidas ¢ afeminadas, e consentir apenas as que causarem firmeza ¢ comportamento temperante, Em suma, todos os artistas € os poctas devem imitar s6 0 bem e 0 belo, e toda a educagio se devera adequar a um ideal de beleza, honestidade, harmonia e elegancia, porque o fim tiltimo da educaco musical € precisamente 0 amor pelo belo (396e- 403c). Também a educagao do corpo, a ginastica, deve visar ‘mesmo fim. A ginéstica deve estar intimamente relacionada 4 medicina. Faz-se, portanto, uma exaltagio da medicina pri- mitiva e uma condenagéo da contempordnea: ndo se devem manter em vida por muito tempo os corpos doentes e os que nao podem desempenhar as suas fungdes, seria um dane quer para o doente quer para a cidade. A educagao do corpo deve visar mais a forga moral do que a fisica para fazer com que os guardides alcancem a temperanca eo equilibrio (403c+ Agora trata-se de determina, no interior desta classe de g dides, quais so os individuos que devem governar € quais os que devem obedecer. Os que esto destinados a governar so os melhores entre os ancidos, que deverao ter inceligéncia, autoridade, amor ¢ cuidado pelo bem da cidade e de todos os cidadaos. Por isso, sera necessério distinguir, no interior da categoria dos guardides, os perfeitos guardides dos guardides mais jovens, que podem ser definidos auxiliares e tutores dos decretos dos governantes (41 12-414b). Depois, pare determinar a harmonia no interior da cidade e entre as varias categorias de cidadaos, sera preciso dizer uma “mentira nobre”, isto contar um mito. Trata-se do mito dos nascidos da terra. mie terra deu & luz todos os homens de ume cidade, e que portanto sdo todos irmaos, mas os deuses misturaram ouro snco com a terra para a geracdo dos que tém disposicio para comandas, ou misturaram prata para os que tém disposigZo para defender a cidade, ou misturaram ferro bronze para 08 agriculzores ¢ os artesdos. Os governantes devem compre- ender qual destes metais se encontra na alma dos filhos, seus € dos outros cidadaos. Se o filho de um governante tem em si ferro ou bronze, deve ser incluido na classe dos artesos ou na dos agricultores; analogamente, se o filho de um agriculror ou de um artesio tem em si onro ou prata, deve ser incluido na classe dos governantes ou na dos guardides. E todos os guardides, tendo ouro e prata nas suas almas, néo poderéo possuir ouro e prata “humanos” eles nao terao propriedade privada ¢’viverdo em comum, porque s6 assim poderao sai var a si mesmos ¢ a cidade. De fato, 2 propriedade privada é causa de submissio, cria senhores e stiditos, em ver de irmaos ¢ aliados (414b-417b). & | = Adimanto: nesta situagao, os guardiées, que tém o gover- no da cidade, mas nao possuem nada, ndo viverdo infelizes? Sécrates: o problema ndo é garantir a felicidade de uma s6 classe ou de um grupo de cidadaos, mas garantir a felicidade de toda a cidade no seu conjunto e, portanto, de todos os cidadaos. Na boa constituicao ndo se deve permitir a extre- ma riqueza nem a extrema pobreza: a cidade deve ser una € no deve ter no seu interior “a cidade dos ricos” e “a cidade dos pobres”. A cidade deve conservar sempre a sua unidade. Portanto, é fundamental a boa educacéo dos cidadios, ¢ os governantes devem dedicar-lhe muito cuidado, evitando, aliés, uma educagao demasiado pormenorizada (4198-427c). Onde esté a justica numa constitnicgo delineada desta forma? Na Aallipolis, isto é, na cidade bela, na dtima constituicdo, estarzo resentes as quatro virtudes para as classes que a constituem. A sabedoria é a virtude tipica dos guardides que tém o dever de governar; a coragem é a virtude tipica dos guardides que tém o dever de defender a cidade dos perigos externos e internos, no sentido que deverdo fundamentalmente salvaguardar a boa Opinio, fundada sobre a educacdo, sobre as coisas temiveis ¢ no temiveis; a temperanga é a