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RS: Ensoando a wansgrocir fo na academia um asilo, nfo buscargo torné-la um local de desafio, crescimento e intercimbio dialético. Essa é uma das tragéias da educagio hoje em dia. Um monte de gente ndo teconhece que er profesor é ‘tar com as pessoas lingua Ensinando novos mundos!novas palavras ‘Como o deseo, a lingua rebenta, se recuss a estat com tida demero de fronceias. Fala a si mesma contra a nossa vonrade, em palavas € pensamentos que invadem e até violam os espagos mais prvados da mente e do corpo Foi no primeiro ano de faculdade quel um poema de Adtien- ne Rich chamado “The Burning of Paper Instead of dren” (Queimar papel em ver de eriangas). Esse poema, falando contra a dominagio, o racism ¢ a opressio de classe, procura iustrar de modo claro que pr fim perse- sisio politica e & tortura de seres vivos € uma questio ‘mais vital que a censura, que queimar vrs. Um verso des se poema que comoveu e pertubou algo dentro de mim: “Esa € a lingua do opresor, mas preciso dela para falar com voce.” Nunca o exqueci. Talvez nfo consepuise ce aquectlo nem que tentasse apagi-lo da meméria. As pala- ‘ras se impéem, langam rates na nossa membria conta'a nose vontade, As palevras dese poems geraram na minha ‘meméria uma vida que eu nfo pude abortar nem muda. ‘Agora, quando me pego pensando sob a lingua, esis palavtas esti ali, como se estivessem sempre esperando para me ajudar e me questionar. Pego-me repetindo-as em silencio com o fervor de uma salmodia. Elas me surpreen- na a Ensnando a eanegredie dem e me sacodem, despertando a conscitncia de wm vin- ‘culo entre as linguas e a dominagio. De in\cio,resisto & ideia da “Iingua do opressor", certa de que esse conceito tem potencial de enfiaquecer aqueles entre nés que esto apenas aprendendo a falar, apenas aprendendo = tomar pposse da lingua como um terivrio onde nos transforma- mos em sujeitos. “Esa ¢ a lingua do opresion, mas preciso dela para falar com wet.” Palavras de Adrienne Rich, En- ‘tio, quando li essa palavras pela primeira vez ¢ quando as leio agora, las me fiaem pensar no inglés padréo, em aprender s falar de modo contrério ao verniculo negro, de ‘modo contritio 3 fala quebrada, despedagada, de um povo despossuido e desalojado. O inglés padrio no é a fala do ceaio, Ea lingua da conquisa e da dominagio; nos Esta- dos Unidos, € méscara que oculta a perda de muitos idio- mas, de todos o: sons das diversas comunidades nativas aque jamais ouvizemos, a fala dos gullah,o idichee cantos ‘outros idiomas esquecidos. Refletindo sobve as palavas de Adrienne Rich, sei que rio é 2 lingua inglesa que me machuca, mas © que 0s ‘opressores fazem com ela, como cles a moldaim para trans- formé-la num terrie6rio que limita e define, como 2 tor- ‘nam uma arma capaz de envergonhar, humilhar, colonizar. Gloria Anzaldda nos lembra dessa dor em BorderlandilLa Frontera quando firma: “Entio, se voce realmente quiser sme machuca, fale mal da minhs ingua.” Temos pouguis- simo conhecimento de como os afticanos deselojados, cravizados ou livres que vieram ou foram trazidos contra a vontade para os Estados Unidos se sentiram diante da perda dda lingua, de ter de aprender inglés. Somente como mu- Anes Fy ther comece a pensar neses negros em sua relagio com a lingua, a pensar em seu trauma quando foram obrigados a assistir & perda de sentido da sua lingua por forga de uma cultura europeia colonizadors, onde vozes consideradas es- trangciras nfo podiam se levantar, eram idiomas fora da lei, fala de renegados. Quando me dou conta deo quanto demorou para os americanos brancos reconhecerem as di- versa linguas dos indios norte-americanos, para aceitarem ‘que a fala que seus antepassedos colonizadores haviam de- clarado ser mero grunhido ou algaravia era de fato uma Uingua,€ dificil nio ouvie sempre, no inglés padre, os rut- dos da matanga e da conquista. Penso agora no softimento dos afticanos desalojados e “sem lar", obrigados a habitar ‘num mundo onde viam pessoas iguais a si, com a mesma cor de pele ea mesma condigio, mas sem uma lingua co- ‘mum pc lar un com ot ots qe eis ir gua do opressor”. “Eiza ¢ a Hngua do opresor, mas preciso cela para falar com voce." Quando isnagino o terot dos afi anos @ bordo de navios negretos, nos palanques dos li loc, habitando a arquiteeura insélica das fazendlas de mo- nocultura,considero que