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GEll_HAIQ) KIIIEL

EN

~~ST
S1\ PA'\' f.0
NO
TESTAMENTO
por
LINOGRÃFICA EDITORA LTDA.
r-:sc_rithrio e O fiei.nas:
Rua. BreBBer, 1281-1299 - Fi·n~:: 733-1~32
SXO PAULO
GERHARD KITTEL
EDITOR

A
IGREJA
NO
NÔVO TESTAMENTO
POR

KARL LUDWIG SCHMIDT


KARL HEINRICH RENGSTORF
HERMANN WOLFGANG BEYER
GUE:NTER BORNKAMM .
OSCAR. CULLMANN

Tnrclução
de
HELMUT!! ALFRE.lJO SIMON

ASTE
SÃO PAVLO
PREFACIO DO TRADUTOR

O Dicionário Teológico para o Nôvo Testamento (Theologisches


Woerterbuch zum Testament), por G. K~ttel, é, se-
gundo a opinião dos peritos o fruto sazonado de
três séculos estudos, sobretudo dos exegetas alemães. Csses
estudos cujos resultados nw:iores passaram a fazer parte de:..
finitiva do patr·imônio científico da exegese bíblica - iniic·ia,..,
dos com método verdadeiramente científico durante o século XVlll,
continuam a pleno vapor neste século XX, e com o TWNT alca.nça..,,.
ram ·urn clímax, o que no entanto não sigriifica que se possa des-
C(tnsar sôbre os louros
E como o Dicionário Kittel era inacessível para a mai.orú:t .
dos estudiosos de portuguêsa., a de Seminários Teo-
lógicos Evangélicos ( ASTE) resolveu. pôr ao alcance ele todos os
interessados a. port·uguêsa dos verbêtes mais importantes
pelo seu teológico. É que a tradução inglêsa de
todo o Dicionário, ora em curso, o acessíi'el a um círculo
nmito mais vasto entre nós. Contudo, a própria natureza um.
Dicionário como o de Kittel - que segue a ordem alfabética do
diferentes &ão redi..
tódas as tendências torna.-v'
essencialmente analítica. 'Prfas, para que os nossos
BU>lia tira.ssem o proveito possfoel, a ASTE achou
po·r colecfonar em volumes separados os neotesta-
mentários que se referem Ji um único objeto genérico. Assim o
título d~ presente volume - que pretende ser o primeiro de uma:
.'!érie - , "A igreja no Nôvo Testamento", abrange os seguintes ver•
bêtes de Kittel: lgreja, Rei e Reino, Apóstolo (e correlatos), Bispo,
Presbítero, Ser·u'ir (e correlatos), Pedro e Pedra; são todos conu·itos
centrais do NT que descrevem a natitreza histórica e meta-híst6rica
da Igreja de Cristo. ·
A nossa tradução quis ser ao mesmo tempo literal e Uterária;,;
contudo, devemos confessar que dificilmente a,tíngimos belo
A pesada e árida do original alemão f reqi/.ent~
'mente téve de refletir-se na tradw;ã-0, sob pena de d~sfígumr o pen-
same71.<to do a:utor; certas díficilldades tipográficas e o exagerado
custo dAZ reprodw;lio fiiel tôda.a as passagens - numerosíssim.as
- mn hebraico e grego, nos fizero<, __ 1, optwr transliteração dos
têrnws rnais iviportantes e irripreseimliveü; e tradução, quanta
fiel· possível, de t,'Íta,çóes mais longas. <r.i,e tal método
rdio satisfami os conhecedores daquelas línguas e de 1untca ut:uuuur.e
será para os ([IJ..e as desconhecem, obstante essas limitações,
A.<!'lr.P.'t'o1r que a presente contrib1lirá 1Hlira 8em,-
pre conhecida e aniada a e se;npre
lavra de Deus.
llELHUTH ALFREDO
Título do original alemão:
'I'HEOLOGISCHES WõRTERBUCH ZUM NEUEN TESTAMENT
Verlag von W. K(;lhlhammer -:- Stu ttgart
1933/1959
<C:e onde foram selecionados os · verbetes que constituem o presente volume)

Edição em língua portuguêsa, com colaboraç5o do


FUND O DE . E DUCAÇAO TEOLóGICA
pela
ASSOCIAÇAO DE SEMINARIOS TEOLôG!COS EVANGltLICOS
i965
São Paulo
iNDICE DAS ABREVIATURAS

AAB =
Abhandlungen der Koeniglichen Preussischen Akademfe der
Wissenschaften zu Berltn (philosophiscli-historlsche Klasse) (1804ss)
APF Archiv fuer Papyrusforschung
.l\T Antigo Testamento
B = Códice Vaticano
BCH = Bulletin de Correspondance Beilénique (1877ss)
BFTh = Beitraege zur Forschung christlicher Theologie (1897ss)
BGU ::::: Ae1J1Jptisohe Urkunden aus den Koeniglichen Museen zu.
(W95ss)
Bibl. Zeitfr. = BibZische Zeitfragen
BW/U'IT Beitraege zur Wissenscha,ft·
{1908ss; 1926ss)
CIG = Corpus Inscriptionum Graecarum (1828.Ss)
CIL Corpus 11wcríptionum Latinarum (1862ss)
D = Códice de Beza
Dissert. Dissertationes (obra principal de
DLZ ::e:: Deutsche Literaturzeitung (188Dss).
EJ = Encyclopaedía Judaica U928ss)
Ep. Epistula (e)
ERE Encyclopaedia of Relígion and Ethics; ed. J. Hastings (1908sS}
FRL =Forschungen zur Religion und Líteratur des Azten un,d Neuen ·Tes-
taments (1903ss)
G = Códice G,
JBL = Journal of Biblical Literaiure CN'ew Haven, 1881ss)
JQR = Jewish Quarterly Review (Londres - Filadélfia, 1905ss}
IG :::: Inscrfptiones Graecae (Berlim, 1873ss)
IPE = Inscríptiones Orae Septentr.íonalis Ponti Euxini (1885).
Lex. ThK = Lexfkon fuer Theologíe unà Kirche 0907ss; 1930ss)
m = manãata (uma. das partes do Pastor de Hermas)
MGWJ :::::: Monatsschrf.ft fusr Gesch'khte nnd Wissenschaft àes .Judentums
MO = Migne, pars graeca
MI ::::: pars latina
•.lllff• • Noc/1 rlrhten von der Koeniglíchen Gesellschaft der Wissen-
r •r•l11r f/1•11 .:u Goettingen (1894ss)
~ lh11'111 Kl Alt = Neue Jahrbuecher àes Klassischen.. Altertums (1898ss>
ltP ora tio ( nes)
l'tt• 1.or1<1 Ureek Par.tri in the British Museum (-1893ss)
t'ttl' 11xy 1r1 The Oxyrzmchus Papyri (1898ss)
'fUtl lirnlcncyclopaedie fuer Protestantische Theologie und Kirche
1 l ll!Hl:;s)

h1.,.flt'llr•l ·- Recherches de Science Relig-ieuse

to:.r l>'<'1)1u1 dcs Etudes Juives OS80ss)


H• v 11t1i1 (NS) =~ Rellue Biblíque (Nouvelle Série) (1915ss)
1111< i Dic Religion in Geschichte und Gegenwart (1927 ss, 2.ª ed.).
ttll l 'l 1ll Revue de Ilistoire et Philosophie Religieuse.
11 :;imilitudines (uma parte do Pastor de Hermas). ·
rt f\ 1~ Stb:ungsberfr:te der Preussischen Akad.emie der Wissenschafjten zu
lJc:rUn (1882ss: 1922ss}.

1~/\t1 Sitzungberichte der H eidelberger Akademie der lVissenschaften


! 1910ss).
TI 1 lll =·• Theologische Blaetter (1922ssL
·1·111,z = TheoZogische Literaturzeitung ( 1876ss).
'J'l 1: ;txr ·e· Theologische Studien und Kritiken (182&ss).
Tl1n. e: Theologische Rundschau (1898ss; Neue Folge 1929ss).
TO == Texte und Untersuchungen zur Geschichte der Altchristilichen Li-
teratur ( 1883ss) .
TW'NT ··e. Theologi.sches woerterbuch zum Neuen Testament.
TllZ = Theologische Zeitschrift.
v •• visiones (parte d.o Pastor àe Hermas).
vg :.: Vulgata.
VT "' Velho Testamento.
ZAW = Zeitschrtft fuer de alttestamentliche Wissenschaft (1881.ss)
ZKG _ Zeitschrift fuer Kirchengeschichte (1887ss).
ZMR Zeitschrift fuer MissionskÚnde und Religicnswissenschaft 0886ss).
ZSTh = Zeitschrtft fuer Systematiscb,e Theolog'ie (1923ss).
ZThK = Zeitschrift juer Theologie unà Kirche (189lss) ..
ZwTh =-= Zeitschrlft fuer wissenschaftliche Theolog.te <1858ss)
ASSOCIAÇÃO DE SEMINARIOS TEOLõGICOS EVANGÉLICOS

CONSELHO DELIBERATIVO
Júlio Andrade Ferreira
Pnsídente

Joaquim Beato, Thurmon Bryant, Roberto Grant, Wilson Guedelha,


V. James Mannoia, David Mein, Harding Meyer, A. Ben Oliver, Otto
Gustavo Otto, Paulo Pierson, Arnaldo Schmidt, Henrique Todt Jr.
Aharon Sapsezian
Secretário Geral

EDIÇõES DA A.S.T.E.
A vend.a

VOCABULÁRIO BÍBLICO, de J. J . vou Allmen


O PROTESTANTISMO BRASILEIRO, de E. Léonard
O CATOLICISMO RO.MANO - um simpósio protestante
o PENSAMENTO DA REFORMA, de H. Strohl
PEDRO - DISCíPULO, APÓSTOLO E MARTIR, de O. Cullmann
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO, de J . Knox
A PSICOLOGIA DA RELIGIÃO, de P. Johnson
A PESSOA DE CRISTO, de G. C. Berkouwer
DEUS ESTAVA EM CRISTO, de D. M. Baillie
A PREPARAÇAO DE SERMÕES, de A. W. Blackwood
O NôVO TESTAY.i.ENTO, de B. P . Bittencourt
FÉ BíBLICA E ÉTICA SOCIAL, de E. C. Gardner
A FÉ CRISTÃ, de G. Aulén

J."fl-lo prelo

O ENSINO DE JESUS, de T. W. Manson


TEOLOGIA DO NôVO TESTAMENTO, de A. Richardson
A NATUREZA MISSIONARIA DA IGREJA, de J. Blauw
A DOUTRINA BíBLICA DO HOMEM EM SOCIEDADE, de G. E. Wrlght

Em preparação

EPíSTOLA AOS ROMANOS, de F. J. Leenhardt


A RELEVANCIA DOS PROFETAS, de R. B. Y. Scott
DOCUMENTOS DA IGREJA CRISTA, de H. Bettenson
JEREMIAS, de C. A. Sklnner
HISTóRIA DA IGREJA CRISTA, de W. Walker
ATLAS BfBLICO, de H. H. Rowley
HERDEIROS DA REFORMA, de J. de senarclens
íNDICE GERAL'

IGREJA ........ .... . . ......... . . . . .. . ·: . ..... : .. .. . : ·. :.····:•:·~····-ir··


Karl Ludwig Schmidt

REI E REINO ........... . .. . .... . . ...... . . :·· .. . ... ..... . 65


Karl Ludu.:ig Schmidt

APóSTÓLO, FALSO APóSTO:LO, APOSTOI:i.ADO -E - EN}l;:J;,t\~.:~:cl:iJ:


Karl Heinrich Rengstorf -. . .. e·.-

·.---· .~

BISPO ...... . .. . ....... . ..... . . . ..... . .. . ....... . ... ' · 1s9·


Hermann Wolfgang Beyer

PRESBfTERO .. . .. . .. . .. ....... ... . ... . ... . ....... . ... . . ... 215 ··


G7.lenter Bornkamm

SERVIR, SERVIÇO E DIACONO 269


Hermann Wolfgang Beyer

PEDRO •... . ....... . . . .. . . . .. .. . .•._... ......• , ._. . . . .....


Oscar Cullmann ·· · -- · ··- ··· ·· ·

PEDRA ... . ... . ..... . . .. .... .. .... . · ... . ·..... ~ ... .


Oscar Cullmann
IGREJA

por
LUDWIG SCHMIDT .
íNDICE
IGREJA

Preliminares 15
Nôvo Testamento 17
1. Atos dos Apóstolos, 18
2. Cartas paulinas I, 20
3. Cartas paulinas II: Colossenses e Efésios, 25
4. Outros livros do NT, 30

O uso grego do têrmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31


r.::;:,.,ue,:,; paralelas de Ekklesia ..... .. .... ... ..... . 37
Mateus e 18.17 38
1. Método, 38
2. Relação das duas passagens entre si, 39
3. Crítica textual e literária, 40
4. Critica 41
5. O equivalente e aramaico, 46
Velho Testamento e judaísmo 50
1. Judaísmo helenístico, 50
2. Texto hebraico, 52

apostólicos e catolicismo antigo · . ,. . ..... . . . . . . . . 56


Conseqüências e conclusões 59
Bibliografia 62
A. PRELIMINARES

dicionários .comuns dão dois significados têrmo ekklesia:


1. "Ajuntamento popular". 2. "Igreja". O primeiro significaqo
t~ "profano" e o segundo "bíblico'', "eclesiástico".. (As$im
Passow, Pape, Benseler), Liddell-Scott retém easa diviSão, :mas
11t1bdivide a segunda parte, refertndo-se à Septuaginta: . "Af!seD\;.
hli.'.•ia devidamente convocada, menos gera} que' syU9gos"; 2. {à) ·
Na Septuaginta: "congregação. judaica"; (h) · NifNTi '"Igz:ej;t,
como corpo. dos cristãos". .· > , ·. •···.···· ..·· , · ,.

Os dicionários do NT seguem a. mesma díi~~~q, subd!'\lidit1çfo~


mais uma vez o significado do têrmo no NT: l. I~reJa, eo:QJ.o · · ' ·
munidade universal. 2. Congl'.es:!tçã.9. como co,rnu!Yd~~.elocal
1mrticular, bem como comunidad.e doméstfoa. • • _- •
· '· 1

Surge então a questão: qual dos dois últimos significados é


primário, isto é, em que sentido não se trata de tuna simples jus-
! aposição, mas de subordinação? Wilke-Grimm, que define o sen-
:riu1 chrístianu.s do têrmo como "coetus ChristianorU?n ", reunião dos
«ri1:1tãos, dá esta seqüência: ". . . qui alicubi 1·egionum, urb.ium~:
11icorum efosmodi coetum conatituunt atque ín unam societ.atem
coniuncti sunt" - "Universus Christi.anorum eôetils per totarn
f1Tram dü1pe1·su..s" (os que em alguma região, cidade ou aldeia c011s 4

tituem um tal grupo e estão unidos numa só comunidade . ......,.. .todo


o ~rupo cristãos que estão es:palhados por tõda à terra). o
católico romano F. Zorell (Le~içon Graecum Novi Teatame:nt.i;, 2~ª
t•cl., 1931) dá a seguinte ordem: · ' 4 coetus religiosis . . .-..univeriJtl1il
'"'rnm qui ad societafem_religwsam a Chrnto irt.,stitutam pertímm{
- ecclesia aliqua partícula.ris, i.e., alic:ujus regionis, civitatis; CkrÜF
fi li.deles t."UO episcopo subditi, fere ãioecesís" (grµpo religioso,,.
n totalidade daqueles que pertencem à. sociedade. refüdosa fundada .
por Cristo - alguma igreja partieular, isto é, os crfatãos de a~~
guma região ou cidade sujeitos a. seu b:i~po, quase equivalente a
diocese). Preuschen~Bauer, ao contrário, ordena ..assim: .. ''Comu~
11idade (Gemeinde) de cristãos que vivem num mesmo]ugãr ~ ',
cm sentido universal a na. qual se reúnem todos os ch~m!fdos~r é:•
r, Regundo esta divisão, de uma igreja *'local'' e "u~ivetS{t.l''•
·r ti Karl LudÍvig· Schm.idt

Os textos que se referem à "Igreja" ou à "Comunidade" são


uívcrsamente distribuídos. Com efeito, há passagens em que se
i>odc duvidar se se fala de "Igreja" ou de "Comunidade" no sen-
tido usual dos têrmos.
As distinções apresentadas são influenciadas mais pelas dife-
n~ntes confissões ou orientações dos autores, do que por razões le-
xicográficas ou bíblico-teológicas. O anglicano fala da Igreja em
primeira linha como a única Igreja, o "body of Christia.ns"; o ca-
t.úlico-rornano toma seu ponto de partida da "ecclesia 'U:nfrersalis"
,. Jogo aponta para Mt 16.18 1 para então insistir na subordinação
d;1~; conmnidades particulares a um bispo. O protestante "positivo"
f:tla em primeiro lugar da "comunidade total", o protestante "lí-
11(•ral" da "comunidade particular".
Nas traduções e nos comentários se notam as mesmas diver-
l~éncias. Mas, como sempre, também aqui o dicionário de Cre-
rner-Koegel constitui uma honrosa exceção, pois cava mais fundo,
1: tanto do pon~o de vista bíblico-teológico como lexicográfico chega
a resultados mais satisfatórios: aqui ekklesia no NT é a "comuni-
dade dos redimidos" (Heilsgemeínde), em íntima conexão com a
··comunidade de todo o povo de Israel" do VT, também designado
como ekklesia; algumas vêzes ekklesia é aplicada no NT à "comu-
11idade total" (Gesanitgemeinde), outras vêzes a mesma "comuni-
dade de redimidos" é apresentada em suas "limitações locais" (lo--
!ccile Begrenzung), expressão que parece muito bem escolhida. Ex-
pressamente se chama a atenção para o fato de que "essa distinção
de comunidade particular e total não pode sempre ser aplicada com
todo o rigor". A isto também se refere a anotação de Zorell : "Cum
prirno tempore '.l et 2 (se., ecclesia ·universalís et particularis) coirnC'i-
rlerent, cui ittrum1;is licebit reíerre Act 2.47; 5.1'1 al." (como no
início 1 e 2, (isto é, a igreja universal e a igreja particular) coin-
podem-se referir a qualquer uma At 2.47; 5.11, etc.).
Parece pouco desejável traduzir o têrmo ekklesia de diferentes
modos; isto pelo simples fato de que no NT sempre se usa o mesmo
têrmo grego, enquanto que nós ora falamos de igreja, ora de co-
munidade ou congregação. E como, além disto, a mesma palavra é
usada no grego profano de um lado, e no grego do VT e do NT
de outro lado, dever-se-ia tentar traduzi-lo por um único têrmo, e
ver se se pode, ou se deve, dizer em todo o NT sempre "igreja" ou
sempre "comunidade". Esta tentativa nos levaria às questões mais
fundamentais da concepção de Igreja no NT e da relação entre

. 1 Em certo sentido constitui exceção o artigo "Kírche", de L, ·Koesters, em


Lex. Th, IC V, 968ss, onde escreve: "No NT usado pelos helenistas em Jerurnlêm,
no sentido de "comunidade cristã local" e, depois, no sentido de "comunidade
cristã total",
Igreja·. 17

Igreja e Comunidade. À qual delas se refere Mt 16.18_? , A cgmu:_


nidade primitiva de Jerusalém é "igreja'' ou "congregação"f~Qual
a relação entre essa comunidade primitiva· e ~as outras ;ÇOm'1nitiade$
do vasto Império Romano? O ·que significa ekklesia.'no.éristb.Jiismõ
judaico (Pedro ! ) e no cristianisnto geutgicQ.. (Paulo! f :e ~9 ~ ~toU~'
cismo âa -Igreja antig~?- _· ---:.· -~-~- _ -~~~~:___"';; - ~~- :~ ~ ___ q~ . \ _· _:·:___.;~ ', ::__
Também se deveria-tentar a possibilidade ·de _trad11zir -com um
só vocábulo - seja "igreja". seja "comunidade" .-· - iEtêrmo:e1ékle8ic,t
através de tôda a Bíblia. Isto nos levaria mais longe air1da para o
problema da relação entre VT e NT. E : como atrâs do têrmo da
Septuaginta - ekkles-ia - existe -um:a -ê xpres$ão hebraica 2 ; ·t ambém
se deve dar uma r esposta para a questão:· ·que têrmo está atrás da
ckklesiu do NT no original aramaico -. - · língua usada por J1?Sus e
pe1a comunidade primitiva de Jerusalém? Esta.é uma questão que,
por sua vez, logo leva ·a conseqüências importante~. --- ·,
Finalmente, dever-se-ia ver se não seria _possível, e necessário,
empregar um único têrmo - . "igreja"ou -~'.'coiimnidâden,;,,- para. tra,.
<luzir o têrmo ekklesia em tôda ' a' e~-tensãé>- de s~ti u~o)tanto profa~
no como bíblico. Esta tentativa_ nos levaria .à =_quêstãêf dà' aritode-
signação da comunidade neotestamentária: ~:como Joi possiv~t q\ie
não se recorreu a um têrmo claramente'"cul~µal, _ma.s sé empregoú
um _têrmo inteiramente profano?, .•_,--___ __ -- --_•••• _- , _-....•.---,_ ~ : . ---_., --___ .-_-_·--·-·___ , ,, .
. E visto que os dicionários móstram :que-tanfu iio -gregó profa--
110 como no bíblico ekklesia ora se refere ao ato de se reunir, ora
ao fato de estar reunido um grupo de homens, talvez se devesse
empregar na tradução um têrmo que ao
mesmo tempo tivesse sen-
tido abstrato e concreto; tal seria o têrmo "ajuntamento•• (Ve1·-
sammlung) . · ...

B. NôVO TESTAMENTO ,_
.,,.__,..,
:. : :: :.-.:;-_·-
.. :, . .. ·,,··
Con siderando o uso do têrmo ekklesia .no NT''conatata,.:.se · que
0

· êle não aparece em Me, Lc," Jo; 2Tm, Tt( lFe, :2Pey1Jo; 2Jo~\ Jdo3.
•· . •, , .. · .- ~ ., ~ --- ~~ - ·-: ·~~'"'• ·: ' r< ~ r -:___;--:· " - · :l ~ ~ -

:2 E. Peterson (cf. bibliografia), pág. 19: "Nâo ~basta inferir da Septllag.inta- o


i:cntido técnico de ekklesitf. Antes é preciso ~ explká-lÓ ~ a ·parth- da síti.taçã'o 'nova
que é a dos Ap66tolos". É certo que a Septuaginta não, basta, p9is é preciso yoUar
até. ao texto hebraico. Peterson, .entretanto, ~ão J.!:ga 'ª() yT, tj~,m._ pe~o né;ln. h~
braico. Sua tese ("o conceito de Igreja inclui essencialmente o de,:Igrl!ja dos:gentios-,;·.
loc. 'cii., p ág. 1) · não resiste ante o fato de . .que · tanto na Septuagintà, como no
cristianismo judaico e gentio,_é usado o mesmo têrmo eleklesw. · Peter&oii rião:Sente
que lhe incumbe provar que, e como, a mesma expressão riãõ sígrilfica 'li 'ii).esitlll
coisa, Cf. ainda: E. Petcrson: Dic Kirche a.us Juckn .und Hetden,;em::i:Bite_Çnenri
der Sal;;burger _Hochachulwochen -n : (1933). _ , -_ · o. _ ·~· - . . -:__;
· 3 Em Cremer-Koegel, como cm tõdas
d tados 1 e 2 Pedro.
as edições-anteriores !i!e
. ·· ·
&emer, lião .São
-' · ' •·
'18 J(arl ·Liulivig Schmidt

Que falte em lJo e 2Jo não tem maior importância, já. que aparece
em 3Jo. Tal é também o caso de 2Tm- e Tt, pois 1Tm contém o têr-
. mo. Tem pouco significado estatístico o fato de que uma car'-...a tão
pequerta como Judas nao registre o· têrmo . . Menos expliCável é a
.. ausência do têrmo em lPe ·e .2Pe~ Mas .como precisamente em lPe
se dá ênfase particular à comunidade do VT e se descreve a natu-
reza dessa comunidade corn ·idéías vétero-testamentárias, deve-se per-
guntar se a idéia não está implícita, embora fa.1te a palavra. A
rn.esma pergunta surge a propósito dos dois sinóticos, Marcos e
Lucas, e também do quarto evangelho. . · ·
1. A.tos dos Apóstolos. Visto que o triplo uso de ekklesia em
Mt 16.18 e 18.17 é objeto de acirrada discussão e realmente suscita
questões difíceis, é recomendável começar pelo tão freqüente e va-
riado uso de ekklesia nos Atos dos Apóstolos.
•Tá as primeiras passagens (2.47; 5.11; 7.38; 8.1; 8.3; 9.31)
são de grande alcance: · Em primeiro lugar se fala da ekklesia, em
Jerusalém (que em 8.1 é designada como tal). Em 7.38 se fala
- · sem que seja citado literalmente o VT- da "ekklesia do povo
de Israel" que Moisés levou pelo deserto, o que corresponde a Dt
9.10, onde a Septuaginta usa ekklesia e o texto massoréticd tem
qakaL Em 9.31 por sua vez não só .a comunidade. de Jerusalém
mas também as de tôda a Galiléia, Judéia e Samaria são chamadas
elcklesia. !.
Por conseguinte, se de um lado se fala de uma comunidade
pal'l:icular como ekklesia, o mesmo têrmo é também aplicado a di-
versas comunidades particulares, de modo que devemos falar antes
em .. igreja" do que em "comunidade". Em 9.31 os melhores ma-
nuscritos hesitam entre o singular e o plural 5," de modo que eklclesia
é sinônimo de ekklosiai. Maior certeza temos a respeito do plural
em 15.41 ('•passava através d.a: Síria e Cilícia fortalecendo as igre-
jas"), onde somente os manuscritos B, D e alguns minúsculos têm
o singular. Inteiramente certo é o plural em 16.5 ( .. das·igrejas esta'-
vam firmes na fé"). Nos outros passos o singular é mais freqüente,
quer se mencione a comunidade de Jerusalém (11.22), quer seja ela
subentendida como e"m 12.l (D e poucos minúsculos acrescentam: na
Judéia); 12.5; 15.4,22; quer sé fale expressamente da comunidade
de Antioquia · da Siria (13.1), quer seja ela subentendida (11.26;

~ Em 9.31 . prp~àvelmente não ~e trata d~ dete rminacão pr~dicati~a (como en-


tendeu Lutero), mas atributiva, embora o artigo não seja repetido (coisa possível
na Koinê, embora 1 Co 1.2 e 2 Co 1.1. usem o artigo num grego "melllor").
r. Bruder prefere o plural e anota o singular no aparato crítico, enquanto que
Ne.-;tle preft:.re o singular, sem infelizmente mencionar a importante variante do
plurul.
Igreja 19

14.27; 15.3) ; - quer se aluda à comunidade de Cesaréia _marítima


{18.22), ou de Éfeso (20.17,28). A e>..}Jressão lwt'ekklesian (14.23)
significa "de comunidade em comunidade" e talvez pressuponha. o
_uso plural do têrmo (assim em Lutero: "nas comunidades"; assim
também em tradutores mais recentes: "em cada_ comunidade").
Uma passagem especialmente rica e cheia de sentido é 20.28: _"pas- -
_torear a Igreja -de Del!s (do-senhor) que êle adqu~tjtt__p~!Q"· seupró­
prio sangue"~ - Nestle cita H.qui como paralelos ":;etero::.testaméntá~ --­
rios Sl 73.2 .(Septuaginta), onde não se fala de ekklesia mas de
syna,gogê: "lembra-te de tua congregação que possuíste_ desde_ o ..
princípio".
Os textos citados de Atos dos Apóstolos mostram já o· que tem
de peculiar o conceito de igreja e de comunidade no NT. É preciso
notar que as comunidades dos diferentes lugares são simplesmente
chamadas ekklesi.a sem questões de subordinação ou coordenação.
Do fato de que também se fala de uma eklclesÚL na Judéia, na Ga-
liléia e na Samaria fica _evidente que a questão da localização não
é elemento essencial do têrmo. É . preciso notar ain,qa que o singular
e o plural são usados indiferentemente, de modo que não se pode
afirmar que _a ekklesia, se compõe de ekklesiai, nem que a ekklesia
surge da adição das· ekklesiai. Antes, isto significa que nos lugares
mencionados se encontra a ekklesia, fato êste que .não deve -ser es-
-qqecido quando se nomeiam, lado a lado, diferentes ekklesi-ai.- Sem.:
pre se deveria traduzir por "cümunidade" e "comunidades", ou -
"igreja" e "igrejas". O vocábulo "comunidade" deve ser preferido
a "igreja". O fato de que não se pode prescindir do têrmo "igreja"
provém unicamente de que em nossa linguagem comum se distingue
a "comunidade":__ no sentido de comunidade particular - - de "igre-
ja" - no sentido de comunidade universal.
O ponto importante é que em Atos dos Apóstolos a comuni-
dade judeu-cristã de Jerusalém e a comunidade gentio-cristã de An-
.. tíoquia são -- de:Signadas da mesm.-'l. forma. Nunca encontramos um
atributo que .fôsse -aplicado a-ekklesia no -sentido de epitheton ornan-s.
•O-único atributo .;_:; se o queremos chamar assim - ~. -é o genitivo tou -
theou,, de Deus; e êsse ,genitivo é vétero-testamentário. Embora o
mais -das vêzes êle falte, ._ deve sempre ser subentendido, pois do
contrário o têrmo elcklesia não teria nenhum sentido. -A comuni- -
dade, e respectivamente a igreja, de Deus sempre é entendida como
distinta e em contraste co;n as outras formas de comunidade. -:mste
ponto fica claro já no :primeiro passo de Atos em que se fala de
ekklesia (texto mais provável) quando antes se falara de 1,aos, povo,
ou kos1nos, mundo (assim D). · · _
Em três passos de Atos (19.32,39,40); dentro : de ~ um-_ só con-
texto, se fala de ·uma ekkles-ia do povo ou do mundo, isto é, de uma
:!O Km'l Luàwíg Schni:iàt

;i;;;~ernble1a pop1tllar pagã.Nesses passos ekklesia é uma expr1es~1ão


se:nt1.cto pleno da palavra.
O ·esfôrço necessário e cons-
ciente de - tanto quanto possível - a mesma palavra
no mesmo autor com a mesma expressão, não é exeqüível aqui, pois
a palavra "igreja" nâo convém. O têrmo "comunidade" (Oemein-
rfr) melhor seja geralmente no sen-
tido 'ue "comunkU Je ; a não ser que atributo "po-
se tenha em precisamente uma comunidade política e
não eclesiáática. A tradução que mais se é "assem-
, "reunião" s. Pelo mesma ex-
pressão apareceria a diferença entre mundana e
"eclesiástica". se entenderiã também melhor porque o
gular e o plural são usados lado a lado: quem fala em assembléias
e reuniões pensa no sentido de "reunir-se". O ponto essen-
cial não é haja reunião, mas que alguém ou alguma coisa se
reúna. O "de Deus" - expresso ou subentendido - apon.
ta aquêle que reúne, que faz com que os homens se reúnam. E
quando se diz da igreja que êle a adquiriu (20.28), evidente
é Deus quetp reúne os seus. À igreja pertencem todos que são
Expressamente se diz "tôda" em 5.11 e 15.22, traduz a
de reunião. de IVfas. isto não nada de
sublinhando o que -já existe no conceito de igreja
Esta, em a outras "igrejas'' (mundanas), não
é um conceito mas qualitativo. O significado de uma
assembléia está em razão direta com o número dos que
dela participam. A assembléia do povo de Deus, ao contrário, in-
depende dêste Ela existe Deus reúne os seus. Seu
número depende daquele que chama e e somente então dos
que se deixam chamar e reunir. estão reunidos ou três
em meu nome, aí estou no meio dêles" (Mt 18.20).

2. pa:alina:s I. Nas cal'tas de Paulo encontramos


o mesmo uso de Atos dos Apóstolos. Também ai
jmde1ll-c:r11st1an.is1no1" e "gentio-cristianismo" não se separam pelos
seus modos de· entender a ekklesi.a. Pelo uso do plural - sobre-
tudo em passagens como 2Co 11.8 ("outras igrejas") e 12.13 ("as de-
mais igrejas") - se deduzir que as "igrejas" simplesmente
existem lado a lado. Mas o ponto decisivo é que essas "comuni-
dades" existem dentro de uma única "comunidade". Esta idéia de

Não queremos pretender que se tire àe nossa linguagem o têrmo


6
(Kirche) ou "comunidade" (Gem.einde). A riqueza de sentido dêsses têrmos
deve perecer. Mas é de desejar que se tome consciência do sentido exato da
expressão eklclesía, pois é precisamente aqui que a clareza lingüística tem significado
b!blico-teológlco.
Igreja 21

reunião e unidade, se encontra nas frases: a igreja tôda (Rm 16.23;


ICo 14.23) e tôdas as igrejas (Rm 16.4,16; lCo 7.17; 14.33; 2Co
8.18; 11.28) ; uma vez também se diz: a igreja inteira (lCo 4.17),
sendo que a expressão: "em tôda parte na igreja inteira'', aqui
empregada, corresponde exatamente às palavras: em tôdas as igre.;
jas 7.
Em outras passagens a transição do singular para~ocpluFal1°e
vice-versa, é inteiramente fluida: em 1Co 14.35 isto aparece na
duplicidade da tradição textual; em todo o caso pouco antes (14.33s)
se usa o plural. Em Gl 1.13 como em 1Co 15.9 e Fl 3.6 Paulo
narra que perseguiu a igreja, e pouco depois (Gl l.22) êle a designa
como igrejas da Judéia. Da mesma forma se devem considerar o
singular e o plural de lCo 10.32 e 11.16, pois aí se poderia simples-
mente trocar os números sem mudanca de sentido.
Freqüentemente se menciona o lugar: Cencréia (Rm 16.1),
Corinto (lCo 1.2; 2Co 1.1), Laodicéia (Cl 4.16), Tessalônica (os
tessalonicenses: lTs 1.1; 2Ts 1.1.); ou então a região: Ásia (lCo
16.19), Galácia (lCo 16.1; Gl 1.2), Macedônia (2Co 8.1); Judéia
(Gl 1.22; lTs,2.14). . . ·
Muitas vé'zes falta o artigo, de modo que entre "a igreja" e
"igreja" não parece haver nenhuma distinção: lCo 14.4 (logo em
seguida, 14.5,12, novamente o artigo) ; 14.19,28,35; 1 Tm 3.5,15. É
evidente que ekklesia se aproxima aí de um nome próprio, onde
comumente falta o artigo. Também no plural pode faltar o artigo
como em 2Co 8.23 onde logo antes (vers. 19) e logo depois (vers.
24) está o artigo 8. .
Mesmo uma comunidade tão pequena como a comunidade do-
méstica pode ser chamada igreja; em Rm 16.5 e lCo 16.19 tal so-
ciedade doméstica é posta lado a lado com comunidades maiores;
cm Cl 4.15 é significativo que, em meio a profundas discussões sôbre
a natureza e o sentido da igreja, o mesmo têrmo seja aplicado a
uma comunidade doméstica. O mesmo uso ocorre em Fm 2.
O passo de lCo 1.2 ("à igreja que está em Corinto"), bem como
2Co 1.1, é :rico de conseqüências para a tese de que a Igreja não re~
sulta da adição de comunidades particulares, mas que cada comu.:.
nidade, por menor que seja, representa a comunidade total, a Igreja.
Êste passo não deveria ser traduzido: "a comunidade coríntia", ao
lado da qual existiria a comunidade romana, e outras, mas: "a co-
munidade (igreja, assembléia) comó existe em Corido". · Quando
7 Como sempre, Paulo gosta de tais hipérboles, as quais, no entanto, têm valor
objetivo.
· !! Blass-Debrunner, 6.ª edição, § 254, chama a atenção para a ausência
artigo em nomes pessoais como deus, senhor, mortos, povos. Com "igreja" o
caso é semelhan•-
22 Karl Ludwig Schmidt

numa tal assembléia alguém é desprezado (lCo 6.4), se nela se fazem


reuniões (lCo 11.18; cf. 14.23 e At 14.27), se nela a mulher se deve
calar (lCo 14.34), se ela não deve ser sobrecarregada (lTm 5.16),
não se pensa numa comunidade estabelecida num lugar, mas na
comunidade em geraL
Quando em Paulo a igreja recebe atributos ou p_redicados, isto Í

só sucede com o genitivo "de Deus", não importando que o nome


esteja no singular ou no plural (singular: lCo 1.2; 10.82; 12.22;
15.9; Gl 1.13; l'fm 3.5,15; plural: 1Co 11.16; 1Ts 2.14; 2Ts 1.4).
O fato de os dois números do têrmo ekkles·i,a, levarem êste atributo,
é mais importante do que se poderia admitir à primeira vista. Nós
que costumamos distinguir entre Igreja como comunidade total, e
Comunidade no sentido de comunidade particular, achamos natural
que se fale'' da Igreja de Deus e das comunidades de Deus.
Tal distinção não é possível em Paulo, o que mais uma vez indica
que nêle não devemos procurar a tardia distinção entre "Igreja"
propriamente e Comunidade. E quando, de outro lado, freqüente-
mente falta o atributo "de Deus" deve-se ter presente a mesma
coisa; assim como "reino" no NT sempre significa "reino de Deus"
·- a não ser que expressamente se mencione um reino terreno -
assim também com a igreja. Nest.e ponto é denotar que em muitos
manuscritos se acrescentou - inteirament.e dentro do sentido - o
atributo "de Deus" a algumas passagens como lCo 14.4; Fl 3.6
(G, vg. e outros).
Quem age dentro da igreja, e juntamente coro ela, sempre é
Deus; cf. 1Co 12.28 ("Deus pôs na Igreja primeiramente apósto-
los .•. ").
Como Deus age "em Cristo", aqui e ali Cristo é expressamente
nomeado. Dêste ponto de vista a passagem mais rica, e que de
certo modo esgota o sentido é 1Ts 2.14: "das igrejas de Deus que
e:::!Uí.o na Judéia em Cristo Jesus". Em Gl 1.22 só aparece "em Cris-
to", sem "de Deus"; em Rm 16.16 só "de Cristo", genitivo que en-
tretanto significa a mesma coisa que "em Cristo" 9, Em todo o
caso não se deve traduzir "de Cristo" pelo descolorido adjetivo
"cristã". Paulo não fala de uma igreja ou comunidade cristã, mas
de uma assembléia de Deus em Cristo.
Raras vêzes vem o atributo "dos santos" com o nome no plural
(lCo 14.33), o que não deve causar espécie porque em 1Co 1.2
Paulo identifica ":igreja" e "santificados em Cristo Jesus" 10.
9 A. Deissmann: Paulus, 2.ª edição, (1925), pãgs. 126s, corretamente chama
a atenção para a correspondência entre fórmulas com "em", e o genitivo, propondo
a denominação "genitivus communionis" ou "m:ystiC".J.S", -0 que em ~odo o caso
é supérfiuo.
rn Cf. sôbre isto R. Asting: Die Hei!igkeit im Urchrist.ientum, em: FilL 19
(H)30) 134.147.204.269,
. Igreja !28

Antes de nos voltarmos para as passagens de Colossenses e


Efésios - ricas e repletàs de significados profundos e
istú mesmo não atribuídas a Paulo - lancemos um olhar retros-
pectivo o uso que Paulo faz do têrmo ekklesia em relação com
o uso em Atos dos Apóstolos. · vista da oposição e da polêmica
entre e a comunida:de primitiva de Jerusalém, é notável, do
vista. puramente e1:1tatístico-1exicográ:fico, a concordância
''""""'"''" ao uso do· têrmo. tal como dec-0rre de uma análise .de todos
O fato de Paulo usar mais freqüentemente o atributo
, comparado com o único uso de At traz os dois
perto airl'da um do outro. Com efeito 20.28, sendo uma
citação de SI (Septuaginta), alude à assembléia de Deus no
VT, cujo é sublinhado precisamente por Paulo. Paulo
freqüentemente menciona a igreja em conexão com Jesus Cristo,
o que, do ponto vista das palavras, não é o caso de Atos 11. Mas
isto não significa diferença quanto ao conteúdo, mas somente quan-
to à forma da expressão. Na realidade, do ponto de vista do conteú-
Paulo elabora o dado que tem em comum com a comunidade pri~
e a isto corresponde também seu comportamento prático. A
da $'igreja de em Cristo Jesus" - isto é, do cumpri-
mento do VT na Nova Aliança-·- consiste em que determinado nú-
mero de discípulos escolhidos de Jesus teve a experiência da res"'
de Jesus Cristo dentre os mortos e assim recebeu creden.:..
peculiares.
Deus, da Nova Aliança - que se tornou rea-
lidade pela vez na ressurreição de Cristo -- :rece-
sua comissão e sua função não do entusiasmo de "pneumáticos''
e carismáticos, mas de um número bem certo de aparições do Res-
suscitado Isto não só resulta de Atos - aberto a discussões em
muitos pontos~ mas antes de tudo do relato de Paulo em lCo ... u.,..,.,,.,
o Apóstolo dos gentios põe todo ·o pêso de sua argumentação
em provar que a a:pa:rição de ·Cristo no· caminho de está
na mesma linha que as aparições aos apóstolos Paulo
era um "pneumático" e> um carismático e como tal tinha visões,
aparições, arrebatamentos e êxtases (cf. 2Co 12.lss). Porém, não
deduziu dai o seu apostolado como serviço em favor da igreja de-

11 De passagem, seja anotado que o uso tão despretensioso de .ekklesia em


Atos :fala em favor da antiguidade dêsse escrito. A possibilidade de que
um autor posterior transcrito fontes muito antigas sem modi:ficá~las, não
parece calhar aqui, pois um redator posterior teria introduzido expressões mais
plenas a respeito de ekkLesla• .
12 Entre os autores recentes K. Holl, seguindo a A. Schlatter, .acentuou êste
fato :fortemente em seu tratado sôbre o conceito de Igreja em Paulo (cf. bibliografia),
24 Karl L1ulwig Sch11âdt

Deus, mas unicamente da visão de Damasco que êle tinha em co-


mum com os apóstolos primitivos.
Dêste ponto de vista Paulo e a comunidade primitiva de Je-
rusalém tiveram a mesma concepção de Igreja 13. ·Isto explica por•
que Paulo reconheceu na comunidade primitiva de. Jerusalém cre-
denc~is e prerrogativas peculiares, que se estendiam~também a seu1
enviados. Tendo isto em vista dificilmente se pode superestimar
sua coleta em favor dos "pobres" de Jerusalém, que-não se deati·
nava tanto aos pobres de Jerusalém como aos pobr~ de JerusaUm.
Paulo reconheceu aí um dever seu. Esta sua preocupáção não se
explica apelando para a caridade, embora esta também esteja pre·
sente; muito menos se trata de diplomacia ou de tática de Paulo.
Trata··se, antes, de um senso de dever e de respeito para com os ho·
mens de Jerusalém que foram os primeiros constituídos em Igreja
de Deus em Cristo. Que não se trata de um respeito puramente
pessoal de Paulo ressalta do fato de que Paulo não deixa de falar
irônicamente das "colunas" em Jerusalém e de reprovar em Pedro
a hipocrisia do seu comportamento dúplice para com os cristãos da
gentilidade ( Gl 2) . Não obstante, Pedro, por mais 1nefgulhado que
esteja :nesse pecado, permanece para Paulo como alguém que foi ele·
vado acima da massa dos fiéis. Não se
trata de homens particula·
res, mas da comunidade dos homens que constituem _a. assembléia
de Deus em Cristo. Esta assembléia não se torna objeto de uma
vontade ou uma especulação arbitrárias, mas é encarada como uma
coisa estabelecida por Deus, de que os homens não podem nem de·
vem dispor. Apreciações psicológicas não se adaptama um homem
que foi entusiasta e "pneumático" em grau mais elevado do que
todos aquêles que, partindo de considerações entusiásticas e "pneu•
máticas", lhe censuravam o fato de não se ter libertado suficien•
temente da concepção de igreja da comunidade primitiva 14 •
Em tôdas as suas afirmações sôbre a Igreja, Paulo pôs diante
de si um padrão, ou antes: um padrão lhe tinha sido. colocado ante
os olhos, -o qual não podia ser esquecido ou omitido. Ora, eram
precisamente os cristãos de Jerusalém que se empenhavam em dei•
truir êste padrão, dando importância, quer à autoridade das Pll•
soas (apóstolos primitivos!), que:r ao lugar santo (Jerusalém 1),
Assim êles estavam em perigo de caírem vítimas da tendência teo•
crática, contra a qual se tinham levantado todos os profetas desde
os grandes do VT até João Batista, e o próprio Jesus; êstes nunca

13 O êrro capital de K. Holl parece-me consistir no desconhecimento d61tl


tato,
H Ê neste sentido que H. Wcinel faz restrições a Paulo em RGG III 1130..
Igreja 25

se cansavam de apontar para o· fato de que o chamado de Deus


constitui o fundamento do povo de Deus.
Nesta mesma linha se acha Paulo, que tem concepção mais cla-
ra do que os apóstolos primitivos a respeito da igreja de Deus em
sua preparação e cumprimento, e que não pensa, nem deixa pensar,
·em erigir uma concepção de igreja diferente da de Jerusalém. Não
é êle um intruso, mas foram os apóstolos primitivos - que por
pxincípio não podem ser considerados intrusos - que permitiram
que intrornissões secundárias se tivessem tornado questões de pri-
mária importância. Para Paulo, .como para os apóstolos primiti-
- vos - isto é, os verdadeiros discípulos de Jesus que se guardavam de
tôda influência estranha - a essência mesma da Igreja de Deus
consistia em que ela se funda e se apóia unicamente no seu Messias
Jesus, e em que é seu Senhor somente Cristo, e não homens com
pretensões teocráticas, mesmo que êsses homens tenham recebido a
Revelação em grau especial. O fato de Paulo algumas vêzes apre-
sentar a(s) igreja(s) (de Deus) como assembléias em Cristo Jesus
ou de Cristo, pode ser considerado como certa ponta de polêmica
contra algumas atitudes dos discípulos primitivos; também as pa-
lavras: "a pedra porém era Cristo", podem conter elementos de tal
polêmica 15.
Uma doutrina- completa sôbre a ekklesÚL não existe nem em
,paulo nem em Atos dos Apóstolos. O que se descreve aí é simples-
-_mente a assembléia de homens como sendo a assembléia de Deus
em Cristo. Quem compreende que Deus, e como Deus, em Cristo
age nos homens, t ambém compreende implicitamente a natureza e o
sentido da Igreja de Deus, sem que expllcitamente se orne a elclcle-
sia de atributos ou predicados. Uma exceção parece haver em 1Tm
3.15 onde a igreja é descrita como casa de Deus, de onde surge a
idéia da edificação da Igreja (1Co 14.4s, 12). Mas o têrmo "casa"
é descolorido quando comparado com "igreja". De resto, o que real-
mente dá o sentido da passagem é ·a ·- expressão "de Deus".
· 3. · Cartas paulinas II: Colossenü:f e EfésiOs 16. Nas cartas ·
·aos Colossenses e Efésios encontramos considerações e explicações
sôbre a Igreja, e é nessas cartas qüe pela primeira vez aparece
uma doutrina. especial sôbre Igreja.