virtude tipica dos agricultores € dos arteséos, mas deve pertencer também as outras duas classes; por fim, a justica é a virtude de todas as trés classes, Ela consiste em “fazer aquilo que Ihe ¢ proprio”, que significa cumprir o seu proprio dever especifico na cidade; de fato, a injustiga é fazer demasiadas coisas e trocar de lugar dentro das varias classes (427c-434c). Uma vez encontrada a justiga na cidade, agora é preciso ver em que consiste a justia de cada individuo. Ela sera a mesma que a da cidade. Com efeito, a estrutura da alma de cada homem éandloga a da cidade, e uma depende da outra. Também a alma do homem esté estrururada 21 \s: uma parte racional, uma part parte desiderativa: a parte racional dirige a atividade de raciocinas, a parte impulsiva diige as atividades afetivas, a parte desidera dirige as atividades da nutrigéo ¢ da reprodugdo. A distingao é andloga & das trés classes na cidade, porque & parte racion cabe comandar, e a impulsiva cabe aliar-se a racional para vigiar a desiderativa, que necesita de freio e de direcdo (434c-441c). Portanto, um homem ser4 justo quando cada parte da sua alma dirigir 2 sua propria atividade e nao procurar prevaticar com a outra; sets injusto quando houver desacorde entre as trés partes da sua alma. S6- crates: € com isto resolveu-se o problema da preferibilidade ¢ utilidade da justiga relativamente injustica. Mas se o aspecto da virtude é dnico, os do vicio sao infinitos, e ndo é preciso mencioné-los a todos. Em geral, pode falar-se de cinco tipos de constituicdo, aos quais correspondem cinco tipos de alma: © primeiro € o que acabou de ser delineado e que se poderia chamar “reino”, se for um s6 a governar, ou “aristocracia”, se forem mais do que um a governar (aristocracia, em grego, significa “governo dos melhores”) (4416-44 5e) SBE Livro v (449a-4800: Sécrates discute com Glaucon e Adimanto) Enquanto Sécrates se prepara para enumerar os outros quatzo tipos de constituigao, Adimanto intervém pedindo esclarecimentos sobre a comunhao de mulheres e filhos, para que se explique a maxima, j4 enunciada por Sdcrates, que “as coisas dos amigos so comuns”. Sécrates fica perplexo, mas, também porconvite de Trasimaco, consente, em trés discursos que esclarecem o seu pensamento ¢ que ele chama “ondas”, exatamente para significar que o seu discurso se contrapée 4 toda uma série de opinides comuns bem consolidadas. Cada onda desenvolve-se em dois planos, a da bondade ¢ a da pre- - NERRCRRRRRRRRRRRRRCOLEECCOEES YI erode 2 Rep contou o que vira no Hades, isto é, no além. Contou que as almas, depois da morte, so subme eamento € tecebem, consoante o tipo de vide que tiveram, prémios ou punigdes; e penas particularmente graves estdo previstas para bs tisanos. Passado um ciclo de tempo no além, as almas reencarnam, escolhendo a furura vida que terdo, sendo cada alma responsével pela escolha que faz, porque @ alma torna-se necessariamente diferente consoante a vida que escolhe tet Por isso, é preciso presta: muita atengao as escolhas que se fazem, nesta vida ¢ no Hades. Este € 0 mito, conclui Sdera- tes, ¢ ele paderd salvar-nos também, se acreditarmos nele: € preciso escolher sempre uma vida que ndo suje @ aossa alma, sivando a justiga e a inteligéncia, ¢ assim viveremos felizes neste mundo ¢ no Hades (6122-62!) SEG Capiile (es justica no homem: a alma ea cidade eee b © problema mais importante para uma vida ordenada da cidade € certamente o da justica. Com efeito, a justica & 0 que regula as relagBes dos homens no interior de uma comunidade. Trata-se do problema politico mais relevante. Mas a tética genial de Plato, na Repiiblica, consiste em li gar fortemente a perspectiva politica & do individuo: pode instaurar uma nova politica na cidade sem transformer completamente os homens que nela viverne, vice-versa, win nova educagéo dos homens no pode sendo