esse tertor ia alm do medo da punigio ¢ residia também na angistia de ouvie uma lingua ue no compreendiam. O préprio som do inglés devia aeroriz4-los. Penso nos negros encontrando uns aos ou- ‘ros num espaco distante das diversas culeuras © lis Que os dstnguiam uns dos onto, cbrigados pla ci- cunstincias a achar maneira de falar entre si num “mundo novo" onde a negritude ou a cor escura da pele, © nfo 2 lingua, se roariam o espago da formagio de lagos. Como Tembras, como evocar esse terror? Como descrever 0 que eS Ensnando a eransredle devem ter sentido 0s africanos,cujos lagos mais profundos traviam sido sempre forjados no espago de uma lingua co- ‘mum, mas foram transportados abruptamente para um mundo onde o préprio som de sua lingua materna no t= sha sentido? Tmagino-os ouvindo o inglés falado como a Lingua do ‘pressor, mas também os imagino percebendo que esa lin- sua teria de ser adquirida, comada,reclamada como espago dle resistencia, Imagino que foi feliz. momento em que ppereeberam que a lingua do opressor, confiscada ¢ falada pelas linguas dos colonizados, poderia ser um espago de formagio de lagos. Nesse reconhecimento residia a com- preensio de que # intimidade poderia ser recuperada, de {que poderia rer formada uma cultura de resistencia que ppossbiltaria o resgate do trauma da escravizagio. Imagino, portanto, 0s aicanos ouvindo o inglés pela primeiea ver como “a lingua do opressor” © depois ouvindo-o outra ‘vez como foco porencial de sesisténcia. Aprende o inglés, aprender a falar a Kngua estrangeira, foi um modo pelo (qual os afticanos escravizados comecaram a recuperar seu poder pessoal dentro de um contexto de dominagio. De posse de uma lingua comum, os negros puderam encontrar de novo um modo para construir a comunidade eum meio para criar asolidariedade poltica necessria para res ‘Embora precisassem da lingua do opressor para falar ‘uns com os outos, eles também reinventaram, refizeram essa lingua, para que ea falassealém das frontcias da con- {quistae da dominagio, Nas bocas dos africanos negros do chamado “Novo Mundo”, o inglés foi alterado, eransfor- ‘mado, ese rornou uma fila diferente. Os negros eseraviza- Ate a los pegaram fragmentos do inglés ¢ os transformaram fume contig, Junavam sus plas de ur modo que 0 colonizador teve de repensar o sentido da lingua ingesa. Emborana cultura contemporinea tena storna- do comum falar das mensagens de resstincia surgidas na ésica criada pelos escravos, paricularmente nos spr tua, file-se muito menos sobre a construsso gramatical das frases ness cangBes. Maitas vezes,o inglés usado na ‘angio reflete0 mundo quebrado, despedagado, dos esra- vos, Quando os esate cana "Nobody knows de trouble I see~",o uso da palavea “nobody” tem um signi- ficado mais rio do que se tivessem usido a locucéo “no one’, pois o lugar concrewo do sofrimento era 0 corpo (bod) do escravo". E mesmo quando os negros jé emanci- padoscancavam os spiritual: eles nfo mudaram a lingua, a esrutura das oragées dos nosios ancestas. Isto porque, ro uso incorreto das alavras, na colocag incorreta das palavas havia um espiio de rebelizo que tomava posse da lingua como local de sesisténcia. Um uso do inglés que toma com o come ¢o sentido paroizada, de jo que os brancos muitas vezes no consegussem com- preender fala dos negres, ransformou o inglés em algo mais que a simples lingua do oprestor. Hf uma continuidade ininterrupta entre o ingles frag- inet dor tan deskjatorceinos ne "fw, dem pina mt orbs, pi “ving oaece 1 eles que vat nd quan nor ge “nga Spear ns th cn le di ‘lene rer nnd" nf cc ae ee wi (N.doT) — aa oy nsinande 3 transgredie vemos verndculos que os negros usam hoje. Tanto num taso como no outro, a peur do inglés parto possibili- toue possbilit a rebelso ea resistencia, Tansformando a Lingua do opresion, criando uma cultura de resisténci, 08 negros ciaram uma fala favima que podia dizer muito tmais do que as fonteiras do inglés padrdo permitiam. O poder desa fala io ésimplesmenteo de possibilitar a re- Sténcia supremaciabranca, mas ambém o de forjar wm ‘epaco para 2 produgio culeuralalternativa ¢ para epist- smologias lternativas~ diferenes mancras de pensar s- ber que foram ctucais para a criagio de uma visio de mundo contrarhegeménica, E absolutamente essencial {que 0 poder revolucionéio do verdculo negro no sja perdido na cultura contemporines. Esse poder