' 15 Cf. a anotação de H. Lietzmann, em Geschichttich.e Aufsaetze II 63 de K.


Holl: "Serã que a .expressão "a pedra porém era Cristo" (1 Co 10.4) não tem uma
ponta de polêmica? Para êle (Paulo) é, em todo o caso, claro que Cristo é a
pedra". Cf. também 1 Co 3.11; êsses dois textos devem ser tomados em consideração
quando se quer explicar Mt 16.18. ·
16 Sõbre o que se segue ver N. Glubokowsky, W . F . Howard, K . L. Schmidt:
Christus und d~!? Kírche (Ef 5. 25-32) (Relatórios da Conferência de teólogos
orientais e ocidentais em Berna 1930), ThBl 9 (1930) 327ss.
~fi Karl Ludwig Schmidt

Em Cl 1.24 a Igreja é o corpo de Cristo; em 1.18 Cristo é a


cabeça dêste corpo. O mesmo se afirma em Ef 1.22 e 5.23. Típico
é que em 3.21 e 5.32 Cristo e a Igreja são. colocados lado a lado,
como que na mesma ordem; por outro lado, em outras passagens
se fala de subordinação (5.24: a Igreja está sujeita a Cristo; 5.25:
Cristo amou a Igreja; 5.29: Cristo alimenta e cuida da Igreja) ;
cm 5.27 -a Igreja é chamada santa e sem mancha. (A caracteri-
zação da Igreja como santa não aparece ainda em Paulo, sendo ao
contrário muito freqüente em escritos posteriores). Tal descrição,
aliás, é·pleonástica. Outro exemplo temos em 3.10: "para que seja
conhecida ... pela Igreja a multiforme sabedoria de Deus". Ê di-
fícil saber o que tais expressõe.s significam exatamente em Efésios.
A 1inguagem figurada parece ser empregada sem nenhuma lógica.
Cristo é a própria Igreja e esta é o corpo de Cristo; e ainda: Cristo
está acima da Igreja como sua cabeça. Tôdas essas fórmulas são
intimamente relacionadas entre si. Aqui Cristologia é Eclesiologia,
e vice-versa. Tüdo isto é obscuro para nós; não porque não possa-
mos compreender as afirmações em si mesmas claras; mas porque
se trata de coisas obscuras na própria mente do Apóstolo, pois são
afirmações concernentes a um mistério (3As). Não que seja urna
fuga para o :reino do místico. Antes, o que ê para os homens "mis-
tério", para Deus é "revelação". Tudo o que se refere a Cristo e
à Igreja é pensamento de Deus, obra de Deus, sustentada por Deus.
O clímax de tudo é atingido no hino final (5.25-32). O código de
conduta familiar somente significa que as relações entre homem
e mulher devem ser baseadas na relação entre Cristo e a Igreja; por
outro lado, esta relação é explicada pela que existe entre homem
e mulher.
As imagens aqui usadas provêm da linguagem mítica daquele
tempo. H. Schlier 17 demonstrou que "as expressões da carta aos
Efésios sôbre Cristo e a Igreja mostram uma visão unitária do
mundo, e seu autor fala a linguagem de determinados círculos
gnósticos. O Salvador que sobe aos céus, vence em seu caminho os
podêres celestes ( 4.Sss) e rompe o muro de divisão que separa o
mundo do Reino de Deus (2.14ss); volta para junto de si mesmo
como o anthropos supremo ( 4.13ss), que leva uma vida indepen-
dente nos reinos celestes. Contudo, êle é a cabeça do corpo; sendo
assim êle eleva os seus membros, cria o "homem nôvo" (2.15) e edi-
fica seu corpo para ser o edifício celeste de sua igreja {2.19ss;

17 Cf. bibliografia. Nas liturglas mandéias (cf, M. Lidzbarski, Mnndaeische


Liturgien, 1920) :fala-se de uma "construção celeste" que é o lugar da grande
Luz e do anthropos, homem, do aner te!eios, varão perfeito; além disto êsse anthropos
é substituído pelo seu sôma, corpo.
4. , na qual se revela a obra de Deus
ama e purifica e salva a sua
é o marido, unidos um ao outro em v""""'"Loei••..,...... ,., <al"n,..,.,.;,1
Estas.diferentes representações rfr•.,. ...."
o muro celeste· 3. o nc1m,en:11cele!s
; 5, o corpo de como ""'u·•·.....v cetef!t'f·f·1;ké6·\~01lU1~l()"'Cêl1~~·
restritas a um círculo e não peirt1enicmn .,,., ... v'"·~,.,.º
comuns a todos os cristãos. A idéia
Cristo dificilmente
partes do
cadas Cristo e sua
Efésios é propriamente só o tronco.
para a cabeça, de um lado, e do .outro,
cabeça. Cristo é, ora a cabeça, ora o corpo
a cabeça. Esta representação complexa não
das exposições paulinas de Rm 12.4ss
a equação: corpo = carne ··-:-:
ser inferida do modo de
1Co 12 os

se encontra
nas Salomão, etc; 18;
para o alto como o seu corpo. Cristo é
fiéis e cuja é êle mesmo. A como ocorpo
só vem a por êle e nê!e. A Igreja de um lado é idêntica com
o corpo do e com êle mesmo; .de
pode ser substituído pelo seu parceiro feminino,

1~ Assim füla .Teódoto, o discípulo


tornando em si com poder a Igreja,
levou para o "ªº tódas ns coisas que
e:;;; Theodoto 58, 1}. ·Sôbre a idíiia de
(<:<:leste), cf, Odes de Sa1omão 17, 14 . "Receberam :minh!il,'l.'.fí'!l'tǪ ....· ... mti~arit .
\·ivos, unirain-se a mim e foram salvos, pois tornaram-se l'ri:eús membros:.e<::eu.
<;ua cabeça. Glória a ti, nossa cabeça, Senhor ·Cristo!" Em':'Schlier,pcisSim/éhá'':
outros exemplos tirados dos apócrifos cristãos e. dos. escritos gnllstle<»ve· mandeus.
Não se pode negar a estreita relação entre êsses .textos !l'· O:: ,tl.10do. ~: · ·
Efésíos e Colossenses, embcra os detalhes permaneçam duv!dosõs; •·Mas
interpretação falsa da realldade ver nessa relação uma depend.ência
da mitologia gnóstica. Schlier talvez pudesse ter 11ublinhado·mais exj>
que - como no restante do NT - a linguagem cristológica· '.é polêmica· e f,lui>;
:;ú assim fica asssegurada a dign!dade única de Je-sus Cristor"O qmiJ, ·apeear::do.s,;::·
p1·e<licados novos, sempre pemumeee o lógico,· Com éi'eit.o',0l!ll'.l serem..1he- •
aplicados os /..,11rios, soter e logos; o processo mepU!l é-•senu>ri ··
o mesmo: se afirma que Cristo é o logos, mas que "Cristo" é· o "lóg,oe"• · •Cf,
;;s duas notas scguln tos. · ·
28 Ka,rl Ludwig Schrnidt

designa por sophia, sabedoria. É a partir desta imagem de conúbio


que se devem entender as expressões de 5.25-32 que culminam na
sentença: Cristo alimenta e cuida da Igreja. Tem-se a impressão
de que, nunia representação tão complexa, e ao mesmo tempo gran-
diosa se encontrem divagações em que a fé em Deus e em sua di.:..
vina 'assembléia é interpretada dentro de uma moldura especula-
tiva. Por rnais que tal impressão se imponha, é preciso repeli-la
resolutameJJ.te. A maneira como se fala da Igreja mostra que não
se trata de especulações sem base nem de afirmações esotéricas.
'rambém en1 Efésios a sabedoria e o conhecimento de Deus não são
teoréticos, )'Ilas práticos, isto é, consistem no conhecimento do "co-
racão" (1.18), conhecimento que se realiza na obediência a Deus.
> p '9
isto é, na íe ~ .
Uma vez estabelecida a origem do mundo representativo de
Efésios. aiµ da não se respondeu às questões: qual a finalidade e
a razão dessas 'representações? A isto se pode dar uma dupla res-
posta : 1. os conceitos e as representações gnósticas, tais como se en-
contram enl Efésios, são muito adequados para exprimir a íntima
re1acão entre Cristo e sua Igreja e assim estão a serviço de uma
eclesiologia cristológica. 2. O background gnóstico serve, em meio
a uma situ&Ção difícil (ataque de heresias, oposição entre cristianis-
mo judaico e étnico), para garantir uma cristologia de cunho ele-
vado como era necessário naquelà situação. Não obstante todos
êsses aspectos novos, Efésios é, quanto ao conteúdo, inteiramente
pau1ina, sendo por isto indiferente que essa carta tenha sido es-
crita por 'f'au1o ou por um de seus discípulos. Justamente quando
se entendem as dificuldades exteriores e interiores a que estava
sujeito um apóstolo primitivo quando queria tornar claro o que é
e o que significa propriamente a assembléia de Deus em Cristo -
quando se tem isto em mente - não se poderá ter aquela certeza,
comum entre os críticos, de que o apóstolo mesmo não podia ter es-
crito as epístolas aos Colossenses e aos Efésios. É certo que já o
próprio Paulo teve de lutar contra certas concepções niveladoras
judeu-cristtis e judaísticas, bem como contra certos exageros gentio-
cristãos e até mesmo gnósticos. Sendo assim, êle devia falar ao
mesmo temPº de modo forte e elevado, como se constata em I<Jfésios.
Tratava-se de uma luta interna da comunidade cristã, que sempre

rn A afirmação de Schlíer de que em meu trabalho Die Kirche und das


UrC'hristenturr» 313 e 315. eu não teria reconhecido o !ato de que "a mitologia
de Efésios ni:ͺ está aí em razão de si mesma, isto é, a serviço da especulação",
evidencia-se assim incorreta. Concordo inteiramente com Schlier quando êle
afirma que a mitologia de Efésios "é a única possibilidade conceptual de o autor
e seus ouvintes se exprimirem". Na pág. 315 de meu trabalho só falei de "espe-
culações mar,ginaís sõbre a Igreja".
Igreja ~9

corria o perigo deturpar o sentido que a Igrêj_a é:e deve ser.


Contra certa fome de privilégios, judaica, que ameaçava âtê
. mesmo os primitivos, de colocar pessoas huin.a;na.s; e Um
lugar terreno no centro mesmo da igreja; era necessápio··atifmar]Jülf
a igreja é "do alto". Contra estraXl.has:.especu(á · · ·- '· · ~··
exemplo, a respeito do conúbio celeste em.1,{riê
"""F''~ masculino e a sophia o princípio feminino
a Igreja é a única qUeocupa ô lugar
- tal como nos é conhecido de suas
- não só não ignora tâis ; mas
rn<>l'O'Uui..:i.u" nelas. No oue se refere ao,elemenfo ... fe'"'
........,.,"'" basta. lembrar ll.2 :onde Paulo se re,,
apresentar os aGiisto "como vir:-
gem pura a um só espôso". Quando em 12Ass.e 1Co12.12ss ·
os cristãos são apresentados como corpo nas relações·e:ntr~ sie ~ão
em relação a Cristo, não se trata··de. ·uma .contrS:dição. quanto ..ao
conteúdo somente na iI1ter.,relaÇão de:amo:r a.:l.Jeus "
amor ao ! - mas simplesmente de.uma~qu~tão:'d~.·:íor:nla; ~
De a dificuldade de atribuir aPaµlo as ~f~i-b,#Ç'(}'.~~e~ll,'!ªi9-·
Colossenses e
outro lado,
. se refere ªº ÇQ11WY.PQ,.mas :à
.fácil cornp:rn~'.l.li:l!i:t·que:·Pal.tlQL
ocasião de uma polêmica, 1,1pr~e,ntadQc.uzriã;d9:µ~;in,a..sl}...
tal como se · em Colossenses e Efésios, perma~
dificuldade em admitir que Paulo pessoa1me:rite .tenha
com tanta todo êsse mundo de conceitos gn6s-
Hco-mitológicos 20.
:Jl,fas, como fôr, nma coisa é clara: a Igreja. como corpo
de Cristo não é mera sociedade de homens: Partindo de pressu~
postos sociológicos é possível compreender .o,.'.qll~,.~i~nificá e
quer a "assembléia DellS em Cristoy.·:,.qponto deci-
,,ivo com Cristo. ·. Falanao-·com.· c~rpf doáEfde e:xa-
gêro, que um único homem J>OclE!:tÍP- ~onstit1Jí~.a"Jirjfa quan-
do tem a comunhão com Cristo. Sõinelite a pa.rtir·.d~s~st~~Jliunnã.ct>
com Cristo começa a existir a comunhão dos hq~el!~;~'ijn~r~ ·ai'Como
' ,_ - ~~;::··::::: .,-- ,:___-

';-. -->''""': :-r<-

2(1 Nêste ponto, sómente. entra a mui discií.üifa questlio :ai,iiti'téntkídade


a relação especial entre Efésics e Colossenses desempenha ainda papel pcndei'âvêl.
Existem teólogos "tradicionalistas" que consideram Efésios como "àutênticá", isto
<', como paulina, porque atribuem a Paulo uma evolução que poder.ia ter chegado
até desenvolvimentos gnósticos, Nesta linha à (ie:fesa da . autenticídade -,- e como
•· feita por 'f, Schmidt, Drtr Leib Christi <.Somq Chrbtou) (1JU9) 255 -,, .Qhega
atl! à afirmação: "De fato nunca como aqui P#ulo se eleva \tíio"aclma de céus :
•• terra, passado, presente e futuro, mima corl$1deração que.àbrange tpdo Ç> mundD .
•. tôda a história", De outro lado e::dstem "crít!cos" tjue mantêm ~o
r·o11tcúdo paulino de Efésios mas lhe negam os gnósticos" que Ili aparecem,
irmãos 21, tôdas. as tentativas sociológicas de solver a que."l-
tão da.Jgreja 1 deve-se notar que em Paulo, nas epístolas dêutero-
paulinas e. também no quarto evangelho, a Eclesiologia não é outl_'a
'"""~•u .. Cristologia, e vice-versa. '.Paulo sublinha fortemente
cristãos -.- isto .·é, na como corpo de Cristo -
rte:i~aIJ1tir•~e1·a1rn tôdas as {Cl 3.11 = Gl 3.28).
último se diz: "Mas pertenceis
vJ;.i1:11w.;~;;.l)V_-<<> semente de. herdeiros segundo a promessa"

do corpo
prudentemente, com reserva. Do ponto de
nem muito ron-.....~..... ,.,,w.on
representar. de falar. figu-
e mal interpretado a ponto de se pen-
um crescimento no sentido natural. · Ser
ouvir o chamado Deus. Não existe uma.
''""''"u';:."""'""" da Cristologia, uma mística. de
pois em Cristo o da Antiga Aliança, o
.Alianç.a'.j fala, e a neotestamentária
de Deus em nada mais é cumprimento perfeito
assembléia vétero-testamentária de O mesmo Deus falou e
fala a· Israel com palavra da promessa e aos cristãos com a pa-
Ia vra âO cümprimento desta promessa, Tal como permanece o Deu.s
do VT apesar da existência da chamada mística de Cristo,
também permanece a comunidade Deus do VT, apesar do assim
de Crisfo. À se atribui a santidade, sem que
qualidade da Em outras palavras, a idéia cor-
que é Igreja, Assembléia de Deus em Cristo,
aeioerme inteiramente da idéia correta do que é justificação. É êste
tal como era já nas lutas de quer contra os
uu1;1,u"~"'""''" quer contra os gnósticos.
4., Outros livros contêm o
têrmõ ekkle8ia nos r.n-t"'r'rHS
nôvo ao que jáfieou.dito. No Apocalipse
témo têrmo: 13 vêzes o plural e uma vez o singular, aplicado a
cada uma das comunidades de Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira,
Sardes, Filadélfia e Laodicéia. 3João fala três vêzes de ekklesia,
duas vêzes com artigo e uma vez sem êle, sem que se veja a dife-
rença. Tg 5.14 fala dos "presbíteros da igreja", e se refere à
comunidade particular, mas à comunidade em geral. pois êste escrito

:n é muito. bem exposto pelo teólogo vétero-católko E. !Jie


Kirche, ihf Wiesen und ihre Bestimmung, em Internat. Kirchl. Zeit&ehrift (1927)'
págs. sobretudo 146.
Igreja 91

é dirigido a todos os cristãos. Hb 2.12 diz: meio à congregação


te cantarei hinos,'; é uma citação verbal de SI 21.23 (Septuaginta)
= Sl 22.23. 12.23 se fala da dos primogênitos inscri-
tos nos céus". Êste é o único passo em que se emprega igreja com
vistas à Jerusalém celeste. Permanece duvidoso se aqui temos ouso
técnico do têrrso ekklesia, tal como é usado no· restante· do· NTfno
co:ntE~xt;o se fala de "reunião , de modo.· que se ..pode ·pensâr -
numa assembléia festiva que se realiza no céu, como 9e reali.-
zam assembléias festivas na terra 22.

C. O USO GREGO DO Tí!:RMO

No próprio (At 19.32,39s) vemos que ekklesia. é um têrmo


tirado do grego profano e que significa "assembléia popular". O
sentido bíblico, tanto vétero como neotestamentário, aparece sômen'."
te quando .se lhe junta tou theou., de Deus, enquanto que o sentido
neotestamentário, propriamente dito, se manifesta pelo acréscimo
ulterior Cristo Jesus"; é que êste acréscimo seja ex-
ou implícito. ~

O que significa o fato de o judaísmo helenístico e o cristianismo


grego primitivo terem adotado esta expressão? Acaso trata-se de
uma €:&:pressão cultual dentro do grego profano?
A partir Platão e Xenofont.e, como também nas
inscrições, ekklesia é a assembléia do demos, povo, em Atenas e na
maioria das gregas. A etimologia do têrmo é ao mesmo
tempo simples e significativa: os cidadãos são os ekkletoi, ·,.,unr,...,.,,,_
dos, pelo "para fora" suas casas para uma .,..,,·ffn·íiin
Partindo ponto se algo para o s12:nt:u10
em Cristo "para

Permanece duvidoso se qualquer associação ou assem~


bléia cultual se tenha ekklesia e se podemos .falar de i•e:x-

22 H. Windisch: Habraeer, ad ?ocum,, evita com razão a palavra ...comunidade"


e traduz: "multidão festiva reunida''. ·
23 W. Koester (d. bibliografia) 1, aponta para uma ortogl."at!a (eklesfa <
Mlaos"), mas que não é :registrada pelos dicionários·
ser considerada bolada,
24 Ct De!:ssnuin:n, Licht vom Osten (pág, 90).
32 Karl Ludwig Schmúit

dentro do grego Esta pergunta tem


se respondida poder-se~ia com-
preender que uma comunidade se tenha chamado
ekklesia partindo do uso cultual do Pense-se, antes de mais
nada, na situação em Corinto, tal como a descreve em 1Co 1.
mesmo abstraindo do fato de que para falar de um
uso cultual de ekklesia é insuficiente, é que Paulo teria afas-
uso de tal abuso, pois o seu era o da
de Deus, como do NT. alguns
gentio-cristãos, que pouco
VT, tenham entendido sua comunidade
""'""'""''" gregas. possível, e até mesmo
que da organização das comunidades
nham segundo as sociedades então 26
Mas o no uso grego do térmo realmente influiu na
ekklesia a linha que vai da ao 1'7. Foi
desta linha que o recebeu seu valor Depois que
les que vieram do mesmo, com-
oreendendo a entre a ekklesia do e NT, estava aberto
ô caminho. Neste a ekklesia do dernos é somente um parà-
formal do paralelo que tem o de uma
mesma forma como o Kafaco· é

25 Isto é afirmado poi· Joh. Korintherl:nfof a W.


J_.iebenam, Gesc-hichte und des roeniischen. (1890);
E. Zíebarth, Das ariechische (1896) - onde não se
exemplo, e F. Poland: Geschichte des griechischen Viereinswesen
332. dicionários recentes não trnem exemplos <por ex.:
Preuschen-Bauer). Lietzrnann, Korintherbrífen, 4, anota expressamente: " ... como-
designação de associações cultuais ela (a ekktesia.) não aparece e as
três aparentes exceções (cf. F. Po!and, 332) confirmam a regra, pois aí
ek:klesüz não significa a associação mas a sua reunião regular, tal como no uso
profano".
'.211 Cf. Reinrict Zum genossem:chaftlichen Charakter der paulini.schen.
Christe-ngemeinden, em 'l'h. St. Kr. 54 (1881), pãgs. 505ss. Contra Hein:rici com
razão se afirmou que aqui se trata de coisas que se verificam na formação -de
qualquer comunidade e que níio são próprias das associações de então. Cf. Joh.
w·eiss, op. cit., XXss.
21 Não assim E. Peterson (cf. bibliografia} pãg. 19, nota 19: "De diferentes
modos se pode mostrar que o Iaos da ekk.!esía cristã é o sucessor· do antigo demos.
Não só penso nas "aclamações" que do demos passaram ao laos, mas chamo ainda
a atenção para o fato de que na ekk!esia cristã a manumissio, alforria, sob a forma
de proclamação, provém da ekklesia profana". Pode-se admitir que num caso
particular como êste tenha havido influência. Todavia, de um caso singular niio
se pode provar a tese de Peterson sôbre a substituição da ekktesia. pela
.ekkksia cr.ístã. Mais prudente se mostra Peterson no texto seguinte 14s):
"A ekktesia profana dos antigos é evidentemente uma instituição da Ela
Igreja 38

um paralelo (polêmico), e não o modêlo, do kyrios Christos. O fato


de que ekklesia possuía - pelo menos no tempo do grego clássico -. :. >.
uma coloração religiosa, como uma das principais instituições da.)~~~
polis de origem divina, não altera em nada as nossas conclusões.,,:0.iilf~
caráter religioso da ekklesía gréga aparece,· por. exemplo, !1as;9:1:.~"':·ii:·0
cões que costumavam ser feitas. pelo arauto; antes ·:ais· teuniõe~Ç
pelos oradores, antes dos respectivos --arscursos;2s~-O~fato de ::mais·. . -
tarde - aliás já na igreja antiga -. êsse_simples.paraleloc&eter·
transformado em dependência e imitação p€rteiíée) 'Um ót1t!'() ca-
pítulo, isto é, ao capítulo da história eclesiástica tanto romana co-
mo bizantina. ·· · • _.:. ··
Historicamente o têrmo grego ekklesia 'foi o'únieo ·que 'sé inl;.
pôs na comunidade cristã como terminus tecknieus, para ·µesigná;;.fa;
Os latinos não sentiriam a necessidade, nem mesmo a possi~i1Jdade,
de traduzir o têrmo pará o latim.· Tertuliano -.-. que· influenciou
tão fortemente a linguagem eclesiástica - designa uma vez á igreja,
em seu Apologeticu.m (39 aE), por "curia"; trata-s~ de .umá tra.".
dução exata de ekklesia, mas que não se tornoü técnica ~w: O mes-.
mo se deu com a "civitas dei", Cidade de Deus/de Santo· Agosti;;.
nho so. Aqui e ali aparecem ainda outras traduções :latinas, como
"contfo" e "comitia" 31. A tradução literal teria sido· "convocatio".
Os romanos foram seguidos neste ponto pelos diferentes. povos ro~·
mânicos. Menos significativo é o fato de que o grego moderno te'"'
nha conservado eklclesfo. I:;:; se é quase certo que a palavra alemã
"Kirche" e as outras formas germânicas correspondentes - como
o inglês "Church" - vêm do adjetivo "kyria.kê", e certamente não
. ,.
{: a assembléia dos cidadãos de pleno direito .de uma. polis, que se reún'em para
cumprir atos públicos. De maneira análcga a· ekklesia cristã que se'reúne para
determinados atos de culto poderia ser chamada como asi>embléia dús 'cidadãos
plenos da cidade celeste... Do caráter público-jurídico do culto. dlvino .. dos
cristãos '"parece que a Igreja está muito mais próxima das instituições polfücaa,
como reino e polis, do que das associações e frater:riÍdádes ·livres".. . ··
2.~ C!. G. Busolt-H. Swoboda: Griechische Staatsktrnde (1920) :1,.pág1k 518s;
H, págs. 996. Exemplos de oração na· ekk!esia -ateniense, em :At'iSiótanes,~ Ei;znites,
págs. 763ss; Demóstenes, Orationes 18 1; Plutarco, De Pericie 8 (I 156c), Praecepta
Gerendae Reipub!ícae 8 OI 803s}.
2\J Cf. A. von Harnaek: Die Mission und Ausb1'1eitung des Ch.ristentums in der·.
ersien drei Ja.hr/mnderten I (1924), págs. 420, nota 1.

:w Segundo Kattenbusch, I, 144, nota 1, esta e "a primeira tentativa de,traduzir


segundo o sentido". Mas contra isto Kleinknecht diz: "Em Agostinho '"Civitµ.s
}Jei" traduz o conceito político de politeia. sob a influência de Platão, em tôda a ·
sua complexidade; mas certamente não é tradução de ekkteria".
31 Cf. Deissmann, Licht t'om Osten, pág. 90.
34 Karl Ludwig Schmidt

de por uma éspécie de etimologia popular, sempre


se insist,e na entre ekklesia e "Kirche", etc.
tudo isto? Por que se conservou tão tenazmente o têr-
Pode~se pensar que nos meios não-cristãos se tinha
imPresf)ãO que em latim palavra que correspondesse
a ekklesia ::12.
essas analogias, por mais atraen-
;>l;<0'"""'""'l;uo• de ekklesia a partir Bíblia gre-
a ser designada com o mesmo vo-
como continua a ser kyrios. E
e considerações não provam matemàticamen-
""""''-''"".,,.,,., respectivamente ecclesi'a, tenha ficado sem-
pre estritamente da linha da Bíblia grega. Contudo, um
argumento de probabilidade pode ser apresentado: o latim, depen-
dente do grego, não adotado uma palavra que os cristãos gre~
gos teriam tirado seu próprio tesouro lingüístico, se esta pala-
vra já não uma história del'ltr() do LhTo Sagrado.
neste têrmo e mundano, que é
kiesia, que se :manifestou a tomada de posição da comunidade
cristã peraute o mundo. Teria sido certamente possível que uma
sociedade cultuai - como provàvelmente se consideravam muitos
cristãos gentilidade (em concordância com a
das religiões) - tivesse escolhido para se designar êste ou aquêle
têrmo de caráter cultual. De fato. têrmos assim tirados dos meios
cultuais e das religiões de estavam à disposição em gran-
E, por êles, escritores pagãos designaram algumas vê~
zes a comunidade cristã: Luciano faz dos cristãos um thiasos, so-
cn:uC;1,u<:: cultual, quando .chama seu líder. thiasarches,. chefe religio-
so 33; Celso chama os discípulos de Cristo thiasotai, membros de uma
sociedade religiosa 34. Mais significativo ·é o fato de que também
de Cesaréia chame os cristãos duas thíasotai, e uma
112 Dl'issmann, loc, cit, lembra que já PlirJo o Môço usava a palavra ecclesia
(carta a Trajano X, 110, 111: "bule (!t ccdema consenti.ente, com o consentimento
do conselho e <la bem como uma inscrição bilíngüe de Éfeso do ano 103/104
d. e., em que a grega ekkksía é transcrita.
:i:i Luciano, De Peregrini Morte, 11: "aprendeu a admirável sabedoria dos
cristãos ..• o profeta, chefe de associação (thú.tsa:Tches) e convocador de assembléias",
34 Orfgenes, Coo.tra cei$1Lm lII 23: "mas o nosso Jesus, aparecendo aos seus
associados ·(thiasotai) - uso da palavra que se encontra em Celso - apareceu
de verdade". Orígenes, portanto, notou que Celso empregou êsse têrmo. A isto
corresponde o fato de que em Mlnúcio Felix, Octavitts 8s (ML 3) um pagão
fala da comunidade cristã como de uma fact'io, coi.tio, consensip (palavras de
sentido pejomtlvo). CL nota 40.
igreja 115

vez a empregar para a Igreja o têrmo


sos 35. Outros exemplos de tal não rios são
Por isto é preciso precaver-se dos .exageros que consideram
tianismo uma sociedade cultua! 36 •
Vemos assim que th:i(l,808 e ekklf;Ef.,a,
paralela, mas independente, Também A'l<1rn.,:•~i<ll'W:>!!!
coleção; koinon, comunidade; synüdos,
nião), · aplicadas às sociedades
tornaram de uso comum entre os cristãos.
vocábulos
pessoas 37. Em oposição a tendência não .se
tentou nunca derivar uma designação do .nome?"Jesus". O nome
cin'istianoi, que é :raro no NT (somente em At 11.26; 26.28; 1Pe
4.16). só aos poucos se tornou de uso comum e na forma ch'i'estia,.. ·
noi foi relacionado com o nome próprio Chrestos. "Cristianos"
são os partidários de Cristo,isto é, de um holl1Elll1 chamado
assim como "herodianos" são partjdários deJiero(les (l\Ic 8.6;
22.16). Os "cristianos" são um partido J;"e1igioso ao
partidos. · ···· .· · ..·:
. O exclusivismo se mostra muito mais ~ó'~I!lprêgo de
(de Deus) .do que na escolha de um ..têrmo criltuaLque
fôsse individualizado por meio do nome de uma pessoa.
assim chamado de Cristo.,. não pretendiâ.l'!er um culto .ao
do de outros mas era contra os cultos, no sentido·
que êle se opunha a todo o mundo, inclusive a todo o mundo
so. Tudo é garantido pela adoção do têrmo ekklesia,
--- como sempre é preciso sublinhar .;__ deve acrescentar
mente : tou theou ( en Ch'ristoi) .
perguntar, e fato ·se perguntou, guel!l
usou pela primeira vezekklesia. Seria Paulo; como
mais antigo, ·teriam· .,,,.,,.,,,N,.,

:;5 Eusébio de Cesaréia,


aos associados (thíasotai). as .simples virtudes e.
de verdade ... " Cf. I, 3, 19. A 'Palavra füiasos se em~on1tra
igreja.
36 Exemplo de tal exagêro e visão tali>a · temos
Toemeische Staat u:nd die aHgemeine Kirch.e bis au.f Di1>cti~tíct'I\
onde se afirma que "deveria :';!ato·d111 qt1e 2:ti
gregos não tenham visto em. suas re1m11ões .reUgJto111'uJ ,'rer•:iac!?it:o11,thii,a111)1'.1•.
abt1$1.t8 por parte de alguns cristãos . nã<>
37 Cf. $6bre Isto os eztud'Os
36 Ka.rl 'Ludwig Schrrddt

e
falavam escreviam g':rego? 38 Paréci{<lifícil atribuí-lo a uma pessoa
individual. É mais provável que o;; jrideu.:.cristãos que falavam gre-
" go, oriundos da sinagoga helenística, e gentio-cristãos que se uniram
a êles, se tenham chamado ekklesia, formando comunidades segundo
o tipo da sinagoga helenística, ·(!tii1mnidades que existiam antes de
Paulo e no tempo dêle 39. Como antigos judeus, êsses cristãos he-
lenistas tinham sido formados pela Septuaginta. Não se designavam
mais como synagogê (expressão ·sôbre a qual ainda teremos de fa-
lar), mas ekklesía. Como cristãos recorreram a um têrmo que já
não era mais tão usado pelos judeus. ··Em oposição ao uso da Septua-
ginta, synagogê recebera um sentido .sempre mais restrito e local.
Dêste ponto de vista ekklesia. se.recomendava muito mais. Do ponto
de vista do grego o têrmo tinha· mais pêso 40. Além disto é de notar
que na Septuaginta ekklesia .é acompanhada de predicados laudati-
vos 41.
Por que os judeus que fizeram a. tradução da Septuaginta, qua-
se sempre traduziram. o têrmo heb:i,·aico dlaha.t por ekklesia? Abs-
traindo d9 significado .da raiz, y~rb.al, que em cada uma dessas lín-
guas está na origem do têrmo, é muito provável a conjetura de que
a semelhança do som entre qahal e ekklesia tenha tido papel im-
. .. , ~ :.

s~ Kattenbusch (I :144, .nota 1) SI? jnclina parp. e~ta opinião. Sôbre isto ver
F. Torm: H.ermeneut'ik des .NT (1930), pág. 80. . Ates~ de H. Dieckmann: "Nomen
Ecclesiae ad ipsum' Christmri ut auctoréln reducitu-r' (De Ecdesia I, 1925, pág. 280),
é rejeitada até mesmo pelos 'autores católicos, pois Jesus dificilmente teria usado
o grego; cf. K. Pieper: Jesus unà àie Kirche (1932), pág. 11.
:rn Cf. K. L. Schmidt: Die Stel!W'l!J des Aposteis Pau!us im Urchristentem
(1924)' pág. 16.
·lO Wellhausen (Matthaeus, 84) opina: "Em grego o têrmo ekklesia é mais
nobre". A passagem. de Tertuliano (Apologeticum, 39) deveria ser entendida
como uma paráfrase de· ek1desia: "Hoc sumas congregati quod et dispersi, hoc
1w'h,ersi quod et singuli ... cum probi cumboni coeunt.• rum pii cum castí congre-
gantwr, non est factio diaenda, sed curin.", assim somos, quer congregados quer
dispersos; todos em conjunto somos o que são os indivíduos ... quando se congregam
pessoas honestas e boas, piedosas e castas, isto não se pode chamar "facção" mas
"cúria". O mesmo sentido tem a explicação que dá Agostinho sôbre a razão
por que a comunidade cristã se chama ekldesia, enquanto que a judaica se chama
synagogê; canvocatio (ekklesia) é um têrmo mais nobre do que congreg~io (syna-
gogê), pois aquêle se refere a chamamento de homens para se reunirem, enquanto
que êste significa "ajuntamento'' de rebanhos de gado (Enarrationes in Psalmum
82, 1).
4J Também Lietzmann · chama atenção para isto (Korintherbríefe, a propósito
de l Co 1.1). · Igualmente K. Pieper, (op. cít., pág, 20, ver nota 38). Já antes o
fizera A. von Harnack (c:f, nota 29), pâgs. 419s, mas cuja tese de que a escolha do
têr;-io _ ekklesia t;nha sido « coi~ r;:a~ist:t;!<,1" é, ct11:vidp8!", senã?. fora •de propósito.
cr1stãos e ate mesmo gnost1cos. Sendo assim, ele devia falar ao
Esta é reforçada
gostavam de
ou aramaicos nomes gregos e
43,

EXPRESSõES

como ao e,
ga, não é de
pressão para """''"'f',U"'"
qüeutemente que,
sa por êle significada

42 Cre,ner-Koegel, sub voce, pág, 566; e ainda G.


em: BFTh II, 24 (1930), pág. 44.
43 O exemplo mais conhecido é Saulo-Faulo; outros ex1am:p1os:
Silas (de she'ild, forma sramaiea de sha'ul, Saul) -Silvanus; n()s
Moses-Moritz, !saak-Isidor (lgnaz).
o Cf. Th. Spoerri: Der Gemeindegedanke im erllten Peffll.J1l:J'i~f
2711!';.
98 Karl L'Udwig Schniiàt

sultaram de determinada situação, para depois desaparecerem (os


discípulos; os pobres). O fato de que a expressão "discípulos" foi
aplicada primeiramente aos seguidores imediatos de Jesus e depois
se alargou para de nôvo se estreitar e não mais ser aplicada aos
cristãos, resulta da relação especial em que os primeiros seguidores
de Jesus e seus ouvintes imediatos estavam com seu Mestre. Assim
êsse titulo não se desenvolveu até chegar a significar igreja 45.
Uma evolução especial se deu com a expressão "sinagoga", que
aqui só será tratada em relação com "igreja". Superficialmente se
costuma afirmar: ekklesia é a Igreja cristã, synagogê é a Sinagoga
judaica. Mas esta dicotomia tão clara só se impôs nos séculos pos-
teriores e dura até hoje. Parece que Tg 2.2, comparado com 5.14,
mostra que synagogê pode designar a comunidade cristã 4 (;. Mais
certo e mais clarn é o fato de que os judeu-cristãos da Transjordâ-
nia chamaram synagogê a sua comunidade eclesiástica e também
f!eus edifícios religiosos 47. Contudo, afora êsses casos particulares,
os judeu-cristãos não se designavam por synagogê, mas por ekklesia.
De outro lado se conhece uma S'ynagogê dos marcionitas 48 • É pro-
vável que os judeu-cristãos tenham designado suas assembléias e
lugares de reunião por «sinagogas", depois que sua separação da
Igreja se tornou patente. Nos primeiros tempos, porém, todos, tan-
to judeu-cristãos como gentio-cristãos, empregaram as expressões
synagogê e ekklesia. É preciso lembrar ainda que a segunda ex-
pressão também é usada para antigas associações religiosas 40 • Ape-
sar dessas analogias vemos que a origem vétero-testamentáría da
linguagem cristã aparece mais claramente ainda em synagogé que
em ekklesia. Além disto, a coexistência dos dois têrmos é impor-
tante para se responder à seguinte questão sôbre a expressão ara-
maica que os primeiros cristãos, e antes dêles Jesus de Nazaré,
empregaram: até que ponto o têrmo semítico influenciou no sen~
tido do grego ekklesia?

