Você está na página 1de 4

o~

...•
::o o
ti rD
l-l
_. 3 n
~~
o::
-
(t)
~
o- ~ ~
:r
oo.. . =- u c
"" "
~
3

/
/
Reunião em família

A Medeiros e Albuquerque

Realizava-se na casa do meritíssimo juiz dr. Abelardo e a ela havia


comparecido o mundo elegante da cidade.
Lindas mulheres, feias danças - que é o grande díptico llIundano
do século. A família do magistrado, mãe e filha, cativante, duma gentile-
za perturbadora.

Tinha-me levado lá o meu amigo Justino Jordão, nome conhecido


na imprensa, e que ocupava as horas vagas com um emprego qualquer
na polícia

Eu fui apresentado por este rapaz, que esterilizava o seu talenlo


na cozinha diária dos jornais, como "uma audaciosa organização
d'homem de negócios".
'-
Essas frases possuem o scu prestígio, infundem mesmo Ulllceno '-

terror sagrado nos mcios burgucscs Elas valiam ao meu amigo o StT o
pivô das palestras intelectuais. Os homens, sobretudo, em particular
aquelcs que tinham uma certa "educação literária", ficavam, ainda por
muito tempo, com as palavras dc Jordão na boca, silenciosos, llllninan-
do-as corno confeitos.

Depois do lanche fizemos um círculo escolhido: o dr. Savério, mé-


dico tagarela, por isso que ainda novo, o dr. Meritíssimo juiz, Justino
Jordão e eu. Os assuntos arrastavam-se preguiçosamente, quando Justi-
no teve a intuição de centralizar as atenções:
34 1)\'()NEUC) MACHADO UM 1'()lHa~ 1I0MI'M ::15

- Soube hoje dum caso que me impressionou. Um caso verda- sido o motivo, pois nem antes, nem depois do fato, ele mostrara a mc-
deiramente extraordinário. nor preferência pela amedrontada e vil1uosa senhora. Parecia mesmo
Jord;lo era da polícia. IOflUO cr,u.h..l:iJl.lf1laisQuer dizer: da fonte um tipo insensível ao amor.
I{)esma dos acontecimentos. Porque () pÜblico eSlá cel1O, e eu com ele,
--- Há confissão expressa do criminoso? - interrompeu o magis-
que os falos seriam muros, lograriam divnso desenvolvimento, se não
Irado, que, com esse inleresse aplicadamente profissional, deu lima
tivessem de passar pelo bllreall dum delegado de polícia e pelas rodas
prova pÜblica da sua solicitude.
duma Marinoni, que, invariavelmente, Ihcs imprimem feição inleira-
mente nova e, às vezes, bem mais verdadeira e real. As alenções não
-Há.
podiam, pois, deixar de assediar o meu amável companheiro. - E que declarou ele? - inquiriu, ansiosa, numa vozinha educa-
Nesse ponto, porém, da palestra apareceu a digníssima esposa do da, a excelente matrona.
magistrado. Chegou-se, atraída pelas Ü/timas palavras de Justino. - Ora, o que havia de declarar, minha senhora? - disse Savério,
- Posso ouvir?
intervindo. - Que matou, porque lhe deu vontade de matar ..
A sua longa prática em lratar os casos de policia e de jornais, de
- O doutor ouviu o depoimento do réu? - interrogou, visivel-
uma moralidade mais do que equívoca, no ominoso tempo que alraves-
mente mordido, Jordão.
sarnas, ditou ao emérilo jurista um geslO de alta previdência social: -
ergueu os olhos para Jordào, como que indagando: - Pode ouvir? - Nào. Nem precisava. O caso é vulgar - tornou o facultativo,
Jordão compreendeu e aquietou-os: com o seu ar impel1inente. - Com as descrições, naturalmenle palpi-
- Pode ouvir, minha senhora. tantes e vivas, que você deu do assassino, logo percebi que ele só pode-
Houve um silêncio. ria ter agido como agiu: sem paixões. sem ódios, por simples desejo.
- É um caso como não há muitos - disse, cO/llepndo. - Então. para o doutor, traIa-se de um criminoso nalO?
Imagine-se, com efeito, um casal tranqüilo, ambos moços, ele - Para mim? Essa é boa! Pelo contrário: eu o tenho como lIm tipo
fazendeiro. Em sua companhia, como empregado humilde, mas de
çquilibrado e normal.
confiança, Inácio, tipo acaboclado, bruto, reservado, sereno
\ -Nàofallava ...
Inácio pouca coisa tinha a fazer na cstância: lrner a pipa d'água,
cortar a lenha no mato próximo. Ele não era um peJo, um campeiro. A - Para classificá-Ia como um delinqüente nalO - prosseguiu, vo-
"peonada", abrifa, belicosa, hostil, ficava lá para os lados do galpào, IÜvel,o médico - era preciso descobrir-lhe estigmas degeneralivos mais
onde Inácio raramcnte ia, cosido sempre à eIS:I, nos sem peqllcninos ou IIlcnos acusados. Ele os telll~-- E voltando-se para o dr. Abelardü: '-
'-
mistercs indispensáveis. - Ele os tem? Diga o senhor!
Uma manhã Inácio saiu, a cavalo, com o jovem fazendeiro, em
- Que lhe posso eu dizer, homem! Eu não vi o sujeito!
direção ao mato, onde deviam cortar uns lTIoinJcs para o ar:lIllado. À
- Não os deve ter - continuou Savério. - Os seus traços, corno
tare/e, voltou só. Sem mOlivo ccl1o, selll ódio, selll paix(-)cs, havia assas-
os de todo indiálico, descendente dos aborígines, devem realizar, den-
sinado o palrào com urna machadada llO meio da cabeça.
No primeiro momento, julgoll-se que ele cobiçava a mulher do fa- tro da grosseria e dureza próprias da raça, um equilíbrio anatômico
zendeiro. Era um móvel, mesmo um móvel simp:ílico para o cstranho perfeito, com o seu cânon grego característico, até. Não pensa assim,
crime, e todos ficaram tranqüilos. O desespero veio mais tarde, quando meu caro juiz?
se chegou à constatação de que esse, absolutamente, não poderia ter O juiz havia-se empenhado num acesso de tosse interminável:
36 I)Y()NI·:I.I() f\IACIIADO UM POlUIr HOMEM 57