comportar uma nova ordem politica. E um programa completo 0 que se tr3ca na Repiiblica, conjuntamente politico © pedagégico, ¢ que se pode definir revolucionério em relagao & politica e4 educacao tradicionais da Grécia de seu tempo, mas, a0 mesmo tempo, conserva elementos doutrinérios também no nivel do pensa- mento, que terdo uma enorme importancia na nossa cultura, até os nossos dias. © problema é esquematizado no livro t, mas constituiré praticamente o fio condutor de todo 0 dilogo. Ele ¢ intro- Guzido com as consideragées de Céfalo, que observa que na velhice, quando diminuem os prazeres do corpo, aumentam os da alma (I 328d), De certa forma, Sécrates provoca-o, dizendo que para Céfalo € facil falar assim, porque ele ¢ um Eee homem rico. Ora, de gue modo as riquezas o ajudaram a ser um homem moderado ¢ justo? Céfalo responde que a riqueza ajuda a nao se ficar em divida para com ninguém, deuses ¢ homens e, por conseguinte, a dar a cada um o que lhe é de- vido (I 331b). Mas Socrates replica que a justiga nio pode consistir simplesmente em dizer a verdade e em devolver ogue se recebe Sdo te confia as suas armas € depois, enlouquecido, pede-as de volta, certamente nao é justo nem dizer-lhe a verdade nem devolvé-las (I 331c-d). Polemarco intervém na discusséo, defendendo a tese do paiefornecendo como praya alguns versos do poeta Siménides. Mas face as criticas de Sécrates redefine a justiga como fazer bem ao.ami 0 ¢ mal ao inimigo (1 335a).$6 que esta definicdo também se um ami nao ¢ satisfatéria, porque a fustiga é umd virtude deveria = consistir em cornar methorésos homens. Como fazer mal ao ‘préximo torna sempre pior quem o faz € é, p Conseguinte, uma injustica, concluir-se-ia que ao fazer uma injustiga se seria justo, o que é um absurdo (I 335b-336a) ® Mas aqui intervém Trasimaco (I 336b). Com violéncia verbal, como um animal feroz, afirma que tudo 0 que se disse € um monte de parvoices, e que Sécrates esté muito longe de > ter definido a justica, porque como é habitual, s6 sabe re! tar e nunca responde diretamente. Apés a habitual defesa de Sdcrates, isto é, que ele ndo sabe e que espera que os outros 0 ensinem, € por isso espera aprender de Trasimaco, que ¢ um sabio, Trasimaco oferece a sua primeira definigao, afirmando que a justica nao é outra coisa sendo “o titil (symphéron| do. < De fato, quem governa fa-lo sempre mais forte” (I 33 qu a Para @ propria utilidace, em qualquer tipo de governo e, por conseguinte, o justo é sempre a mesma coisa: o itil de quem detém o poder. Socrates enfrenta esta definicdo de diversos pontos de © 4 vista, e até os outros presentes intervém na discussio. A principal objeco que Socrates faz a Trasimaco é que, $8)é Giovann: Cosertane 33 SEO para os governados obedecer as leis, os governantes ndo so infaliveis, ¢ podem por isso, sem querer, fazer leis que sejam para eles um dano (339a-340d). De fato, a objecao € fraca ¢ Trasimaco nao tem problemas em refurd-la com um argumento rigoroso: q lem governa possui a cién Boverno, e, como todos os que possuem uma técnica, ndo pode enganar-se quando a aplica; se se engana, nao € tals técnico, € portanto governante, enquanto tal, isto é, enquanto possui ¢ aplica a sua técnica, néo pode enganar-se (1340d-341a Igualmente, a segunda objecdo de Sécrates é fraca: quem Possut uma arte visa a utilidade do proprio objeto endo a propria utilidade: assim o médico visa a utilidade do doente, 9 piloto, a utilidade dos passageiros do navio, ¢ também o governante, se um técnico, visa a utilidade dos governados (I 341b-342e). Também aqui Trasimaco tem facilidade em refutar a objecdo socratica, ironiza Sécrates, acusandi ndo ter nenhuma percepgdo da realidade das coisas: “diz- -me, Socrates, tens uma ama? Nao vé que ests com o nariz escorrendo € ndo 0 assoas quando & preciso?”