E. MATEUS 16.18 E 18.17


1. As passagens de Mt 16.18 e 18.17 estão sobrecarregadas de
muitas dificuldades. Com efeito, êsses dois ditos de Jesus não ca-
415 Admitida por A. von Harnack, op. cít., págs. 416ss,
46 Cf. Zahn: l\1atthaeus (1922), pãgs. 546.
47 Epifânio: Haereses, 30, 18, 2: "êstes (os cristãos transjordanos) têm
presbíteros e chefes de sinagoga; chamam a sua igreja "sinagoga" e não "igreja".
48 "Sinagoga dos marcionitas": cf. Le Bas-Waddington: Inscripticm Grecqµes
et Latines, III (1870), n.0 2558.
49 Cf. W. Koester (vide bibliografia) l, nota 12.
Igreja 39

bem fàcilmente dentro do conceito de ekk'lesio, coniido nos textos


até aqui considerados. Já a partir dêste ponto abrem~se as portá.8 ·
de par em par a uma, critica muito severa. ü exegeta que nã.oinicia
o seu trabalho partindo do veredicto da não.genuinidade dessa1;q>a-
lavras encontrará grandes dificuldades na suafoterpretação. Tôda
exegese do texto é e permanece difíciKQ@t §~L@.Q~_r:ª_ o tw( o 'i:r;rego
que possuímos, quer se restitua o originàl ·aramaico da linguagem
de Jesus. Muito complexa é, além disto,'tCillfhiência que exercem
questões marginais quando são admitidas a clarificar a questão .cen~
tral. Conforme a exegese que se faz do texto grego surge um têrmo
semítico diferente para "igreja"; e, vice,,versa, conforme se pres-
supõe um texto original semítico, seguir-se"'á u111a exegese diversa.
A questão da genuinidade depende da explicação que se dá do texto
atual; e, mais uma vez, vice-versa, a questão da genuinidade, ou
não, modificará a interpretação. Uma coisa é clara : segundo a po-
sição que se tomar concernente às questões de genuinidade ou não-
genuinidade, as interpretações serãõ mais 'oü menos apodítieas.
Tudo isto tem influência por sua vez.sôbfa o conceito.de igre-
ja que se deduz de Iv!ateus. Como se vê, a lexicografia do vocábulo.
ekklesi.a nas passagens citadas é assaltada por tõda espécie de ques-
tões de crítica histórica e é bom nunca esquecer .a interferência que
daí resulta. Têrmo, conceito, significado de igreja são coisas imen-
samente complexas, ou falando matemàticamente, compostas de gran-
dezas imaginárias e reais. Mas, trata-se de algo complexo, isto· é,
complicado e difícil, mas não confuso, e por isso não se deve deses-
perar de poder resolver, como poderia parecer em vista das inter-
pretações mais desencontradas que encontramos no decorrer do tem-
po.
2. Uma dificuldade particular consiste em que os dqis textos
Mt 16.18 e 18.17 parecem não se referir.um ao outro.. Pressu-
pondo-se a não-genuinidade de ambos; o.texto de 16;18 pode ser
entendido em têrmos de igreja unive:rsaLe 18;17 de igreja.como
comunidade particular. Não resta dúvida de que a costumeira, mas
falsa, divisão em "Igreja" e "Comunidadé'' reflui sôbré a inter. .
pretação das duas passagens e sôbre a questão da genuinida,â.e. :Mas,
quando se pressupõe a genuinidade a explicação fica particularmen-'
te difícil: em 16.18 se fala do qahal, o povo de Deus do YT, e em
18.17 da sinagoga. Como explicar então que nas duas vêzias. se diz
ekklesía? Neste caso seria preciso refletir seria.mente .sôbrê a :re-
lação entre qahal e sinagoga. Mas, acaso é certo que êm16.1S se
:fala: de qaka:tt r:;
Karl Luâ:wig Sch'tnídt

3. Do de da crítica não se pode levantar


objeções 18.17, e muito menos contra 16.18, Não temos
manuscrito ou tradução falte 16.17-19, ou pelo
menos 16.18. que concerne aos da Igreja, é hoje em dia
ponto como as passagens incriminadas
Mártir, em nada depõe contra

que os esforços
depende a tendência e
de afastar o loeu,.s primado
51 - - da crítica Muitos se impressionam com o fa-
16.18 se em meio a uma falta em
e Lucas. Disto se podem tirar duas (a) Mt
foi interpolado posteriormente no texto Mateus;, (b)
o próprio Mateus, ou sua fonte, interpolou essas palavras "não-
genuínas" num texto pré-exístente em Marcos e Lucas e que
é próprio Jesus, ou pelo menos mais que a "interpola.-
A primeira hipótese é por demais para poder ser
Justamente num importante é
u~'·"'·"'"i,.,.; com efeito, em outros casos um teÀ'to
não é como interpolado só porque apresenta uma
ção peculiar 52. Mas também a segunda hip6tese, mais c01rne<1l<:ta,
não tem a que freqüentemente se atribui. Realmente, não
resta se trata de um de Mateus ou sua
mas ainda não se a questão da
É preciso contar com a possibilidade de que
provindo de uma tradição genuína, cujo valor
independentemente da moldura textual em
O fato de, em razão peculiaridade da
não estarmos em de :resolver

rio Mais detalhadamente em K L. Schmidt, Die Kirche, págs. 283ss. Note-se


que a tentativa de A. von.. Harnack de pôr em dúvida Mt 16.18 do ponto de vista
da crfüca textual, baseando-se numa passagem de Efrém, foi confutada pelos
críticos católicos. Cf. C. A. Kneller, em: Zeitschr. J. kath. Theologie 44 (1920),
· págs. 147ss; J. Sickenberger (cf. bibliografia); J. Geiselmann, Der petrinische
Primat, em, Bib!. Zeitfragem XII 7 (1927); K. Piper (cf. bibliografia), págs. 37ss,
Sôbre êste ponto ver Joach. Jeremias, Gdlgoth.a (1926), págs. 58ss.
lH Cf. K. L. Schmidt, Die Kír<'lwe, págs. 300s, contra J. Schnitzer, H(Jt Jesus
das Papstum gestiftet? 0910) e F. Heiler, Der Katholizi.smus (1923), pógs. 25ss
e 39ss.
1>11 Llnton (cf. bibliografia) pág. 158, com razio diz das tentativas crltlco-lite~
rárias contm a autenticidade: "Mas êste motivo não vale por si mesmo, pois
em outros casos a matéria própría de cada evangelista não é julgada com tal
sever:.d1:1de ".
Igreja 41

ou psicológicas, não modifica a necessidade de explicarmos um lo-


gion errático, como tal 53,
4. A crítica literária é tão incerta que o crítico. se prudente,
dirige sua atenção também para a crítica histórica~ · De. fato, em
última análise tôdas as objeções contra os textos "eclesiológicos"
de Mateus se reduzem a questões históricas.
O primeiro ponto pacífico é que Mt 16.17-19 possui colorido
inteiramente semítico e que, portanto, não se pode entendê~lo fora
da comunidade primitiva da Palestina 54, Mas com isto ainda não se
demonstrou que Mt 16.18 é uma palavra genuína de Jesus. As difi-
culdades históricas que ainda permanecem -0 5 são de duas ordens: (1)
Jesus e a Igreja; (2) A posição de Pedro no cristianismo primitivo.
Essas duas questões contêm cada uma duas outras subalternas: (a)
O ponto de vista estatístico: nos evangelhos aparece somente duas
vêzes o têrmo ekklesia; (b) O ponto de vista escatológico: pode
Jesus - o pregador do reino de Deus - ter pensado em fundar
uma igreja? (e) A história eclesiástica: Pedro realmente ocupou
a posição autoritativa que lhe é atribuída por Mt 16.18'! {d) A
p;:;icologia: o homem Pedro de fato se . mostrou como sendo uma
.;, rocl1a"?
(a) A estatística tem aqui pouca fôrça como em !Pedro, onde
o têrmo decisivo eklclesfo está ausente, mas aquilo que ekklesia é e
significa é descrito extensamente com expressões vétero-testamen-
tárias. Ora, tais sinônimos 56 também existem na tradicão dos evan-
gelhos. ,
. Em lVIt 26.31 e Jo 10.16 se fala de "rebanho", que em 1Co 9.7
é claramente identificado com igreja. Vejam-~e além disto: "re-
banho" (Lc 12.32; At 20.28; lPe 5.2s) ; "o aprisco das ovelhas"
(Jo 10.11); "meus cordeiros" (Jo 21.15); "as minhas ovelhas"
(Jo 21.l6s). Por conseguinte, não falta nem mesmo () possessivo,
correspondente ao possessivo em Mt 16.18. Assim como o "bom
pastor", é o mesmo que o "Senhor", também seu rebanho, é idên-
tico à sua igreja.

r.:' Cf. K. L. Schmidt, Der Rahmen der Geschichte Jeb'U (1919), 'págs. 21'l'si;.
Não assim Bulimann, Gesch. der synopt. Tradition, pág. 277, a propósito de
Me 8.27-30: contra isto ver K. L. Schmidt, Die Kirche, pág. 282, nota 1.
M Cf. Strack-Billerbeck, ad loC".im: Bultmann, op. cit., pág. 277; Joach.
Jeremias (cf. nota 50).
,.;; Bem expostas por Linton, op. cit., págs; 175ss.
:;<1 Cf. Linton, pág. 176. O problema da Igreja no Evangelho" de João ~ tratado
por E. Gaugler, Die Bedeutung der Kirche in den joh.an11ei.schen Schriften, em
lnternat. Kircltt. Zeitsch.r. 14 (1924), págs. 97as e 181; 15 (1925), págs. 277ss.
Igreja 48

derar a assim chamada instituição da Ceia como um ato da fun-


dação da Igreja eo. Abstraindo do fato de que assim se torna sem"!
pre mais clara a certeza de que Mt 16.18 não é um texto isolado,
um outro ponto aparece em tôda a sua importância: entendendo
dêsse modo o complexo "Jesus-Messias-Filho do Homem-Discipulo-
Comunidade-Ceia'', divisamos certas linhas que ·levam à concepção,
paulina e dêutero;.paulina de igreja, a qual de--um-,latlo~·"do alto",·
e do outro é corpo de Cristo, da mesma forma como Jesus é ao
mesmo tempo o Exaltado e o Presente na Comunidade. Além disto,
a questão da fundação da Igreja por Jesus é idêntica à questão de
sua messianidade 61. Uma questão secundária. em relação a esta é
o problema insolúvel do "quando" e do "onde", e isto em razão do
caráter peculiar das narrativas evangélicas 62.
(b) Acaso, pergunta-se, tudo isto é compatível com a Esca-
tologia, tal como ela é concebida por Jesus em sua pregação do Rei-
no de Deus? Depois do que ficou dito podemos ser mais breves
a.o :responder a esta pergunta: também ·a Igreja é ·uma realidade
escatológica. Isto resulta precisamente do ambiente escatológico em
que Jesus se move quando afirma ser o Filho do Homem, e ao ins-
tituir a Ceia.
:É certo que reino de Deus e igreja não são a mesma coisa.
Elas se distinguem na comunidade primitiva, a qual certamente se
entendeu como igreja, mas que continuou a anunciar o reino. Dis-
tinguem-se também na pregação de Jesus, o qual prometeu o reino
de Deus à igreja por êle fundada. Neste sentido também a igreja
que existiu depois da Páscoa se entendeu como escatológica. Neste

a•ltort>s são seguidos por Gloege {cf. bibliografia), págs, 218 e 228 ("0 salvador
só é salvador se é criador de um povo nôvo, salvo, justificado. Assim como
o pastor, não é pastor sem o rebanho, também o Christos não é o Cristo sem a
ekklcsia") e Linton, pág. 148 ("0 :Messias não é uma pessoa privada; a ê!e pertence
uma comunidade. Ao pastor pertence um rebanho").
60 É mais uma vez Kattenbusch ·que penetra mais profundamente: "Quando
êie funda a ekk!esia, :isto é, uma comunidade, em seu nome, -na última Ceia, não
deixa de aludir ao título que escolheu para si da visão de. Daniel, e o põe em
primeiro plano (Mc .. 14.21).,. indicandp. a natureza do. "Filho .d.o. Homem" por uma
referência a Is 53" (I 171). Esta expllcação seria mais probativa se Kattenbusch
fizesse uma análise mais completa do texto da última Ceia. Cf. K .. L. Schmidt,
artigo "AbendmahZ im NT", em RGG I, págs. 6ss.
61 Ver uma resposta afirmativa bem precisa para esta questão em K. L.
Schmidt, artigo "JeBUs Christus" em RGG III, págs. 149s, em oposição a J, Wellhau-
sen. W. Wrede, R. Bulimann.
6'.2 Por êste mesmo motivo são duvidosas as etapas descritas por H. D. Wendland
(cf. bibliografia), por mais atrativas que sejam.
44 Karl Ludwig Schrnidt

mesmo sentido também o homem particular como pecador justi-


ficado deve ser entendido como escatológico 63.
(e) O argumento contra Ivlt 16.18 tirado da história eclesiás-
tica afirma: Pedro não ocupou no cristianismo primitivo a posição

0:1 Bultm@n, em sua Geschichte .d. -syn. Tradíiion, págs. 149s, bem como na
recensão do livro de Wendland, constrói uma teoria que deixa de lado este aspecto
da questão (ef, DLZ 55, 1934, pág. 2019ss). A opinião aí exposta de que "O
problema propriamente dito da ekktesia. . . consiste em que a ekklesia é posta
em lugar da 'basileia tou theou . esperada como próxima por Jesus", correspondo
a um ponto de visia evolucionista passado, e no qual não se interpreta corretamente
a passagem de Jesus para a comunidade, isto é, para a comunidade primitiv•,
tanto de Pedro como de Paulo. Se Buitmann atribui à ekkiesia: - e segundo
êle a comunidade primitiva se considerava como tal - um "caráter -radicalmento
escatológico", resta-lhe responder à pergunta de como esta comunidade primitiva
distingue Reino de Deus e Igreja entre si, se ambas são realidades escatológícaa.
Cf. o prefácio da 2." edição de K. L. Schmidt, Die Kirche.
J. Haller, Das Papstum I (1934), afirma categoricamente: "Uma critica
escl.arecida, que . tem em mente todo o conjunto dos ensinos do Salvador, nunca
pode acreditar que Jesus mesmo tenha proferido as palavras que lhe são atribuidu
por Mt 16.18s... Temos aqui uma profecia posterior que pressupõe seu cumpri•
menta" (pág. 4). Completando êste pensamento, di.z ainda: "Ainda nlio .fol
provado que ai temos uma palavra genuína de Jesus. Segundo minha opinião a
palavra final só pode ser contra a autenticidade, a não ser que se dê a e1ta1
palavras um tratamento diferente do exigido pelas leis <la crítica, válidas em
outras circunstâncias. É verdade que sempre há ainda alguns que proccrlcm
assim, por ex. Kattenbusch... O mesmo se deve dízer do amplo e pretensioso
ensaio de K. L. Schmidt, apesar de ser engenhoso ... " (pág. 442). Qunnlo ••
"leis da crítica, válidas em outras circunstâncias", às quais Haller apelu nu
interêsse de uma "crítica esclarecida", basta dizer que um veredicto bem di!crento
é dado pelo jurista G. Holstein (Die Gr'llndtagen des evangelischen Kircherrrerhtn,
(1928) e pelo historiador E. Gaspar (Geschichte àes Papstums, 1930-1933). A
respeito do último Haller diz simplesmente: "Nossos "caminhos são, de ruato,
tão divergentes e as diferenças na avaliação e tratamento das fontes süo tlu
fundamentais que penso fazer bem em :renunciar a discussões críticas, l!XCC-ÇllO
.feita de algumas poucas passagens. Existem diversas maneiras de escrever hl5tórl1
e "cada qual veja como o :faz", (pág. 441). :Esta tomada de posiçíío mostra quo
não convém discutir mais com Haller. Cf. também K. Pieper, Dic crnacllltclu1
Eínsetzunq àes Petrus?. (1935) e Jesus unà àie Kírche (1932). Igualmente na
recente obra de W. K. Kuemmel, Die Eschatotogieder Evangefien, cm Th, BI. 111
<f936)' pág: 225ss, não fica esclarecido o caráter especial escatolé.glco dà P.kkluln,
em comparação com a basileia tou theoti,. Kuemmel escreve: "K. L. Schmldt,
por meio de investigações lingüfsticas, tentou provar a idéia de que Jesus quarl11
rondar uma comunidade especial, sendo uma das provas as palavras de Jesu 1 a
Pedro <Mt 16-18s), admitidas como autênticas. É típico como em tôd11 a11••
discussão as construções sistemáticas substitu.!:ram as questões exegéticas. :P:m
oposição a isto, é preciso que uma séria pesquisa bibllco-teológica tome aau
ponto de partida das realidades exegéticas" (pág. 231). Contra ês~e verrdlcto
"crit~co" só se pode dizer que a explicação por nós proposta do iocus cla1ncu1
da Igreja não parte de "construções sistemáticas" e que se buscou sérl1mente
partir das "realidades exegéticas" para chegar a uns "série pesquisa bfbllco-teO•
iógica".
lgreia .~5

autoritativa que aí lhe é atribuída. Esta objeção -- que alude a


1Co 3.11; 10.14 (cf. também Ef 2.20) para provar a não genuini-
dade de Mt 16.18 M - pode ser refutada da seguinte maneira: de
um lado é certo que Pedro, mesmo à luz da opinião que dêle tinha
Paulo, desempenhou um papel mais importante do que geralmente
se costuma conceder do lado protestante na polêmica entre protes-
tantismo e catolicismo. Visto que não se podem apresentar X<\ hc;;
históricas e psicológicas para explicar essâ posição peculiar de Pe-
dro, o enigma recebe sua solução mais simples ao se admitir a exis-
tência de uma palavra de Jesus que distinguia a 'Pedro. E se, de
outro lado, Pedro era combatido no cristianismo primitivo, tanto
em círculos pau.linos como na tradição joanina - compare-se por
exemplo a "aposta" entre Pedro e o "outro discípulo" em Jo 20.
2ss - não se compreende que Mt 16.18 tenha surgido. dessa situa-
ção. .A explicação por um vaticinium ex eventu naufraga ante o
fato que o eventus petrino não tem o aspecto que lhe é atribuído
por Mt 16.18. Dêste ponto de vista o texto contestado deve ser
indiscutivelmente aceito como lectio difficilior 65,
(d) A objeção psicológica de que o homem Pedro não se com-
portou como "rocha", significa o desconheciment<J completo do que
igreja precisamente significa. A posição peculiar de Pedro é um
enigma que deve ser aceito como tal. Tôdas as soluções dadas a
enigmas psicológícos podem ser mais ou menos esclarecedoras, nms
não nos ajudam a avançar. Com efeito, não podemos, nem devemos,
tentar responder à pergunta por que Deus fêz justamente do povo
de Israel a sua Igrej8.. Pedro foi escolhido num sentido especiaí,
depois se desviou, mas permanece escolhido porque se tornara o
fundamentum ecclesiae. Também Israel é escolhido, endurece-se,
mas permanece escolhido, porque um remanescente se converte-
ra 65 • •

64 Segundo H. Windisch, em Rh. R. NF 5 (1933), pág. 251, "Hoje em dia


somente a terceira \objeção) tem valor maior".
65 Com respeito à tendência de nivelar. Pedro mais do que é permitido, não
se deve seguir neste ponto a exegese de Lutero que em Mt 16.18 não quer ver
mais que em Mt 5.3; outras considerações em K. L. Schmidt, Die Kirche, págs. 298ss.
Também a tentatíva de Strack-Billerbeck de rebaixar o significado de Pedro por
uma retradução para o aramaico de Mt 16.18, não é aceitável. " Bultmann, op. cit.,
pág. 148, acha que esta tentativa é absurda. Já LL11ton, op. cit., pensa que "merece
consideração" (pág. 170).
1
fül Cf. W. Leonhard, em Una Sancta 3 (1927), pág. 485: " ... o titubeante
homem-rocha, o confessor que nega, o apoio que precisa de apolo, êste primeiro
varão do cristianismo, é um dos paradoxos mais evidentes dos evangelhos, um
pedaço de hístúria da PaL-i:ão, e encontra seu reflexo em tôda vida cristã. Pedro
não deve ser "nivelado", diz muito bem K. L. Schmid~". De resto, o :fa~ de
46 Luillwig Schrnidt

Só para sermos completos à dificuldade criaria;


argumento que que igreja não pode ser objeto do verbo cons-
truir 67. da "construção" - sobretudo do mundl), sig-
nificando criação do mundo - é muito comum no judaísmo e no
cristianismo primitivo 68, Partindo daí pode-se entender que atrás
"igreja" de Mt a imagem da casa
5. O que aqui tem valor se em Mt 16.18 e
como no restante do NT -. ekklesia é o equivalente
hebraico qahal. Mas, não é certo que se pensar no
não aramaico. mais: não está provado que

W. Le<>nha:rd estar descontente com K. L. Schmidt, "o qual não pode deixar de
afi:rrnar que precisamente a elevação. da pessoa de Pedro destrói qualquer pretensão
da hierarquia romana" - e isto é chamado "um tributo protestante• - pertence
a outro campo. Sôbre isto diz muito bem K. Heim, Das Wesen des eva11getf.tchtn
C'hristent11:1n,s pág. 36: "É uma notável ironia da história unil'ersa! que
precisamente esta de Cristo esteja escrita em letras colossais na srande
basilica do papa; justamente esta palavra de Cristo, a qual, entendida em 1w
sentido original, exclui e destrói o papado sob forma, porque como
nenhth'na outra atribui ao Apóstolo uma posição sL'T!ples:mente !rrepetlvol
no edifício espiritual de Deus". w·. G. Kuemmel (cf. bibliografia), páe. 282 t6
sabe dizer: "Totalmente inconcebível seria que Jesus tivesse reconhecido ~um
homem a capacidade de dispor sôbre a entrada no Reino de Deus". l'or oub'•
deve-se apontar para o :fato de que tudo se torna ainda mais inconoeblv•l
em Mt 16.13 um produto da comunidade. K. Pieper (ct. blbll.oarafla),
60ss, polemiza ·1ongamcn.te contra K. L. Schmidt e K. Heim. parUndo de
nreu.w.:;,iais católicas. É bem característico o fato de que J. Geiselrrumu (cl, no\a IO) 1
27 - a Pieper (loc. cit., 67) -- note que "devemos estar con1clontel
dos limites uma demonstração meramente escriturística sôbre a forma do
prfrnado petr!no a promessa do Senhor". Além disto, J. Slclctnbtrltr1
Leben Jesu, V, em Zeitfr.agen 13 (1929), pâgs. 16ss, em suaa expo1lolt1 ·'' 1

sôbre a confissão messiânica de Cesaréia de nem mesmo toca na qutlt.IO CIO


significado de Mt 16.17'Ss para os sucessores enquanto que K. M•
Das W'1sen des Katho!izizmus (1934), pág. 118, opina que a apllcaçiio aoa •UOllllOHI
de Pedro "pode ser negada por aquêle que exclusivamente· escuta oc toxkt1 da
Bíblia e não os coloca no contexto total da pessoa divino*hum.ana de J111111 1 lllM
intenções".
111 Hoitzmann: ltl5s, partindo ilnicamente dêste Ponto jj oh•ll
a um veredicto de " ... em Jesus se espera uma tl11.1ra ''" lt
adapte a "construir", como seja: "a minha casa".
os Cf. Strack-Biile:rbeck I, págs. 7'32s; Zahn, Matthizeus,
Matthaeus, págs. 506s.
oo Cf. o precioso ensaio de Th. Herrmann (cf. bibliografia), Clljll tlld nlo •
:>bsolutamente "supérflua em tôda a linha" - como julga Bultmann, u,1. ltt, 1 pAa.
149 - porque é certamente útil reconhecer a afinidade entre ekkteatQ 1 tUlll ft1
Unguagcm vétero e neotestamentária. E lle (d. nota 38) ft!ftlWfl em
Hermann o ter êle pretendido esvaziar o ekklesia, e rmrpeatlfllftlfttl
o seu equivalente aran:>.aico, de modo que resta uma ccmunidade r•1'111,1
llfll.
íalta a prova dessa sua afirmar;ão.
Karl L1ldwig Sehmiclt

sermos completos aludiremos à dificuldade criada pelo


diz que igreja não pode ser objeto do cons-
da "construção" - sobretudo do mundo, sig-
nificando do mundo - é muito comum no judaísmo e no
cristianismo primitivo 68. Partindo daí pode-se entender que atrás
da de 16.18 e.stá a da casa 69,
5. O que até aqui se em Mt 16.18 e
18.17 no :restante do NT -.. ekklesia. é o equivalente
Mas, não é que se deva pensar no
Ainda mais : está provado que

W. Leonhard estar descontente com K. L. Schmidt, "o nlio pode deixar de


,d:irmar que precisamente a elevação da pessoa de Pedro qualquer pretensão
da hierarquia romana" - e isto é chamado "um txibuto protestante" pertence
a outro campo. Sôbre isto diz muito bem K. Reiro, Das Wesen des evangelischen
Christentum-s (1929), pág. 36: "E uma notável ironia da história universal que
precisamente esta palavra de Cristo esteja escrita em letras colossais na grande
basílica do justamente esta palavra d~ Cristo, a qual, entendida em. 1&U
sentido exclui e destrói o p_apado sob qualquer forma, porque como
nenhmna outra atribui ao Apóstolo uma posição única, simplesmente irrepetlvel
no ediffoio de Deus". W. G. Ku.emmel (cf. bibliografia), pág. 2.32, 16
sabe dizer: inconcebh•el seria Jesus tivesse reconhecido num
homem a capacidade de dispor sôbre a no Reino de Deus". Por outro
lado. deve-se apontar para o fato de que tudo se torna .ainda mais inconcebfv•l
se virmos em Mt. 16.18 um produto da comunidade. :K. Pieper (cf. bibliOII'afta),
págs. 60ss, polemfaa longamente contra K. L. Sclu:nidt e K. Heim partindo 4t
m:'"'""'"'"" católicas. É bem característico o fato de que J. Geiselmann (cf. not• 00),
27 - seg'-l.indo a Pieper noc, cit., 67) - note que "devemos estar conscilnt.11
dos limites <le uma demonstração meramente escrihtdstica sôbre a torm• do
petrino segundo a do Senhor". Além disto, J. Sickenberpr,
Jesu, V, em Bibfüche 13 (1929), págs. 16ss, ·em suas expo1to0tl
sóbre a confissão messiânica de de Filipe, nem mesmo toca na queltlo do
de Mt 16.17·ss para os sucessores de Pedro; enquanto que K. Mm,
des Kafiwiízismu.s (1934), na, opina que a aplicação aos suctllOHI
de Pedro "pode ser negada por exclusivamente· eseuta os textot dl
Bíblia e não os coloca no contexto total pessoa divino-humana de Jesua 1 NU
intenções".
67 Holtzmann: NT I, págs. 165s, partindo Unicamente dêste ponto 3i cthtll
a um veredicto de inautenticidade: " ... em Jesus ·se espera uma fi1Urt1 QUt M
adapte a "construir", como seja: "a minha
í.18 Cf, Strack-Billerbeck !; págs. 732s; Zahn, Ma.tthnttUs, pág. 547; A. Sohlatter1
Matthaeus, págs. 506s,
oo Cf. o precioso ensaio de Th. Herrmann (d. bibllografla), cuja te1e nlo 1
absolutamente "supérflua em tôda a linha" - como julga :Bultmann, 09. oft., pq,
149 - porque é certamente útil reconhecer a afinidade entre ekklem e oUcta Ili
linguagem véte:ro e neotestamentáría. E se Pieper (cf. nota 38) cen1ur11 tlft
Hermann o ter êle pretendido esvaziar o significado de e1tklesia, e respectivamente
o eeu equivalente aramaico, de modo que só resta uma ccmunidade reU,lo11 ltrl\
falta a prova delll!a sua afirmação.
Igreja 47

sômente o hebraico ou o devam merecer


consideração, e não um outro têrmo qualquer.
Do fato Jesus e seus discípulos terem falado o aramaico não
se sem mais, o direito de afirmar que recorreram unicamente
à linguagem aramaica popular quando se tratavade coisas referen-
tes a Deus 70. Deve:-se admitir conhecimento do hebraico por
Jesus e seus discípulos, se antiga língua eclesíástfoa de
seu povo 71 • Mas, mesmo neste caso qahal não é o único têrmo que
vir a propósito. se com qehillâ -
Franz Delitsch em sua NT
que esta palavra é pouco usada no e nos
nos. Maior probabiiidade tem o têrmo 72, palavra que no VT
não se distingue particularmente qahal.
Os rabinos, vistos em conjunto, usaram raramente tanto qahal
como 'edâ,, Mais freqüente é o têrmo çibbur, que aparece uma vez
no VT com o sentido de· "montão" (2Rs 10.8) e que pode ser ",consi-
derado como a expressão de "comunidade'', total e parcial, no
daísmo tardio 73 • Bastante comum é a expressão knesset Yisrael,
sendo no VT só se usa o verbó kns (:reunir). expressão
tem especial, por ela se alude à personificação de todo
Israel crente 74. Do ponto de vista do conteúdo não podemos es-.
tabelecer diferença entre qahal, 'edâ, çibbur e kne.gset, de
modo que, do uso hebraico, não· se tirar nenhuma conclusão
segura.
Pressupondo para ekklesia se deva buscar um têrmo equi-
valente a11L<u1.e1J. d;;""'-"" pensar primeiramente em qehalâ, têrmo
e é emprestado do hebraico e não origi-
nário do aramaico; ao contrário, para o hebraico 'edâ. não encon-
tramos nos Targuíns o correspondente aramaico 'edtá 75. Por isto

Cf. G. Dalman: Jc>sus-Jesclma (1922).


71G. Da1mari (ci. nota 70), pág. 34: "O que Jesus na sinagoga de
Nazaré leu uma perícope do Profeta (Lc 4.16) mostra que o hebraico lhe era
familiar".
12 Defendido por O. Prosksch na primeira Conferência de Teólogos Alemães;
ver o relatório de A. Titius, em Deutsch.e Theotog'.e I (1928), pâg. 23, e a resposta
de K ..L. Schmidt, ib. 26.
78 ·Assim Strack-Biilerbeck I, 734; além disto Dalman, Woerterbuch, aub
l'OCC.

74 Cf. Strack-Billerb!?ck !, pãg. 734; além disto Schuerer U, pág. 504: "Enquanto
a comunidade é tomada em sentido religioso, ela se chama 1més81et".
75 Da!man, Woerterbuch, refere-se, em todo o caso, a.llsses vocãbulos aramaicos.
Levy, Chald. Woerterb., não as menciona. Wellhausen, Matt.háeua, pág. diz:
"eàta não é palestinense, mas sirfaco".
48 Karl Ludwig Schmidt

será bom lado. O têrmo çibburâ é atestado, mas o


mais comum é Êste têrmo recebe um pêso todo parti-
do fato de que no siriaco - língua próxima do ara-
maico palestinense, por Jesus - êle é usado para traduzir
tanto ekkwsia como syna,gogê.
que a versão Siro-curetoniana (século , a Peshita
século V) e a (início do VI) usam
para ekklesia, no sentido de igreja cristã, a palavra 'edfJi e para.
significando a sinagoga, judaica, a palavra lcnushtil, a
II, e mais antiga que a Siro-curetoniana) usa
tanto para como para synagogê a palavra kmt.shtâ. (na Sí-
ro-sinaítica Mt não foi conservado, mas sim Mt 18.17). Jun-
te-se a esta o chamado Evangeliarium Hierosolymitaríum
contém uma palestinense-siríaca 77; precisamente esta
dução - cuja não pode ser determinada com maior exatidão
- é a que dá impressão de ser mais antiga que as outras traduções
· siríacas. O dialeto do EvangeHarium Hierosolymitanum, que se afas-
. ta bastani;e do siríaco . estaria bem próximo 4aquele que foi
Jesus e seus 78, Ora, aí encontramos a pala-
vra knushtâ · aplicada tanto à cristã
como à sir.agoga judaica
...,,.,.,v'"'' dessas considerações é altamente provável que Jesus te-
nha da keni:sktâ 80• Se de um lado qahal e qehalâ º"'"'"'"'"'ª
na cristã a consciência de ser ela a de
Deus do também kenishtâ pode a esta comunidade
de Deus em sua totalidade. Mas é ter presente que pa-

- 76 Cf. Levy, Woerterb., sub voce; Dalman, Woerterb., traz kenishta e kenista;
(samec cm lugar de shin; cf. imesset) no sentido de casa de; reunião (sinagoga).
17 Edição de · P. de (1892). Cf. sôbrc éste ponto
F. Schwally, Iclioticon des Aram. (1893) e F. Schulthess.
Lexico11,. Syropaiaestinum as versões sirfacas, cf. O. Klein,
Syrisch-griechísches Woerterbuch zu den vier kanonfach;eTI. Evange!íen 0916).
78 Assim E. Nestle, Einfuehrnng in das gr. NT (1909), pág. 115; F. Schulthess~
Grammatik dea chri.sfüch-pa:laestinischen Aram. (1924), pág. 3.
79 Cf. Schuerer II, pág. 504: "Parece que no aramaico palestinense kn11sht',
que corresponde ao grego synagogê, era a palavra usual para Igreja". Wellhausen,
Matthaeus, pág. 84: "A palavra original aramaica kertishtd r'lesigna tanto a
comunidade judaica como a cristã. Os cristãos palestinenses sempre a usaram
sem distinção tanto para a Igreja como para a Sinagoga".
so Cf. ainda Zahn, Mat:thaeu.s, pág. 546 e A. Merx, Die vier kaoonischen Evttn~
gelieri nach der syrúchen im Sinaikloster gefundfmen Pttlympsestiumàsch:riften,.
Mf (1902), pág. 268. Joacb. Jeremias (cf. nota. 50), pág. 69, afirma: "provàvelmente-
çibburd, 'em todo o caso' kenisht4"~
zureja 49

lavra aramaica assim como o seu costumeiro corr~lato grego


syna,gogê - significaria primàriamente a comunidade dil sinagoga,
de algum modo limitada, quer pelo lugar, quer pelas pessPas ou pela
orientação. Isto nos leva à idéia de uma ekklesia separad~ de outras.
Deveremos, então, dizer que a primeira comunidaM ":ristã foi
uma seita dentro do judaísmo? Na realidade o judaísn~0 oficial fre-
qüentemente tratou como tal a primeira comunidade cristã. Esta,
porém, se sentia como uma sinagoga · com pretensões exclusivi-
dade, isto é, de representar o verdadeiro judaísmo, o verda~eiro
*
Israel, coisa que já sucedera com outras sinagogas qut surgiram
no judaísmo. É verdade que os exemplos não são muito pumerosos;
mas pense-se em 1Macab€us 2.42 ("sinagoga dos hasidtíus") e em
7 .12 ("sinagoga dos escribas"). Essas sinagogas, que se consti-
tuíam como escolas separadas· de interpretação, tinham - ao que
parece - pretensões à exclusividade 81. Ao mesmo gruJJº pertence
também a comunidade judaica da "Nova Aliança" em Dai;iasco~ que
ora se chama 'edâ, ora qakal no texto encontrado na ge'n/tU: (cama-
ra de detritos) da sinagoga do Cairo (a primeira designJ'l.Çao se en-
contra em 7.20; 10.4,8; 13.13; a segunda em 7.17; 11.22) e a qual
se julga o "Remanescente de Israel" 82. Como se vê, a idéia do
qehal YHWH; congregação do Senhor, não só não é aPandonada,
mas é ainda acentuada. Com efeito, neste grupo particular se en-
contra o "Remanescente de Israel" do qual depende a e:J(istência de
todo o ISrael como povo de Deus. É desta forma que nª sinagoga
do Messias Jesus estava encarnada a comunidade de Dt}US. Neste
grupo paradoxal, encontra-se, pars pro toto, a, essência da verda-
deira sinagoga como também da verdadeira comunidad~ de Jesus
Cristo. A tão falada fundação da igreja por Jesus, em Mt 16.18,
se reduz a êsse processo de separação e reunião do gru:Pº de seus
discípulos. 'fudo o que sabemos da atitude de Jesus peraflte a qehal
YHWH, congregação do Senhor, ganha em extensão e prc1fundidade,

H1 Bultmann, op. cít., pág. 150, diz que a afirmação de que 0ma sinagoga
separatista se tenha julgado como a "qehaL YHWH" .[! difícil de acreditar; os
urgumentos que aduz em contrário - nos quais se acentua o elementº doutrinário
da sinagoga - não convencem.
82 Texto em S. S('hlechter, Documenis of Jewish Sectaries, I 0910)'. do qual
tireimos a numeração. L. Rost, Die Darnaskusschrift, Kl Texte, 167 (19~3) apresenta
um texto melhor. As diferentes tentativas para datar os te:xtos di<"ergem entre
si por séculos; A. Bertholet, em RGG I, págs. 1775· s, pensá no primeiro século
a. C.; G. Hoelscher, Geschichte der israe!itíschen imd ~uedischen Reti~n (1922) •
púg. JB9, pensa, com outros <rf. L Rost, loc. cit., pág. '4), que o escritd' de Damasco
provém da seita dos "!ilhos de Sudoc" que são tidos por Kirkisànl (século X)
como precuraorea dos carafta~. .:,.: r .. · '


50 Karl Ludwig Schmidt

e por isto em colorido, se seus esforços por


estabelecer uma kenishtâ 83.
Finalmente, partindo dêste ponto clara a estreí-
.,,..,.,,.,..,,.. , entre l\U 16.18 e 18.17. No segundo passo se fala de uma
que deve ser acusado perante a ekkles-ía; êste
agir não ser simplesmente como peça de
da comunidade M, mas deve ser interpretado
como à sinagoga, à comunidade vétero-·testamentária
que afirma e
completa como se coloca sob a neste
como em outros pontos 85.

TESTAMENTO E JUDAíSlVIO

1. Judaísmo heienístico. a. Na Septuaginta ekklesia apa-


rece umas 100 vêzes; algumas vêzes ainda em Símaco e Teo-
0 equivalente hebraico, quando está quase sem-
aaiwL Para a há sõmente as exceções:
i9.20 (lSm 5.17; SI 25.12 ; Sl 67.27
(SI 68.27). Existe, uma tradução uniforme e
.Os outros equivalentes hebraicos são da raiz
ghl; em 19.20 (1Sm trata-se dos mesmas em
ordem se deve ou uma palavra derivada de
qhl, ou que uma ditograffa
Na ekklesia é às uma palavra inteiramente
profana que "reunião", quer se do ato de se
quer dos homens reunidos. Do primeiro caso temos exemplos em
Dt 9.10; 18.16; reunião'" do caso temos um exem-
em 3Rs .8.65 (lRs 8.65): Israel com
assembléia". É e quem constitui
uma assembléia. No (Septuaginta)

83 Fato totalmente ignorado por Bultmann, op. cit., pág. 149, quando afirma:
"Que a palavra ekk!esía corresponda a qahal, ou a 'edã, ou a 1eenishtâ é indiferente
para Mt 16.18s".
84 1!!xemplos para esta opini5o "critica" bastante comum não precisam ser
citados.
Sctunl:dt. p;,e Verkuendig1ing des NT in ih.rer :Einheit und Beson-
derheit', ' col. 120; além disto, K. L. Schmidt, Das Christus-
zeugnis Evangelien, cm Ki'rchenblatt :fuer die reformierte sc1iw1?itz
89 (1933),

8k) P....sslm """''""'"'"""":nuu. sub voce.