reside na apacidade do verndculo negro de intervis nas fronteiras€ limitagées do inglés pads. "Necleura popular negra contemporinea, 0 rips tr now um dos espacos onde o vernéculo negro € usado de rmaneiraaconvida a culeura dominante aowit~a escutar mre em certa medida, ase eansformada, Enertanto, um dos vscos dessa tenrativa de traducio cultural & que ela ‘enhaa banalizar 0 vernculo negro. Quando jovens bran ‘os imitam esa fla dando a entender que ela €caracters- tica dos ignorantes ou daqueles que s6 se interessam por divetr os outros ou parecer engragados, o poder subveri- so da fala ¢ ameagado, Nos ceculs acaémicos, tanto na {afera do ensino quanto na da produgio de textos, pouco CSforgo fo feito para ulizar o Yerndculo dos negros — ou, als, qualquer outra lingua que no o inglés padrio. ‘Quando, num curso que estava dando sobre escrivoras ne- Ange zs 125, perguntei a um grupo ctnicamente diversificado de alunos por que s6 ouviamos 0 inglés padcio na sala de aula, cles fiaram sem palavras por um instante. Embora para muitos deleso inglés padrio fossea segunda ow a ter- cia Iingua, simplesmente nfo lhes havia ocorrido que era possvel dizer algo em outa lingua, de outra maneira. Nao admira, portanto, que continuemos pensando: “Est € a lingua do opressor, mas preciso dela para falar com voc®.” Percebi que cori orsco de perder minka relagio com © verndculo dos negros porque também eu raramente 0 uso nos ambientes predominantemente brancos onde ge- ralmente me encontro, tanto como professora quanto na vida social. Por isso, comecei a rabalhar para integar em vitios contextos 0 verdculo negro especifico do Sul que cu ouviae flava na infincia. O mais dificil foi incegrar 0 vernéculo negro na escrta, paticularmente para periédi- os académicos. Quando comecei «incorporar 0 vernécu- lo negro em ensaios cftcos, os editores me devolviam 0 arcgo reescrito em inglés padrio, O uso do vernéculo sig- nica que a traducéo para 0 inglés padrio pode ser neces- séca cso se queiraatingir um publico mais amplo. Na sala de aula, encorgjo os alunos a usar sua primeira lingua ¢ depois traduzi-a, para nfo sentirem que a educagio supe- Flor vai necessariamente afast-los da Kngua ¢ da culvara que conhecem mais de perto. Nao surpreende que, quan do os alunos do meu curso de Escrtoras Negras comesam ‘usar uma lingua e uma fala diferentes, os alunos brancos frequentemente reclamam. Isso corre particularmente quando se usa o verndculo negro. Hle percuba os alunos brancos sobremudo porque estes podem ouvir as palavras, 0 Encnando a wansgredi ‘mas no compreendem seu significado, Pedagogicamente, estimulo-os a conceber como um espaco para aprender © ‘momento em que no compreendem 0 que alguém diz. Esse espago proporciona nfo somente a oportunidade de ‘ouvir sem “dominar”, sem tet a propriedade da fala nem, omar poste dela pela interpretagio, mas também a expe- sea ows do inglesas.Fssasligdes parecem Jarmente cruciais numa sociedade multicultural Sade ainda vigor 2 supremacia branes, que usa o inglés padrio como arma para silenciar e censurar. June Jordan ros lembra disso em On Call, quando declara: Estou falando sobre os problemas majoriiris da lingua ‘num Estado democrtic, sobre os problemas de una moc- da comrente que alguém roubou, escondeue depois homoge: neizow num “inglés” oficial capaz de expresar somente ‘mentiras ou no acontecimentos que nfo envolvem nen responsive. Se vivéssemos num Estado demoeritco, nossa, lingua teria de chacar-se,voas, amaldicoare cantar em todos ‘9 nomes comuns americans, todas as vores inegiveis¢re- presentaivas de quantos esto aqui. Nao rolerariamos a li ‘gua das poderosos nem, por causa disso, perderiamos todo 0 respeito pelas palavras em si mesmas. Farlamos com que ‘oss linguagem se conformass & verdade de nossos muitos us €fariamos com que ela not conduzsse & igualdade de poder que o Estado democritico deve representar. © fato de os alunos do curso sobre escritoras negras estarem reprimindo toda 2 vontade de falar em outros idiomas que no o inglés padrao, sem peroeber que essa repressio era politica, é um indicio de como nds agimos Allagsa 7 inconscientemente, em cumplicidade com uma culeura de dominasio, As discussdes recentes sobre diversidade e multiculeura- lismo tendem a ignorar a questéo da Iingua ou diminuir sua importincia, Os textos feministas crticas voltados para os temas da diferenca ¢ da vor fizeram relevantes in- tervensGes tebricas, pedindo que seja econhecida a prima- 2a de vozes frequentemente silenciadas, censuradas ou mar- ginalizadas. Esse apelo em favor do reconhecimento ¢ da celebracéo de vozesdiversficadas, ¢ consequencemente de linguas e modos de falar diversficados, necessriamente rompe a primazia do inglés padrio, Quando as defensoras do feminismo comecaram a falar sobre o desejo de uma pparticipacio diversficada no movimento feminino, 0 pro- blema da lingua nio foi dscutido. Simplesmente se supés ‘que © inglés padao continuaria sendo 0 veiculo principal ppara a transmissio do pensamento feminists. Agora que 0 ppbblico dos textos e discursos feministas se tomou mais diversificado, € evidente que temos de mudar as maneiras convencionais de pensar sobre a llagua, criando espacos conde vores diversficadas possam falar usando outras pala- vras que ndo as do inglés ou de um vernéculo fragmenté- Tio, Tsso significa que, numa palestra ou mesmo numa cobra escrta, haveri fragmentos de fala que talvez. no se- jam acessives a todos os individuos. A mudanca no modo de pensar sobre lingua e sobre como a usamos necessaria- ‘mente alrera 0 modo como sabemos o que sabemos. Numa palestra em que eu talvez use o verndcula negro do Sul, 0 dialeto especifico da minka regigo, ou em que talver use pensamentos muito abstratos aliados & fala simples e co- m Ensnando a eanegres mum, respondendo a um piblico diversificdo, proponko Gque ndo necesiriamence tenhamos de ouvir conheoer tudo 0 que € dito, que nfo precisemos “dominar” ou con- ‘qustara narrativa como um todo, que possamos conhecer ém fragmentos. Proponho que possamos aprender néo s6 om os expagos de fala, mas também com os espagor de Silencio; quey no ato de ouvir pacientemente outa lingua, possamossuberter a culeura do frenesi do consumo Pitalistas que exigem que todos os desejossejam sutisftitos Imediatamente; que possamos perturbar o imperiaismo caleural segundo o qual #6 merece ser ouvido aquele que {ala em inglés padtio “Adrienne Rich conclui seu poema com a seguinte de- daragio: Estou compondo na méquina de escever eae da noite pensando no dia de hoje. Como todas nés falamos bem. ‘Una lingua é um mapa dos nossos fraassos, Frederick Dou- lass escrevia num inglés mais castigo que o de Milton. As pessoas sofiem muivo na pobreza. Os méodos existe, mas ‘nfo os usamos, Joana, que io sabi le, iva lgumafooma amponesa do francis. Alguns sofrimentos: € dificil falar 2 Yerdade; estes sfo os Ertados Unidos; nio posso rocar em ‘Yocd agora. Nos Estados Unidos, #6 possuimos 0 tempo pro- Sente. Estou em perigo. Eseis em perigo. A queima de um Tivro nfo desperta nenhuma sensacio em mim. Sei que a ‘queimadura déi. Hé chamas de napalm em Canconsile, Maryland. Sei que a queimadurs d6i. A méquina de esrever cst superaquecida, minha boca queima, nfo posso tocar em. ved eerta Lingua do opressor. Ainge a Reconhecer que através da lingua nds tocamos uns nos ‘outros parece particularmentediffcl numa sociedade que gostaria de nos fazer crer que ngo'ha dignidade na expe- rincia da paixio, que sentir profundamente é marca de infetoridade: pois, dentro do dualismo do pensamento ‘metafisco ocidental, as ideiassio sempre mais importan- tes que a lingua. Para curar a cisio entre mente € corpo, ‘nés, povos marginalizados e oprimidos,tentamos resgatar ands mesmos ¢ as nossas experitncias através da lingua. Procuramos criar um espago para a intimidade. Incapazes de encontrar esse expago no inglés padrio, criamos uma fala verndculafragmentiia, despedagada, sem regras. Quan- do preciso dizer palaveas que nao se limitam a simples- mente espelhar 2 realidade dominance ou se referie a ela, falo 0 vernéculo negro. Ai, ness lugas obrigamos o inglés «a fuzer 0 que queremos que ele fag. Tomamos a linguagem do opressor ¢ voltamo-la contra si mesma. Fazemos das nossa palavras uma fila contra-hegeménice, liberando- -nos por meio da lingua, todos os meus alunos, ‘especialmente LaRon, que ese dangando com os anjos, ‘como agradecimenco por todas as vezes em que comegamoe cde nove ~ do zero ~ renovamos nossa aegria de aprender "Sec capaz de recomesar sempre, de fazer, de reconstrit, de nfo se entregat, de vecusar burocratizar-se mentalmente, de ‘entender ede vive a vida como processo, como vira ser...” = Paulo Freire

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