. Sdcrates por ventura acredita que pastores ¢ boieiros visem o bem das ove- has ¢ dos bois com um objetivo diferente do bem dos dongs? € 0 justo sao, na realidade, um “bem alheio”, isto sao um dano para quem obedece. Quem é habil a submeter 08 outros aplica a injustica absolura, que torna sumamente feliz quem a comete ¢ sumamente infeliz quem a sore, € 0 exemplo classico € a tirania. De fato, se um so cidadao é surpreendido a cometer atos injustos, é punido e recebe os tirulos mais desonrosos. Mas se um tirano se apodera dos b dos concidadaos ¢ aré mesmo deles, em vez de receber torpes titulos, € chamado feliz e bem-aventurado: “Quem critica a injustiga 0 faz ndo porque teme cometer acées injustas, mas Porque teme sofré-las” (I 343a-344¢| J vedo & Re 1. em cada arte, é preciso distinguir dois aspectos: na a, por exemplo, a arte médica deve visar o bem ¢ doente; depois, que o médico peca um honordrio € algo que ndo concerne & arte médica enquanto tal, mas a outra a et, mercenari aquela, por assim i exercer a arte politica, faz 0 bem dos governadas € nao 0 seu proprio bem, ¢ 0 seu pagamento nao é dinheiro, mas hon: se governar bem, ¢ castigos, se ndo o fizer (I 344d-34 2, 9 justo nunca quererd submeter outro justo, mas 20 maximo o seu dissemelhante, isto €, 0 injusto. Ao invés, 0 injusto ha de querer submeter quer o seu semelhante quer 0 emelhante, portgnto, 0 justo é sdbio e bom, enquanto que 0 injusto € ignorante ¢ mau (1 349b-350e); 3. nunca podera existir uma cidade, ou um exé: ro uma quadrilha de bandidos e ladrées “absoluramente injusta’ porque se é verdade que a injustica consiste em fazer surgir em qualquer lugar 6dio e discérdia, uma sociedade de ladrdes, em que nfo existisse um pouco de justiga, nao poderia existir: se todos fossem absolutamente injustos no interior de um grupo qualquer, nao poderiam sequer agir (I 35 1a-352d): ‘4. cada coisa tem umalfungéo propria)na qual consiste 2 sua virtude: a fungdo dos olhos, por exemplo, é a de ver, ¢ @ sua virtude consiste precisamente em exercer aquela funcdo. Isto vale também para a alma, cuja fungao € a de governar 9 corpo, porisso, a sua virtude ¢ a justica, que consiste em bem gavernar: por isso, 0 justo viverd bem e serd Feliz, enquanto que o injusto viverd mal ¢ seré infeliz (I 352d-354c) ~Encerra assim o livro t Como s€ vé, a questo de saber e-gue é a justica ni foi resolvida, como, de esto, eeconhece também Sécrates, quando diz que, em vez de definir a justia, Se pos a examinar se ela era tim vicio e ignorancia ou entéo sabedoria © victude (I 354b). De Fato, neste livro, a posigao _que poderiamos dizer “de prin« forte ¢ rigorosamente demonstrada é a de Trasimaco, que se Tanteve 20 nivel de Sécrates em todos os passos argumen tativos; por outro lado, Sécrates ndo conseguiu refutar com argumentos rigorosos as respostas do sohsta, € nao fez outra coisa sendo afirmar, mais do que demonstraz. Com efeito, contrapés as afirmagdes de Trasimaco as suas afirmacbes, io”, sem usar a verdadeira refutagao. Por vezes fazendo distingdes algo extrinsecas, como as que citamos no ponto 1, outras vezes construindo , de cardter geral, que nada tém a com as objecdes de Trasimaco, como nos pontos 2e 4,¢ retirando delas conclusdes apressadas e, sobretudo, nao de- monstradas. A tinica observacio que se baseia sobre um dado “de lato” € a do ponto 3, observagdo correta, mas que mais uma ver ndo esté encadeada numa argumentacdo rigorosa € consequente. Mas a questio reside exatamente aqui. Trasimaco de onstrou as suas teses com base numa precisa obseivagao da realidade; as suas afirmacoes sao 0 reconhecimento de uma realidade dé fato, na qual € evidente a todos que au governa trabalha para si mesmo e ndo para a ul governados, se ndo per accidens e ainda assim manter melhor 0 proprio poder, Portanto, aquilo a que se chama justiga nas sociedades e nas cidades reais, é precise mente a utilidade