Igreja 51

trata-se de profetas. Em Sir (Eclo) 26.5 ekklesia ochlou pode ser


traduzido: "ajuntamento da populaça" 87.
O atributo "do Senhor", esclarece que se trata do povo ou da
comunidade de Deus: Dt 23.2ss; lCr 28.8; Ne 13.1; Mq 2.5; em
Lm 1.10 "tua congregação"; outros atributos: "do Altíssimo" (Sir
24.2); "do povodc Deus" (Jz, 30.2); freqüentemente se acrescenta
"de Israel" (3Rs 8.14,22,55; lCr 13.2; 2Cr 6.3,12s; Sir 50.13; lMa-.
cabeus 4.59). Menos freqüentes são os atributos: "dos filhos de
Israel" (Sir 50.20); "de Judá" (2Cr 20.5; 30.25); "dos santos"
(SI 88.6; 149.1); "em Jerusalém" (!Macabeus 14.19). Também o.
atributo "da diáspora", pode ser aduzido aqui.
De resto, mesmo sem nenhum atributo, eklclesia significa a
assembléia de Deus, o que aparece do contexto. Tais passagens são
especialmente freqüentes em 1 e 2Cr, Sl e alguns apócrifos, a ponto
de se poder falar em terrninu.s technicus. É verdade que aqui e
ali se fica em dúvida. Em todo o caso, o atributo "de Deus", ou
está expresso, ou subentendido.
O adjetivo "tôda", caracteriza a reunião com uma totalidade
(SI 25.12; 67 .27; 106.2). Pv 5.14 mostra que o uso técnico de
ekkles·ia era algo bem indeciso ainda, pois diz: ekklesia kai syna-
gogê assembléia e congregação; aqui o tradutor .hesita sôbre qual
têrmo escolher, visto que os dois significam evidentemente a mesma
coisa.
O verbo ekklesiazo (exekklesfozo) no sentido de "reunir-se"
encontra-se em Lv 8.3; Nm 20.8; Dt 4.10; 31.12,28; 3Rs 8.1; 12.21;
1 Cr 13.5; 15.3; 28.1; 2Cr 5.2, sendo a tradução do hifil de qahal,
enquanto que em Êx 35.1 a mesma forma é traduzida por synarthroi-
zo, em Nm 1.18; 8.9; 10.7 por synago e em Nm 16.19 por episyni.c;-
temi. O verbo exekklesiazomai, no sentido de "reunir-se" está em
Js 18.1; Jz 20.1; 2Rs 20.14 como tradução do nifal de qahal, en-
qüanto que pal'.'a e.Sta forma Éx 32.1 tem gynistamai (Áqüi1a e Teo-
dócio : ekklesfozomai) e J s 22.12 synarthroizoma-i.
O uso de synagogê é semelhante. Em várias passagens do Gê-
nesis, por exemplo, synagogê, ou o plural synagogai, está ligado ao
atributo "de povos", correspondente ao hebraico qehal 'ammi1n ou
goinv (28.3; 35.11; 48.4). Cf. Sl 21.17; Sl 67.31. Por outro lado,
assim como da, ekklesia kyriou, fala-se também da syr.agogê kyrio?J,
(Nm 20.4; 27.17; 31.16; Sl 73.2) que é o equivalente de qehal YHWI-I
ou de 'adath YHWH.
O que resulta de tôdas essas considerações é o· seguinte: ( 1)
As duas palavras ekklesia e synagogê significam mais ou menos a

87 Assim V. Ryssel, em Kautzsch: Apokryphen und Pseudigraphen I, pág, 363.

_:1
52 Karl fj1ulwig Schtnidt

mesma coisa, oonaenao a qahal. As duas palavras ora


são usadas em se1t1t1uo ~.Ui'vV, ora não,
b. Em Filão e Flávio Josefa o caso é o mesmo, só que aí o
técnico é pelo grego profano. Conseqüente-
se fala mais de "assembléias" profanas.
"'T~"""'"' agorai
Specialibv,,s Legibus
e reuniões ( Qiwd Omnís
<nnun.P. 20. Da
AUegoriae
Em vez
universal" Nominwm,
do helenista de que êle orna
"divina" (De Linguarum 144;
""""'''-'" III, 81). emprego do adjetivo , é estranho à
e ao VT. O mesmo se dá com o atributo "sagrado" 88;
da "sagrada em De S<nnmis, 184.187; Quod
Immutabilis, 111; Abrahae, 69; Aeternitate

Josefo - que tê:rmo "santo" e em


e "sagrado"' - muito bem <>n'"'"'"'"'"'
corno o Filão. Mas, como secularizou
mo basileia, reino, faz o mesmo com ekklesia.; um certo
u."'cuv1u. uma reunião popular ( ekklesia) para
rodes (Antiqiâtates 19,332) ; também
convoca o povo: a assembléia ( ek:klesian) de todo o povo
(Antiquitates a assembléia no teatro, (ib. 17,161);
em Tibérias a <"'''""'""''"'"" reunida decide · a política da cidade
37) 89; Antiquit.ates 14, ; De Bello Ju.da-ico
. Jb. 7,412.
2. Texto tarefa agora os têrmos
a partir do hebraico, isto é, percorrer o caminho
do hebraico. para o grego, e não vice-versa.
Enquanto que ekklesía é quase sempre a tradução de qahal, êste
têrmo na realidade nã~ é sempre traduzido por aquêle. Nos livros
de Josué,· Juízes, Samuel. {exceto o caso especial de lSm 19.20), 1
e 2Reis 1 1 e 2Crônicas, .Esdras, qahal é sempre traduzido
por ekklesia; também Deuteronômio, exceto 5.22 onde está
syn.agagê. Nos outros. livros do Pentateuco (Génesis, Êxodo, Le-

a:i Cf. theios e Meros, ern Cremer-Koegel.


SI> Cf. A. Sch1atter, Ma.tthaeus, pág. 508, e Theologle des Judentums, págs. 90s.
Igreja 53

vítico, Números) qahal é traduzido por synagogê, palavra que fora


<laí corresponde a 'edâ (nos textos paralelos de Origenes freqüen-
temente em lugar de synagogê aparece ekklesia, como assinala G.
Bertram). Em :ti:xodo, Levítico, Números o uso de 'edâ é mais fre-
qüente que o de qahal e é sempre traduzido por synagogê e nunca
por ekklesia. Também Josué e i'" 11í:....~s usam mais freqüentemente
"'e®. Nos livros seguintes, contudo, 'edâ desaparece sempre mais
em favor de qahal. No Saltério só em Sl 40.11 (39.11 da Septua-
:ginta) qahal é traduzido por synagogê; nas outras passagens sem-
pre por ekklesiu, (mesmo em 40.11 Áqüila e Teodócio têm ekklesia).
Tudo isto mostra claramente que tanto qaJtW como 'edfi, não·
são têrmos técnicos para designar o povo de Deus; isto só se dá
.quando algum atributo o exprime, ou quando deve ser subentendi-.
<lo. Isto aparece muito claramente quando a Septuaginta traduz
qahal por ochlos, multidão (Jr 31.8 = Jr 38.8 (Septuaginta); l!::x:
16.40; 23.46s), ou por plethos, multidão (:ítx 12.6; 2Cr 31.18), ou
.systasis, reunião (Gn 49.6), ou ainda synedrion, sessão (Pv 26.26) 90.·

!lo Não assim M. Noth, Das Systen-. d,er zwoelf Staemme faro.els, em BW.A..NT·,
4. Folge, Heft 1 (1930), págs. 102s, nota 2: " ... não me parece duvidoso ..• que
se possam deduzir as palavras 'dh e qhl do uso lingüístico da anfictionia primitiva
dos israelitas... O têrmo qhi designa a reunião e 'dh o povo reunido". O presente
artigo já estava terminado quando L. Rost - que viu as provas - pôs à minha
disposição as seguintes linhas: "Como raízes vétero-testamentárias de ekklesia.
sé costuma apresentar 'edâ e qahal. A primeira pertence à história primitiva da
sinagoga e só nos precisamos ocupar da segunda. qahat - um nome refacionadO
com qôt, voz, e cujas formas verbais são muito freqüentes no hifil e n.iial -
significa, nos textos mais antigos, a "convocação" do povo, isto é, de seus varões
para conselhos de guerra. Tal é o sentido de Gn 49.6 e Nm 22.4. Em Nm rn;33
qa.hai parece ser a comunidade do povo num sentido que recebe luz de Mq 2.5:
:aí Miquéias fala da qehal YHWH no sentido de totalidade do povo de Javé, ·sendo ,
Javé o convocador. No mesmo sentido Deuteronômio (23,2ss) usa a e:icpres..'>ão
qehat YHWH quando apresenta condições para a admissão de mutilados ou es~
tranI1os. Deuteronômio também justifica a conexão dos dois tênnos (ver 5.19;
9.10; 10.4; 18.6): a qahal que primeiro estabeleceu a conexão entre Javé e seu.
povo foi a assembléia do Sinai, no diw em que se deu a união entre Javé e Israel,;
o yôm haq-qahal, dia da qahal. É em razão disto que a reunião festiva por ocasião·
da consagração do templo de Salomão é chamada qahrri (1 Rs 8.14ss), e mais
tarde a reunião por ocasião da festa das tendas do ano 444, dia em que Esdras
leu a Lei para homens, mulheres e crianças. Se o uso de qahal aparece por ocasião
das grandes datas do culto, a linha profana do têrmo continua paralelamente;
qrthat continua sendo a "convocação do povo para a guerra" (exemplo: 1 Sm 17.47; ···
Ez 23.24, 46). Uma convocação de espécie diferente temos quando designa uma
reunião extraordinária do PQvo (Jr 26.17; 44.15), no primeiro texto sem a part:!cl- ·
pação de mulheres e crianças, no segundo com a sua presença. Resumindo podemos
definir qahal como: assembléia convocada em ocasiões extraordinárias, seja somente
<le homens (convocação para a guerra, convocação para assembléias judiei.ais);
seja de todo o povo (como em Esdras); qahal é a assembléia constituída por
convocação: daí se pode justificar a aplicação do têrmo para os que nela tomam
54 Karl. Ludwig Schmidt

G. ETIMOLOGIA

A história acima exposta do têrmo ekklesia é mais importante


do que sua etimologia, sôbre a qual só agora pode ser dita uma
palavra final.
Se, passando pela Septuaginta, a ekklesia neotestamentária é o
cumprimento da qahal vétero-testamentária, e se ao lado de qahal
vem a propósito o seu correlato aramaico kerdshtâ, então a derivação
de ekklesia, a partir do verbo ekkalein, chamar de, e do adjetivo
ekkletos, chamado de, não tem pêso particular. Significativo a
êste propósito é o fato de que em todo o NT não aparece nem ekka-
lein nem ekkletos.
Na Septuaginta ekkalein só se encontra em Gn 19.5 e Dt 20.10
· (hebraico: qara, chamar) e ekkleton s6 em Sir 42.11. No grego
profano os dois têrmos são mais freqüentes, e ekkletos chega a ser
terminus technieuff em conexão com ekklesia como assembléia po-
lítica ( Cf. Xenofonte, ·Historia Graeca II, 4,38, onde hoi ekkletoi
são os membros da assembléia de aristocratas que em Esparta e
em outros estados aristocráticos ocupam o lugar da elcklesia., Sôbre
· isto veja-se Eurípides (Orestes 949) e a expressão eklcletos ochlos
(ib. 612).
Se Paulo, ou os outros cristãos que escreviam em grego, ao
dizerem ekklesia pensavam nos "chamados" e "convocados", não
sabemos. Não é impossível, mas também não é provável. Afirma-
ções como as que se encontram em Ef 5.25ss; lTm 3.15 ou Jo 12.23
teriam dado ocasião para falar de ekkalein 91, Quem realmente

parte (Dt 23.2ss). Na evolução do conceito em direção da ekklesia neotcstamentária


deve vir em consideração o fato de que o têrmo foi usado para designar os que
participaram da .aliança do Sinai e também os que renovaram sua .consagração
à Lei, sob Esdras. Assim qaho.l designa os portadores da aliança e . da promessa
de Deus. Um segundo ponto de importância é que desde Esdras pelo menos (mas
já em Jr 44.15~ . também mulheres e crianças pertencem à qahal, Desta maneira
o têrmo, sob a forma de ekklesia na Septuaginta, se recomendava para designar a
comunidade · cristã, a qual aceitava mulheres e crianças com plenos direitos,
enquanto que synagog~ não se recomendava porque se res~ringia aos homens. Cf.
a rn!nha obra aparecida em 1937: Die aittestamentiichen Vorstufen von Kirche und
Syr.a.goge".
91 A •. JeI,le com razão chama a atenção para esta passagem em seu· breve
artigo "EKKLESIA; um humilde pedido aos exegetas" (Wuertemberg, Evangelisches
Kirchenblatt (1934), pág. 78, onde sublinha ser questionável, se não irrelevante,
a etimologia de ekklesia. Mas quando afirma que escreveu "na esperança de
receber a pala't-ra final da obra do Prof. Kittel" (entendendo com isto o presente
Dicionário Teológico), deve-se dizer. que a resposta já foi dada nas recentes obras
de Kattenbusch, K. L. Schmidt e outros. É interessante notar que os cristãos
Igreja 55

quer o emprêgo de um não deve ir atrás de


etimologias, mas pesquisar o usus e o abU8'lw de uma pa-
la.vra. Há teólogos que dão valor ao fato de que a palavra alemã
· pecado (Suen4e) significa separação (Sond~ru..ng) de Deus,
na língua alemã dá bom sentido. Existem filósofos que en-
<·<;:;u.u~J•u "acaso~· (Zufall) num sentido existencial (ad-
ca,so, Zu-fall), o que ser bem Bàsicamente
se de considerações ou menos pseudo-filosóficas .em que
não raro aparecem idéias (como se verifica freqüentes vêzes
um tanto estranhas Ekklesia
"chamados" por Deus, eJ;n-
ex·pr1ss~;a11neJate na fôrça "ex". É o que signi-
embora aqui não a. preposição "de".
A importância do usus e do abusus na história de uma
fica evidente da seguinte consideração : se quiséssemos reproduzir
exatamente a palavra e o conceito bíblico deveríamos sempre tra~
duzir por "assembléia". O fato de. isto não ser possível
de que no terreno nada se consegue por de
por assim dizer, mas sobretudo em :ra-
ekklesia não renunciar "igreja"
Essas palavras têm vantagens e desvanta-
gens. "Igreja" tem a de sublinhar a totalidade e univer-
salidade, e a acentuar o católico-hierárqui-
co; "comunidade" a vantagem de a pequena comuni-
dade local, que é "igreja", mas a desvantagem do
ticularismo, no congregacionalista e mesmo sectário.
si, dev:eria ser a versão "igreja" precisamente por cau-
sa de sua ela é a multidão dos que pertencem ao Senhor,

que. ainda !alam grego não sentem nenhuma necessidade de explicar historicamente
o percorrido pelo têrmo. elckJeaia chegar a ter o sentido que hoje ·
tem. P. Bratsiotis, de Atenas, a comunicaçâo ao "Ekk!eria
mó<leino, éiíl.bora no designe um lugar culto (naoa,
, tem tambérn todos ..os sentidos de vossa palavra Igreja. Para designar.
a comunidade dizemos . ora eklc!esia, ora enoria, embora esta última sig1ütique
"paróquia". Infelizmente não existe no grego moderno uma obra
ekkleria, exceto o se pode encontrar em manuais de teologia, .nos quais
não se trata de rriodo a etimologia do têrmo". Assim como. os israelitas
e os cristãos gregos se apropriaram de uma terminologia política, hoje . em dia
os neoconver!idos de outras ··culturas encontram· expressões ·apropriadas para
designar ·seu cristianismo. Uma ilustração pode ser encontrada numa carta ·do
missionário E. Peyer de St. Gallen: "Entre os duala (Afr!ca Ocidental) os cristãos ·
são chamados bonci-Kristo, homens da clã de Cristo. A palavra bona '"l':'.u.i."""
"tribo", "clã". Para designar a comunidade escolheu-se mwemba; esta
originalmente um. grupo de idade, isto é, os que :nasceram no mesmo ano cu
no mea:mo meio-ano e que devem realizar na juventude certo :número de :ritos.
O têrmo, como se vê, designa um grupo bem definido e restrito".
56 l{arl Sch·midt

o kyriakon ou a kyr'ia.kê (donde alemã: Kirche, o inglês


Church, Infelizmente o é tão sobrecarregado
que a tradução eclesiástica" no sentido
<le de Deus" 92,

em seguida aos
- aparece nos apostólicos
um deslocamento característico no

93 Conhecida é a aversão de Lutero ao têrmo "Igreja" (Kirche). Menos


conhecido é o fato de que esta palavra também não ocorre no texto revisto da
Bíblia de Lutero, ou na concordância correspondente, e que foi usado pelo próprio
Lutero, geralmente para designar santuários pagãos no VT; no NT só é encontrado
em Jo 10.22 no "dedicação-de-igreja" (Kirchwehe). Cf. o interessante
artigo de V/. Das Wort "Kirche" in Luther:; Bibeiuebersetzunq, em
Deutsches PfaTTerb?att 34 0930), pãgs. 506s. O Grande Catecismo de Lutero
roníém uma cu:rioddade eti.·noló.gica: "A palavra "Kirdie" nada mais
significa senão reunião e· não é uma palavra mas grega, tal como ·a·
eccl.esia., sendo a original lcyr'.ti, que em latim se chama cttria".
que Tertuliano nota 40) entendeu como explicação, se tornou em
etimologia! Depois de consultar todos os dicionários alemães mais reéentes e
por conselho de W. Altwegg (Basiléia) e A. Debrunner (Berna) a
i\. Goetze (Giessen), como sendo a maior autoridade neste assunto, e me
enviou a seguinte comunicação: "Nós :filologistas germânicos começamos a entender
um pouco melhor a palavra "!{i·rche". Abandonamos tanto a derivação de Lutero
a pa.rtir latim cu.ria - evidentemente uma idéia que 1.'le durante sua
viagem a Roma - como a sugestão de Grimm a partir de circ-us. :t ·agora claro
ela vem de k'!rricJw·n si.gnlfica casa de culto (Gotteshaus). A palavra
já antes do ano era encontrada em solo alemão e deve ter vindo
uma onda missionária anterior. É incerto de que onda se trate. F.luge
aponta para o gótico relacionando-o com uma onda missionária gótico-ariana
deve ter atíngído a sul-oriental no em que ·o reino de
o Grande era contiguo à Baviera; ora, morreu em 526. OiJ
filólogos modernos concordam em que os missionários arianos levaram
grande número de têrmos eclesiásticos, Danúbio acima e Reno abaixo. Th.
em Teuthoní.sta 0932), suscitou a questão se "Kirche" era uma delas. Supõe que
l\."°1JrU:on - que tomou a :forma :feminina sob a influência de basiHca ..:... chegou
via Iviarselha, Lion e Tréveri;;; assim "Kirche" faria parte do grupo de palavras
cristãs remmas. Suas razões são boas, mas estou ainda em dúvida quanto ao
caminho que "Kírche" seguiu. í; verdade que não existe evidência literária do
gótico kyrik<m, visto que úllilas morreu antes que o têrmo tivesse surgido; mas
o antigo eslavônico cruky e o russo cerkovi podem servir de testemunhas. Assim,
a questão do caminho seguido é ainda incerta. W. Betz que é re:;ponsável pelo
artigo "Kirche" em Troebncr's Deutsch.11s Woer~rbucn, deverá rever sua posiçâo".
!13 O mais do ponto de vista estatístico e informativo, é Kattenbusch,
!, pág;:;, 146ss, desenvolve sua tese anterior expressa em Das a.posto!i.sche
Syrnbol, !I, (1900), 683ss.
Igreja 5'1

Enquanto que no ekklesia nunca adjetivos .que equiva-


lhama um atributos começam a aparecer com
freqüência. disto, enquanto que no NT só se pode
especulações marginais sôbre a êsses atributos estimulam
es1::iec;u111ca~o em regra sôbre a
literatura cristã fora do NT a
freqüente, com exceção de He,rrnas.
individualidade com que o entra em colóquio
é a kyria, senhora, ao kyrios, Senhor, e é
"santa" {v.1,1,6M, 1,3,4; 4,1,3). A chamada
, por causa de sua aparência, é descrita como "forrna'\ de
um "espírito santo" que seria idêntico ao de . A idéia
paulina e dêutero~paulina da Igreja como só corpo", é expressa
por uma. imagem: "tôrre feita de uma só (cf. s. 9,18,3),
A primeira de Clemente só em três passagens fala
klesia .. Na introdução fala da "igreja de Deus que habita em Ronía,
ou Corinto". Isto corresponde a lPe 1.1 e Tg 1.1. É-inteiramente
neotestamentá.ria a expressão "concordando tôda a ..,,.,,.,,,.,,
e "a igreja dos coríntios" (47.6).
Antioquia fala ekkle.siai; e a elas escreve, sim-
plesmente, como "a igreja" que está em Éfeso, etc.; outro lado
"'"ª·'"'"'".-"'"' de predicados significativos: "mui ser chama.-
bem-aventurada" (Efésios; cf. Ro1nanos) ; na graça
Deus" (Magnésios); "santa, eleita e digna de (Tralenses);
que consegui:h. misericórdia na grandeza (Romanos) ;
etc., etc. Inãcio não se cansa de usar tais títulos honoríficos, dos
quais tem cêrca uma dúzia ( cf, ainda, Filadelfenses, Esmimen-
ses: "a que conseguiu misericórdia e foi estabelecida";
fé"). uma linguagem Alguns
e aplicáveis universalmente à Igreja;
circunstâncias e se a uma dada ,,;,vicuu, ....,.......,.....,,
o de falar 5.1: "unidos (misturados) a êle
(i. é, bispo) como a igreja a Jesus Cristo e Jesus ao Pai,
que tudo seja concorde na unidade". Deus, a Igreja
-i-,-.,~...,..,·~rn uma única para os crentes. No NT não é diverso,
que em Inácio inclui~se também o bispo Em Es-
mirnenses 8.2 aparece pela primeira vez o
adjetivo que no início só significasse "una

94 Sõbre a idéia a[ expressa de que o mundo :foi criado por causa da


- idéia corresponde ao pensamento judaico de que o povo de
fim da ~-ver lVI. Dibeilus, Der Hirt des Hermas 0923), ad locum.

95 Assim Kattenbusch I, pág, 148.


58 Karl Ludwig Schmidt

que mais tarde significa uni,versa, universal. A linguagem eclesiâs-


tica latina conservou os dois têrmos gregos ecelesia e catholica.
Policarpo saúda os filipenses - como Clemente os coríntios --
com a expressão, "igreja que habita". Assim também se designa a
si mesma a comunidade de Esmirna no Martírio de Policarpo, e
se dirige à comunidade de Fi1ome1ium "e a tôdas as comunidades
(paróquias) em todo lugar da santa e única (católica) Igreja", Ca-
da comunidade local tem consciência de ser única e santa e atribui
o mesmo às outras comunidades. De um lado a Igreja pertence ao
mundo em que ela (ainda) vive, mas de quem não é propriedade;
por outro lado pertence a Deus 96.
Na Dídaquê a ekklesia só é mencionada quatro vêzes: 4,14; 9,4;
10,5; 11,lL A expressão "na igreja confessarás os teus pecados"
(4,14) lembra Tv1t 18.17. A idéia de que a igreja está agora dispersa
mas que ela "seja juntada das extremidades da terra para o teu
reino" (9,4; 10,5) corresponde ao que ficou dito atrás sôbre a re-
lacão entre "Igreja" e "Reino". De difícil sentido é a expressão
"mistério cósmico da Igreja" (11,11). Parece aludir a Colossenses
e Efésios, mas vai mais longe e insinua certo conhecimento esoté-
rico dos crentes.
A assim chamada Segunda Carta de Clemente leva mais lon-
ge o esoterismo dêsse "mistério". Em 14,1 se diz que a igreja é
"a primeira, a espiritual, a que foi criada antes do sol e da lua''.
Isto é em seguida explicado até os mínimos detalhes por alusões a
textos da Escritura.
A idéia da igreja cristã que pré-existe, e que precede mesmu
a sinagoga judaica, se apóia em expressões pauHnas (Rm 4.9ss;
Gl 4,21ss) e dêutero~paulinas (Ef 1.3ss) e a seguir é levada adian-
te pelos gnósticos valentinianos até chegar à especulação sôbre o
eon da igreja. Por outro lado, partindo da afirmação de que a Igre-
é "do alto", desenvoive~se uma larga especulação 97 en1 que os
adeptos de uma theologia gloriae se consolam pela constatação da
existência de uma igreja empírica e outra ideal. Surge assim a
concepção da dupla igreja: uma é rnilitans, a outra triu'Ynphans.

01: A Epístola de Barnabé moc;tra que a palavra ekklesia não é a umca que
vem em questão, como no NT; aí os cristãos nunca são chamados ekklesüi, mas
freqüentemente !aos, povo, a quem Deus confia o "seu Filho amado" (5,7; 7.5).
Em outros lugares se fala de naos tou theon, templo de Deus (4.11) QU de polis,
cidade (16.5).
97 Muito bem diz Kattenbusch, I, pág. 155: "É verdade que a partir de
certo tempo o pensamento de que a Igreja era anothen, do alto, tornou-se espe-
culação; no início não era assimn.
especulações as afirmações sôb:re a
cam sempre mais confusas. Isto ocorre tanto nos ·padres giegos
como nos latinos. O maior dentre éles - Santo Agostinho - cujo
pensamento é o da . posição que a
ocupa na mente . padece de uma surpreendente
clareza sôbre a entre iirej,.i. empírica e ideal. Se
um lado as fantasias ·- não conseguiram ~por
outro lado o platonismo o campo com especulações,
ensejo a uma gama especulativa .concernente ao abis-
mo entre realidade e O protestantismo com sua distinção entre
i'l'ivi.sibilis participa, a seu modo, do

J. CONSEQUÊNCIAS E CONCLUSõES

quando e como o catolicismo que se distingue do


cristianismo primitivo? passagem de um ao outro é claramente
na concepçao igreja, como não o é em nenhum outro
Esta passagem se dera já no campo dos escritos cristãos
'"""'+''"'"' fora do cânon neotestamentário. As especulações se
tornaram si;;mpre freqüentes até desembocar no gnosticismo.
platonismo latente, mas muitas vêzes agudo, divide a Igreja em
a qual, corno corpus mixtum, não pode ser assim separada..
A Igreja nunca é triumphans mas sempre militans, isto é,
oprimida. Ecclesia triu.rnphans seria de Deus, e não mais
igreja. Por outro lado esta igreja como assembléia de Deus em
Cristo não é uma parte ecclesia visibilis e de outra eoclesia in-
vi,<Jibilis. A comunidade cristã, que como c,omunidade partícular re·
presenta comunidade total, é e tão corporal como o
homem cristão. Tanto à comunidade como ao indivíduo atribui-se ....
e santidade, sem que no entantojustiça· (.justificação) e aa.n-
(santificação) sejam qualidades próprias igreja ou do·
chamado.
Quando Lutero - sobretudo em sua. polêmiea contra Roma.-.
distinguiu entre igreja visível e invisível, nen:i por isto aprovou o
platonismo de seus continuadores. O fato .de, em sua tradução da
Bíblia, êle ter falado de igreja, rilas da comunidade dos santos
como do povo de ( qehal YHWH), mostra que o objet-0 da ·fé
é a igreja visível e não uma invisível civitas pw.tortica, cidade
tônica. Esta volta de Lutero ao VT é bem paulina 98, O ~)1.#ÇJ,...,

9!1 Característica é a afirmação de R. Sohm, Kirehenrechf !!, (1923), pág. 1~:


"0 cristianismo antigo não chegou ao conhecimento de que o povo de Deua 6
60 Karl liudwig Schmidt

forte contra tôdas as especulações desenfreadas sôbre a Igreja é


sem diívida a comunidade cristã primitiva tal como foi entendida
e reconhecida por Paulo 99.

invisível; foi por isto que êle se tornou católico. Mas a descoberta de Lutero
rte que a Igreja é invisível incluía em si o fim do catolicismo". Contra essa visão
falsa e êsse falso julgamento é preciso 1nanter o que diz Kattenbusch. II, pãg. 351:
"Paulo é superior a qualquer outro, mesmo a Lutero, que "doutrinou" sõbre a
Igreja". Sôbre a controvérsia a respeito da Igreja "visível" e "invisível" veja-se
K. L. Schmidt, Kirchen!eitung und KirchenZehre im NT, em Cristentum und W!s-
sensdw.ft B (lff32), págs. 24lss, esp. 254ss, contra E. FoeSter, Kirche wideT Kirche,
em Theol. Rundsc1>.a.u (1932), págs. 155s; C. E. Dodd, Essays Congregationa.Z and
Catholic (1931), trata de tôda a questão da (s) igreja (s) desde o início até a
presente situação eclesiástica e com razão evita a distinção entre "visível" e
"invisível", que se tornou tão comum e causou tanto mal entre as igrejas da
Reforma. Deve-se notar que o próprio Lutero identificou a ecclesia invísibilta
com a eccZesúr (spiritualis) sola. fide perceptibilis (o texto mais antigo é do ano
1521, em Weimar Ausga.be VII, 710). Totalmente diferente é a posição de J. Boenl,
De'I' Kampf um die Kirche - Studien zum Kirchenbegriff des christlichen
Aitertums (1934), pág. 130: "Quando no NT se fala de Igreja tem-se a impressão
que só se trata de uma Igreja invisível". (0 livro de Boeni - que contém 326
páginas -- é um dos mais recentes e mais compreensivos tratados do conceito de
Igreja, sendo obra de um antigo sacerdote católico que agora é pastor protestante.
Sua preocupação não é tanto fazer progredir o estudo científico do problema
como apresentar o resultado de muitos anos de leitura, onde transparece a evolução
do autor de tradicionalista-conservativo para modernista-liberal.
llll Cf. A. Schlatter, Die Kirche Jerusalems vom Jahre 70-130, em BFTh 2
(1898), pág. 90: "Quando Israel morreu, morreu também a igreja primitiva e
sua morte foi um desastre para tôda a Igreja, pois a lacuna por êle deixada foi
preenchida pelo cristianismo de seitas - ali "MaoJTlé, aqui bispo, monge e papa".
Não obstante a rude sinceridade com que isto é dito, trata-se de uma afirmação
verdadeira, apesar de E. Peterson! ~ste escreve (Die Kirche (1929), pág. 69):
"Quem vê a relação entre Igreja e SLriagoga como realidade meramente histórica
e não teológica é obrigado a ressuscitar o ponto de vista gnóstico que tenta
eliminar o VT e o Messias "segundo a carne". Não foi por acaso que o "histórico"
Harnack se tenha mostrado simpático para com o gnóstico Márcion, do ponto
de vista teológico". Nãa muito claro é o seu pensamento quando .Peterson quer
falar como teólogo e não como historiador: os padres apostólicos, em contraste
com a sinagoga "entenderam a ecctesia como significando evocatio, um chamamento
para fora do mundo com suas estruturas naturais e criações sociológicas humanas"
(págs. 24s); ou quando escreve: "C:f. também C. Passaglia, De Ecclesia Christi I
(1953), pág, 10. Quanto a mim julgo que esta interpretação patrística da palavra
ekldesia., que ajuda a ver a diferença constitucional entre Igreja e Sinagoga, é
mais significativa do que as constatações modernas de que na Septuaginta as
palavras ekk!esia e synagogê são usadas promiscuamente. O verdadeiro significado
de uma palavra não se estabelece por uma citação mas pela situação concreta
em que é proferida". Mas, deve-se dizer que a relação entre o VT e o NT envolve
muito mais do que uma simples "citação"; quanto à "situação concreta",· esta
tem um sabor mais "histórico" do que teológico. Peterson uniu num só artigo
(Schweiz. Rundsch., jan. 1935, págs. 875ss) três conferências que proferira em
Salzburg sôbre o tema "Die Kirche aus Juden. ·und Heiden"; êsse artigo é útil
para uma visão de conjunto das relações entj'e Igreja e Sinagoga, mas suas
lgrefa 61

do NT não ser entendida em têrmos


da dicotomia e realidade, não pode ser_eoncebida
em de comunidade total e particular. Questões
de teologia prática e de sociologia são, neste ponto, secundárias.
Qualquer comunidade particular do cristianismo primitivo tão le-
8,,J•.U,.,.... como a comunidade de Jerusalém e representa;
a comunidade de que aos poucos-muitas
co1mumí1da11es particulares organizado em conjunto pro-
duz a impressão de uma do particular para o geral. Con:.
esta impressão nenhuma norma, mas tão~l'!õ-
mente é significativo o de que uma comunidade se entende co~ -
mo representação da total. Partindo é que se deve abor-
a tão discutida do sistema de govêrno. Questões de di-
reção e de govêrno são evidentes por si mesmas não devem re•
ter nossa atenção. mostra claramente que no inicio havia·
mais carismas espirituais do que posteriormente, e que no lugar dos
carismáticos entraram mais tarde os presbíteros e os bispos. Mas
o modo como Paulo fala dos carismas, e particularmente o modo
como êle mantém a conexão com a comunidade primitiva, mostra
não se pode de uma mudança constitutiva que,. partindo
concepção , chega à "jurídica" da
Só quando as res i'uris hmnani, coisas direito humano, se tor-
naram res juris di'll--ín.i, coisas de direito divino'- para o que con- ~­
tribuíram as "altas" especulações sôbre a Igreja se deu
a passagem do cristianismo primitivo para o catolicismo antigo. É
esta que - bem entendida - constitui o abismo entre
e catolicismo.

conclusões não são muito claras. Em todo o caso, no NT os dois têrrncs ekklesia e .
:rynagogl! não são tão agudamente distinguidos como Peterson opina. De outro
lado, os Padres da Igreja que êle segue - conscientemente aceitando os métodos
de interpretação bíblica da igreja antiga e da Idade Média - consideravam a
ekktetrl4 como o verdadeiro (espiritual) e a $11Mgog8 como o falso
(Cll1f1Q~), em Rm 9-11; êste modo de ver se tornou depols est(!J"eotlpado, .
embora possa ser a verdadeira ·intenção do NT.
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_,
REI

REINO

por


1NDICE
REI

A. No grego clássico e no helenismo ......... ·,·....... 69


B. Rei e Reino no VT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . 71
1, Rei e Reino em Israel, 71
2~ O rei Salva.dor,, 72
3. Javé como rei, 75
4. Il'I«lkut, 77

',e. "Reino dos Céus" na literatura rabínica 79


1. Origem, 79
2. Uso do conceito, 81
3. "Reino dos céus" e povo de Israel, 82
4. "Reino dos céus" e o Messias, 83

"Reino de Deus" no judaísmo helenístico ~ 84


"Rei" e têrmos correlatos no NT 87
1. Uso geral, 87
2. Uso específico, 88

REINO

A. No Nôvo Testamento 91
1. O reino terreno, 91
2. O reino de Cristo, 93
3. O reino de Deus, 93

B. Na Igreja Antiga, .. ·.. ; .... ~ ........................ . 105


Bibliografia • • • " • ,. • •- • • • • • • .. 11 ~ "' .. • • • • e e " • • ., " • » » • "' • • " •
109
I

NO GREGO
o têrmo basile'us 1 desig1ia o rei como a autoridade legal e
ralmente no bom sentido, isto é, que chegou à sua
por mn direito Na teoria e na prática política pos-
terior opõe-se ao tyrannos, que é um usurpador violento do poder 2.
Homero, nos conhecidos versos da Odisséia (19,108ss), apresenta-
onde faz o do bom rei e da u1:::a.1va.v
Com efeito, a justiça ou a injustiça do
na vida de seu povo, juntamente com êle
ou infeliz. ·· ·
autoridade do rei é proveniente de Zeus (Ilíada 2,197·) e a
estabelecida é freqüentemente descrita pelo adjetivo
por Zeus" (Ilfuâa 2,196 et passi?n). Em Hesfodo, onde
o é' fundamentalmente concebido como uma personalidade cava-
lhei:reséa, encontramos uma doutrina elaborada sôbre a sabedoria
regia: não os bardos, mas também os são inspirados
pelas Musas: Calíope assiste aos reis e aos bardos (Teogonia 80).
O dom divino das Musas .aos reis consiste em "falar com retidão••
(ib. 86). . . . .
Nes~e âe rei; nos g:fegos antigos, repousa à rf'i•~"1 ·1 '"''
a essência do ba.sileits ideal 3 .na Política, de

geralmente se aceita, um têrmo


pré-helênica. Ver Dehr.m1'1,,r.

(Ethica ad Vm, ,~ .p 1160


b bem como a de Suidas: "Rei é quem :recebeu dos antepassados por
suces:são o poder sõbre territórios determinados; tirano é quem se apropriou do
poder pela fôrça". Cf. :K. von Pritzwald, Zu:r Geschichte der !';fl'!rscher-
bezeich:nungen ti(.111 Hmner bis (1930).
3 Sôbre a concepção pfatônica de re~, e:/'. G. Das Bild d.es 'I'yrarm.en
ibei P;uton, em Ttteb. Be-ltraege zur Al:rer:tu11iwc!.sséms.chi11ft 3 (11'27) Slss e passim.
'!() Karl Lud/wig

a das é uma régia, e quem a possui é um homem


régio (Política 292e; cf. a sentença na República de Platão,
V 473d: "se os filósofos não reinarem nas cidades, ou se os que
agora são chamados reis ou poderosos filosofarem correta-
mente, não haverá fim para os das tam.-
do humano) . Assim
uma evolução já o~l!.i~:tct.:a,
curso1· do com seu
" ..~parece aí o de um rei benfeitor
está dos e os apasc~ertta
lhas. conhece outra lei senão a lei que
não está sujeita a uma ordenação comum; e sua vontade é norma
s6 para determinado país ou estado, mas o universo. A
natureza e a tarefa do rei resumem-se em que é o benfeitor de
todo o mundo" 5. Dessas idéias filosóficas do século IV a.e. se de-
senvolveu, sob a influência da imponente figura de Alexandre
Magno, aidéia helenística do rei-deus. A primitiva dos gregos
na divindade da pessoa investida poder se combinou no helenis-
mo com as Idéias dêsse rei-deus, próprias de diferentes povos do
Oriente.
Desta forma chama-se basileus o helenístico que, à
tação Grande Rei dos persas, se poderia charnar também ba.si-
leus rnegas, ou mais tarde basileus basil.eôn, dos reis; assim
se chama Antíoco Ide Comagene "o grande deus Antíoco", (Dit-
teuberger, Orienti.s graecae inscriptiones 383,1), como também o
imperador romano 6, Sua basileia, reino, é uma "autoridade sem
responsabilidade" ( Suidas, sub voe e).
lado do uso de basileus para designar reis terrenos ou di-
vinizados, existe o emprêgo do têrmo para designar os deuses an-
tigos, s..obretudo Zeus como "rei doa deuses", ou "rei" simplesmente
(Hesfodo, Teogo1J,ia, 886; Opera Dies, 668), e isto como epíteto
e como apelido cultural (IG VII ; inscrição encontrada em
Lebadeia; Ditenberger, Syllog~ lnscriptionuni Graecarum ,1014,110;
.uun.:r1Çttu de Eritra). Outras divindades que são chamadas ba.8Ueuí!

4 Euerget>es se torna epíteto muito preterido e típ 1co dos reis helení>fü:os como,
por ex : Antigemo e Demétrio, que :foram celebrado;:; como "deuses rnlvadores
e benfeitores".
~ E. Lohmeyer, op. cit. 12. Ct.. ainda em Platão <Politicus 267 d, e 275 b) e
em Aristóteles a imagem do regente ideal que não pode ser submetíd-0 a lel.s, porque
êle mesmo é lei (Poliff.C(l III 13 p. 1284 a 13).
e C.omo título e predicado divino de reis helenisticos ao tempo da era cristã
(cf. Deis:s:mann, Licht vom Osten 210s).
Rei e Reino '1'1

(por ex.~ Poseidon, Hércules)


nades em Pauly-Wissow (Zoe.

B. REI

comum a tôdas as
e seu significado,..-0riginal,
Raramente no têrmo é '"""""'""JV"'""'·

l. I sraei-- A do reino se deu em


crise produzida ataques tlos filisteus:
outros, tinha primeiramente lider cari&-
mático :rei de Israel. Depois sua morte, Davi, seu
general mercenário, tornou-se primeiramente rei de Judá, e poste-
riormente também de Israel, que se uniu a Judá mediante acôrdo
Davi estabeiece a sede seu reino em Jerusalém> a cl~
há pouco reconquistada. . Daí governa os dois ·.reinos e
sua desintegração, estabelecendo um vínculo dinástico; em
ao costume predominante em Israel de o líder ser designado,
em caso, diretamente por Javé. A legitimação definitiva da
dinastia davídica foi resultado . da "aliança Davi" (2Sm e
que Javé com êle e com seus descendentes.
Depois de a união pessoal, na morte de Salomão, "6
Norte passou a novamente o critério da designação
por meio de e só esporàdieamente surgiram aí dinastias. Em
Judá a de Davi se manteve por quatro séculos no
teoFicamente a linha genealógica foi sempre continuada 7,
O do reino no de Israel íoi
circunstância de ter num tempo em que a
naquilo que lhe era jâ estava formada. oposi-.
à maioria dos povos antigo, em o reino não~ ·
evoluiu, em forma de instituição, juntamente com a religião, pan. ·· ·
se tornar um essencial, mas secundàriamente ·:foj
põst-0 em relação ·-.com um . de.Pó.sito religioso firmemente estabe..
lecido. O "javismo'~.cons~!'vava uma atitude crítica frente ao reino
e tinh~ sôbre êle pretensões bem específicas; mas aceitou-o na órbita
da :fé, e sobretudo da esperança de como um elemento
de tensão.

~ :fl:~te segundo artigo (B) é de autoria de Gerhard von Rad.