- Claro é - respondeu, por fim, consolado por ver que o faculta- humanidade, bem sei. Mas confesse, aqui pra nós: você nUnGl matou
tivo n;10 esperara pela sua opiniào p:lra prosseguir, CIl/1I0 j:í () fizera: um:) formiga, com o pé ou com a ponta da bengala, procurando teluz-
- ... Um tipo primitivo, pois. Nenhuma degeneraç;10, física, men- mente arrastá-Ia para a poça de escarro, na rua, enquanto comcnta, com
ral, afetiva, porque ele ainda não pode ser sen:lo um 1/(I/lIIS bO/llo, um o colega, a testa franzida, o último aresto do Supremo? Diga!
começo, uma inicial. E a prova di.sso <: o seu c rilll e. - () Abelardo tem esse costume - acudiu a esposa, com um tom
A roda estava desolada com a direçl0 que tomavam os raciocínios de censura.
do doutor. O juiz estava sucumbido:
Ele prosseguiu: - Está visto que tenho matado. Formigas. Mas sem responsabili-
- Esse homicídio, com efeito, é a nuis legitima manifestação de dades. Ora essa! Daí, porém, a matar um homem!. ..
um cérebro normal. Senão, vejamos. Por que ele o matou? - Í: exalO - continuou Savério. - Não é a mesma coisa: matar
- Dá licença para um aparte? -- fez o jornalisu. formigas nào é proibido. Pelo contrário: é até premiado pelo Ministério
- Pois não! da Agricultura.
- Inácio confessa ter matado o patrão ... - e virando-se viva- "Nisso, tào-somente, consiste a diferença. A legislação civil (digo a
I1I
mente para o juiz: - Não sei se devo aludir a um depoimento conserva- civil, porque, em relação à militar, o problema muda de face) a legisla-
do até agora em segredo de justiça .. ção civil proíbe que o homem mate o seu tempo ou sublime comcntá-
- Pode, sim. Estamos numa roda de sociedade. Pode contar o rios a uma palestra de rua, sacrificando, sem motivo social, o semelhan-
que quiser. te. E como toda a legislação repousa sobre os costumes - que é preciso
- Pois bem, na sua declaração ele confessa ter assassinado o pa- salvaguardar ou reprimir, segundo os casos - posso muito bem dizer
que o homem civilizado tem por costume não matar os outros homens.
trão porqueohomem aprescntava,fl..Qpenteado, ~I-;n;risca muilohem

i,~ feita, dividindo o cahelo ao meio,~!2!!~g~@!I!!~;nte se~!~~!!;1 C:Lmpa- "Ora, Inácio - chama-se Inácio o caboclo? - Pois bem, Inácio,
nha. Como acontecesse, num insl:lIlle de pausa no serv!s:s!Les~ar o tipo primitivo, portanto natural, são, t1amante, sem alfabelO e os fenôme-
nos degenerativos que dele promanam, sem deveres nem direitos senão
fazendeiro agachado a seus pés, descansando, ele não pôde resistir à
~r tentação de estender a mão até o machado e metê-Io bem no centro do
para com a própria besta, a anima vilis, Inácio, dizia, saiu um dia dc ca-
crânio da indefesa vítima, ahrindo-o~!.!lili1is.12il U-lllilIl.'ilmLJu~ri.'ira sa com um machado e um homem. Ele não tem, como os delinqüellles,
elllre outros costumes, o de matar. Não possui, por seu turno, como os ci-
o provocava Que degenerado, safa!
vilizados, como o habitante urbano, como nós, o costume de não matar, "
- Está vendo? - continuou o médico, triunfante. - É o que eu
a cioilis obligatio. Não tem costume nenhum, em suma. É inteiramcnte
dizia. Um desejo, confuso, mas invencível, levando-o ao assassínio.
neutro. Vê uma risca de cabelo, como você vê no passeio o himenópte-
Ora, esse desejo, o desejo de matar, é o que há de mais equilibrado nos
homens. ro. Ele, com a profunda intuição filosófica dos simples, pouco diferencia
um homem duma árvore, que é o seu ofício abater, todos os dias, a ma-
-Irra!
chado. Beethoven talvez se detivesse, nào obstante haver declarado
- Diga-me uma coisa, Abelardo: você nunca matou? "amar uma árvore mais do que um homem". Ele não, porque é cândido,
- Eu?!
porque é inocente. Vai então, lãs! é a morte do outro homem, uma mor-
- Você nunca matou - uma ... formiga, por exemplo? Confesse! te que ele julga sem conseqüência, taOlo ela é cometida sem molÍvo ...
Você é uma autoridade judiciária, encarregada de punir as faltas da

-/I6"'4': 7iJ(. _ 1'.s,T,..,1.••,

Você também pode gostar