de quem manda, ¢ nao de quem obedece: de_faco, Os injustos vivem melhor ¢ mais felizes do que os just er = sideragio “de fato” observagoes gerais ¢ de principio. Mas parece claro que nao se podem refurar fatos simplesmente afirmando principios: € preciso _primeiro explicar todas as razbes dos fatos e depois demonstrat como podem os prin- cipios traduzir-se na realidade. F precisamente o que Platao fard no crates ndo fez outra coisa sendo opor a esta con- BEB Opinides comuns € organizacio [tstiga aquilo que éestabelecido por lei(Gléucon defende que baseada sobre a desigualdade ele ndo diz isto, mas que esta € a opiniao comum)E surpre- endente ver como neste passo Plato esta a pré-anuncias em Porvanto, as questdes que se expdem so duas: 1) dar Poucas linhas aquilo que sera alfeoria Contratuallde estado conta de como se chegou a cidade corrupta do presente, e 2) elaborada nos séculos xvi, & partir demonstrar a necessidade e a bondade de uma nova const segundo ponto é demonstrads por aquilo guste, suigdo, endo fazer apeiias contraposigao de discursos geraig mariamos uma simples “experiéncia mental”, que Glau abstratos-Tsto significa também demonstrar como ¢ possivel | retira de um antigo conto, citado também por Herddoto pasar realmente dos principios & realidade. Eo que Plato |g 14), com algumas variantes: Giges, um pastor’ a0 serVigo delineia na Repriblica, um verdadeiro programa revohicio- do principe da Lidia, encontra ca almente um anel que nario em relacdo & realidade existente. Naturalmente, nao torna invisivel quem o usa. Aproveitando-se desta qualidade, se trata de um programa politico de um partido, tal como o ele introduz-se na corte do’ principe, seduz-lhe 2 mulher 2 entendemos hoje, mas isto ndo significa que se trata de uma mata-o. E isto prova que ninguém é justo espontaneamente, ‘isdo abstrata da politica, mas sim daquele enguadramento mas apenas porque ¢ obrigado. Em privado, todos pensam feorético de um programa politico que deveria subjazer a cada que a injustica € mais vantajosa do que a justica. c) Também Programa de ago politica concreta. © terceiro ponto é demonstrado através de uma experiéncia Antes de fazer Socrates enfrentar as das questées, Plato ‘mental, isto é, considerar a justica e a injustica ao maximo introduz dois longos discursos das Personagens Glaucon ¢ grau. Entao concluiremos que 0 ciimulo do homem injusto Adimanto, que, embora primeira vista parecam interromper consistiré em fazer todas as suas injusticas apresentando-se Z imento do discurso tal como fora delineado, apre- ¢ parecendo, aos olhos da maioria, como um homem justo, k sentam, porém, elementos importantes para uma consideracio Analogamente, 0 ctimulo do justo sera, mesmo nio come. 2 mais vasta do problema politico, elementos que serio também tendo injustiga, o de Parecerinjusto. © que significa que é desenvalvidos durante o didlogo, necessario ndo set, mas parecer, justos. FEE Fo proprio Giiucon a esquematizar o discurso que fara ~~ O discurso de Adimanta (ll 362d-367e) é como uma * (11 358b-362cl: “primeiro direi o que ga justica e qual a sua Bslosa ao do irmao e expde-se com abundancia de citagdes origem segundo a opiniao comum; em*seguida que todos a poéticas, de Hesiodo, de Homero e de Siménides de Céos Praticam contra vontade, porque séo obrigados e no por- Apés ter defendido que na verdade quem diz que é necessérie gue creiam que ela seja um bem; pét fim, a consequéncia, € Set justo nio elogia a justiga em si mesma, maSapenas a boa Porque € que, segundo eles, € muito melhor.o modo de vida reputagao qué dai deriva, Adin nto afirma que praticar a do injusto do que o do justo” (I 358 @)\Pois, para Gléu- justica € dificil e cansativo, enquanto que praticar a injustica conjos homens pensam que cometer injustica é por natureza é facil e agradavel: por isso, se alguém é justo sem o