7 Cf. A. Alt, D!e Staatenbildung der Israelften in Pa!aeatina, em
RE,form.ationsprogramm (1930).
72 J{a.rl Ludwig Schmidt

Nas côrtes do Oriente antigo - onde o centro era constituído


por uma pessoa divino-humana - tudo levava à formação de um
estilo cortesão, com cerimônias bem determinadas, ligadas à tradi-
cão e à etiquêta, para falar ao rei, glorificá-lo na sua entroniza-
;:ão
·~ ' homenageá-lo com saudações e cânticos grandiloqüentes, etc.
Originaram-se assim repertórios de títulos, comparações, epítetos,
maneiras de falar. Hoje vemos claramente quão extensa era a par-
ticipação de Israel nessas formas comuns ao Oriente antigos'. '·Qüan-
do, nos assim chamados "salmos reais" (Sl 2; 20; 21; 45; 72; 101;
110; 132) se afirma que o rei é filho de Deus, que êle. reinará até
os confins da terra, ou quando é celebrado como rei que inaugurará
uma nova era de paz e de justiça, temos aí pensamentos. e fórmu-
las pré-existentes que Israel adotou e integrou em sua visão do mun-
do. O rei, que segundo a idéia antiga era a corporificação do· povo,
devia em Israel ser objeto especialíssimo das promessas de ,graça
de Javé. Mas é preciso também ver com clareza o fato decisivo de
que a religião israelita foi mais forte que as cerimônias e fórmulas
adotadas: o rei é e permanece homem; o VT ignora qualquer di-
vinização do rei 9; coisa que na Babilônia e no Egito fazia parte do
estilo da côrte. '
2. O rei salvador - E necessário fazer distinção bem nítida
entre as mais pleonásticas fórmulas do estilo cortesão em Israel e
a fé messiânica. Nenhum dos "salmos reais" é messiânico, pois
nêles o dominador é sempre concebido como presente e fala-se de
inimigos também presentes, etc.; nada aponta para a esperança es-
catológica de um rei salvador. Apesar disto, o estilo da côrte é -
até onde podemos ver hoje em dia - a ponte que conduz. para a
fé no Messias. Todo o complexo de representações religioso-políti-
cas que estava ligado ao rei empírico - o que dêle se espérava, os
títulos que lhe eram conferidos, as obras maravilhosas. que. devia
proàuzir - tornou-se o solo fértil onde se alimentou a fé m~siânica.
Esta conexão não deve causar estranheza, pois o rei escatológfo~ es-
perado é por sua vez um descendente de Davi. Por outro. lado, o
elemento escatológico que se acrescenta ao mero estilo cortesão,
permanece problemático. Ainda não existe uma explicação satisfa-
tória do fato porque em Israel se chegou ii.quela misteriosa proje-

Talvez per intermédio de antigas tradições oriundas de Jeru


1" 0
Plérn,' então
cananéia; cf. Sl 110.
o O único resto que escapou à severa cenrnra é Sl 45 7. As ~.f rmaçõ~s de
filiaçfio divina são formulas de adoção.
Rei e Reitto 73

ção no :rn. Sempre é ter presente aue BabUôni.a,, e


Egit-0 - clfü1sicos do cortesão:-,-:- não cÔnhecem escatO·
logia ou qualquer esperança de um salvador para o .:fiµàl ·, dQs
t.empos.
Se é verch.de que do ponto vista formal a messiâ'nfoa se
representações do estilo da côrte, .do ponto de vista
seu conteúdo ela tem na pessoa de Davi e especialmente
pa aliança davídica : não é Davi que construir uma
casa para Javé, mas construirá uma casa para Dayi ~-seu
durará para sempre. Havia aí uma grande . promessa;·. euja
:realização plena, e digna de Javé, se localizava no futuro/cómo· tada
vez mais claramente se via. Essa promessa podia falhar; se o
presente não lhe correspondia, era preciso deslocá-la para o futuro.
Assim a esperança de salvação consiste, em· Amós, na restauração
do ".tabernáculo caído de Davi" (Am 9.11) e se apóia na profecia
de Natã ainda não cumprida (2Sm 7). ·· ·
•, ,,
Conquanto o terminus a qiw do surgimento da messiânica
Davi, aquela esperança contém, porém, elementos e ·· · ger-
não se encontram no empírico. _Já na difícil p a de
49.Sss ouvem-:se motivos paradisíacos, .como. também e~ Am
9.11-i5. Isto não se entender. como elemento perifétiéo ·sém
:il)terêsse, pois em seu grau mais elevado tais motivós se enéOiifram
em Isaías, o profeta messiânico por excelência: o rebento' esp(ú·ado
em Is 9 e 11, e que deverá nascer do tronco de Davi, introduz um
nôvo eon 11 de e de paz paradisíàca. É precedido pefo 'ani-
quilamento dos e êle mesmo é um ente de dotes sobrena-
turais. Esperança semelhante a respeito de um salvador descenden-
te de Davi se encontra em Mq 5.lss 12, Um pouco mais apagada,
mas mesmo delineada, é a eRperança de Jeremias
to (Jr 23.5s) e a expectativa Ezequiel pela vergôntea do cedro
(Ez 17:22ss; 34.23s; -37.24s). O Dêutero-Isaías cdnsiderou ó persa
Cin como sendo o rei dos últimos tempos; Zaearias pensou Q ines-
a respeito de Zorobabel (Zc 4.6ss; 6.9ss). Esta projeção da fé
messiânica sôbre figuras existentes significa uma mudança
... .· im-
1 o A melhor explicação é sempre ainda a de Duerr 52s: A repres~11ta~fio
d<-- Deus. única cm Israel; a fé num D1ms poderoso em quem se pode - confiar,
e que é capaz de ,ajudar a Israel; tal é t' raiz desta esperança religiosa.
11 O têrmo hebraico 'ad significa eon (cf. n. Klttel, He!lenistischc '
rienreligionen 73ss).
l:! Transparece aí claramente certa cposiçiio contra Jerusalém. a «:1u~i só
nunca é nomeada, mas. preterida em favor de Belém donde virá a nova. dinastia
davídica. ·
1~ Karl Lud·wig Schmidt

portante nas representações escatológicas. Com os desenganos pro-


duzidos por tais identificações as vozes messiânicas se tornam sem-
111·e mais :raras e . quase d~saparec.e!};\, totalmente nos escritos pós-
l'anônicos 13 .. e só i'eviveram no tempo imediatrunentt:. ânteriôr ao
período neotestamentár:io. ·
Afora a fraseologia entusiástica do estilo de côrte e do elemen- ·
to cspec1ficamente israelita da escàtologia - ambos. próprios da. fé
niessiânica· de Israel - há ainda a considerar Uma quantidade de
concepções mitológicas que certamente não tiveram sua origem pri~
meira nos profetas, e que dificilmente podem ser derivados da pri-
mitiva fé israelita. Especialmente as alusões à pré-existência dêsBe
rei salvador H e a conexão de sua figura com um eon de fecundidade
paradisíaca, nos fazem suspeitar que alguns elementos míticos ex-
tra-isrnelíticos sôbre o Rei Primitivo ou o Primeiro Homem para-
disíaco se fundiram com a promessa contida na aliança davidica 15 •
Embora as esperanças ligadas ao Messias sejam multiformes, todos
os testemunhos, contudo, concordam em que o Ivlessias aparecerá
como uma figura de paz, de modo que seu aparecimento se segui-
rá às guerras e à destruição dos inimigos que precedem sua era.
A passagem para o nôvo eon não é fruto de batalhas por êle tra-
vadas 16, pois que êle viverá depois da batalha final, como senhor
de um· eon paradisíaco. Uma outra peculiaridade dos textos sôbre
a vüida do Messias é a ausência do título melek; êste "inclui sempre
a1go de ímpio, humano, violento e opressivo" 17, É certo que a maio-
das profecias mer,siánicas fazem oposição ao reino histórico con-
í'rdo.

D Nos círculos levfücos - donde provieram as Crônicas - a esperança do


Mes~ias p<:rece ter sido e'pecíalmente viva (Cf. G. von Rad, Geschicntsbi1d àes:
chro11istischcn Werkes (1930) 119ss). :t difícil fixar Zc 9.9 cronologicamente. Em
7.13 certamente se fobva do Messias r.a fr n:e mitológica donde se originou, mas o
redator reformou a matéria. Os cúnticos. do Servo de Javé em Dêutero-Isaías não
trat~.m (lo M:essias. Cf. a discus-são em J. Fischer, Wer íst der Ebed in den Perikopen
Jes 42 . . '.? (1922); ZAW 47 0925) 90ss; 48 (192tl) 242ss; 50 (1928) 156ss; 51 (1929) ·
255~s. De i:esto, o VT não conhece o titulo mashiah cplicado ao rei dos últímos
tcinpos.

l4 Especialmente ·€m Mq 5.1 (Cf. Sellin, Prophetismus 178s).


1~ R Kittel (toe. cit. 64ss) busca as raízes da imagem do Messias em Isaías no
mitn egipcíaco de Osír!s.
rn Is 11.4 não é exceção, pois sem tocar numa arma, com o sõpro de sua bôca
êle vence milagrosamente os seus opositores.
n ..W . .Caspari, Echthkeit,. Ha.uptbegriff und gedankengang der messianischen
W<i'is::ugung Jes 9 0908) 14.
e Reino 16

3. Javé como - É fácil constatar que a esperança mrMes-


sias não predomina na literatura vétero-testament-ária,-i'rque,·.~vmtos
em seu conjunto, os textos messiânicos se encontrall1_relativ"átéen.1'"
isolados. Muito mais freqüentes são os que :falam da fé num
outro reino supraterreno, que determina 0; presente ·e o f.u,túto: ··~•o­
É difícil· reduzir a uma fórmula clara a :relação· entre
essa representação e a fé num messiânico 1a. Não é pós.sível
tradições independentes, pois Isaías, o mais vigoroso
messiânico; chama a· Javé ·de rei (Is 6.5}, como também
e Jeremias. De outro o Saltério, a a figur!\
es1!at.ou)~1.co é estranha, contém as mais nurµ.e-
rosas e mais importantes passagens sõbre o reino de Javé 19.
A aplicação do conceito de melek à divindade é comun:i 'a todo
o oriente antigo (comparem-se, nas vizinhanças Israel, os con-
ceitos de Melkarl, Milkom, Kemosmelek); parece mesmo .que êsse
epíteto divino pertence ao semítico primitivo. Dêste modo, descre-
ve-se da melhor maneira possível a relação Deus e o.homem:
é senhor e obediência., e em razão dela dá aos ~,sú- .
proteção e Em Israel é possível constatar com bas~
t.ante exatidão o aparecimento dessa designação. Os exempfôB sur-
gem somente depois do estabelecimento do reino histórico;. os mais
antigos, cronolôgicamente, são: Nm 23.21; Dt 33.5; 1Rs 22.19; Is
6.5).
As concepções sôb:re o reino de Javé têm diferentes tonalidades
no VT. Existem passos que acentuam o caráter supratemporaJ do
reino de o qual abrange tanto o passado como o futuro c:mx
15.18; 12.12; Sl 145.llss; 146.10) ; outros põem o acento no
de expectativa (Is 24.23; 33.22; Sf 3.15; Ob 21; '14.16s}.
o presente não satisfaz essas esperanças, o conceito do
é incluído mais e na corrente da "'"'.""""u1"'"'· ..'""·
se adaptava o início~: espera,..se
se como mesmo os
catológicos :não pretendem negar que Javé já
; espera-se tão-somente a manifestaç.ão final todo o seu poder
Um terceiro grupo de textos se encontra nos Salmos 47;

1s Infelizmente êste assunto. apesar de movimen:tada discussão hodferb.8: ··sõbre


a Escatologia do VT, nunca foi tratado devidamente. Caspari (toe. eíti .128$1)
aponta com razão para o fato de que o o'.l!i!es.sias de Is 9 não é um autocrata. ' Tantc·
pela expressão "príncipe", como pela de "conselheiro" designa-se alguém que é
resptmsâvel perante outrem, isto é, algo como vizir. Em Jeremias '(e E:i;équi~),
ao contrário, o Messias é melek (cf. Jr 23.5: 37 24).
rn Um lugar especial ocupa aqui, como a teologia deuteronomístiea; ela
desconhece tanto a idéia de uma realeza de como w:na esperan~ ml!ssilnica.
20 Elssfeldt, Zoe. cit. 96.
76 Karl Schinidt

; 99 (cujo núrne:ro ainda maior). Aí encon-


tramos uma peculiaridade pelo verbo 1nâlak, aplicado
Javé se tornou dos entronl-
, os quais, ue1n;1~rn1eiJL1..e, constituíam o ponto de uma
que celebrava (e dramàticamente) a subida de
ao trono 21. não anunciam e-r ~nto escatoló-
presente e vivida no
~~·11,,ç11~~ concreta do
Salmos,
sentiam a
ecmo uma contradiçfi,o
pert1en1:::mn antes ao uso que "'"''"''"'v'·"""·ª"'"-
te se combinar sem demasiada tensão com a fé num Messias
vindouro. livro de Crônicas se como as duas diferentes con-
cepções . que originàriamente desenvolveram independentemen-
te uma da outra - mais tarde se puderam entrosar harmoniosa-
mente; aí a promessa de Javé a Davi, e ainda não realizada,
é grandemente valorizada: o descendente de Davi domina na mal-
kut de Javé; êsse é o da aliança feita com Davi, como a
o cronista (lCr 17.14; 28.5; 29.23; 2Cr 9.8; 13.8).
A maioria dos não deixa entrever em que consiste o rei-
no de Javé. As numerosas afirrnações · não explicam se
se deve que Javé é rei de Israel ou rei de todo o mun-
do 22. Contudo no tempo pré-exílico predominam os textos que
signam a como rei de Israel e prometem, seja para o .,..,..ºº''n1·a
seja para o futuro, auxílio, salvação, justiça, alegria para o povo
eleito 23. o exílio e no tempo pós-exílico já se fazem ouvir
vozes o reino universal de Javé 24, 'Parece que a designação de
Javé como rei serve para salientar seu poder, sua grandeza, sua
urontleltao em ajudar; mas atributos eram tão óbvios e tão pou-
co ao conceito ":rei", que os não re~
euaram diante de diferentes que combinavam
conceito de rei. combina a figura do pastor com a
(Mq 5.3) e o Dêutero-Isaías fala ao mesmo tempo de çriador,

21 Cf. Mo·wL'lckel, Psalm,enstudien II. O significado desta festa é porém muito


supere$ilmada .em Mowinekel; também a dedução que êle faz da escatologia israe~
liia ·a partir desta· festa (ZA W 52 (1930) 267, nota 8) é um produto de seu espírito,
e ~â abandonada. ·
•'! ,'.'. , ...,,, ' ··~

·: 22 Passagens hinológicas: Jr 46.18; 48.15; 51.57; Sl 5.3; 24.7ss; Dn 4.84.


28 Jr 8.19; S.t 3.15; Mq 2.12s; 4.t!ss; e ainda em Is 41,21; 43.15; 44.6,
24 Jr 10.7, lOss; (Jr 10.1-16 dificilmente pode ~r considerado como sendo de
Jeremias); Zc 14 9, 16s; Ml 1.14; Sl 22.29; 47 .3 8.
Rei e Reino 17.

salvador e paralelismo se
creve mais a natureza da Deus. Mas pode::.se
afirmar que é sempre representada como imanente. . Mesmo em
passagens tardias como Is 24.23 e Zc reina sôbre tôda
a terra, e conquanto seu trono em ..éai ..,.,-1,.w·<>
por todos os povos (semelhantemente Oh
. Dêste problema se ocupou recentemente Martin Buber em sua,
extensa obra sôbre o de Deus 2s. Deve~se que de suas te-.
uma teológica que dá ao ni.elek, quan-.
«uu:1,;auv a Javé, uma que não é VT. Mea.::
não se segue a 26 - que, de manei-
ra lexicográfica, em Is 6.5 o primeiro exemplo dessa
aplicação - permanece o fato de que ;no VT Javé não é designado-
como rei antes do tempo dos reis. Em todo o caso · bs textos nã0>
oferecem. base exegética para afirmar que a aliança sinaitfoa era
preci!)amente uma aliança real. De modo geral deve:--se dizer qué
as designações de Javé como rei se encontram nos hinos, onde
dominá :Uma poética -de exageros. retóricos e· que, por
não podem ser considerados como expoentes importantes de
tude religiosa básica. Buber contrasta fortemente o malk, a "divin-
dade líder", com Baal. Se em lugar de malk dissesse-..Javé", pode-
ríamos concordar. Onde, porém, na dura luta contra a religião de·
Baal - pense-se em Oséias e no Deuteronômio - se recorre à f ór-
teológica de que é o malk? Buber muitas passagens .
que, de certo modo, afirmam que Javé "guiou" a Mas com.
não se afirma ainda que êle é malk no sentido dado ao têrmo.
interpretando tais passagens nessa linha, tira-se-lhe seu pêso·
es1pe(~ll1co próprio, que se encontra precisamente no sentido cúitico

4. Malkut, reina·-· O rnalkut pertence pouco•


numerosas formações abstratas do hebraico antigo e a partir defa:
se originou a maioria das formações posteriores 27. Deve ser tradu•
zida primàriamente como "realeza/'; o sentido de ''.domínio'' com.

2lí M. Buber, Koenigtum Gottes 0932).


· 26 Loc. cít. 104.
; '21 L.· G\Ãlkvwitsch, Die Bildung von Abstra.ktbegrlffim in der hd:irarisc~.~c'~
Sprachgeschichte U93l), passím. GuLJ.;owítsch considera a origem do têrmo a partir
da linguagem oficial ncádlca U30s).
78 Karl Ludwig Schrnídt

:referência concreta ao território governado, é uma extensão· do


S4'3ntido básico de "poder régio" 2s.
O têrmo m.alkut significa no VT, na maioria dos casos, o rei-
no político profano, (1Sm 20.31; 1Rs 2.12). Os meios religiosos
antes · de Daniel recorreram poucas vêzes a êsse conceito. Para-
lelamente à denominacão de .Javé como melek, o poder de Deus é
algumas vêzes designa-do por rnalku.t 29. Na obra histórica do Cro-
nista temos pequenas correções que já indicam de leve a existência
de concepções escatológicas que, nos escritos pós-canônicos, se tor-
nariam predominantes. Em 2Sm 7 Davi é confirmado na sua mam-
'úxkM, têrmo entendido ainda em sentido profano; não assim, po-
rém, em lCr 17.14 onde Davi é pôsto à frente da rnalkut de Javé.
Também segundo lCr 28.5 Salomão está assentado no "trono da
rru:dkut de Javé". í!;ste modo de falar não deve ser interpretado no
sentido escatológico ; o reino da vídico é aí visto como a malkut de
Javé e os da linhagem de Davi estão assentados no "trono de Javé"
(1Cr 29.23; 2Cr 9.8). Não obstante, trata-se de uma particularidade
bastante significativa, pois o Cronista viveu numa época .em que o
reino davídico só podia ser uma lembrança longínqua, e assim de-
nota, embora não um inte:rêsse escatológico, contudo, um interêsse
atual na realização da malkut de Javé.
A nítida distinção apocalíptica entre o eon presente e o futuro
- que se nota pela primeira vez em Daniel - traz consigo uma ca-
racterização muito mais aguda do conceito de "reino de Deus". Se
em Dn 7 cada um dos reinos que vêm do mundo transcendente é
chamado malku, o têrmo quando aplicado ao reino final, isto. é, ao
"reino dos santos", tem significado todo especial. Deus pode entre-
gar a malku a quem quiser (Dn 2.44; 4.22) ; entrega-a de fato a seu
povo e com isto estabelece um reino eterno (Dn 7.27). Aqui não se
fala de malkut de Deus, e tampouco Javé é rei, mas trata-s.e da
sucessão de "reinos" humanos até que por último surja a malldl.
dos santos - representada pelo Filho do Homem que há de vir (Dn
7.16ss). Esta esperança na malk11, com fortes côres nacionais, ecoa

2a Mamtakhd é pouco diferente de maikuth quanto ao sentido, a não ser que se


refira mais ao caráter abstrato da instituição régia (1 Sm 27.5; Am 7.1,3). No
sentido religioso encontra-se em Ex 19.6 a exigência fel.ta a todo Israel de ser um
"reino de sacerdotes", sem que se dê pêso especial à mam!akhd como tal. (Cf.
uma expressão paralela em Nm 11.29: "Ox;:lá, todo o povo se tornasse profeta!").
Também meiukhli significa "reino". Com sentido propriamente religioso êst.e
têrmo só se encontra em Sl 22.29 e Ob 21 em relação ao reino de Javé no tempo
presente e !mal.
Z!I Sl 103.19; 145.11, 13; Dn 3.33. Também em Sl 22.29 (me!ukM).
Rei e Reino '!IJ ·

intensamente na literatura 30 subseqüente (Henoc eti6-

pico 84,2; 90,30; 92,4; 103,1; Assunção de Moisés 10,lss et


sim,) 31.

C. "REINO DOS " NA LITERATURA RABfNICA (*) ª'


1. O conceito judaico tardio de malkut skamaim deve sua ori-
gem à tendência comum ao judaísmo tardio de expressões
comuns no VT, e em seu lugar empregar abstratas.
a expressão é semelhante ao conceito shekhinâ.
Assim como êste é simples da frase vétero~testamentárfa
" mora ... ", Javé está assim também "reino dos
céus" no tardio no lugar de "Javé é rer•
Assim os Targunüm substituem essa expressão tão freqüente
por "o reino de Deus" (por ex., Targum Onkelos lilxodo 15.18: "o
reino de Deus firme"; Targum Isaías 24.23: "será manifes~
tado o reino de Deus", em lugar da redação massorética "Javé rei-
na". Assim também em Is 31.4; 40.9; 52.7; Mq 4.7; Zc 14.9 ll11• Mas
o Targum conserva a expressão do VT em 20.23; SI ·47.9; 93.1;
96.10; 97.1; 99.1; 146.10. .
que no judaísmo tardio o nome de. Deus Yakweh. foi subs-
tituído no culto (na leitura da Bíblia na Sinagoga) por Adonay, os
escrevem "reino de Javé" 36 mas que devia ser lido "rei-
Adonay". No uso diário o nome de Deus era evitado e em
se dizia sha1naim, os Por isto na literatura rabíni~
ca, os Targumim, sempre se encontra a expressão malkut

80 Sôbre o uso de malkut nos rabinos, cf. 79-83.


u Cf. Bousset-Gresamann 214ss.
" l:ste terceiro artigo (C) é de autoria~ de Karl Georg Kuhri.
32 Não é preciso falar d~ modo especial de melek na literatura ribfu:lca,
visto que. ai - diferentemente do .VT - o ~rmo ma.lkut é . o .que realmente tem.
significado próprio. Por isto o uso de melek ni:i judaísmo tardio (Deus como Rei.
o Messias-Rei) será incluído na presente secção, na medida em que. já não foi
tratado na parte referente ao VT.
as Sôbre isto cf. Strack-Billerbeck. II, 314; Sitre Numeri 1 (a Pl'Opósl.to de
Nrn 5.3). .
M Uma terceira formação abstrata no judaísmo tardio é a expressão targdmica
meymrd' de Deus; trata-se de uma transcriçoo .da frase 'amar
Yahweh, Javé, e não de alguma (cf. Strack-Billilrbeck ll 302,u1).

a.:; Cf. Dalman, Worte Jest1 I, 7!J e 83.


:rn On malkutâ. dYY.
80 Karl Sckniidt

slu.1,11witn, servil e literal é o grego basileía tón oura-


nôn (~:It), mas cujo correspondente objetivamente correto é basileia,
tou theou (Me, Lc). No uso rabínico posterior -- provàvelmente
da passagem do I para o II - o nome de Deus, sha-
11iaim, foi mais uma vez substituído pelo têrmo absolutamente co-
mum kamaqôrn, o lugar. em algumas e modos
de continuou o uso como nome de ; .assim
na rnalkut shamaim.
do que "reino dos
pode o "território" é rei, pois a
JJlesmente descreve o fato de que Deus é rei, isto é, o
poder régio, 38. Por "reino dos é desde
o início mera teológica do judaísmo tardio e não uma trans-
pos1çao para o terreno religioso do profano de malkut 39,
O vocábulo malkut, isoladamente tomado, sempre significa nos ra-
binos govêrno terreno e mundano, o império romano 40; com esta
expressão não designam porém o estado como tal, mas consideradO'
do ponto de vista do súdito dêsse estado, isto o domínio romano.
autoridade, o poder que ê1e exerce" A "reino'~
:profano só mais tarde e é oposto o dos céus",.
depois que a expressão "reino céus" - nascida de raízes total-
mente diferentes - já era um consag1·ado 42. O
de "reino dos (a saber, a
é rei"} nunca foi pelos rabinos.
rece que êles sempre dão o nome de "versos do
aos bíblicos em que Deus é chamado "rei" 43.

37 Enumeradas em Strack-BiUerbeck I, 172 e I, 862ss.


:rn Isto tzmbém é acentuado por Dalman (lVorte J(!SU. !, 77: "regi~e real
não território real"). Mas êle o demonstra de maneira puramente empírica: "Urn
reino oriental não é .•. um estado no sentido nosso, nem qualquer povo ou pa18"
com determinada constituição mas antes uma autoridade que abrange
?erto território". Ora, isto na própria natureza do conceito.
Bl' E·'sa tran'posi<;ão :1e deu já muito antes e numa sltuação totalmente dife-
rente, isto é, no tempo dos reis de Israel (terminus a quo é Davi}. no que concerne
ao têrmo melek.
~o Muitos exempios em Strack-Bi11erbeck I, 183.
41 Neste reino, portanto, está de certo :modo incluído o poder político (ct.
nota 38),·
. 42 Somente em três textos -- todos provenientes do século III d.C. - o "reino
:los céus' é oposto ao "reino da terra". Genesis ra.õba 9 (7b); Pesikta 5la; Talmud
:)abflônico, tratado Bera.kot 58a (St:rack-Billerbeck I 175sL
~:i Assim pox ex, I?.osh Ilasiwna 4;5; Sifre Numeri 77, a propó"i1o de Nm 10.10.
Rei e 81

. 2. é preciso expor pormenorizadamente 'a 'evofüçãb ~


dêsse conceito, visto que todo o material rabínfoo .sôb:re "reino· doa
céus" já foi diversas vêzes coligido bibliografia). Só serão
apresentados, pois, os pontos de vista importantes para a com-
preensão do conceito. '
Antes· clt ··aos~cêus'', qu!'ln-
do se olha para o da literatura é relativamente
pouco freqüente e, do de vista teológico, nem ·de longe· tem a
significação que tem, na pregação de.Jesus. De modo
a expressão só aparece em ·duas fraseoiogias que delimi~m·o
valor teológico do seu conceito: uma é "tomar sôbre si o jugo do
céus" 44, isto é - o conceito acima definido -
"reconhecer a Deus como rei e senhor sôbre si", "confessar o único
Deus como seu rei" e recusar outros deuses. Portanto, a expressão
significa o monoteísmo judaico como expresso pelos seguidores da
fé judaica, várias vêzes ao dia, na "shemá" (Dt 6.4: "Ouve, Is-
rael, o Senhor, nosso Deus, é Um") .. Partindo daí a expressão
mar sôbre si o jugo do reino dos céus" significa muitas vêzes sim-
plesmente "recitar o skemá" 45 , ·

Portanto, "reino dos céus" significa aí algo pelo qual o homem


se deve decidir por um ato de livre vontade. De fato, permanece a
possibilidade de se recusar a Deus como rei ('~atirar para longe de
si o jugo do reino de Deus"). Esta possibilidade denota, além disto,
que o reino de Deus no mundo não é evidente, pois do contrário s6
poderia haver o reconhecimento - livre ou forçado do fato de
que Deus é rei, por parte de todos os homens. Por outro lado, exis-
te uma verdadeira decisão, decisão que cada indivíduo deve tomar
e que .só é válida se a possibilidade da decisão é definida, isto é,
se tem um :fím. Com isto chegamos à segunda fraseologia .em que
a expressão dos céus" geralmente aparece. .. Com efei'W,
êste «fim" (qeç telos) que delimita a possibilid3i~ d~ aGelta.ção
ou da :rejeiçij.o por um ato livre da von~àde é precisamente' á mani-
festação do reino de Deus. Esta manifestação é o desejo sempre re"
petido nas or~ções dos judeus 46; também os Targumim :falam fre-
qüente:rµente.do fim dos tempos ~·quando;o reino detD~nsu3e mani~
festar" 47.. Por conseguinte, como aparece aqui, dos céus" é,

H ~x,~mplos em Stack·Bi!lerbeck I, 173ss passim.


4ll, .Cf. Strack-Billerbeck I, 17'fs.
46 Comparar as duas súplicas do Tratado Soferim, em Strack-Bille.rbeck I, 179.
47 Cf. os textos citados na pág. 79 Ainda os Livros Sibilinos a, 47s ("aparece")
e Lc 19.11 ("o reino de Deus se manifostará"). · ·:
8.2 Karl Ludwig Schmidt

na teologia-do judaísmo tardio, um conceito puramente escatológico


no sentido estrito do têrmo.
3. Deve:-se notar atentamente que em todo êsse processo men-
tal uão se fala do "povo de Israel". O fato de pertencer ao povo
não é neste caso um elrment-0 que dewr:mina a posição religiosa do
homem, pois ai o lHL1em está perante Deus como indivíduo que se
deve decidir, precisamente como "homem" e não corno membro de
determinado povo. Com isto a teologia rabínica chegou.ao término
da evolução de um pensamento que teve seu ponto de partida nos
profetas.
Mas a outra linha da piedade vétero-testamentária - isto é,
a religiosidade fundamentada no fato de se pertencer ao povo -
que se manifestava sobretudo na lei e no culto, não desapareceu na
teologia rabínica. Muito ao contrário, os :rabinos sempre füclstiram
na prerrogativa religiosa do povo de Israel, segundo a qual perten-
cer ao povo determinava a posição do homem perante D Jus 48 •
Também no conceito "reino dos céus" êste pensamento desempenha
sua funÇão. Assim,· nas orações judaicas freqüentemente se fala
de Deus como do Rei de Israel 49. O mesmo pensamento está presente
quando se diz que o patriarca do povo, Abraão, fêz a Deus rei. sôbre
a terra so, pelo fato de ser o primeiro a :reconhecer o Deus únieo
como l".ei e senhor; ou, ainda, quando se diz que Israel, isto é, o povo
como tal, no Mar Vermelho e no Monte Sinai "tomou sôbre si o
jugo do reino" pela confissão do verdadeiro Deus e pela aceitação
.da sua Lei 51.
Essas duas direções - a religião comunitária e a religião in-
dividual - correm paralelas em todo o judaísmo tardio. Sua coexis-
tência se originou do fato de que as duas séries de afirmações, pre-
sentes nos diferentes escritos vétero-testamentários, eram para o ju-
daísmo tardio genuínas palavras de Deus, em conseqüência da ca-
nonicidade do~T. Mas a nota característica é que na teologia ra-
bínica não aparece nem mesmo a tentativa de harmonizar num sis-
tema teológico• único essas· duas linhas contidas na "Sagrada Escri-
tura". Os rabinos não sentiam nenhuma necessidade de fazê-lo, não
vendo de modo algum a tensão e o aporerua que daí resultam.

1'8 Tratado Sanhedrin 10.1: "todo Israel tem lugar no mundo futuro".
49 Strack-Billerbeck: I, 175. Também nos Salmos de Salomão Se "i;ie.11~a assim
(5, l!!s; 17, 3). É clara ai a conexão com a piedade cultud dos. salmos reais.
I. 173).
. . ..
50 Sifre Deuteronomium 313, sôbre Dt 32.10 (Strack-Billerbcck I, 173) .
. 51 Strack-Billerbeck I, 172 e 174: Sifre LevitiNts 18, 6.
Rei e Reino

na consideração dos céus"


ter que a conexão com o pensamento
nada que a alusão tradicional aos textos vétero-testamentá-
rios que a se referem; enquanto que a atualidade e o, significado
do no judaísmo antes de do pro:.
cesso mental profundamente de que :Assim
céus" é um dos poucos, senão o único,
do judaísmo o eschaton da do

o
4. definido com
respeito à no dos tempos.
ouanto "reino é, como pura.mente escatológico,
isto é, algo que não se rnaliza no decorrer da história, contudo, a
esperança um rei-messias se paulatinamente da es~
perança um rei israelita puramente profano - que restabele-
ceria o reino de Israel em tôda a sua grandeza e ·esplendor tal comó
fôra o davídico - para uma expectativa no tempos.
esperança não é no sentido A· "vinda
Messias" no pensamento judaico sempre precede o eschaton 52.
A dife:rença consiste em última análise nisto : o pensamento mes-
"'"~"'"'"" no judaísmo era a expressão de uma esperança final
que via em Deus primeiramente o rei de Israel e tinha, por isto,
como escopo último plano salvífico o restabelecimento
do r.eino do povo de Israel com o Messias por rei, rei ao qual se
submetem todos os povos. No "reino de Deus", ao cont:rário, o
conceito puramente religioso do eschaton é expresso em tôda a- sua
plenitude (" tudo em tudo"), a posição especial Is-
rael já não encontra lugar.
conseguinte, os dois
É que, não raras vêzes, aparecem lado a como sendo
os dois alvos a que se dírige a esperança, nacional e religiosa, dos-
judeus piedosos 53, Mas nunca são postos em conexão íntima. Não
aparece, por exemplo, a idéia de que o reino do seja o ''rei~
no dos céus", ou que o Messias introduza, por sua obra; o ''reino
dos céus". Tal conexão é inteiramente impossível em VJsta .do con-
ceito especialíssimo de "reino dos céus·~. ·

ll2 Cf. Strack-Blllerbeck !V, 968s.


53 Por ex., no ínkio da oração Kaddísh: "Estabeleça ·a sua autoridade· real fl
introduza o seu Messias".
84 Ka'rl Ludwig .Schmidt

.. REINO DE DEUS" NO HELENíST!CO

A Septuaginta, nos poucos lugares em que se fala do reino de


coincide fundamentalmente com o texto hebraico e, no caso
aranmico. Contudo, há na Septuaginta algumas .Passa-
gens especificamente gregas, ou helenísticas, que não têm corres-
pondentes no canônico. Em Sabedoria 6.20 temos: "o desejo
da leva ao reino··. No contexto dessa passagem fala-se
do alto e acessibilidade da sa.lJeclorút; portanto, o texto
a preocupação pela sabedoria leva ao
neste sexto capítulo Livro da Sabedoria que se
fala reino de Deus: em 6.4 os terra são os
seu (i. é, de Deus) reino"; em 10.10 se que a sabedoria mos-
trou aos justos o reino de Deus. Todavia, o uso absoluto de basileia
em 6.20 (cf. ;1.0.14) faz pensar no reino dos si'ibios. A isto se re-
IV Macabeus, 2.23, onde se declara que Deus deu ao homem
uma lei segundo a qual êle "reinará sôbre um prudente, justo,
bom e forte". Aqui "reino" é identificado com as virtudes capitais.
Filão de Alexandria levou mais longe esta moralização popu-
do conceito de basileia. No que concerne ao uso co-
mum de ba.sileia, está em primeira Unha o sentido de rei",
"domínio" e "poder". Nêle, por o ator está revestido das
"insígnias reino" (ln FlaccU?n, Também no plural apa-
rece êste sentido; ao lado dos que possuem a dignidade estão
os que possuem a dignidade de que possuem o poder e a
hegemonia (De Plantatione, 67). tinha Babilônia como "co-
mêço do poder ". (De Gigantibu,s, 66), Freqüentes·
oferece uma definição do conceito; "reino" ao lado de "go-
vêrno,. (De Mutatione No-minmn, 15; De Mosis I, 148; Quod
oninü; Probus ; "reino" aparece ao de. "poder
(De Plantatione, ; "reino" é "poder popular"
et Inventfone, 10); o reino terreno tem tarefas: preo-
de pastorear e (De V ita Mos is I, 60) . Mas
nôvo, é reino pôsto a lado com govêrno e até mesmo
com êle. O "reino" de Moisés, no sentido de sua lide-
rança, está em paralelo com sua legislação, profecia, e sumo-sacer-
dócio (Dé Praemiis et Poenis, 53), e com sua capacidade legislativa,
sacerdócii;> e profecia (De Vita Mosiis, II, 187). O mesmo se verk
fica com respeito ao primeiro livro de De Vita Mosis onde se trata
do "reino" de Moisés (l, '33s; cf. II, 66). A diferença entre ba.sileia
(poder reai humano) e archierosyne (sumo-sacerdócio) é explicado
de modo que a-0 pertence a superioridade sôbre· o primeiro
porque é culf;p. de ao passo que o primeiro é preocupação com
os homens, de modo que os dois conceitos se pelos seus
Rei e Reino 85

objetos (Deus ou os homens) (Legatio ad Gaimn, 278; cf. De Virtu-


tibus, 54). O sacerdócio convém a um homem piedoso e deve ser pre-
ferido à liberdade e até mesmo à basileía (De Specia.iibu.s Legib·us
I,57). Ao definir o reino, cujos decretos e leis devem ser observados,
afirma: "dizemos que o reino é a sabedoria" (De Migratione
A.brahae, 197). Tal é também o sentido da expressão "o reino do
sábio" (De Abrahamo, 261; cf. De Somniis II, 243s). Neste sentido,
Saul deve aprender de Samuel "as coisas justas do reino" (De
Migratione Abrahae, 196). O fato de o primeiro homem dar no~
mes aos animais é entendido como a obra da sabedoria e do reino
(De Opificio Mundi, 148) ; temos aí a conexão entre sabedoria e
poder. O sentido próprio de basileia, como poder real, é o domínio
do sábio como verdadeiro rei (De Sacrificiis Caini et .4belis, 49).
Com referência ao sábio Abraão, a vírtude é definida como poder e
:reino (De Somniis, II, 244). Da mesma forma se fala da inteligên-
cia : os que agem por ela chegam ao comando e poder das ações hu-
manas (De Specfolibus Legibus, I, 334). O contrário de tudo isto é
"viver nos prazeres", o que seria ilusório considerar como "poder" e
"reino". (De Ebrietate, 216).
Pergunta-se agora se Filão, nos textos citados, fala do reino de
Deus ou, pelo menos, também do reino de Deus? Sim e não. O
complemento "de Deus" aparece uma vez atributivamente - ao
comparar o poder de um rei com o "reino de Deus" (De Specia.libus
Legibus, IV, 164) - e uma vez predicativamente: "reino de quem?
.acaso não do único Deus?" (De Mutatione Nominum, 135). Talve7.
se pense no reino de Deus quando a construção da tôrre de Babel é
considerada como a destruição do reino eterno (De Somniis, II,
285). Deus está revestido do reino invencível e indestrutível (De
Specialibus Legibus, I, 207). Abraão como verdadeiro rei, isto é,
como rei da sabedoria, vem de Deus, porque Deus oferece o rein:J
ao sábio (De Abrahamo, 261). Moisés fala de um ser que é supe-
rior às causas que regem o mundo: "usando do reino poderoso e
autocrático" (Quis Rerum Divinarum Ileres sit, 301).
Uma única vez Filão refere-se a uma basileia futura, citand'.)
Nm 24. 7 (profecia messiânica de Balaão) segundo a Septuaginta:
"o reino dêle será elevado cada dia ao alto" (De Vita Mosis, I, 290).
Também aqui o reino é entendido no sentido moral.
Depois de percorrermos tôdas as passagens de Filão em que se
fala de basileia 54 podemos afirmar que o poder real nunca é con-
cebido como realidade escatológica. A basileia é antes um capítulo

M Cf. H. Leisegang, Indices. Em vez de V 142, 1 deve-se ler V 14, 21. No


~xto V 230, 8 tón basileiôn deve ser deduzido de ta bas-ileia, as coisas reais,
e não de hê basileia, o reino.
•11 lforT Ludwig Schrnidt

t doutrina das virtudes 55, O verdadeiro rei é o sábio. Assim


1 11
flll\o entra no côro dos que, na filosofia antiga, cantam hinos ao
~Alilo; êste se distingue dos reis comuns da terra como verdadeiro
lttuiifous, rei, e por. isto deve ser louvado como divino. Esta con-
oeipi,:ilo determina também a doutrina f Hosófico-religiosa de Filão
1ohrc o "reino do sábio". Quanto a seu conteúdo, também esta
r11q1rcssã.o provém da filosofia antiga, mas, quanto à forma, provém
c1u Bíblia grega que Filão interpreta e reinterpreta da maneira como
111• viu no caso dos textos da Septuaginta acima citados.
Mas é preciso apontar para o fato de que existem alguns ele-
mentos no judaísmo tardio que estabelecem contacto com esta mo-
r:dização e humanização da idéia do reino de Deus. O judaísmo
nihinico admitia certo sinergismo, que também se verifica nos meios
11 poc.:alípticos; não obstante isto, preservava firmemente a idéia do
rdno de Deus que se apóia tão-somente na livre iniciativa de Deus 116•
Filão, porém, reinterpretou totalmente o pensamento original do
reino de Deus, só que com oposição a Flávio Josefo não tinha difi-
t·uldade em falar dêle 57, visto que era um exegeta.
Flávio Josefo não usa uma única vez sequer a expressão "reino
de Deus", Somente em Antiquitates, 6,60 se fala do reino em co-
11exã,o com Deus. O judaísmo palestinense, na verdade, falava dC>
reino dos céus no sentido presente e também escatológico, mas Flávio
.Tosefo -- que dê1e depende - usa a palavra theokratia com refe-
rência à comunidade judaica (Contra Ap-ionem, 2, 165); em lugar
de "rei" e "reino" diz "governador" ·e "govêrno'', e atribui ao im-
11e:rador romano não a bas-ileia mas a hegemonia 58. Explica-se êste
fato se considerarmos que Flávio J osefo .aqui, como outras vêzes,..
evitava falar da esperança escatológico-messiânica de seu povo im-
plícita n·a noção de "reino" ; por outro lado deve-se ter presente que
êle, como historiador residente em Roma, estava ligado ao helenism()
e totalmente dependente de suas fontes 59.

M É significativo que na obra de É. Bréhier, Les ldées phílosophiques et reli-


gieuses d12 Philon d' Alexar..drie (1908), se encontre no lndex tôda uma série de-
passos sôbre vertu e nenhuma sõbre royaume de Dieu. Impressão seme:lhante se
tira de I. Heinemann, Philons gri.echische und juedische Bi!dung (1932).
ú6 Tem razão G. Gloege, .Reich Gottes mid Kirche im NT (1929) 19ss. Aí Filão
não é citado na secção que trata do judaísmo tardio.
57 Cf. A. Sehlatter, Díe Theologie des Juàentums nach dem Bericht eles Josephu.&
(1932) 49, nota 1.
õB Assim A. Sch!atter, Wie sp-rach Josephm -von Gott? (1910) lls.
Cf. G. Hoekher em seu artigo Josephus em Paul;r-Wissowa IX 1955: "FJ1yio-
õ9
Josefo em sua apresentação da história bíblica renunciou ao uso Hvre do 'iexto
bíblico, seja em sua forma grega ou hebraica, tendo tirado todo seu ~terl.al em
quase tôdas as rr.J.núdas do próprio texto".
E TÊRMOS NO NT

O têrmo basileus é usado no com referência a homens, Deus;


deuses e intermediários. É de grande alcance biblieo-teoló-
gico de que no NT - em dependência do. uso véterO..testa-
"n1·.;:i ...,,n e judaico e em total consonância com êle ·~· Detiá •<
(o Messias trazem êste título
que os reis humanos são tratados f1e·nr1~P.1.nu
1. ..,,,,.,,.""'"·" de modo geral nome próprio) e
(eom seus , quando aparecem no são explícita'·
e implldta~ente ao Deus-rei e ao ou, em todo
o caso,
À semelhança que ocorre no mundo extrabíblico, são no NT
chamados reis : Faraó (A t 7 .1 O), que é substituído por um outro
rei (At 7 .18; 11. 23,27) ; Herodes o Grande (Mt 2 .1,3,9; Le
l .5); Herodes Antipas, que não era no sentido estrito (Mt 14.9;.
Me 6.14,22,25,26,27) ; Herodes Agripa I (At 12.1,20) ; Herodes Agri.-
II (At 25.13,14,24,26; 26.2,7,13,19,26,27,30). Ao lado dêsses
..._.,,,,,,,_~,V de Aretas, dos nabateus (2Co 11.82). Segund()<
o uso 60 é também o· imperador romano ( 1Tm 2.2; 1Pe
2.13,1'1; Ap 17.9s; cf. 1 37.3). Todos êsses reis são reis da
dos povos (Mt 17 .25; 4.26; Ap L5; 6.15· 17.2,18; 18.9;
; 21.24; Lc 22.25); do mundo todo (Ap A designa"'·
":reis da terra" de SI 2.2 e passagens semelhantes.
Como no se atribui aos reis dignidade divina
\ mo sentido do das côrtes do Oriente antigo, pois só Javé e
\ s· eu Rei-messias ter essa dignidade. Apocalipse con-
1 tr.raste recebe tonalidade especial pelo fato de que em oposição aos

\ tíitulos dos imperadores romanos e seus modelos orientais 61, sõmente


•o. Deus Onipotente é chamado povos (Ap 15. l e o
\~Y.Iessias é o Grande Rei, o "rei e senhor dos (Ap
. [1~ 9 .16 · .14). Acima dos reis terrenos e do seu estão-
! ~as Reino de Deus, exaltados por Deus e por arre-
11 atados do domínio dos :reis terr.eno.s e. que se servem. mutuaroe.nre
õ
! como irmãos (Mt 17. 25s; Lc 22. 25). À aproximação do Reino de
i. <>eus os cristãos serãot por causa de Cristo, levados perante os go-
:!rai:ernadores e reis, a fim de serem julgados (Mt 10.18; Me 18. 9
1 ~o.. c 21.12). Os que vivem nas casas dos reis, são aquêles que vestem
1 upas finas, e não profetas como João Batista (Mt 11.8). Aos
\. ~is terrenos, e até aos profetas, permanece oculto o que é revelado;
~ .

eo Ct.: Deissmann, Licht vom Oetem 3l!ls.


n Ib.
88 Karl Ludwig Schrnidt

aos filhos do reino {Lc 10. 24). Reis, cuja ocupação é a guer1·a
(Lc 14.31), devem escutar, assim como os gentios e os judeus. a
mensagem do reino de Deus (At 9 .15; cf. Ap 10 .11). No fim dos
tewpos os reis do Oriente serão a vara de Deus e êles mesmos; serão
depois aniquilados (Ap 16.12; cf. 16.14; 17.2,9,12,18; 18.3,9;
19; 18s). Resta, porém, a no:-sibilidade de êles se submeterem a
Deus em obediência {Ap . 24).
b. Tal como um rei terreno, um ser intermediário como Aba-
don é o senhor dos espíritos subterrâneos (Ap 9 .11).
e. Trata-se de algo especial quando homens como Davi e
Melquisedec trazem a dignidade régia. Pouco importa como, no
tempo de Israel, o reinado surgiu e se manteve (cf. At 13 .21: os
israelitas pediram a Deus um rei e receberam Saul); para a visão
neotestamentária, Davi, como tronco da linhagem de Jesus Cristo,
é um rei prédestinado por Deus (Mt 1.6; At 13.22) 62. Melquisedec
é, como rei de Salém - da paz e da justiça (Hb 7.1,2) - o "tipo"
de Cristo consoante a linha de explicação alegórica da Bíblia.
2 . a. Destas premissas resulta por si mesmo que no NT Jesus
Cristo é considerado como o Rei. Antes de mais nada, como Messias,
Jesus é o rei dos judeus (Mt 2.2; 27.11,29,37; Me 15.2,9,12,18,26;
Lc 23.3,37 s; J o 18.33,37,39; 19.3,14s,19,21) . Mas êsse têrmo é bas-
tante equívoco. Filatos, contemporâneo de Jesus, no caso desinte-
ressado em nuanças, simplesmente aplica a Jesus êsse título porque
o ouvira na bô.ca de seus acusadores judeus (Lc 23.2s). Para os
obstinados inimigos de Jesus entre os judeus - neste ponto fariseus
e saduceus são aliados - êsse título é uma pretensão blasfema do
falso pretendente ao cargo de Messias. Segundo a opinião dos judeus,
Jesus é um homem que se faz rei a si mesmo (Jo 19.12). O povo
simples e hesitante, que entrevia a pretensão de Jesus de ser o ·
Messias - povo a que pertenciam os discípulos de Jesus e a quem
êle procurava ensinar -··· interpreta a designação "rei dos judeus"
mais ou menos politicamente. O povo quer fazer de Jesus um rei
e não tem noçãoexata do que faz (Jo 6.15).
Em resumo: o fato de Jesus ser designado rei liga-se· à questão
do Messias, na qual está a essência da missão de Jesus. Quando se
quer sublinhar a pretensão messiânica, unida ao título de rei, deve;;:se
falar de Israel em vez de judeus. Com efeito, embora raramente,.
essa designação também aparece: rei de Israel (Mt 27.42; Me ltt82;
Jo 1.49; 12.13). Em todo o caso, o judeu que conhece a prm;nessa
dada .a seu povo, . devia falar do rei de Israel. À filha de Sião:,.. como

ez A difícil pericope sôbre a :filiação davídica (Me 12.35-37 e paralelos) nada


modifica neste contexto.

___ I
e Reino 89

ao promessa de Zc 9.9: "Eis qm~ o


teu reí vem a ti., Rei-Messias no
dos tempos o JlilZo por de Deus (Mt 25.34,40).
Com base em SI 117.26 (da Septuaginta), Jesus que em Je-
msalém é o bendito vem em nome do Senhor (Lc . So-
mente é Jesus o ( christos em contraste
com o tanto por

que, os evangelistas,
fale de como "rei dos ju-
ll':sse título kerygrna. primitivo
como o nos Atos dol:l .a.1.Jv,,•v><v.~, e também em
Inferir daí que a comunidade cristã - à ·qual também
pertencem os -. não
título, .não como argumento.
ocasional ao de que a àesignação de Jesus como rei não era
desconhecida do kerygmoJ, em At 17.7 onde os judeus
acusam os cristãos como réus traição porque que
outro rei, isto é, Jesus. todo o caso a abstenção quanto
ao uso do título é notável. conjeturar que a dificuldade
quanto à realidade messiânica de Jesus de Nazaré - a que já alu-
dimos como sendo o problema messiânico - trouxe consigo certa
incerteza, e assim a do titulo.
Dêste fato surge, todo o com-
plexo do mistério - não bem co1nn,re1ern:1ldlo pela primeira
comunidade cristã - pertence realmente à história do Cristo
terreno, isto é, que mesmo se corno o rei dos judeus
e de Israel, bem como Messias de seu povo. O quarto evangelista
eoncorda aí inteiramente com os evangelistas, só que, além
dêstes, na resposta à pergunta de dá uma definição
lógica tta'Tealeza de Jesus -(<To 18:37).
posição especial é ocupada peio Apocalipse, ao dar ao
título de rei um sentido cosmol6gico. O Rei-Messias dos últimos
+ ""'"'"ª exerce sua função
01
o mundo inteiro. chamado
Apocalipse sin6tico (ou pequeno Apocalipse) não se trata objetiva-
mente de outra coisa. A isto também se refere Paulo com sua
afirmação do juízo através de Cristo (1Co 15.24), onde Cristo no
fim. dos tempos restitui o poder real a Deus. Neste sentido em

83 J\.füita coisa êste contraste dentro do quadro geral do "segrêdo mes~


siânl.oo" pode ser na extensa obra de R. Eisler, JesD'IM basUeua ou
·1 basileusaa I (1929), (1930); ver sobretudo H 374 e 688 onde, apesar da aguder.a
. de visão, as conclusões são obscuras e duvidosas. O método de Eisle:r foi quase
1uni\nlrnemente condenado como anticientífico.
90 lforl Ludwig Schmidt

1Tm o estilo hinológico Apocalipse, Jesus


que reinam e senhor dos que dominam.
Entre os padres apostólicos é chamado "grande rei"
(Didaquê, 14.3, segundo lVll 1.14). Precede-~>,
como ·adversário
messiânico-apoc?líptico, um rei" (Epístola de
4.4; 7 .24}. · Quando é designado rei, o que se quer é
assegurar a dignidade daquele se fêz homem; e foi entroni-
zado como :reipelo Deus-Rei (Dn 7.4). Em vista resultados e
do dado na o título é completado
pelo atributo sôsas, que salvou (ltf a,rtírio Policarpo, 9,!J), e pelo
título "mestre" ( ib. 17 .3).
b. Se de seu Cri!:lto Deus recebe de volta a realeza, então,
segundo Paulo, Pai é o Rei eterno, o que é claramente expresso
em lTm .1.17 onde Deus é chamado rei dos séculos (cf. Tobias
13.6,10), , Afora isto só existe uma passagem de Mt em que Deus é
louvado como "grande rei" (Mt 5.35). É certamente :muito signifi-
cativo qut o primeiro e:vangelista, de modo especial ancorado no VT,
""'''"'"r"'"' esta referência. Acresce ainda que Mateus nos conservou
parábolas sôbre o reino de Deus em maior número do que os outros
evangelistas. Nestas parábolas Deus é um Rei em suas diferentes
funções (cf. Mt 14.9; 18.23; 22,2,7,11,13).
O fato de que nos Padres apostólicos - como nos judeus da
Diáspora, influenciados pela filosofia - a Deus dif e-
rentes epítetos em medida muito maior que no NT, corresponde à
piedade e à teologia dêsses ambientes. Assim como em 1Tm 1.17
- documento que pelo seu conteúdo pertence àquele período -
também em 1 Clemente 61.2 é chamado .. rei dos •e
louvado ao mesmo tempo como "senhor celeste". No Pastor de
.,,,_.,,,,,,-'~- v. 3,9,8 Deus é o rei (cf. SI ,17,3 (Septuaginta) ;
Tobias13,5). Deus é chamado basileus também na Carta Di-Ogne-
to, 7,4.
e. Em variantes não muito bem apoiadas na tradição manus-
e:rita, também os cristãos são chamados reis, em Ap 1.6; 5.10. Em
todo o caso são aplicados aos cristãos os verbos "reinar••, e .. reinar
mm"~ ·

64 Uma analogia para êste U&tl translato (impróprio) de ~eu.ii. no eentido


de alguém que se distingue dos outros em determinado sector, temos em i'Uóstrato,
Vitae Sophístantm 11 10, 2, onde Herodes At!co aparece como ".r; rei das palavras".
Rei e Reino ·91

REIN
Quanto ao uso geral do têrmo deve-se notar que a palavra. que
comumente traduzimos por "reino" e "reinado" significa em pri~
meiro o ser, a natureza, o de rei. Quando se tratá de
um seria melhor falar de sua ~·realeza_,., de seu "poder rég1ce,
É o caso texto mais antigo em que o têrmo aparece: ''possuía o
"reino" lídios" (Her6doto I, 11). Assim também em X~nofonte
(Merrwrabilia Socrcttis, 6, 12): "julgava que existiam dois po~
dêres, a realeza e a mas que os dois se distingúiàm "' (ef.
õ'Upra, notá 2, o que a respeito da distinção entr.fi·,brt8üeus
e t·umnnos). Espontâneamente surge um segundo sentido muito
comum: a dignidade real se manifesta no "território" dominado
pelo rei, em seu "reino" fül. Tal mudança sentido é evidente, por
exemplo, no conceito moderno de "reino". Em basíleia êsses dois
sentidos são comuns, sendo que, em Ap 17.12 e 17.17 ambós apare..
cem quase Lmediatamente lado a lado 67, : ·
Compulsando o VT canônico (texto hebraico e aramaicó, a
Septuàginta; cf. págs. 77-79), a literatura extracanônica e apócrifa,
bem como a literatura rabínica (cf. págs. 79-83) e ainda os êseritores
helenísticos (especialmente Filão; cf. págs. 84-86), vemos que sen- o
tido de "r.ea1eza", "dignidade régia", "poder" é qúe estii ·ém' pri-
meira linha; Também· para o N'r é êste o sentido principál6S:;

A. NO NôVO TESTAMENTO

1. O rei:no terreno - a. Ao ba.~ileus terreno corresponde a


basileía terrena, no sentido de dignidade real, ou reino de hómens.

65 A nossa exposição fugirá o mab.1 possível das duvidosas categorlasiuu•ue•o-u""•


tafa como "dinâmica", "trsnstemporaHdade", "caráter supra-histórico",
qu:i> hã decênios se d!scute a respeito da transcendência ou Rein~
de Deus. Tal discussão não produziu fruto, como não podia deixar de ire.r. , Por
isto nos deremas a uma investigação lexicográfica em que o vocábulo é pesquisado
·!m seu texto e contexto. .. · "
ll& Cf. Suidas, sub voce. '" ,
•H Na lingua ncogrega, basí!eia. significa "reino", "realeza", "reinado", en.-
lf:tmmto que para "território real" se diz basileion.
M Cf. em inglês: God's Rule or Sovereignt:y, the Reign of God (A.. E. J.
\ Kíngdom
~awlir..son, The Gospel according to St. Mark, 1925, 111); What we trane"Mte 'The
of God' maans thus ra:ther His 'kingship' flis '11eign' rathe.r than
"realm'. (J. Warschau.er: The Historiool Life of (1927), Ktngãom. or
~overeignty, 1dng!y Rufa of God (A. Deissmann, The Religion of Jesus ttnd. the
fttith of Paul (1923} lOSss.
92 Schrnidt

Os dois coincidem freqüentemente, mas em algumas passa-


gens do ser distinguidos um do outro, sempre
o contexto. na parábola minas se diz de um
nobre que viajou para um distante para
· , e que voltou "tendo um reino" (Lc 19.12,15), tra-
em ambos os casos, real 69. A mesma conexão
se encontra ~m 17.12: "dez reis... não tinham
rejr:e1nuo a dignidadé · 70; a isto corresponde a seguir Ap
"dai· a dignidade real à bêsta"70 e Ap "a grande ci-
que tt:m o poder sôbre os reís terra" 71, Em outros
passos impõe-se o territorial",
como em Mt 4.8 Lc 4.5), onde na tentação de Jesus o diabo mostra
a êle "todos os do mundo", sendo que o sentido de
decorre do uso plural 72 • Quando Jesus em sua defesa perante os
fariseus díz: "todo reino dividido contra si mesmo é destruído (Mt
12.25; cf. Me 3.24; Lc 11.17), a expressão predicativa "dividido
contra si mesmo" e a comparação com uma cidade, ou uma casa,
o sentido é "reino territorial". Quando no discurso
de Jesus se diz: "levantar-se-á novo contra povo e
contra reino" (Mt 24.7), a conexão com pÔvo que- o sen-
é "reino", "nação". Tal é também o caso quando o rei-tetrarca
promete à sua filha "até a metade do meu reino" (Me 6.23)
e quando se diz: "o seu ( i.é, da bêsta) reino se tornou cheio de
trevas" (Ap 16.10). ·
Com respeito ao reino terreno sempre se enfatiza sua oposição,
ou ao menos sua ao reino de visto que o mundo
(Mt 4.8), e a terra (Lc , se opõem a Deus como "reino do mun-
do" (Ap 16.10). O fato de que o diabo tem a pretensão de possuir
um reino, transparece quando o tentador mostra os reinos do mun-
do a e quando êste, aos fariseus de modo de
tem em mente o reino do diabo.
contexto dêsse apologético de Jesus ex-
do reino do : "como pois ficará pé o seu
satadás) reino?" se pode pensar tanto na dignidade real,
como no domínio real satanás (Mt 12.26 e 1L18).
e. · Separado terreno-humano - em última análise
diabólico __;.: existe o reino dos homens escolhidos por Deus. e de seu

U!I Arsim, por ex., Klausner, Luko.s, ad locum.


10 Lohmeyer, Apo1ealypse, ad locum.
n Lolnmevi!r traduz livremente: "A grande cidade que é rainha aôbre Olil
reis da· :terra".
12 Klausner traduz "os impérios do mundo".
Rei e Reino 9/J

povo eleito. Possessor legítin10, ou dêsse


{• o rei Davi: o reino que vem, de nosso
(Me 11.10). Israel como o Deus da
No\la ("Israel segundo o herdará o
qual os de Cristo perguntam cheios de esperança:
é neste que restituirás o a Israel?" (At Ui).
0 O reino de Jesus
CriRto é no NT - baseado no VT - o Rei do Israel,
também falaremos agorn do reino de "Filho do
enviará seus anjos e êles ajuntarão de seu reino, todos os
'~.scànda1os e todos os que praticam a (Mt 13.41). Jesus
mesmo diz: Há que aqui que não provarão a morte
até que vejam vir o "Filho do Homem" em seu :reino (Mt 16.28).
Do rei Jesus Cristo se : "de seu reino, não haverá fim" (Lc 1.33).
A seus discípulos promete êste rei: bebereis e comereis em
meu reino" (Lc 22.30). Ao Rei-Messias, que está sofrendo e mor-
rendo, o crucificado pede: de mim em teu reino"
(Lc Jesus diz da natureza seu reino: "o meu reino
mundo" (Jo 18.36). O apóstolo de Cristo testemunha
o:::»i"'""'"'v e o seu 4.1) ; sabe que o seu Senhor
no seu reino celeste 4.18). A nós cristãos será dado
entrar no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo
1.11).
reino de Jesus é ao mesmo o reino de Deus.
Em diversos textos se reino de Deus e de Cristo. O infiel
11ão tem herança no de Cristo e de 5.5). No fim
dos tempos o mundo se torna nosso Senhor e de seu
Ungido (Ap 11.15). Assim Deus e Cristo estão lado a lado, no-
meando-se em primeiro lugar ora ora Cristo. Com iRto se
não se pode
o que Jesus mesmo
22.29). Deus é para o reino do
amor (01L13); No tempos Cristo, recebeu o
remo P~i, l~o ~estituirá (lCo ) ; ora, só se a Deus
b que e propr10.
· Com isto estamos diante expressão "reino de Deus" que do-
l11ina todo o NT; dela nas exposições que precederam,
~mbora só impllcítamente; nas exposições que se vão seguir dêle
leremos de falar explicitamente.
3.. O reino de Deus a. Uso do têrmo: ao tratar do :reino
Homo do reino de Deus temos de considerar quatro coisas: a
'Eíncia das "reino de Deus" e "reino dos céus"; o em-
llrêi1f de " em sentido absoluto; as afinnações atributivas
a sinonímia. ·
Karl Sckniidt

dos céus", aparece no NT somente em


do teJ1..-to incerto, do de vista crítico,
além disto, aparece no Evangelho
(fragrnento 11: -regnum coelorum). O próprio Mateus
três a usual em Me e Lc "reino
12.28; 21.31; , provàvelmente uma
6.33; onde não figura em
uma quinta vez, se é que em Mt se deve
. Pergunta-se por Mt tem êsse duplo uso? Será
que o certa diferença entre o
"dos de que nos manus-
critos e nos são usadas
ferentemente concluir que têm o mesmo sentido. Se o
prlo Jesus usou em aramaico esta ou expressão, é uma ques-
tão aber'"-i,a. pensar que dos céus" incluiria o
significado particular que o poder vem do 73 e entra no mun-
Disto resultariam conclusões: mais uma vez ficaria claro
sentido fundamental não é "reino" mas "autoridade régia",
tal autoridade não pode significar um reino re-
evolução situações naturais e por esforços
mas fruto de uma iniciativa de Deus no céu. Mas, já
o costume judaico tardio, a palavra ·ser
céits, a expressão "dos céus" não outra
Deus". Tal é também o caso com a expressão "reino
do Pai" (Mt 13.43; 26.29 aos quais se devem acrescentar 013
de Mt 6.10; 25.34 e Lc 12.32),
Há tôda uma de textos que "reino" sem atributo,
em sentido absoluto; Mt 4.23; 13.19; 24.14 ("evan-
' ou "palavra do reino"); 8.12; 13.38 ("filhos do reino");
11.33 ("pela fé peloReino"); 12.28 ("recebendo urn
inabalável); Tg ("herdeiros do reino")· talvez também
20.25 74, ("anunciando o reino"). Não é provar espe-
que em todos passos sempre se pensa no reino de
uma vez que isso se torna claro do contexto e atributos e
predicados especiais 75.

73 O plural é semitismo, mas não em 2 Cr 12.2


74 A isto alguns manuscritos-acrescentam "do Senhor Jesus", ou "de Deus",
75 No decurso dos séculos êste uso ab~o1uto levou sempre de nôvo à falar
de "Reino" em sentido certamente religicso, mas inteiramente imanente e terreno,
e pseudo-eclesiástico. ~ste modo de falar chegou até ao socialismo relig'oso,
de um :aào. e, de cmro, ao nacional-sociafü.mo do "tcrcc;ro Rcich" 1 ~r:1 ccnexão
com a crença no veiho "santo império romano", o qual por sua vez depende do
uso absoluto de ba!ftleitr)
Rei e Reino 95

Visto que o têrmo está qualificado pela sua relação com o ser
1111 a ação de Deus - quer isto esteja expresso ("de Deus", "dos
• ··1w") quer não (uso absoluto de "reino") são muitos raros outros
11 trilmtos diretos. Ao lado do texto já citado de Hb 12.28 ("inaba-
l:'l vel ") deve-se citar ainda 2Tm 4.18 ("celeste"); 2Pe 1.11 ("eter-
110 "). Quando se trata do :reino de Deus tais atributos têm rr.aís
,·;dor de pleonasmo retórico do que importância teológica. O NT
" igualrnente parco em predicados diretos. De quem é o "reino de
1>eus ?" De Deus, naturalmente; mas também dos homens, dos
li"rn<::ns que são pobres (no espírito) (Mt 5.3; Lc 6.20), que são
11vrscguidos por causa da justiça (Mt 5.10).
Afirmações atributivas e predicativas mais detalhadas nos de-
frontam com uma complexa sinonímia que bem serve para nos tor-
nar conscientes da complexidade da mensagem sôbre o Reino de
1>cus. É indiferente se expressões sinônimas são introduzidas por
uma hendíadis ou são acrescentadas predicativamente. É também
indiferente a seqüência em que se encontram tais expressões bem
i·omo a seqüência em que são aqqi tratadas; o que está sempre em
foco é a multiforme, e apesar disto inequívoca, natureza e ação de
1 >cus, seu chamado e apêlo aos homens.
Os homens devem buscar o Reino de Deus e sua justiça (Mt
6.33). Esta justiça, juntamente com a paz, e a alegria no Espírito
~anto, é que constituem o Reino de Deus (Rm 14.17). Tudo isto
não significa uma qualidade inata, ou adquirida ou por adquirir,
e~ sim a regeneração, de que se fala em Mt 19.28 (cf. Jo 3.3ss), e
cuja passagem paralela, Lc 22.30, fala de "reino". Neste sentido
e) autor do Apocalipse fala aos cristãos como irmãos e companheiros
"na tribulação, no reino e na perseverança em Jesus" (Ap. 1.9).
Proclama-se que veio a salvação, o poder e o reino de nosso
Deus e a autoridade de seu Cristo (Ap 12.10). Dêste poder de Deus
também se fala em outros .textos quando se quer dar uma definição
do reino de Deus: o reino de Deus vem em poder (Me 9.1) ; não
~onsiste em palavra (de homens), mas em poder (de Deus) ( 1 Co
4.20) 76. Ao reino de Deus pertence a glória de Deus (1Ts 2.12);
·eino" e "glória" podem substituir-se mutuamente, como o mostra

r. e 10.37 (na tua glória) e o texto paralelo em Mt 20.21 (em tett


eino). O reino de Cristo como enviado de Deus coincide com sua

711 Seria falsificar inteiramente esta palavra de Paulo se nela sê quisesse ver
conhecida oposição entre palavras e obras, entre falar e agir. Aqui não se
iz que os homens não d_evem falar mas agir; ao contrário, afirma-se que a obra
umana não tem valor quando oposta ao poder de Deus. O sentido pleno da
1
xpressão está na seguinte paráfrase: O reino de Deus não consiste na fôrça
o hor:iem mas na palavra de Deus. O reino de Deus é aqui o sujeito lógico úrJoo
dommante.
l
96 Karl Ludwig Schmidt

"manifestação" (2Tm ztl). Êste reino inabalável é para o crente


graça (Hb 12.28) ; é promessa (como lêem os manuscritos Sinaítico
e Alexandrino em Tg 2.5 em lugar de "reino"); é vida, na qual o
crente entra como no reino de Deus (Mt 18.9; o passo paralelo,
Me 9.47, usa "reino"). Os fariseus e escribas quiseram fechar ao
ht' .. ncm, admitido por Deus, êste reino (Mt 23.13), referência que,
na passagem paralela (Lc 11.52), é <~xpressa por "chaves da ciên-
cia", dando-se a entender, por conseguinte, que reino (de Deus) é
sinônimo de ciência (de Deus) .
Todos êsses sinônimos mostram que o Reino de Deus, como
atividade de Deus no homem, é uma realidade soteriológica, cuja
explicação fica de pé ou cai conforme a explicação que se dá da
soteriologia na mensagem de Jesus Cristo e de seus Apóstolos.
b. O que acabamos de dizer deixa claro que o Reino de Deus
é a totalidade da mensagem de Jesus Crüsto e de seus Apóstolos.
Se a mensagem do NT se resume no evangelho, êste é o evangelho
do Reino de Deus. Em lugar de "evangelho de Deus" (Me 1.14)
muitos manuscrit.os registram "evangelho do reino de Deus". Esta
frase sintética encontra eco em outras passagens semelhantes como
Mt 4.23; 9.35; (cf. também 24.14). Tal como "evangelho", também
"evangelizar", se refere ao reino de Deus: Lc 4.43; 8.1; 16.16; At
8.12. O mesmo pressupõem verbos afins como "proclamar" (Mt
4.23; 9.35; Lc 9.2; At 20.25; 28.31), "testemunhar" (At 28.23),
"anunciar" (Lc 9.60), "persuadir" (At 19.8), "falar" (Lc 9.11),
e finalmente "dizer" (.At 1.3).
Assim como do evangelho do Reino de Deus, se fala também
do "mistério" e dos "mistérios" do reino de Deus (Mt 13.11 e para-
lelos) bem como da "palavra" do Reino de Deus (Mt 13.19; nos
textos paralelos de Me 4:.15 e Lc 8.12 se fala simplesmente da pala-
...,,.ra de Deus) . A totalidade da mensagem é expressamente preser-
vada nos passos decisivos pela conexão entre palavra e obra. Jun-
tamente com a ordem a seus discípulos de anunciar o Reino de
Deus, Jesus dá ordem de também curar (Lc 9.2; cf. Mt 10.7s; Me
3.13s). Na expulsão dos demônios (Mt 12.28; Lc 11.20), Jesus vê
a irrupção do Reino de Deus no mundo. Portanto, existe não so-
mente a Palavra do Reino de Deus, mas também a obra do Reino
de Deus. O mesmo se acentua expressamente nas narrativas sin-
téticas dos Evangelhos (em dependência do kerygrna mais antigo;
cf. Mt 4.23).
e. Qual é o ponto de partida dessa mensagem neotestamentá-
ria? Jesus de Nazaré não foi o primeiro que f a1ou do Reino de
:Peus. Também não o foi João Batista. Pois na mensagem de ambos
não se diz: "Anunt:.!o-vos que existe um Reino de Deus que tem
Rei e Reino 97

. .Ao ,.
1;:;1,11.;<u::"
prói1mo de uma
conhecida dos ouvintes, dos judeus contemporâneoR
fato concreto é de decisiva importância.
O de positivo dado a e a Batista
pela ApocaHpsismo e pelo RabinisrJ10, naquilo que os dois movimentos
tinham de comum e que ambos
a;:;t:t:Jt1u•c:n1 ao Profetismo Portanto, se quiser-
mos te~· uma idéia clara dêsse pont? ~e é preciso ler o
ficou dito sôbre o e 0 Ri>b1msmo. Para autores
tamentários, que tinham como língua materna o deve-se ter
em mente a tradução do v'T. Assim quando Hb 1.8, em meio
a uma longa citação fala do cetro de seu reino, trata-se de
Sl 44.7 da Septuaginta 77, Por lado, como vimos, encontram-
se na Septuaginta algumas passttgens especificamente helenísticas
que não devem ser consideradas corno pontos de partida para a ima-
gem do Reino Deus no NT. o mesmo se aplica a Filão e a Flá-
vio Josefo.
d. Como vimos, o próprio uso têrmo "Reino de Deus" mos-
tra que o sentido primeiro é "reaJeza divina". O mesmo transpa-
rece das descrições que se dão dêsse reino. As expressões co-
muns no NT são que o Reino de Deus se aproximou, está próxi-
até nós, vem, se manifestará, virá ( êggiken.: Mt 3.2;
Me 1.15; Mt 10.7; Lc 10.9,10; eggys estín: Lc 21.31; e1·cho-
Mc 11.10; êrchetai: Lc 11.20; e-phthasen: :Mt 12.28 = Lc
; rnellei cipophanestai: Lc J9.11; elthato: Mt 6.10; Lc 11.2).
Paralelamente à pregação de João Batista, na pregação de Jesus
de Nazaré transmitida a seus discípulos, o caráter da realeza divi-
na é descrito de maneira a um te:rr..Pº negativa e positiva, sendo que
o caráter negativo é o primário, 0 que a ciara expressão
do positivo
Negativamente, o Reino a tudo o que é presente
e terreno, a tudo o que é de agora. e aqui, e por isto é algo
maravilhoso. Dêste ponto de vistB- é impossível entender o
de Deus como um summum bonitm que se tenta alcançar ou do qual
se pode aproximar gradualmente, Das "narrativas sintéticas" que

71 O autor de Hebreus é simplesme!lte um teólogo que argumenta com a


Scptuagínta e que escreve o "melhor" 1-,'tego do NT.
'18 Sôbre o que se irá dizer, cf. R. Bultrriann, Jesv,,s 0926) 28-'M: K. L. Schmidt,
Jesus Christus, em RGG, 2.ª ed., III 129-132; K. L, Schmidt, Das ueberwe!tliche
Reích Gottes ín der Verkuendi!]ung Jesus em TheoL Blaetter 6 (1927) 11!J-J20; K.
L. Schmidt, Die Verkuendigung dies NT' in íhrcr Einheit ttnd Besonderheit, em
TheoL BLrtetter lQ (1fJ31)
Schmidt

encontram no comêço da pregação


:-;e: Evangelho ("arrependei-
vos. o Reino de Deus chegou'', Mt 4.17), surge a única pergunta
realmente Não é importante saber como nós homens en-
tendemos em nossos corações o Reino de Deus ou como nós, enquan-
to de homens si por sentimentos comuns,
o Reino de ; o Reino
rle vem até nós, sem e sem interferência nossa. O impor-
tante é saber se pertencemos ou não a êste Reino Deus. Querer
o Reino de Deus a é pretensão humana, farisaísmo au-
Dêste a coisa mais
ao homem é a paciente, como único
de Deus. A situação a aue se descreve na
Paulo para o qual ser sóbrio e não apagar o
Espírito são a mesma As parábolas do Reino
de Deus foram proferídas precisamente para nos inculcar esta ver-
dade. Quem não se mostra paciente na sua disponibilidade para
se parece ao homem lança a .semente - que cresce
não sabe como" - e não a deixa germinar e crescer
(parábola da semente que cresce espontâneamente: Me
Diante de nossos acontece nada menos do que um
quando sem nossa cooperação e até mesmo sem a nossa
compreensão, da pequena semente surge a haste. O fato de o ho-
mem moderno suprimir milagre em aqui o dec1s1vo
tertium comparationis. As parábolas do grão de mostarda (Mt
13.3ls e paralelos) e do fermento (Mt 13.33 Lc 13.20s) dizem a
mesma coisa. A mesma idéia, conquanto menos evidente, encontra-
se nas outras parábolas do Reino de só que nelas aparece um
sentido ulterior do qual ainda falaremos: a parábola do joio (Mt
13.24-30) do tesouro no campo (Mt 13.44), da pérola preciosa (Mt
rêde de pescar (Mt 13.47-50), do servo mau (Mt
, dos trabalhadores na (Mt 20.1-16), da ceia nupcial
das dez virgens . Tôdas essas parábolas
por explicar a estrutura d() Reino Deus é di-
ferente da estrutura das humanas, que o Reino de Deus sú-
está presente, inexplicável e poderosamente, em meio aos sinais
precursores na obra de Jesus.
Positi1;amente, o de Deus é uma catástrofe cósmica que
se manifesta em determinados acontecimentos, descritos no drama
dos apocalipses Jesus concorda com aquêles seus contem-
porâneos judeus que não pensam em têrmos de um Messias político,
mas que o "Filho do (Dn 7.13) que vem sôbre
as nuvens céu. É natural que nessas descrições - sobretudo no
assim chamado Apocaiipse Sinõtico (Me 13 e paralelos) - encon-
trem-se coletadas por uma comuni-
Rei e Reino 99

da<le intoxicada por expectativas escatológicas. Jesus, em todo o


c·aRo, falou de comer e beber no Reino de Deus (Me 14.25). O
ponto decisivo não é que Jesus aqui compartilha as idéias de sens
contemporâneos, ou que vai mais longe do que êles; decisivo, po-
rém, é que êle deixa de lado, deliberadamente, o genuíno Apocalipsis-
mo judaico e cristão primitivo, que se comprazia em descrever ~s
"últimas coisas" e em contar com os sinais precursores. O des-
prên:o dos saduceus - que lhe propõem um problema tirado do .Apo-
calipsismo dos fariseus e da esperança da ressurreição, que êles re-
jeitam - não o atinge (Me 12.25s). Significativa sobretudo é a
sua recusa de se apoiar sôbre os sinais precursores do futuro. Na
perícope de Lc 17.20s se diz: "O reino de Deus não vem de modo
que possa ser observado (Lutero, com grande propriedade, traduz
on meta paratereseôs por "não com aparências exteriores") e dêle
não se pode dizer: ei-lo aqui, ou acolá; pois o reino de Deus está
no meio de vós". (Aqui Lutero traduz erradamente o entos hymôn
por: "dentro de vós") .
Com efeito, esta palavra de Jesus, tantas vêzes tratada e mal-
tratada, tem seu pêso decisivo precisamente na rejeição dos sinais
precursores. A idéia de que aqui Jesus quer acentuar 'que no mo-
mento em que sua palavra é proferida o Reino de Deus já está pre-
sente (imanente), não cabe na intenção de quem fala, pelo simples
fato de que em aramaico - a língua em que a afirmação foi origi-
nalmente feita - não existe a partícula "é", "está" ou "estará".
Também se deve ter presente que a tradução do entos para o siríaco
-- língua que tem afinidade com o aramaico - é feita por um
têrmo que significa "no meio de". Com isto concordam as afir-
mações de Jesus sôbre o "quando" do dia do Filho do Homem (Mt
24.26s; cf. Lc 17 .23s) . As pessoas que estavam ao redor de Jesus
freqüentemente tinham idéias diferentes quanto aos sinais precur-
sores e a natureza do Reino de Deus. Assim, os filhos de Zebedeu,
e a mãe dêstes, pedem os meihores lugares no Reino de Deus e Jesus
responde que isto depende exclusivamente de Deus (Me 10.40 = Mt
20.23) . E a pregração apostólica de Paulo está em inteira harmo-
nia com a de Jesus : cf. Rm 14.17, o Reino de Deus não consiste em
comida e bebida.
Ainda num outro ponto Jesus difere de seus contemporâneos
judeus. Entre êstes, mesmo quando a esperança político-nacional
não está em primeira linha e se espera no fim dos tempos a sal-
vação para todo o mundo, ainda aí freqüentemente a idéia da posi-
ção privilegiada do povo judeu desempenha importante papel: Is-
rael de nôvo aparecerá na glória antiga; os dispersos se dirigirão
novamente em grandes massas para a nova Jerusalém, para onde
também rnnfluirão os gentios. Jesus, de certo modo compartilha
11)1} lút?'l Schrrddt

aos , como representan-


o povo santo, concede
cl1· juízes Deus (Mt 19.28 =
;\lac;, à também Jesus
rv~trição: tem nenhum
l Jc ll8, ser envergonl\; {fo
7

1in;-;, concebido aí como mais tarde o


cuneebe de Israel; 9.11: a salvação
dP com Israel não tem nenhuma inten-
seria útil uma comparação
, com seu tom patriótko-
"'"'vº'"."" de sentimentos patrÍÓ··
f iens e
que na pregação do de ·Deus nunca se
a imanência em prejuízo da transcendência. O Reino de Deus está
a10m da Quem se orienta pela ética pensa necessàríamente
no indivíduo. Ora, tanto em Jesus como nos seus Apóstolos não é o
objeto da promessa o indivíduo como indivíduo, mas a comuni-
na qual o indivíduo como membro alcança a salvação.
É impossível compreender a pregação sôbre o Reino de Deus
não tivermos presente essa oposição, êsse contraste, com o ju-
daísmo. Da mesma forma não se pode entender êsse contraste par-
tindo do helenismo. O pensamento grego, ao qual estamos ligados,
vê no homem um ser que se desenvolve, e no qual o corpóreo-sen-
~'.orial deve morrer e o espiritual-psíquico crescer. Também não se
o individualismo pelo Êste hn-
de Jesus e de seus Apóstolos, por mais
que seja na filosofia da Antigüidade tardia. Quem a
o Reino de Deus dentro desta perspectiva da filoso-
e em lugar da fantasia apo-
humana e do maravilhoso quadro político humano colo-
uma humanidade onàe Deus com sua
Deus fala e age, nenhuma orientação alma, ne-
nhuma mística, nenhum pode preparar o caminho para Êle.
Tais refinadas possibilidades humanàs de procurar a união com
como o helenismo as conhece, revelam-se impossíveis precisa-
mente pelas tôscas imagens judaicas do céu· e do inferno. As re-
presentações antropomórficas de Deus e de seu Reino têm a van-
tagem - sôbre uma suposta filosofia sublime de deixar a Deus
intacto como o em sua majestade transcendente.
Além disto, é preciso pensar no seguinte: expressões como
".sobrenaturalismo", "transcendência", "catástrofe cósmica", "mi-
lagre", se tornam insuficientes quando por meio dêles os ho-
nwns querem construir para si um mundo superior. A de
Rei e Reino '101

que o Reino de Deus nada mais é que milagre, deve ser mantida em
sua forte negatividade. A afirmação de que o Reino de Deus é
algo totalmente diferente, supramundano e antimundano, é o que
de mais positivo pode ser afirmado. A realização do Reino de Deus
é futura e êste futuro é que determina o presente do homem. Ao
homem, colocado diante de Deus e sua realeza, é dirigido o apêlo
da conversão. Quando o homem responde a êste apêlo em fé, isto é,
em obediência, êle entra em contacto com o Reino de Deus, que vem
sem ação sua; então o Evangelho se lhe torna mensagem de boas
novas.
e. Uma rica terminologia mostra de que modo o homem pode
entrar em contacto com o Reino de Deus. A afirmacão fundamental
é que ê1e recebe. um dom de Deus. Deus dá o seu R~eino: "aprouve
ao Pai dar-vos o Reino" (Lc 12.23). A Pedro, que confessara a sua
fé, Jesus Cristo promete: ·"dar-te-ei as chaves do Reino dos céus"
(lVft 16.19). O Reino será tirado dos judeus obstinados e será dado
as que crerem: "o Reino vos será tirado e será dado a um povo que
produza os seus frutos" (Mt 21.43). Cristo confia o Reino aos
discípulos tal como o Pai lho confiou: "eu vos confio um Reino
como o Pai me confiou" (Lc 22.29) . Deus chama os cristãos para
o seu Reino e para a sua glória: "Deus que nos chama para seu
reino e glória" ( 1Ts 2.12) . Deus nos colocou no Reino do Filho de
seu amor: "transferiu para o Reino do Filho de seu amor" (Cl 1.13).
Os crentes são feitos dignos do Reino de Deus: "tornar-vos dignos
do Reino de Deus" (2Ts 1.5). O Senhor salvará o crente no seu Rei-
no celeste: " ... o Senhor me livrará. . . para salvar-me no seu rei-
no celeste" (2Tm 4.18). Deus prometeu o seu Reino (Tg 2.5). Deus
não faz como os fariseus que se arrogam o poder de fechar o ca-
minho do Reino para os homens: "ai ... porque fechais o Reino dos
céus diante dos homens" (Mt 23.13; cf. Lc 11.52). A essas expressões
correspondem outras que descrevem os sentimentos do homem crente.
Êste recebe o Reino de Deus como uma criança: "quem não receber
o Reino de Deus como uma criança" (Me 10.5 = Lc 18.17). José
de Arimatéia está na posição do que espera o Reino de Deus (Me
15.43 = Lc 23.51). Usa-se também com "receber" (Hb 12.28i.
Especialmente freqüente, e correspondente à aliança (do Reino de
Deus), é a expressão "herdar'': Mt 25.34; lCo 6.9,10; 15.50; G1
5.21; semelhantemente "ter herança no Reino" (Ef 5.5) e "her-
deiro do Reino" (Tg 2.5). Ser assim escolhido por Deus significa
"ver'' o Reino de Deus. Alguns serão escolhidos para ver o Reino
de Deus antes de sua morte (Me 9.1 e paralelos). Só o que nasceu
de nôvo é tido como digno desta visão ( J o 3.3) . Também é fre-
qüente a expressão "entrar" no Reino de Deus (Mt 5.20; 7.21.
18.3 e paralelos; 19.23s e paralelos; 23.13; cf. Lc 11.52; Me 9.47;
'1 og Karl Ludwig Schmidt