parecer, uum bem, sofré-la, um mals depois apercebem-se de que para ndo obtém nenhuma vantagem, se pélo conttatio € injusto, cles € mais vantajoso chegar a um acordo para nao sofrerem ‘mas parece justo, vive uma vida divina. Portanto, ninguém injustiga reciproca e, por conseguinte, criam leis e chamiam justo porque o quer ser, ma SORIEBte porque é incapaz de introduce & Republica de Plate tes demonstrasse nao de forma abstrata, mas concretamente, porque é que a injustiga ¢ um mal ea justi¢a é um bem. (Os discursos dos dois irmaos, além de darem énfase & ineficdcia das “demonstragdes” feitas até aqui por Sécrates, mostram quao enorme era o peso que elas tinham, j4 na sociedade areniense da época, e quanto as opinides comuns influenciavam personagens intelectualmente dotadas, como os irmaos de Plato. Opinides comuns que, por sua vez, nao eram senio o reflexo de uma organizagao social e politica baseada na desigualdade, na violencia ¢, por conseguinte, na forca do “parecer” em relacdo ao “ser”. Numa palavra, uta sociedade em que precisamente a questdo da justia demonstrava que ja se tinha criado um abismo entre o que eta proclamado oficialmente ~ a justica, a liberdade etc. ~ € a concreta pris ca, feita de subjugacdes, de violéncias ete. BBB A cidade pri va € a cidade opulenta Socrates aprecia a sinceridade dos irmaos e apresta-se a satisfazer os seus pedidos. Com efeito, pode-se considerar © testo do didlogo uma “resposta” de Socrates as questbes levantadas do livro 1 até este ponto, embora naturalmente muitas outras importantes quest6es venham a ser enfrentadas. Porém, no que diz respeito as duas questées que menciona- mos no pardgrafo anterior, poderiamos considerar os 114 vit um bloco tinico, onde se desenha uma “histéria” da cidade, das suas origens até & furura cidade, precisamente a que con: lipolis, a “cidade bela” desejada por Platao. Poderiamos também resumir esta “historia” no seguinte esque- ma: a) a cidade primitiva (Il 369b-372c); b) a cidade opulenta (Il 372e-376e); c) a cidade educada (II 376e-1V 445e); d) a cidade dos fildsofos (V 449a-VII $41b). Gievarni Cazertone 39 a) A cidade primitiva, A cidade nasce “porque cada um de nés ndo basta a si mesmo, ¢ tem muiras necessidades” (Ii 369b5-8), comecando pela comida, o vestudrio e a habitagao; necessidades estas que ndo pode satisfazer sozinho. Os homens rednem-se em comunidades, no interior das quais surge uma primeira “divisio das tarefas”, baseada na disposigao natural de cada individuo para cumprir certas agdes: “cada um de nés nasce por natureza completamente diferente de outro indivi- duo, com diferentes disposicées, uns para uma dada tazefa, outros para outra” (II 370a8-b2). E aqui Plato enuncia aquilo que serd o principio fundamental também para a organiza¢o da furura cidade: ta hautou prattein, expresso que no grego tem muitos significados, a saber, de insportar-se apenas com os seus interesses a ocupar-se das coisas que se sabe fazer. Aqui, com base no contexto deste passo, mas também na continua: go do discurso de Socrates, significa cumprir as obras para as quais se esta disposto, com base na propria natureza/De fato, parece-me claro que Platao nao estd a delinear uma “histéria” da cidade antiga como faria um estudioso contemporaneo da pré-historia, mas esté a antecipar, de muitos séculos, as refle- xdes metodologicas de filésofos e politicos que, do século xvi em diante, especularam sobre a “origem” ideal da sociedade: “construamos com o nosso discurso uma cidade desde a sua origem” (II 369¢9). E assim ele imagina esta primeira “cidade composta por quatro homens: um agricultor, um pedreiro, um teceldo © um sapateizo (IT 369d), exatamente para satisfazer as primelras necessidades fundamentais mencionadas. E cada fomem deve satistazer a necessidade que os outros tém dos seus produros e, ao mesmo tempo, satisfaz as