,Jo 3.5; At 14.22) e "entrada" (2Pe 1.11). Aqui se encaixam mi


textos em que se diz "no Reino" (Mt 5.19; 8.11 = Lc l3;28s; Mt
11.11 ~= Lc 7.28; Mt 13.43; 18.1,4; 20.21; 26.29 e paralelos; Lc
14.15; 22.16,30; 23.42 (varia, lectio: eis) ; Ef 5.5; Ap 1.9). Em
relação aos fariseus, que se justificam a si mesmos, os publicano8
e as prostitutas têm precedência no Reino de Deus: "precedem-vos.
no Reino de Deus" (Mt 21.31). Os judeus deveriam ser os filhos do
Reino (l'vit 8.12), mas não o são por causa de sua obstinação (cf.
Mt 13.38). O escriba que se esforça pelas coisas de Deus está não
longe do Reino de Deus (lVIt 12.34). O verdadeiro escriba, tal co-
mo Deus o quer, é instruído no Reino dos céus (Mt 13.52). Quem
realmente se decide por Deus é apto para o Reino de Deus (Lc
0.62). Sendo assim, também se faz o apêlo de se empenhar pela
causa de Deus. Devemos ser como os colaboradores de Paulo "coo-
peradores para o Reino de Deus" ( Cl 4.11). Observa-se que não
se diz "cooperadores do Reino"; por conseguinte, apesar da fôrça
da expressão, não se fala de sinergísmo.
Todavia, uma vez que a fé é obediência ao mandamento de Deus,
exige-se também nosso esfôrço e nosso trabalho. Pela fé devemos
combater pelo Reino de Deus como os eleitos da Antiga Aliança:
"pela fé combateram pelo Reino" (Hb 11.33). Em breves palavras,
devemos buscar o Reino de Deus, procurá-lo: "buscai primeiro o
Reino" (Mt 6.33 = Lc 12.31). Êste "buscar" é diferente de "for-
çar" e "arrebatar" (Mt 11.12 = Lc 16.16).
Quem possui, a quem é dado ou prometido, o Reino de Deus?
Aqueles que são pobres (no espírito) (Mt 5.3 = Lc 6.20); àqueles
que são perseguidos por causa da justiça (Mt 5.10) ; às crianças (Mt
19.14 e paralelos). .Precisamente êstes textos citados em último lu-
gar dão a entender quão indiz1velmente grande é a decisão que nos
é imposta. É preciso aceitar o convite de entrar no Reino de Deu~
com arrependimento, isto é, por causa dêle renunciar a tôdas as
outras coisas dêste mundo, riquezas e glória junto dos homens, e
não imitar os que tendo sido convidados ao banquete nupcial pre-
textaram tôda sorte de impedimentos (Mt 22.1-14 = Lc 14.16-24).
Mais uma vez é nas parábolas que se sublinha fortemente o que
dissemos. Por causa do Reino de Deus, que se parece com um te-
souro escondido num campo ou com uma pérola preciosa pela qual
um negociante dá tudo o que possui (Mt 13.44-46), é mister arran-
car o ôlho que escandaliza e cortar a mão que escandaliza (Mt
5.29s). A descrição mais franca desta atitude é dada na afirmação
de que por causa do Reino de Deus alguns se :fizeram eunucos (Mt
19.12).
A indicação contida em tais exemplos - apesar da prática que
esporàdicamente aparece na Igreja antiga (Orígenes !) - não deve
Rei e Reino 103

1wr entendida como norma ética, mas como um apêlo terrível e con-
t 1111dente. Importa saber que homens que tornaram inteiramente a
Jl••rio o Reino de Deus chegaram por vêzes até a emasculação, ato
111w, se não é censurado, também não é louvado. Esta interpretação
110 difícil logion é mais aceitável que a apagada, embora, não im-
l"''isí··el, explicação: aqui e ali houve homens que espontâneamen-
1•' t'\~nundaram à vida sexual, como João Batista e o próprio Jesm;
e 'risto.
Em todo o caso, encarar de frente e seriamente o Reino de
1)cus significa uma dificílima decisão, uma rigorosa seieção de pou-
''11:> dentre a massa dos muitos (Mt 22.14) 79. Diante da chocante
:illcrnativa exige-se uma decisão implacável: "Quem põe a mão
110 arado e olha para trás não é apto para o Reino de Deus" (Lc
!Ui2). Não se trata de entusiasmo nem de arrebatamento, mas de
rdlexão séria e madura: assim como um arquiteto que antes de
romeçar a construção faz um orçamento correto, ou como um rei
que não entra para a guerra sem ter um plano (Lc 14.28-32), assim
aquêle que foi convidado para o Reino de Deus deve refletir se aceita
prudentemente o convite. Quem aceita o convite mas não sabe cla-
ramente a responsabilidade que assume, ou quem ouve, mas não
obedece, é semelhante a um homem que constrói sua casa sôbre
areia (1\/ft 7.24-27 = Lc 6.47-49). Nem todo aquêle que diz "Se-
nhor, Senhor" entra no Reino dos céus, mas somente aquêle que faz
a vontade de Deus (M:t 7.21). Exige-se prontidão para o sacrifício
o mais extremado, até o sacrifício de si mesmo, ou ódio contra a
própria familia (Mt 10.37 = Lc 14.26). Quem o pode? Quem se
aventura a ser obediente a Deus até êsse ponto? Ninguém, exceto
o próprio Jesus Cristo ! l
f. Com o que acabamos de dizer chegamos a um ponto que
deve ser agora tratado: referimo-nos à incontornável e muito es-
pecial relação entre Reino de Deus e o próprio Jesus Cristo. Isto
não só significa meramente que o Reino de Deus é também o Reino
de Cristo, mas que determinadas passagens pressupõem a identi-
ficação entre Reino de Deus e Cristo. Enquanto que em :Me 11.10
se louva o "reino de nosso pai Davi que há de vir", Mt 21.9 e Lc
19.38 falam (paralelamente a Me 11.9) somente da pessoa de Jesus
Cristo. Ainda mais clara é a comparação sínótica entre os seguin-
tes textos: "por causa de mim e por causa do evangelho"' (Me
10.29) e "por causa de meu nome" (Mt 19.29), e o texto de Lc
18.29: "por causa do Reino de Deus". Aqui o nome e a mensa-
gem de Jesus Cristo, e o próprio Jesus Cristo, são identificados com
o Reino de Deus.

7!1 Cf. as palavras sôbre n porta estreita e a estrada larga, Mt 7 13s''"" Lc 13.23s,
ro,~. Karl Ludwig Schmidt

Esta identificação ocorre em primeiro lugar na v1sao do "Fi-


lho do Homem" como o representante do "povo de Deus"; enquanto
que era Me 9.1 (= Lc 9.27) se fala da vinda ào Reino de Deus com
poder, o texto paralelo de Mt 16.28 fala do "Filho do Homem"
que vem com o seu Reino. Os cristãos esperam por êste "Filho do
Homem" e Senhor da mesma forma como esperam pelo próprio Rei-
110 de Deus (cf., por exemplo, Mt 25.1 comparado com Lc 12.35s).
[•;m construções paralelísticas, à maneira da poesia hebraica, se diz:
"evangelizando a respeito do reino de Deus e do nome de Jesus
Cristo" (At 8.12), e: "anunciando o reino de Deus e ensinando o
que se refere ao senhor Jesus Cristo" (At 28.31). Ainda em pa-
ralelo temos: "o Reino de nosso Deus e o poder de seu Cristo" (Ap
12.10). Dêsse modo demonstra-se lingüisticamente o que se deduz
de todo o contexto: Jesus sabe que em sua pessoa se realiza e irrom-
pe no mundo o Reino de Deus, fato que em João se exprime com a
sentença: "o Verbo se fêz carne" (Jo 1.14). O que para os cristãos
é e permanece futuro, objeto de sua esperança, é em Jesus Cristo,
somente, um "hoje" (Lc 4.21; cf. Mt ll.5s = Lc 7.22) so.
Dêste fato capital da identificação de Jesus Cristo, encarna-
do, exaltado e presente na Igreja, com o Reino de Deus futuro, de-
pende o kerygma cristológico, kerygma que vê na vinda do Mes-
sias um hapax, isto é, o evento único e h-repetívei, ocorrido uma
vez por tôdas. Cristo morreu uma vez por tôdas (Rm 6.10 e, além
disto, Hb 6ss; 1Pe 3.18).
Quando se busca uma fórmula breve para exprimir a identifi-
cação de que falamos, impõe-se a expressão autobasileia a1 cunhada
por Orígenes (Comrn. úi lvfatthaewn, XIV,7, a propósito de Ivit
18.23), com o qual, porém, não se exprime o significado especial
entendido por Orígenes 82 • Antes de Orígenes, Márcion 8 ª dissera em
seu conhecido "pancristismo" 83 : ln evangelio est dei regnurn Chris-
tus ipse, no Evangelho o Reino de Deus é o próprio Cristo (Ter-
tuliano, Ad·v. 11.farcionern, IV,33) 84 • Jesus Cristo foi o úniCo que

~o Cf. G. Kíttcl, Das innerweltliche Reich Gottes in der Verku.endigu.ng Jesus,


cm TheoL B!a:ctter 6 (1927) 122s.
s1 Assim P. Feine, Theologie des NT (1910) 100; 1931, 5.n ed., 80; Kittel,
Probteme 130s.
R:: Cf. R. Frick. Die Geschichte des Reich-Gottes-Gedankens em der alten
Kircii.e bis zu Origenes und Augu.stin (1928) 101, nota2.

;;;1 Cf. Harnack, Marcion, 2}' cd., (1924) 223ss.


H4 Com razão diz R. Frick, !oc. cit., 52, nota 1, que não existe razão aceitável
ara riscar o Christus ipse C"omo êrro de redação.
e Reino '105

1 •·:ilnwnte e creu (cf. Fp , e por êste fato anun-


l'i:1va a palavra o Reino de Deus e ao mesmo tempo fazia os
111 il:1g-res que eram os sinais do Reino Deus (Mt 11.2ss
'i. l õss).
Diante torna-se compreensível que a Igreja apostólíca. e
:111li-apostólica do NT não tenha tão explk'~aüente do reino
dP Deus; ·ela sempre afirmava impllcitarrienie-êste ao falar
dn Jesus Cristo". que a pregação do Reino de Deus
;uiunciado por Jesus de tenha sido substituída pela prega-
1:üll <!Õbre a Igreja; In.as que a no Reino de Deus foi consolidada
11rccisamente na com o Cristo pós-pascal.
Quanto mais
4. e claro o testemunho neotestamen-
t :lríosôbre a autobasileia de Jesus Cristo, tanto mais reticente é o
N'i' na identificação entre reino de Deus e os crentes em Jesus
( ~risto. Um único texto que exprime esta idéia pode ser encontrado:
Cristo nos reino (Ap 1.6) 85. Não é preciso explicar nem pro-
\'ar que os como reino só o podem ser num sentido
1ato tendo como ponto de partida a Cristo.

B. NA IGREJA ANTIGA 86

A relação entre os textos sôbre o Reino de Deus nos padres apos-


tólicos e os do NT consiste primeiramente no fato de que êles citam
passagens neotestamentárias: Mt 5.3,10 e Lc 6.20 (Carta
r!e Policarpo, 2,3); :Mt 6.10 (Didaquê, 8,2) ; lCo 6.9s, cf. Ef 5.5
(Cnrta de Inácio aos Efésios, 16,1). Vejam-se ainda: Ca;rta d1J
rnácio aos Filadelfenses, 3,3, e Carta de Policarpo, 5,3.
O uso das expressões "Reino" e "Reino de Deus" é
\\w
1
do
, 'reino de
NT. Ao lado de "reino .de fala-se freqüentemente de
" (l Clemente, 50,3; II Clemente, 12,2; Epíatola de
i,Üarnabé, ; 7,11; 8,5.6; 1kl.artíri:o .de Policarpo, 22,1.3). Sem
\itributo, em sentido absoluto, encontra~se ".reino" em I Clernente.
l!
q1,1; ÇJlemente, .5,5. Dos atributos direto.s podem-se citar: eterno
1

11
Martirio de Policarpo, 20,2); celeste (1b. 22,3); celestial ('ib.,
1lflíiogo 4) . Quanto aos sinônimos deve-se notar que em 11
\rlemente, ''5,5 a promessa de Cristo é entendida como o descanso
1\b futuro e da vida eterna. Também em I Clemente, 42,3 se
rz que o Reino de Deus por vir.
1
\\ s5 Deve·s~ man!er êste texto - citação do VT como original, perante
:Ítra tradição manuscrita que tem basiteion ou basH.eis.
\i .«n Sôbre hasileus nos padres apostólicos, cf. 90.
il
li
106 Karl Lud·wig Sckinidt

A relação entre o homem e o Reino de Deus é expressa de di-


ferentes maneiras. Conservam-se as afirmações fundamentais do
NT: o homem recebe o dom de Deus. De Deus se diz: "deste o
poder do reino" (I Clemente, 61,1) ; "prometeu o reino no céu, e o
dará aos aue o tiverem amado" (Carta de Diogneto, 10,2); "êle
uode levar- n tclos nós para o seu reino" (Martírio de Polica.rpo,
20,2) ; a Deús é dirigida a oração: "seja ajuntada a tua igreja das
e;...-tremidades da terra para o teu reino" (Didaqué, 9,4; cf. 10,5).
Ou diz-se de Cristo: "para que também a mim leve consigo para
o seu reino" (Martírio de Policarpo, 22,3).
Essas expressões encontram, como no NT, atitudes correlatas
da parte dos homens crentes: o homem recebe, toca, vê, herda o
Reino de Deus; êle mora, é achado, é glorificado no Reino de Deus;
entra no Reino de Deus. Exemplos: receber (1 I Clernente, 1:=,1) ;
tocar (Carta de Barnabé, 7,11); ver (Pastor de Hermas, s9,15,3);
herdar (Carta de Inácio aos Efésios, 16,1; Carta de Inácio aos Fi-
ladelfenses, 3,3); morar (Pastor de Ilermas, s9,29,2); ser achado
(Pastor de Ilermas, s9;13,2); ser glorificado (Carta de Barnabé,
21,1); vir (II Clemente, 9,6) ; entrar (Pastor de Herrn.as,
s9,12,3.4.5.8; 15,2.3; 16,2.3.4; 20,2.3; Carta de Diogneto, 9,1) ; en-
trar (II Clemente, 11,7).
No uso dos diferentes têrmos descritos, os padres apostólicos 1< 7
seguem o NT. O Reino de Deus é prometido pelos Apóstolos {II
Clemente, 42,3) ; a vinda definitiva se realiza na volta de Cristo
(l Clemente, 50,3) ; a entrada do cristão no Reino depende do Sa-
cramento (Pastor de Herrnas, s9,16,2), e das boas obras (II Cle-
mente, 6,9). O imperativo ético é fortemente sublinhado: se pra-
ticarmos a justiça diante de nosso Deus entraremos no seu Reino
(II Clemente, 11,7) ; quem fizer isto (i. é, os mandamentos do Se-
nhor) será glorificado no Reino de Deus (Carta de Barnabé, 21,1).
Dentro desta linha a idéia· do juízo recebe grande relêvo na espe-
rança do Reino de Deus (cf. II Clernente, 17,5). Mas o ponto de-
cisivo é que Deus mesmo realiza o seu Reino, que êle chama os fiéis
em Cristo: ninguém pode entrar no Reino de Deus senão pelo no-
me de seu Filho que é por êle amado (Pastor de Hermas, s9,12,5;
s9,12,8).
Tudo isto concorda com o NT na forma e no conteúdo; entre-
tanto, nos padres apostólicos, em oposição a Jesus Cristo e a seus
apóstolos, a vinda do Reino de Deus é feita depender do compor-
tamento da comunidade; assim em II Clemente 12,2ss, onde se per-
gunta ao Senhor: quando virá o seu reino? responde-se: "quando
os dois forem um, o que está fora como o que está dentro, e o ma-

A7 Cf. R. Frick, loc. cit. 27-35.


e Reino '107

1• lt11 com a fêmea não nem macho nem . Essa afirma-


•: no, atribuída aqui a encontra-se nessa mesma forma no apó-
rri fo E'vangelho dos Egípcios, e é típica sua moralização da
ldi·ia do Reino de Deus que se orienta uma ética de perfeição
1111r<~tico-dualistica. Já no Pastor de não se faz depender
tio homem a do seu entrada no Reino de
1·:ilA grau tal concepÇaó não se
e vida moral, mas apenas se distinguem: no catálogo
do Pastor de Hermas (s9,15,2ss) depois no-
abstinência e outras virtudes morais 88,
Os escritos dos padres apostólicos não claros quanto à dis-
1inção, evidente no NT, Reino de Deus e Igreja. Na Carta de
t:o rnabé pode-se ver o de Deus como um fato puramente es-
ratológico e por isto inaplicável à Igreja; mas o início do reinado de
Cristo é, nessa colocado em sua crucifixão: "o reino de Jesus
t'· sôbre o madeiro" de modo quase milenarístico se fala de dias de
luta e desgraça, no Reino de : "em seu reino haverá
dias maus e difíceis em que seremos . Enquanto que as ora-
·ües na Didaquê claramente distinguem· entre Reino de
1• Igt"eja e da Igreja que Cristo reúne em seu Reino, em II
''temente esta distinção é supri111Jda pois a igreja será recebida do
mesmo modo como é recebido o reino de Deus. Também no Pastor
fr H errna"8 Reino de Deus e estão muito próximos um do
1utro.
Nos apologetas au, presos à de P1atão e à
itica do estoicismo, o conceito de Reino de Deus aparece raramente.
Mesmo quando há uma escatologia, esta é dominada pela idéia da
perfeição cristã indiviàual. O pensamento que Deus com o seu
t·cino exige uma submissão à sua realeza e soberania está
os O cristão tem o dever de imitá-lo e de buscá-lo;
spera com Deus (Justino, Apologia I,11,1). Em Atená-
[·oras 18,1.2) o celestial é o poder do
ôbre o que sucede. Mas mesmo esta expressão é muito rara em
~tenágoras e nos apologetas. usa em sentido o
1,êrmo basileia, referindo-o ao reino milenário, sem que o distinga
om do Reino eterno. O Reino é prometido como recompensa
terna para os justos e é o contrário dos tormentos do inferno (Jus-
tno, Diálogo, 117,3). Herdar o Reino, é identificado com herdar
f coisas eternas e incorruptíveis (íb. 139,5). Erri oposição a essas

SR Ver sôbre isto E. Fuchs, Glaub€ und Ta:t in den Mandata àes Hirten dei
:rm.as (dissertação em Marburg, 1931).
89 Cf. !oc. cit. 35-45,
'108 Karl Lua;wig 0cn-iniai

a expressão "reino de é muito freqüente em


feitas no Diálogo e na Apologia. Aí são
1w:1>vv""'
e de Jesus, para mostrar a relação entre promessa
e para inculcar as exigências de Deus para com o
cumprindo-as recompensado. Contudo, a conexão
de Justino com a de Jesus e seus apóstolos
que o ponto de partida não é a ação da
divina, mas a de viver uma vida com vista::>
recompensa.
Assim o dos produz uma
dupla impressão; por um lado, os gregos de imortalidade,
de vida eterna, de conhecimento são importantes o
conceito de de Deus; por as palavras de
e dos apóstolos, mesmo quando são citadas e não aprovei-
tadas em sua plenitude, preservam a doutrina cristã do perigo de
transformar-se em filosofia da
Com isto é dado o tema para a ulterior evolução da história
dos dogmas 90, No século paralelamente à moralização unilate-
ral idéia do Reino de Deus, desenvolve-se uma "escatologização"
a qual se exprimiu como piedade popular nos Apocalipses
primitiva sob gnóstica (cf. Ascensão de Isaías,
4 Livros Sibilinos), nas Atas dos Mártires e sobretudo nas
inscricões tumulares e das catacumbas. Em contraste com
esta e;,olução já em Clemente de Alexandria, tal como nos apologe-
tas, o pensamento filosófico dos gregos a dianteira; com efei-
to, neste filósofo religião, o conceito é visto a
do platonismo e do estoicismo. É significativo que para de-
finir a basileia êle se reporta a estóicas (Stromaita,
II,4,19,3s). No lugar da idéia bíblica do juízo final, está a idéia
de um progresso gradual.
Também em Orígenes não obstante ter êle o belo
conceito de autobusileia supra, 104) - a mensagem neo-
sôbre o Reino sofre, pelo redução.
Muito diferente modo de pensar greco-oriental é o pen~
sarnento latino-ocidental, com sua fé na realização ativa do Reino
de Deus na terra. Nesta esfera o conceito de Reino de Deus chega
ao término de sua evolução com a identificação entre Reino de Deus
e Igrejas, em Agostinho.

!lfr lb. 73ss.


BIBLIOGRAFIA
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PAUL Y-WISSOW A, III 0899), sub voce.


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STRACK UND BILLERBECK, Kommentar zum N. T. aus Talmud u.nd Midrasch
(1921) I 172-184 e
G. F. MOORE, Judaism. 0927) I 401, 432ss; II 346s; 371•'5.
IV. Nôvo Testamento
Vide secção anterior. Além dessa, ajuntaremos somente a mais recente literatura
sôbre basileia no NT, por causa àa quantidade imensa de obras sôbre o
assunto, inclusive nos compêndios sôbre cristianismo primitivo onde o conceito
"Reino de Deus" desempenha papel relevante. Cf. P. FeL1e, Theologie àes
N. T. (1931) 73ss (que apresenta bibiiografia abundante) e K. L. Schlilidt,
Jesus Christus, em RGG, 2.ª ed., III, 110-151. Para estudos mais pormeno-
rizados, cf. W. MUNDLE, Reich Gottes, em RGG, 2.11. ed., rv, 1817-1822.
Ver também as discussões no informe sôbre a primeira conferência de
teólogos alemães e ingiêses em Cantuãria: Das Wesen des Reiches Gottes
und seine Beziehung zur menschlichen Gesell..schaft (Theologische Blctette1'
Vl (1927) 113ss) onde sôbre o NT há artigos de C. H. Dodd, E. C. Hoskyns,
G. Kittel, A. E. J. Rawlinson, K. L. Schmidt. A edição inglêsa é intitulada
:Mysterium Christi.
Monografias em alemão
. HOLLSTEIN, Die Grtmd!o.gen des evangelischen Kirchenrechts Cl9H) li• ,.,
:M1CHAELIS, Taeufier, Jesus, Urgemeinde, Die PTecUgt Je111. vom 11•1 ~
vor und na.eh Pfingsten (1928). '" -
J 10 Karl Schrnidt

J. KOESTER, Die Idee der Kirche beim Apostei Pa.14!ui; (1923).


G. Reich Gottes und Kirche im N. T. (1929).
H. E. 'Eschatologie' und 'Mystik' im N. T. (1930).
li. D. Die Eschatowgie des Reiches Gottes bei Jie81i.s (1931)

Monografias em inglês
F. E. SCOTT, Th.e Kingdom of God {1931).
T. W. MASON, T"ne Teach.ing of Jesus (1931L
C. H. DODD, T1'...e Parables oj the J{ingdom (1935).
F. T. GUIG:NEBERT, The Jei.vish World in the Time of Jesus (1939)
e. J. CADOUX, Thie Historie Mission of Jesus (1941) com bibliografia).
R. OTTO, The Kingdúm of God and the Son of Man (rev, 1942).
S. H. HOOK, The Kingdúm of God (1949).
T. W. MANSON, The Sayings of Jesv,s (1950); The Servant Messiah (1953).
R. H. FULLER, The Mission i:ind Achievement of Jesus (1954).
J. JEREMIAS, The Parables of JeS'U.s (1954).
APóSTOLO
e os correlatos
FALSO APõSTOLO
APOSTOLADO
ENVIAR

por
KARL HEINRICH RENGSTORF
ÍNDICE
APóSTOLO
O U~111111 e~ o conceito de apóstolo no grego clássico e no
lu1lr11l1m10 ........................................ 115
1 1, uno ch'lssico do têrmo, 115
'J M1•mml(círos religiosos no helenismo, 117

t1 Apú:~toJo (shaliah} no judaísmo . . . . . . . . . . . .......... 123


l Ap6stclos entre os judeus helenistas, 123
·• Shalíah como têrmo jurídico do judaísmo tardio, 125

e. o uso de apostolos no Nôvo Testamento 135


J. Estatística, 135
2. A significação do têrmo, 136

D. A orig::m e a essência do apostolaào no Nôvo Testamento 140


1. Jesus e o primeiro círculo de discípulos, 140
2. O <tpostolado àa Igreja prímítiva como dom do Ressuscitado, 149
3. Paulo, exemplo clássico do apostolado, 159

E. Jesus como "enviado" 168


L Pempein e apostellein aplicados a Jesus, 168
2. Diferença entre o Evangelho de João e a gnose qiental, 170

FALSO APÓSTOLO
Uso geral do 171
APOSTOLADO
Uso geral do têrmo 172
ENVIAR.·
A. /Jl.J•>v<>••v e pempa no grego 173
l. u~·odos têrmos, 173
2. A iàéia de autorização, 174

B. e pempo na Septuagínta e no judaísmo 176


J. Aposte!lo como tradução do hebraico shlh., 176
2. Aposteno na Septuaginta, 178
3. Sh!h no judaísmo rabínico, lSO

e. Apostello e Nôvo Testamento 181


1. Nos Sinóticos e em Paulo. un
2. No Evangelho àe João, 183
3. S.:nUdo teológk:o de apuste!lo, 185 .

I •. O composto exapostello 185


Bibliografia .. ... . .. ... .. ............. ...... .. . .. . 187
APÓSTOLO
A. O TtRMO E O CONCEITO DE APóSTOLO NO GREGO
CLASSICO E NO HELENISMO

1 . O uso clássico do têrmo - Só ocasionaJmente apostolas no


v.rngo clássico tem um que se aproxime, ou pareça se apro~
xímar, do uso neotestamentárío. De modo geral a concordância
11ii.o vai da forma exterior, fundamentalmente são
os ambientes em que se originaram os dois usos.
Em mais antiga, apostolos pertence aos têrmos
de navegação, sobretudo em contextos de guerras, chegando quase
a ser um terminus technicus da linguagem oficiaL Originàriamente
era, sem dúvida, um adjetivo, como aparece em Platão, Ep. VII,346a:
"navegar em navios "apostolois", onde "ploion apostolon" significa
navio de carga ou de transporte; tal navio é algumas vêzes designa-
do simplesmente como to apostolon, pelo uso substantivado do adje-
tivo e pela omissão de ploion (Pseudo~Heródoto, Vita R omeri 19).
Naturalmente não se separar o têrmo do verbo apostelle·in,
enviar, como bem aparece forma to apostolon (ploion). A es-
relação entre os dois têrmos se manifesta no freqüente uso de
ho apostolos, que significa primeiramente o envio de uma frota (ou
de um exército), no início sempre para a guerra, e aparece assim
como um simples refôrço do têrmo stolos (Lísias, Or. 19,21; De-
móstenes, Or. 18,107) 1; a seguir designa a própria frota e, final-
mente, chega a significar expedição naval (Demóstenes, Or. 18,80;
cf. 3,5) 2. Partindo daí, o têrmo, por uma contínua extensão de
seu sentido, é aplicado, ora a um grupo de homens enviado com um
escopo determinado, mesmo não se tratando encargos militares
propriamente ditos, como seja um grupo e o seu estabe~
lccimento (Dionísio de Halicarnasso, Ant. Rom. IX,59) s,ora aos

i Cf. a definição de Suidas: "apostoloi" são os e'lvi 1 de naves.


2 Demóstenes, Or. 3, 5: a aphienai ton apostolon, deixar a expedição,
pml11 nl1~n!!icar tanto a do envio das trirremes já prontas, como o
11l1111uhmn da expedição planejada.
o To1·1u1-11e então quase sinônimo de avtm1:•a. que ê termfaus technieu11 para
""~P•'lfl•;fio1fo colonização". Cf. Êsqulnes, Legatione 175, onde se fala
''" uJ1onld!d1t, tendo por objeto apoikfo.
1t ti Karl li einrich Rengstorf

1'11t•fos de uma expedição, tais como o almirante (Hesíquio de Ale-


xu11dria, sub voce; Anecdota Graeca, ed. Bekker, 217,26) 4.
O que todos êsses sentidos têm em comum é o seu caráter total-
mente passivo. Em nenhum dêles transparece a idéia da iniciativa
do apostolas, muito menos a idéia de uma autorização ligada ao en-
vio; 1
contrário, o têrmo sempre se restringe à simples comu-
Hica;:;ao de uma qualidade, a qualidade de ser enviado, caso não se
queii:a ver no têrmo um simples terrninus technicus. Em todo o
caso, nesse sentido fundamentalmente passivo transparece sempre
a origem adjetiva do têrmo, mesmo depois de sua substantivação.
Por isto -- mesmo abstraindo àe seu caráter bàsicamente impessoal
- não podia êle tornar-se a expressão comum de "enviado" em sen-
tido técnico, pois os gregos tinham para isto vários outros têrmos
(aggelos, keryx, presbeutes, etc.). Por isto também o uso posterior
que os cristãos fizeram do têrmo devia significar algo totalmente
nôvo para os ouvidos gregos e para todos os que estavam sob a in-
fluência da língua grega; êste fato transparece de que os latinos
não o traduziram, mas o admitiram na língua eclesiástica como pa-
lavra estrangeira (apostolus) 5.
Nos dois únicos passos em que apostolas aparece com o sentido
de "enviado", ou onde pelo menos parece ter êste sentido (Heró-
doto, I,21; V,38), claramente se vê que a qualidade de ser enviado
é a fundamental; ao contrário a idéia de autorização não está pre-
sente 6. Portanto não se deve falar dêsses dois textos como sendo
uma preparação para o uso neotestamentário do têrmo. Contra tal
tese são testemunhas a Septuaginta, Flávio Josefo e Filão, pois neste
caso concreto êles não desempenham o papel de estágios interme-
diários entre o uso profano e neotestamentário. Todos os exem-
plos de apostolos no sentido de "o enviado" são muito tardios e
pressupõem o uso cristão do têrmo 7.
O uso de apostolos nos papiros mostra como no tempo do cris-
tianismo primitivo e antigo o sentido do têrmo se afastava do sen-
tido do Nôvo Testamento s; nêles o tê:rrno significa lista, ou nota

1 Preuschen-Bauer, 156.
5 Sôbre ês+..e ponto ver pág. 126.
ll Em 5, 21 se diz a respeito do keryx que Allates envia a Mileto: êste era
"apostoios" para Mileto; aqui apostolas é predicado e seu sentido se aproxima
do de apesta!memos (part. perf. pass. de aposte!lo; cf. K. W. Krueger em sua edição
de Heródoto, Berfün, 1855s, ad locum). Em V, 38 o sentido é semelhante.
7 Prelslgke, Woerterb. I, 195 só registra um exemplo que, de resto, provém
do sééulo VIII d. C. (Pap. Lon<l. IV) ; outros exemplos me são desconhecidos.
r,, Cf. Preisigke, Woerterb. I, 195; Fa.chwoerter 30.
2. Iífensageiros religiosos Assim como
"''ª"'··""'' entre a apostolos do grego e do cristianismo
unicamente à forma exterior do vocábulo,
fracos os contactos objetivos do apostolado neo-
eon1 o mundo grego.
antigüidade não conhece nada que se possa, pôr em
paralelo com o apóstolo Nôvo Testamento. Os prophetai gregos
são os anunciadores uma e como tais. se rela-
""'"""" com um são a bôca ·da divindade. a que servem 10.
vale igualmente da (sacerdotisa de Apolo em Delfos)
nada mais era que uma pessoa ~ntermediária entre o deus e o ........a ... 1•..,
que buscava sabef algo 11 • Pe10 fato ela nunca ter nome, nem
indicação de idade ou época, vemos que não nenhum signifi-
cado Todo o problema da pessoa interme-
diária nem sequer era cogitado. é que natural no papel
que tnesmo quando a mediação era obra de um
deuses mensageiros, como é típico principalmente hele~
Os têrmos aggelos e keryx, que ao
comtm1ente aparecem nesses contextos
1.11), pelii sua mostram que não se um en-
cargo - que só pode ser quando ligado a uma pessoa -
de uma men5agem, que por mesma estabelece o contacto e
seu portador não tem significação própria. tste fato se
0
em
última na estreita i·elação entre ofício de
mensageiro e inspiração na religiosidade enquanto se trata
de intermediários humanos 12 • Por aí se o :fato de que nos

9
Ex 0
u corresponde literalmente ao nosso "conforme
consta da nota»; em Preisigke, Woe-rt.erb. l,; 1115.
10 Sõbre todo êste assunto cf. E. Faschex-, Prophetes (1927), :P«l!dm,

u Cf. Fascher 14}l8.


12 Sôbre a Pítlll -veja-se :Dion Cr!só:!tcn:no. Or. 72,lll.
1 JH Karl H einrich RengstorÍ

mensageiros do helenismo não se formou a conscíênda de uma mis-


gão, nem emergiu a idéia de uma autoridade pessoal. É justamente
0 contrário que devia suceder, isto é, a renúncia à consciência e à
personalidade próprias.
b. Em certo sentido constituem exceção os representantes da
escola cínico-estóica, se admitimos que a descrição do verdadeiro cí-
nico em Epicteto 13 é mais do que uma imagem ideal e nos põe, ante
os olhos, fatos tirados da vida. Nêles encontramos uma consciência
de missão muito caracterizada e uma forte consciência pessoal. O
cíníco sabe que é "enviado por Zeus", e Epicteto até pode dizer que
somente t.a1 consciência da missão divina faz o "cínico de verdade"
(Dissert. III,22,23) 14. Não há dúvida que também aí são aggelot:
e keryx os têrrnos com que é descrita essa missão quanto a seu con-
teúdo. Mas - mesmo abstraindo do fato de que a.postellein ocupa
um pôsto importante como terminus technicus para descrever o co-
missionamento e a autorização por parte da divindade 15 -., além
dos encargos designados por êsses têrmos, o cínico tinha uma ter-
ceira função, a de kataskopos tôn theôn, observador (ou vigia) dos
deuses 1s. Como tal tinha êle de "observar" (kataskeptesthai) com
grande exatidão (o.kribós, III,22,25), isto é, como genuíno "obser-
vador" (I,24,3), como os homens se comportam para então lhes anun-
ciar a verdade (III,22,25), como o fêz de modo inimitável Dióge-
nes, o primeiro "observador" e modêlo de todo cínico (I,24,6;
III,22,25) 17 • O cínico, portanto, observa os homens e procura em
suas vidas os pontos em que pode socorrê-los como "médico, apoio
:m.oral, salvador para os outros" 1s. Fazendo assim êle se torna epis-

1s Dissert. III, 22: Peri kynismou, sôbre a escola dos cínicos. Cf. Wendland,
H.eHer.istische Kuttur, 75ss.
14 Sôbre isto, e o que se segue, d. apostei!o (apêndice C).
1:; Cf. pág, 175.
11! O cínico é "mensageiro, observador e arauto dos deuses"· (!II, 22, 69)
Como kataskopos i:eus
correligionários o enviam a~ ~undo, por exemplo, a Ro~
(I, 24, 3ss). Cf. De1ssner 783 e Norden 377s (onde sao citadas passagens de Diógene~
Laércio e Plutarco). '
17 Já em .tultfstenes o têrmo é empregado como autodesignação, parfü1'l
certamente das representações populares dos intermediários entre os deuses e Qt>
8
homens (Norden 37.Sss; 381).
18 Holl, Geschichtlíche Auffsaetze II, 261; no cap. I há uma série de exemp~
bem como ::m Pauli-Wlssowa XII, 14).
0 s,
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Envial' 1 [!)

kopõn 19 , guarda, a tal ponto que Epicteto (111,22,77), pode chamar


os verdadeiros cínicos "aqu~les que vigiam segundo suas capa.ci-
dades a todos os homens, o que êstes fazem, como vivem, de que
cuidam, de que descuidam contràriamente ao dever" 20; traz-lhes
auxílio como "mensageiros dos deuses" 21. É precisamente pelo seu
"pregar", que êle se mostra como "guarda"; mas isto só tem sen-
tido quando êle é antes de tudo um verdadeiro "observador".
Portanto, o cínico como aggelos é o mensageiro de Zeus que o
envia e está detrás dêle 22. A êste traço inteiramente passivo de
sua personalidade se ajunta, pela designação de "observador", a ini-
ciativa do mensageiro, a qual se funda num encargo dado por Zeu~
e se exprime em cada caso na respectiva mensagem, pela qual o
mensageiro cínico apresenta-se de certo modo como representante da
divindade junto aos homens e como seu educador segundo um padrão
divino. Não se pode dizer a respeito dêle que, como os prophetai
gregos, tenha um papel inteiramente passivo. Êste traço transpa-
rece do comportamento do cínico em face de seu comissionador, co-
rno também diante dos homens aos quais é enviado. De nenhum
modo êle se enumera entre os homens, que vê diante de si como
massa perditionis, e aos quais se julga muito superior pelo seu en-
cargo e pela liherdade daí decorrente com respeito aos bens mate-
riais; não é em vão que êle se designa como "rei e senhor,. (Epicteto,
Dissert. III,22,49), pois domina-o uma clara consciência de distân-
cia dos outros homens. Mas o que é característico nêle não é o
isolamento, como seria natural, mas o forte sentimento do dever pa-
ra com o kerygma e, mais ainda, um grande senso de responsabili-

io Cf. Norden 378. kataskopos e episkopos, não obstante tõda a sua semelhança,
devem ser distinguidos, ponto em que Norden 378 insiste. Isto se vê no fato
de que fempre se emprega o verbo epislcopein e não o substantivo episkopos.
Por conseguinte, .episkopein é em certo sentido a função do ka.taskopos, enquanto
que kataskopos é muito mais que a descrição de uma função. . i/: verdade que
cm Diógenes Laércio VI, 102 se diz que o cíniço Menedemo (circ. 300 a. C.) voltou
do Hades como episkopos. . . t6n hamarto11llmenon, vigia . . . dos que pecam. Mas
êste exemplo é tardio (século III d. C.) e, de resto, a designação nasce de
representações que se distanciam não pouco das dos adeptos mais antigos da
escola cínica <ct. Norclen, 379).
20 Episkopein aparece ainda em III, 22, 72, 97.
21 O cínico como kervx t6n the6n em Epicteto, DLssert. III, 22, 69; com o
encargo de' kerussein em III, 13, 12; IV, 5, 24 (Delssner 783). Ct. ainda III, 21, 13.
Exemplos de emprego análogo em circulas não estóicos, cm Preuschen-Bauer 674s.
22 Parece que o próprio Dlógcmes Insistiu em sua missão divina apolando-sa
em seu nome ("filho de Zeus"; Nordcn 380, nota 1).
120 Karl Heinrich Rengsforf

dade para com os Quase se poderia que foi por


pura êasuaHdade que o têrmo "devedor", com que Paulo descreve
sua relação para com o não cristão (Rm 1,14), falte em E pie-
; mas não há dúvida que a realidade expressa por aquêle têrmo
se encontra 24 • O senso de responsabilidade para com a humani-
ligado a uma de responsabilidade para
com Zeus. Apesar de o cíníco ser totalmente livre todos os
homens, está certamente e obrigado a
"servo" (III,22,82,95), deve-lhe 25, e é o seu
(II,22,69). os dois responsabílidade
Deus e perante os - são o undamEmt;o
liberdade do cínico, o seu de se ocupar sempre e
em tôda negócios próprios e alheios (I!I,22,97ss;
Horácio, , e a sua certeza de que não tem a temer nem
mesmo o imperador quando se trata de assunto que lhe diz respeito
(III,22,56). O têrmo em que se encontram reunidos os conceitos de
encargo e responsabilidade é precisamente kataskopos. Por meio
a iniciativa do cínico é ao mesmo tempo exigida e limitada. Por
conseguinte, se se busca um paralelo real do uso neotestamentário
ka.ta.skopos é o único. O paralelismo os dois
é sublinhado pelo fato de que ambos, tanto kata.<Jkopos
como apostolas, têm no seu uma terminologia em grande
parte idêntica embora essa mais uma vez se restrinja
sobretudo à forma exterior dos 27. Em todo o caso, pode,.se
dizer que o sábio cínico-est6ico é, no seu papel de kataskovoÍ, a
figura que se pode aproximar do apóstolo neotestamentâ~io.
;
A consciência missão dos seu protótipo (na
gura de Sócrates, como Platão a descreve em sua Apologia 2 (
explica tanto o bios, como o pragma, daquele pela
.....u .. ··~-~ do deus de (Ap. 23c: "o deus"), o qual lhe

23 Cf. Deissner 786s. Importante wb êste aspecto são as imagens tiradas


da experiência médica, bem como autodesignações {ef. Epicteto Ill, 23, 30ss; · Dió-
genes Laércio VI, 6; e em Wendland, Hellenistische Kultur, 82, nota 2; sôbre
isto veja~se A. von Harnack, Lehrbuck der Dogmengeschichte, 4.ª ed., 1909s, págs.
129.ss.
2~ Deissner 786.
211 Vejam-se os passos em Deissner 784, sobretudo Dissert. IV, 3, 9: "pois sou
livre e amigo de Deus a fim de lhe obedecer espontâneamente".
26 As alusões feitas no texto bastam. Vejam~se ainda os têrmos cprrelatos.
21 O que· se segue foi tirado de H. Kleinknecht. Bibliografia ulterior: P.
Friedlaender, Platon II (1930 165s) E. Wolf!, Platos 11po!ogie, em Neue Philoki-
Untersuchungen 6 (1929) 39ss.
Apóst.olo, Falso A..póstofo, Apostolado e_Erz,vjar 121

traç.ou a tarefa de sua vida e ao qual deve obediência (.4.v. 29d:


"obedecerei mais ao deus do que a vós"). É precisament-e em razão
disto que seus inimigos e juízes assumem uma grave responsabili-
dade perante deus quando buscam livar-se dêle (Platão, Ap. 3úe-3la:
"não pequeis contra o dom que deus vos fêz ... pois se me matardes
difi.cilmente achareis, ~ rtifícios, alguém semelhante a mim, que,
para falar mais francamente, fui pôsto por âeus àiánte da--claade.-::---
pois, parece-me que fui pôsto por deus dianté da cidade ... , eu que
não cesso de acordar, exortar e conjurar a cada um de-vós ... ; depois,
talvez, passeis o resto da vida dormindo, se deus não tomar cuidado
de vós e vos enviar um outro"). Até mesmo a terminologia ést6ica
tem aí o seu modêlo, embora falte apostcllein. Talvez haja no fundo
certa distinção entre Sócrates e a Stoá no fato de que nêle o motivo
da missão cede lugar ao escopo, enquanto Epicteto, por exemplo,
apela precisamente para a autoridade do deus que envia.
O mesmo se deve dizer também de sua aparência exterior pois,
à semelhança do apóstolo, êle viaja pelo mundo e trabalha pela su~
doutrina, entregue, mais ou menos como aquêle, à benevolência de
seus ouvintes e benfeitores. Paulo se apresenta em Atenas (At
17.16ss) da mesma forma como os filósofos cínicos e epicureus se
costumavam dirigir ao povo e como os pregadores ambulantes de
então procuravam impor suas convicções 2s. Parece que depois da
saída de Paulo de Tessa1ônica, em razão dessa semelhança exterior,
os seus adversários levantaram suspeita contra êle como pertencendo
ao número daqueles pregadores que, preocupados com· honra e di-
nheiro, buscavam favorecer niais a si mesmos que ganhar seguido-
res para a causa 29. Portanto, os apóstolos não são tipos inteiramen-
te desconhecidos dos gregos, mas simplesmente os representantes
de mais uma religião, ao lado dos numerosos missionários de outros
cultos e filosofias nesse tempo clássico da propaganda religiosa 30,
Contudo, tais missionários não devem figurar como. tipos paralelos
dos apóstolos, pois não obstante- o uso de apostellesthai, ser envia-
do, para descrever sua autorização :n, não chegaram a formular li-

28 Cf. Wendland, Hellenistische Kultur 92ss.


29 A assim chamada apologia de ! Ts 2.1-13 tem posslveimente aí a sua
explicação.
so Um breve esbõço do assunto em E. von Dobschuetz, Kommentnr zu &m
Thessaloni.kerbriefen, 7." ed. (1909), págt!. 2ss; e!. E. Gressmann, Heidnische Miari<m
in der Weràezeit des Christentums, em: ZMR 39 (1924) 14ss.
a1 Cf. supra pág. 118.
122 Heinrick RengJJtorf

.... ,~~,.,~, a consciência da e os direitos dai decorrenteR.