proprias necessidades pot meio dos bens que os outros produzem. Esta é a cidade “sa” (11 372e7); €, dirfamos nés, uma espécie de “comunismo primitivo” que esté na origem da sociedade humana, em que cada individuo faz 0 que sabe fazer, e cada qual toma dos outros aquilo de que rem necessidade. errr Os tacr een as necessidades crescem ecomelasa pro- em novas classes de cidadios ~ cazpin ros, ferzeiros, pastores etc. -, e quando a producio alcanca um Certo nivel, aparecem os negociantes e os comerciantes e nasce o mercado e a moeda, E incrivel constatar que Plato teve a grande intuigao de ver 0 mercado como instituigao social e de ver o valor simbélico da moeda 23 séculos antes que os grandes pensadores econémicos do século x1x. se habituassem a estes conceitos, Ento, s¢ procurdsscmos a justica nesta sociedade primitiva, encontré-la-famos somente no uso em Comum. regulado pela necessidade, dos bens imprescindiveis a todos (cf. I! 371212-372a2 6) A cidade opulenta. A intima inter-relagio dos dois fatores, necessidades ¢ produgio, no sentido em que com 0 ‘stescimento das primeizas aumenta o crescimento da segunda, € vice-versa, comporta 0 aumento das varias classes no nteriey da cidade e, por conseguinte, uma complexi idade sempre maior tryphdsa, de tryphé = lnxo), que aumentam as riquezas € a necessidade de novos territérios. Consequentemente, nass ‘composto por “guardides” (II 374d8: phylakes). Entao, aqui introduz-se a figura fundamental dos “guardides” “mente desenvoly devem ser corajosos ¢ duros para com os inimigos € déceis Para com os companheiros, tal como os caes de nobre raca, que demonstram hostilidade para com os estranhos e man. sidao para com os familiares e conhecidos. Esta disposicio natural dos guardides ¢ também uma disposigao narural para a filosofia, visto ser o fruto de uma disposicio natural para a aprendizagem; ora, amor pela aprendizagem ea flosofia sio a mesma coisa (Il 374-3764) Vamos tratar das outras duas cidades, isto é, da cidade edu- cada e da cidade dos filésofos em seguida, nos pontos 13 14 ia. Por ora diz-se apenas que estes guardides que depois sera ampla- + 0 tatamento descas duas “cidades” estd enquadrada numa perspectiva muito mais ampla, que é pedagégica e simulraneamente ¢ envolve outras questées importantes para a filosofia platénica, como, por exemplo, a do valor educativo dla poesia ea da necessidade de os fl6sofos governarem, Agora vamos seguir 0 tema da justica tal como foi originariamente desenvalvido e explicado nos livtos sucessivos. SZ O indlividue e a cidade A tética genial de Platéo para determinar Jjustica consiste em instaurar um intimo paralélismo ete individuo e cidade. Platio fala de palis, isto €, da Gdade, da forma politica mais desenvolvida na sociedade ¢ na cultura sregas, mas é claro que a cidade de que fala é um parddeig- ‘ma, ou seja, um modelo. um esquema de organizacao social ue vale nao para uma s6 cidade, mas para todas para toda a sociedade humana. Por iss ios também dizer que o paralelismo que Platzo instaura € entre individuo ¢ sociedade humana. £ uma tance tedrica muito importante, porque pressupde uma ginica” da sociedade humana como unico individuo: assim artes que deveriam ser capazes de encontrar uma compari, sao harmoniosa.snire si, também a sociedade humana fm todo que deveria ser coeso e harménico no seu interior Esta também a razdo pela qual Plado aplica, ao homem e a so- ciedade, dois conceitos derivados da medicina (como fizeram 0s Pitagéricos antigos, por exemplo, Alemego de Crotona): doente é o homem em que ha descompensagées nos virios Orgaos que o constituem, sdo, 0 homem no qual cada érgio cumpre perfeitamente a sua fungio; doente é a cidade em que as varias classes que a constituem esto em luta, s4, a cidade em que cada classe cumpre a sua funco,

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