Isto s6 se deu com os cínicos através. conceito de kataskopo.<~.
É têrmo que denota muito bem o conteúdo
dessa consciência. o cínico aparece como uma pessoa que age por
mesma, diferentemente de aggelos, Deus é o agente 82 ; assim,
dizer que o tem ~onsciência e não é, a
uma consciência ·· Ext-eriormente sua consciência
se manifesta na sua arrogante de se apresentar, que fre-
suscitava 33, enquanto que internamente êle
a necessidade de. sua própria autoxidade, que era
que o simples fató de ser . enviado. Isto se pela adoção
do título theios anthropos (homem de deus), sobretudo por parte
dos estóicos apoiados numa antiga tradição cínica 35 que agora ti-
nha uma nuança mística, parte como era das religiões de mistério ªº·
É verdade que no uso dos filósofos não. se deve separar êsse título da
consciência de missão que tinham, contudo o seu simples emprêgo
denota que lhes faltava em última análise um fundamento metaff.
síco, já que êle constitui um elemento irracional dentro da piedade
filosófica racional, e no qual se n1anifesta uma longínqua afinidade
com o "entusiasmo.. dos profetas gregos. Visto que também êsse
elemento tira sua origem do panteísmo, e como êste em
última análise leva à supressão do divino no eu, os filósofos cínico-
estóicos não conseguiram passar da autoconsciência para a cons-
ciência de missão, a qual manifesta seu caráter teonômíco na coexis-
de ilimitados direitos em nome de Deus que envia, de um
lado, e renúncia à importância pessoal do enviado, de outro. A
tensão entre consciência de missão e personalidade do enviado -
que necessàriamente surge. - não pôde ser superada na Diatribe
cínico~estóica, porque em última linha ela sempre foi e sempre per..
maneceu um programa puramente humano, .mesmo quando seu1
representantes se apresentavam em nome da religião. Do fato de
seus mensageiros serem designados como kataskopoi, vemos que
tinham consciência limite; por essa designação confessam que
no ponto decisivo, isto é, no momento em que o aggelos theôn se
torna keryx theôn, todô o pêso é pôsto na iniciativa humana e no
julgamento humano. de modo que o enviado é certa.mente um servo
da divindade, mas não depende inteiramente dela como um escra·

a2 Pode-se falar assim em vista da maneira como Epicteto se refere a ho theoa,


o deus.
sa Ct. Pauli-Wissowa XII, 14s.
S4 Principalmente em Dion Crisóstomo; cf. Holl 262.
3<l Cf. pág.
86 Holl 262.
Apóstolo,

vo 37, antes está ao como rei e e é quase da mesma


natureza que ela ("homem divino") as; por a relação entre o
"enviado" e a divindade nunca tem o caráter uma missão incon-
a que êle se simplesmente, Jnas ..antes o .de um
contrato que dois parceiros entre si29. E~ concepção aó é
porque falta a .... cireulos u!naid~jà'clara de,peu . e,
por mesmo, a certeza de umaYeyelàÇã(}~âeêlsiVaJ:!avontade de
Deus; isto por sua vez é a razão por,que na relig:l.psiâade filosófica
daquele não se chegou, à pesar dá. Consdên.ci~ da missão e da
à formulação clara da: àutor4dade absoluta
verdadeira religião e seus ..mensageiros.40.. .
Depois do que dito pode.se, finalmente, afirmar que é J:lílais
do que natural que no mundo grego os elementos jurídicos não de-
sempenhassem nenhum papel essencial- .. -. se é que desempenhavam
algum - nas relações dos deuses com os. homens através de inter-
mediários. Com os cínicos a coisa é evidente; mas. também nos
outros casos é assim. Também êste aspecto é <uma simples conse..
da ausência de uma idéia Clara de-Deus e de uma revelação
Representações míticas de DeurL? fulião mística .com a
divindade não oferecem categorias concretas como.· o. são as catego-
rías seja quanto ao C()nteúdo da pregação, sejà com res-
peito àqueles que a exercem, seja ainda com :re,speito aos que devem
ser ganhos por ela. Por isto não lugar para ulteriores consi-
derações. ·

B. (SHA.LIAH) NO JUDA1SMO

1. Apóstolos os judeus helenistas. Entre os júdeus


helenistas o têrmo apostafos não teve ampla a.ceitação. Isto. talvez
sua razão no fato que o ambiente em'qué êle se. originou
era mais ou menos fechado aos judeus; Os palestinensea não ti:nliam
acesso imediato ao mar, e isto nãotinhamopprtunidade de orgá~

:11 Dott!os tôn theõn, ou expressões sem~lhantes, !}g() ap~:i."éÔem'nos t:fuicos como
autcdeslgnação; ii;to seria totalmente ímpo~ível de seu cporito~~ Cf.
Deissncr 787. · ·· .· •·· · ,
::s Assim êle é, como Zeus, em certa medida, o p·ª··J·····.·.de- fu···d·
(Epicteto, Dissert. III 22, 81). - · ·. ···. · .. ·. · · /
·.ºJ os . homens
. j
39 É sintomâtko que o desprêzo " a injúria só a!!ngem o·cin!ro como.pessoa
e nunca aquêle que êle representa (Cf. por exemplo, ]l:pfct~to, pisgert. DI 22, 53Bs);
também a fórmula, "a companhia c;;m deus", ire refere a Isso (cf. 'lJ!, 22, 22).
40 Dêste ponto de vista a escolha do têrmo. kat:asfi;oti;:>s
característica recebe nova luz. Vê-se que 'kataskopoa
í.:pO!Jtolos (de apo.~ti!llesthai) são tormações 1.málogas,
Heinrich Reng.~torf

navais, nem mesmo de planejá-las. Parece qtHo


do Egito não exerciam a arte da navegação de
Em todo o caso o simplesmente não aparece

Josefo encontra-se mas atestado segura~


í \A.nt-iquitates 17,800) significa
ocupa assim uma intermediária
o do Nôvo enquanto que o uso
é, como vimos, estranho.
pode~se falar uma assimilação pelo ambiente de
J osefo, embora não se deva esquecer que se trata aí de uma
1.1a.J'"-"·u"" de judeus para Roma em que uma marítima era
imprescindível. Em todo o caso devem-se ver elementos no uso
têrmo feito por Flávio Josefo: de um lado o forte influxo de
apostellein, verbo que parece sido empregado especificamente
para designar o envio de homens; de outro lado, o fato de que o
têrmo conserva seu sentido coletivo. Não sabemos até que ponto.
Flávio Josefo seguiu o uso de seu tempo. Na segunda passagem em
que o têrmo (Antiquitates, 1,146) apostolos é sinônimo
de wpostolê caso não se deva ler diferentemente 43. Nada se pode
deduzir passo sôbre o uso do têrmo.
A 44 traz o têrmo em lRs 14.6 texto
pertencente à secção 14.1-20 que Codex Vaticanu,.~ 4 " e que
por isto costuma ser :reproduzido o Coclex Alexltndrin11s:
"eu sou um apostolos duro para ti". palavras do profeta
à mulher do a qual vem a êle para se informar sôbre
a so:rte de seu filho. O texto hebraico tem: "sou mensageiro
,Ç;Q.isas duras para ti". Sôbre êste texto deve-se notar o seguinte :
aiwstolos é a tradução shaluah que evidentemente está tomado
em sentido substantivo, embora seja particípio passivo 46, Somente
a partir disto é possível a traduçãÕ ''apóstolo duro". Mas com
o têrmo apostolos caráter pessoal. importa que na
apostolas pros se ainda ecoe a concepção verbal do texto

4l "Emb:lixada" seria aqui uma bon tradução.


42 .Também êste têrmo é uma variante.
4:1 Certamente se deve ler apodasmos, partilha.
4~ Segundo ~atch-Redpaíh, A Concordance to the Septuagint (1897s.<s) .
. 4:; I<to sugere a pouca antigüidade do texto.
fO Para a construção da sentença hebraica, cí. Gesenius-Kautzsch, Hebrarisch.2
GrammcWc, 27 A cd. 09~2) 393, nota 3.
A.póstolo, Falso Apóstolo~ Apostolado e Envü1r. 125

original. Mais importante, porém, é que aqui apostolos signifka


mensageiro de Deus em sentido técnico, pois o contexto dá a enten~
der que Aías recebeu o encargo de uma palavra de Deus para a
mulher do rei 47. Transparece aí o influxo de shaluah, que descreve
a autorização que o profeta recebeu de Deus. Por consegu1n:te--'
desaparece o sentido profano de shlk/apostellân, para dar lugar a.o·:
sentido teológico, do qual apost-Olos recebe seu significad9 espêCtficõ, '
Deve-se notar, além disto, que o têrmo é usado por um nabi.
(prophetes) numa situação concreta de sua vida de profeta'; .e. o:
adjetivo "duro" mostra que o vocábulo ainda não se cristalizou,~de_
modo que correspondesse totalmente a apestaJrnenos · (que ·seria a
tradução usual de shaluah). Esta passagem é muito mais impori.
tante do que os dois exemplos de apostolas (enviado) em Heródoto
(vide suvra, págs. 116), quando se tem presente tudo o que ficou
dito. De resto, também Ãqüila emprega apostolos em lRs 14.6 •8 e
com isto mostra a correspondência do têrmo com shaluah. Símaco,
finalmente, fornece em Is 18.2 um outro exemplo . para -0 uso do
têrmo, traduzindo o hebraico ".que envia embaixadores no mar",
por: "que envia apostolous no mar". Com essa tradução Símaco
está isolado, pois a correspondência entre çir e apostolos não é
atestada por outros 49.
2. Shaliah como têrmo jurídico do judaísmo tardio. - O ju-
daísmo rabínico tem uma contribuição muito mais importante. Af
o têrmo shaliah Go ocupa um pôsto bem determinado, e como subs-
tantivo oferece o paraielo mais óbvio pa:ra o apostolos neotesta-
mentário. A correspondência objetiva entre os dois têrmos já foi
notada pelos padres da Igreja. Jerônimo tn escreve que os varões
judeus que podem ser comparados com os apóstolos têm o nome de
slias, que nada mais é que a latinização do aramaico shelihti 52, A
correspondência da terminologia é confirmada pelo fato de que na
Igreja si:rfaca o apóstolo se chama sheiihâ; por outro lado numa

47 Note-se que o profeta não vem a ela, mas ela ao profeta!


·IR Segundo Welhausen 143, nota 2, neste passo Aqüila é a tonte da, SeptUI•
ginta.
4!l Para uma apreciação desta exegese de Is Hl.ls na Igr~a antiga, cf. Lightfoot ,,
93, nota 2. _ .
50 Etta é a formn usual; no plural, e com sufixos, usa~se~lutth CStrack-Blt·
Jerbeck III, 2), enquanto que em aramaico é sl1e!ih1.
r.1 Comentário de Gl 1.1.. onde se identificam os têrmos.
52 "Slias" vem de shlyh' como "Messias" de mshyh'; Krauss, cm JQR .l?
( 1905) 370, nota 4.
-. "' ··~- ,.;_

126 Karl Heinrich Rengstorf.

inscrição judaica de Venosa, do século V ou VI d. C. ua, fala-se de


"duo apostuli" ao lado de duo rebbites, dois rabinos.
Portanto, a correspondência entre apostolos e shaliah é ates-
tada também do lado não cristão; do contrário seria impossível o
uso do tênno latinizado apostulus 54. Os rabinos não aceitaram o
vocábulo grego em sua própria JíJ1gua 55, sinal ( ~ ttue a fórmula
sêrnítica estava fortemente arraigada entre êles. Pode ter contri-
buído para isto o fato de que desde a metade do primeiro século o
têrmo já fazia parte da linguagem especificamente cristã, tendo sido
por isto evitada pelos judeus.
a. A instituição dos sheluhim é antiga e já aparece no tempo
pós-exílíco (2Cr 17.7-9); talvez seja mais antiga ainda 56 • Mas re-
cebeu seu caráter próprio somente no inicio da era cristã. O que
une os sheluhim de tôdas as épocas é sua função, que incluía tarefas
bem determinadas a serem exercidas em regiões mais ou menos
afastadas do lugar em que permanecia seu/comissionador. Portanto,
pelo têrmo shaluah não se descreve o fat-0 de seu envio, nem se
alude a· um cargo que se tornou especl:ficamente dêles, mas designa-
se tão-somente a forma do envio, isto é, a autorização. ~ste é o
ponto capital, enquanto que o encargo em si não tem significação
alguma para a qualidade do shaluah. É indiferente se o encargo
consiste em anunciar verdades :religiosas (2Cr 17.7ss) ou em de-
sincumbir-se de um negócio (Tosefta, Qiddushin 4,2). Portanto,
o têrmo não pertence à esfera religiosa propriamente dita, mas à
jurídica, e quando recebe um significado religioso isto provém não
de que êle é um shaliah simplesmente, mas um shaliah com um en-

ü:> CIL 1X~ 648; cf. REJ 6 (1882) 205s.


iH Quem primeiro mostrou de maneira ;mais ampla a conexão entre apostolas e
shcttiah foi {segundo Lightfoot .e outros) S. Krauss (JQR 17, 1905, 370ss) na
di~cussão com A. vcn Harnack Mas nem êle nem H. Vogelstein (J\t!GW 49. 1005,
42'tss) passaram além da comparação entre as duas krmas. Sômente P.
Bi.llerbeck (principalmente III, 2ss) comparou as duas instituições do ponto de
vista de ma função e assim tornou possível uma investigação teológica do tênno
aposto!os a partir do judaísmo. Bfüerbeck refuta o cepticismo de Holl <Gieschich-
tliche Aufscl'etze II, 51, (nota 1), contra o recurrn aos paralelos judaicos.
t.õ M. Jastrow, A Dictionary of the Targumim ! (1903) 101 é de opinião que
o texto do tratado Tarnit 4,6 ("No décimo sétimo dia d{) mês de Tamuz Ofastemos
(?) queimou a Torá") l'e refere a um apostolos que teria queimado a Torá, e
vê ai uma alusão ao fato narrado em 2 Macabeus 6 ls. Contudo, outras explicações
parecem mois prová\'eis que esta. · Cf. S. K.raus~Proceed·ings of the Society
of Bib!icai Archaeology, 25 (1903) 222ss; Jewisli' Encydopa.edia II, 21s.
. \
rrn S. Krauss, JQR 382, diz que é pós-exflico; \Vogelstein, Hebrew Union Cot!cge
Amwai 2, 1925, 100 faz remontar a 419 a. C. (papiros de Elefantine>.
Apóstolo, Fafao Apóstolo, Apostolado e Enviar 1!J7

cargo religioso. O que aí temos nada mais é que o emprêgo conse-


qüente do sentido de shalah ( aposteUefo) que, não possuindo em ai
matizes teológicos, pode, não obstante, recebê-los em determinadas
situações. Os :rabinos já encontraram a instituição do shaliak na
Torã (Talmude Babilônico, N edarim 72b).
Na verdade, o elemento jurídico proprio de shaliah já está na
própria natureza das coisas, pois não podemos "enviar" a quem não
está sob nossa autoridade, ou a quem não se põe à nossa disposição.
Assim como o encargo vem a responsabilidade daquele que o recebe;
por isto, o encarregado é também sempre o representante do comis-
sionador e representa em sua pessoa a pessoa e o direito daquele.
Os rabinos resumiram a natureza fundamental do shaliah na sen-
tença freqüentemente citada: "o enviado de um homem é como êle
mesmo" (Berakot 5,5) 51 ; isto significa que o skaliah é em tudo como
o sholeah, o que envia, quando fala e age segundo o encargo recebido.
Exemplos: pode-se por meio de um shaliah "desposar uma mu·
lher", i.é, noivar com ela ( Qiddushin 2,1; Tosefta, Qiddushin 4,2;
Tosefta, Yebamot 4,4); neste caso o encàrregado cumpre tôdas as
cerimônias em lugar do respectivo noivo, e de forrna inteiramente
válida 58. Também é possível executar o cerimonial da separação
vàlidamente por meio de um enviado e o poder dêste vai a ponto
de uma separação feita ou encaminhada por êle não poder ser anu-
lada, nem mesmo pelo marido ( Gíttin 4,1) . O mesmo vale, mutatiR
mutandis, de qualquer ato jurídico, por exemplo, compra (Tosefta,
Yebamot 4,4), imolação do cordeiro pascal por meio de um servo
(Pesahirn 8,2), etc.
Naturalmente o "enviado" deve comportar-se incondicional-
mente segundo o encargo recebido. Neste ponto era possível des-
virtuar o encargo pelo abuso do poder recebido, o que não se podia
impedir nem tornar sem efeito (Qicldushin 3,1). Isto significa que
sem a total subordinação da vontade do encarregado à do comissio-
nador, todo o sistema deixava de funcionar ordenadamente. Por
aí se vê que na instituição rabínica do shaliah tratava-se em última
análise, não da ex.ecução mecânica do encargo, mas da decisão cons•
ciente em .favor de um plano e de um encargo recebido de outremª"·
Não se opõe a isto o fato de que tôda essa instituição está em terreno
jurídico, o que não significa sua profanação mas antes a garantia

11r Outros fatos em Strack-Billerbeck III, 2.


IH! Cf. Talnmd Babilônico, tratado Qiddushin 41a-b .
.~11 Esta formulação, um tanto forcada, é necessária para esclarecer o que
queremos dizer.
128 Ka.rl Heinrich Rengstorf

de sua pureza religiosa. ~ sabido que direito e religião formam ?io


judaísmo uma unidade inseparável. fato transparece do fato de que
algumas vêzes se diz que Deus se compraz num shaliah que dedica
sua vida à sua causa 60. O mesmo transparece mui claramente dos
outros usos de sha:tiah.
Em seus fundamentos jurídicos tudo o que se refere ao shaliah
se t ..iseia no direito semítico dos embaixadores, tal como é pressu-
posto já no AT. Aí o mensageiro representa inteiramente em sua
pessoa aquêle que o envia, geralmente o rei; tal é também o sentido
original do envio de um plenipotenciário. Portanto, a honra que
convém a tal pessoa e que lhe é prestada, é na verdade prestada
~tquele que o envia. É isto que faz Abigail quando lava os pés dos
sBrvos de Davi que vieram tomá-la para sua mulher ("Davi nos en-
viou para tomar-te por sua mulher")' e assim mostra que está pron-
ta a prestar a ê!e próprio tal serviço como sua mulher (lSm 25.40s).
Por outro lado, o tratamento injurioso dispensado a um enviado
atinge menos a êle que a seu senhor e, por conseguinte, não pode
ficar sem conseqüências. Assim, em 2Sm 10.lss, os maus tratos
feitos aos enviados de Davi pelos amonitas são a ocasião de uma
guerra de extermínio contra êles. Nesse dois casos, como em todos
os semelhantes, temos a aplicação prática da teoria do shaliah, tal
como os rabinos mais tarde a formularam. Compare-se o que diz
o Talmude babilônico no tratado Baba. Qamma ll3b: "o enviado de
um rei é como o mesmo rei" ( cf. Strack-Billerbeck I 590) . E ainda
Sifre Nuraeri 103 a propósito de Nm 12.9: "deve-se comparar êste
fato com um rei de carne e sangue que tinha um epitropos (admi-
nistrador) numa terra. Quando os habitantes da terra falaram
contra êle, o rei lhes disse: "Não falastes contra o meu servo, mas
contra mim falastes".
b. Até aqui tratamos da instituição ao tratar das relações en-
tre dois homens, isto é, de questões de direito privado.. lVIas com
isto não está totalmente caracterizado o seu alcance.
Do que ficou dito é possível inferir que o shaliah pode repre-
sentar também diversos indivíduos. Com isto fica bastante mais
clara a união entre religião e direito na pessoa do "enviado". li:ste
pode representar em determinados círculos a comunidade como tal,
bem como as comunidades locais, se recebeu encargo para tanto.
Em tais casos a instituição do shaliah representa urna adaptação~
respectivamente uma transposição, para o terreno religioso de fun-
ções já existentes.

· eo Nume1'i rabba 16, 1, comentando Nm 13, 2 {re:ferênc!a devida a H. Bo:r-


nhaeuser).
Apóstolo, Fa.lso Apóstolo, Apostolado e Enviar 129

Não é nada estranho que uma côrte judiciária encarregue um


indivíduo da execução de suas resoluções; mas é importante para
nós que tal encarregado seja chamado shaliah ( Gittin 3,6; cf.
Baba Qamma 9,5 e Yoma 1,5) 61, Plenipotenciários do grande siné-
drio são os rabinos que se dirigem à diáspora para adaptar o calen-
dário depois da introdução de um ano bissexto, isto é, para introduzir
também aí a intercalação decidida por uma resolução do sinédrio
(Yebanwt 16,7: rabi Akiba; Tosefta, Megilla 2,5: rabi Meir) 112 •
Da mesma forma o início do nôvo mês é dado a conhecer à diáspora
siríaca por meio de sheluhím (Rosh hash-shana, 2,4). flenipoten-
ciário da comunidade local ( sha.Ua.h çib bur) é o dirigente da oração
que, na sinagoga, ora por tóda a comunidade, a ponto de que quando
êle se engana na oração, isto é um mau sinal para aquêles que êle
deve representar perante Deus (Berakot 5,5) 63 • O sumo-sacerdote
no dia da expiação é o representante plenipotenciário, primeira-
mente dos sacerdotes - que de seu lado foram encarregados pelo
grande sinédrio de assistir a êle na correta execução de todos os seus
atos - , depois de tôda a comunidade do povo (,Yoma 1,5). Por aí
fica esclarecido o cuidado com que os fariseus e seus adeptos entre
os sacerdotes se atinham à observância do ritual segundo a tradi-
ção farisaica ( Yoma l,lss; cf. Talmude babilônico, Yoma 19b).
Representantes dos sinedritas, e em seu nome, representantes
de todo o Israel, são antes de tudo os rabinos, que são enviados pela
autoridade central a tôda a diáspora. Aplicada a êles a designação
sheluhim tornou-se têrmo técnico no sentido próprio. Suas tarefas
são múltiplas, mas somente possíveis pela autoridade que receberam
dos comissionadores. Depois do ano 70 juntam ofertas espontâneas
para os escribas palestínenses, pois i:;em tais auxílios não teria sido
possível continuar o ofício de intérpretes da lei, o que significa que
sem êles estaria em perigo a explicação ulterior da Halaká e com
ela a do povo, na qual se compraz Deus. De resto, o ofício de

61 Shaliah beyth din, "agente do tribunal'', corresponde ao "servo do tribunal"


(Tratado Makkot 2, 2). Nos casos em que o conhecimento de Halaká era necessário
para o fiel desempenho do encargo, os "servos" eram ao mesmo tempo perlto1
que sõzinhos podiam formar um tribunal que fazia decisões (po:r exemplo, o tratado
Menahot 10, 3l.
62 A pa!avra sha!icrh não aparece al, mas a 1déía está presente, pois Alc!ba
níio viaja por iniciativa própria. O fato de, para a L11tercalação de um dla no
calendário, ser preciso recorrer.;; tão grande .sábio é compreensível do ponto de
vista da importância do assunto (unidade dos judeus no calendário das testas).
6.1 O mesmo vale mutatís muta:nd~is no que diz respeito ao !nte.rcessor com
relação aos doentes pelos quais ora; cf. as narrativas sôbre o rabi F.an!na ben Dola
(Talmude de Jerusalém, tratado Berakot 9d, 2lss).
130 Heinrich Rengstorj

dinheiro é religioso 64; sem


dinheiro Akiba e seu tempo dificilmente
poderiam ter-se de Jerusalém,
Horayot 48a, 39ss).
disto o encargo de
(tratado Hagíga.
65 o patriarca II (ciro. 250 d.C.)
rabinos para as localidades da Palestina a de esta-
doutôres da Mishna e da Bíblia. Parece entretanto que
com funções para riianter o contacto entre a
e a diáspora e entre as espirituais e as comu-
extrapalestinenses, já pertencem a uma época muito
antiga. Paulo se dirige a Damasco como um shaliah da autoridade
central (At 9.lss). O fato de êle levar consigo "cartas" de seus
comissionadores corresponde ao costume de prover os sheluhi11i com
cartas comendàtfoias.
Um exemplo de tal escrito temos no Talmude de Jerusalém
(tratado Jlagiga. 76d,3s; cf. Talmude de Jerusalém, tratado Nedarim
66; contém o nome de Rabi Hiyya bar Abba ( circ. 280
d. C.) que é recomendado ao patriarca Yehuda II: "Eis que vos
enviamos (shiUahnit) um grande homem (adam gadol) como nosso
enviado (sheluhenu), igual a nós mesmos até que volte a nósº. É
que as cartas de recomendação continham outras
a pessoa e os encargos do shaliah. A existência de
tais cartas não deixa de ser .importante do pontci de vista dos falsos
apóstolos, que concorrência a (2Cor 11.13).
que êsse fenômeno era desconhecido do judaísmo, visto que eram
julgadas cartas de recomendação.
Parece além disto que os sheluliiim - rabinos orde~
- eram especial imposição das
mãos para exercer a função em nome comunidade que os en-
isto o seu ganha ao mesmo um caráter
religioso, como oficial 67, elemento

M Com o tempo surge uma contribuição regular da Diáspora, o assim chamado


"impõsto dos Patriarcas", que se somou ao antigo impôsto do templo e que
inicialmente consistia em doa;;ões espontâneas (cf. Vogeistein, MGWJ 438ss). A
coleta contudo fica a cargo dos sheluhim que são escpbas; cf. também Straek~Bil·
lerbeck III, 316ss.
11i; Cf. S. JQR S75ss; EJ m, 5; Vogelstein. MGWJ 437.
M S. Y..raus:s, EJ III, 3; Vogelstein 435, nota 2.
111 Chclrot'Oneo se encontra ao lado de apostel!o também em Filão, Migr11tio
A.brahae 22, mas em contexto totalmente diferente.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Enviar 131

fato de que os sheluhim não são


mas, via a dois BB.
Justino (Dial. ~'homens escolhidos aos quais se
impôsto as (cheirotmiesantes)" e ente.nde com isto
judeus 17) 69, A das m.ãos
(semikM) -··pela t,ambém o representante d&-
povo era designado i10 da expiação para a sua função evelitual
(Yoma 1,1), mas que principalmente se usava na
(Tose/ta, 1,1) - parece ter abandonada mais
por causa do acolhimento que essa teve entre os cristãos
(Strack-Billerbeck II, 653s). Sua.relação, em épocas mais antigas,
com a dos shelrahún mostra claramente o significado
'dêste.
opos1çao a tudo isto, porém, deve-se sublinh~r cuidadosa-
º fato de que os missionários judeus - muito numerosos
de Jesus '10 - nunca são chamados skelukim e que . em
c-0m êles os tê:nnos skalak e apostellein não desempenham
.,,,,,~ ~LU papel. Por conseguinte, o seu trabalho é feito sem a auto-
..

da comunidade no sentido mais estrito e, perante ela, tinha


privado, sem que por isto perdesse em extensão e impor-
tância 71.
Em ,fostino acima) o têrmo apostolos ainda não
como designação dos missionários judeus, embora seja óbvio que a
fórmula fôsse tanto mais qÚe se usa apostellein (ib
para designar seu envio autoritativo pela autoridade espiritual
Jerusalém 72. Daí se pode concluir que o têrmo apostolos não era
simples equivalente grego do shaliah e, sobretudo, que a equivalên-
teve seu ponto de nos judeus 73. Prova' disto é a
de apostolos no de "enviado'' e "apóstolo" entre

6!! Exemplos: a inscrição de Venosa, diio apostuli et duo .r?bbites; A. Schl.atter,


Kommer.tar zum !riattluleusci'an(/(i/,ium 32füi; os textos do NT, a sal;>er, Mt 11.2: dois
"enviados do Batista"; Me 6.7: missão (aposte!leín) dos discipitlos dois a dois;
Lc 10.1; missão dos setenta discípulos (apesteilen) de dois em dois,
09 Cf. A. von Harnack, Dogmengechichte, 65 nota 2; ai também os· exemplos
da Igreja antiga sôbre os aposto!oi judaicos.
70 Cf. Mt 23.15; sôbre as fontes judaicas, cf. Strack·Billerbeck, I, 926.
n Um exemplo excelente é a conversão da familia real de Adiabene
negociante judeu Eleázaro o que, segundo Strack·Billerbeck, era :fari~u. l, 921}
Flávio Josefo, Antiquitates, 20, l 7!'s).
12 Quanto ao uso de Justino, vide pág. 169.
73 1: esta a opinião de A. von Ha:mack, op.cit., 34!0, nota
uma interpretação errada de Flávio Jose!o, Antiq1titates 17, 300.
1/12 Karl H einrich Rengstorf

os judeus antes de aparecer o uso cristão, bem como o fato de que


os judeus, como os cristãos, aceitaram apostolos no latim como um
têrmo estrangeiro (Inscrição de Venosa) 74, o que absolutamente
não era necessário ·visto que tinham shaliah 75.
Com isto está negada a possibilidade de falar de "apóstolos"
judeus já no tempo de Jesus; em seu lugar temos unicamente o
conceito de "plenipotenciários". Onde, não obstante .• se fala de
"apóstolos" o uso cristão é aplicado mecânicamente ao judaísmo, sem
que aí nada haja que justifique o emprêgo do têrmo. 'f'ois, embora
seja certo que o judaísmo antigo conheceu diversas espécies de
sheluhim., também é certo que êle não associou esta designação com
a atividade missionária de seus membros. A :razão disto está em
que shalíah designa uma tarefa que se origina na vida diária, que
se esgota dentro da comunidade e não se estende para fora de seus
limites. Segundo tôda a sua natureza e origem a instituição é pro-
fana e não religiosa, e quando aparece com significado religioso
trata-se de um uso transposto. Na pré-história do apostolado cris-
tão, em sentido estrito, não se deve associá-la com a missão judaica;
por conseguinte, aplica-se a Paulo um conceito totalmente estranho
quando se afirma que já antes de sua conversão êle foi missionário,
e isto no sentido de ter sido chamado a anunciar a religião de seus
antepassados 76.
O fato de que no judaísmo, antes do ano 70, faltaram missio-
nários autorizados só se explica pela consciência de eleição dos ju-
deus, que se exteriorizava na subordinação da idéia de Deus à cons-
ciência religiosa - que é precisamente o traço da nação judaica
que Jesus combateu, sobretudo no Sermão do Monte. Nesta segura
posição os judeus não tinham interêsse em trabalhar na dissemina-
ção de sua fé; contentavam-se em que os outros desejassem também
possuí-la, mas não em oferecer-lhes por própria iniciativa. Quando
existe atividade missionária é em virtude da ação de círculos fari-
saicos, cujo comportamento, também neste caso, se fundava na idéia
da recompensa e não na do universalismo da salvação 77. Igualmente
o vovo e a comunidade como tais - seguindo o exemplo .de seus
lídêres religiosos e seus sacerdotes - não consideravam a atividade

74 Cf. pág. 126.


7:'i Teria sido possível traduzir por legatus.
''' Assim recentemente, A. Barnikol, Die vorchmtliche und fruehchrtstliche
Zeit PauLus (1929 18ss) •
77 Midrash ao Cântico dos Cânticos 1, a propósito de Ct 1.3: "quando alguém
traz uma criatura (isto é, um hcmem) para baixo das asas da Shekína (isto é,
faz dê1e um prosélito) isto lhe é atribuído (por Deus) como se êle tivesse criado,
moldado e formado" (uma nova criatura}.
Apóstolo, Fal.50 Apóstolo, Apostolado e Enviar 19.1

missionária como um encargo de Israel 78. Mesmo depois do ano


70 a coisa não se 79;
e. O que acabamos de afirmar é de modo especial ilustrado
pelo fato de que entre os rabinos as pessoas enearreg.adas e autorl·
por ·neus são freqüentemente chamadas skaliah .. Trata-se ele
"""'"'"'"": um impessoal, a o sacerdóciO considerado 110
'-'"'"'"'ir.T·o como tal, e o outro constituído de um pequeno número de
importantes, Moisés, Elias, Eliseu e Eie·
qu:iel so. ~
O sacerdote era considerado como comissionado por Deus e não
pela na oferenda sacrifício (Rab Huna tien
Yehoshua, d. C.; Talmude babilônico, Qiddushin 23b). Esta
idéia tem sua na conceituação geral do shaliak, segundo a qual
o autorizado é como aquêle que o autoriza. Se o sacerdote fôs1e O
shaUah da comunidade esta teria. o direito de oferecer sacriffciOI;
mas ela não possui direito, pois neste caso o sacerdote seria
supérfluo; portanto o sacerdote nãó pode ser shaliah dela, mas tio·
somente de Deus. Por é chamado "plenipotenciário do
Misericordioso., ( cf. babilônico, Qidduskin 23b; yoma.
19a-b). Isto não contradiz 16 ( cf. 4,5ss) porque não dllllinul
sua ação em favor do povo; contrário mostra como essa açlo
é possível.
Moisés, Elias, Eliseu e também são tidos como sheluhim
de Deus, através dêles coisas que são reser•
vadas para em outros casos 81: faz a água jorr9-r da
rocha (Talmude babilônico, Baba Meda ; Elias chama chuva
e ressuscita um morto; Eliseu "abre o seio materno" e também
ressuscita um morto e Ezequiel recebe a "chave dos túmulOI na
revivificação dos conforme Ez (Midra<ík PsaJmi 71
§ 5; cf. Talmude Taan 2a, Sanhedrin ll3a) a2.
O que sobreleva quatro homens sôbre todo o Israel é O
milagre, para o qual lhes deu poder, poder que :E;le sempre

1.~ Não nssim sob os Macabeus e seus sucessores (ct. A. Schlatter, a1roMohN
lr.raei, 3:'' ed., 1925, 132ss) que tinham moíívos especiais.
10 Cf. Strack-Bi!lerbeck I 926; aí a a"l.1sêncla de missões nos anos pc1ttr1ort1
ll Septuaglnta é explicada pela situação do judaísmo.
"º C:f. as passagens em Strack-BiUerbeck III, 5s.
>1t Comparar com isto a Oração da!I Dezoito onde Deus é priliolptl•
irwnte lcuvado como ressuscitador dos mortos e doador de orvalho e chuva• No.....
1.11mbl.>m que na Primeira Carta de Clemente .Rom.irno 17, l são nomeadOJ oomt•
mtemplos dos cristãos s6 cs três primeiros dêstes homens, ao lado dOlf ptofttll.
H2 Naturalmente também os anjos são sheluhim, como em Deu.tercmcnn.tum f'abbltl
ti, 1, n propósito. de Dt 34.5, :talando do "anjo da morte". Mais tais texto•. ft
llfl t1•t1•r1:m ao nosso assunto.
134 Reitirich Rengstorf

reservou para com exceção dêsses casos. Portanto também aqui


se conclui da causa para o efeito, sem a skaliah estejam &110•
ciados pensamentos profundos. Na realidade talvez até mesmo
haja a tendência de purificar os quatro da suspeita. de invadirem
os direitos de Deus · isto se consegue mostrando-se que são MUI
No ehamado Exodu,s rabba 5,14, a propó.Sto
se diz que e Aarão à pergunta de Faraó s&br•
são, responderam: "os enviados do Santo, que é bendito".
A vista a é sentido e exige que a inter•
pretemos como "plenipotenciários autorizados por Deus". Contudo,
do contexto se deduz que ela nada é que a forma passiva de
"Deus nos , que em vista da pergunta de Faraó não eatava
fora de grego : apestalmenoi apo theou, enviados por
Deus). algo semelhante ao '"anjo da morte'' (ef. :nota
82).
Na ausência designação dos missionários como shs'ftuh.+m,
''enviados da comunidade", temos uma aualogia no fato de que OI
profetas são tratados mesmo modo. Para os rabinos o profeta
nunca é um shaliah de embora com êste têrmo se pudllN
de forma tôda sua autorização por parte de Dtlll
e seu chamamento. O disto está em parte na tendência do1
escribas de empurrar a sempre n:1ais para a transcendlnala.
Mas não pode ser a explicação total, visto que precisamente no
contexto vocação profética shalah é o terminus tecknioua PI.ri
designar a autorização por Deus, e por isto a designação como
shaliah estava à mão. Precisamente a partir dêsse ponto nlo 11
pode constatar que para o judaísmo tardio o "envio" à
um homem por Deus não tem como resultado que êle se torne um
shaliah; ou em outras palavras: skaliak evidentemente nlo lfl
para os rabinos a para exprimir o sentido profundo da· ·
função profética. ·
Quando se tomam em conjunto os profetas e os misslonl.rt•
não resta outra explicação à recusa dos rabinos de empregar o taflDO
shaliah para designá-los que êstes falam de Deus e em zsome
de mas não o representam enquanto agem; ora a esstncla do
shaliak que êle representa um outro pela ação.
' ser 1hol~
Uma confirmação da tese de que o profeta não pode
de Deus prega mostra~se no fato de que o judai1mo tardio
colocou Deus e o profeta o Espírito Santo como in~rmed1'rlo 1
não se deve esquecer, porém, que êste é simplesmente personiftaavlo

H:\ Também E7:equic1 como shal!ah não é considerado profeta, mu P09UNlf .


do poder dcs milagres.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Env-iar 185

de Deus e serve para sublinhar sua transcendência. Ora, se se faz


dos profetas a sede do "Espírito Santo" 84, ê1es ·se tornam seils
instrumentos e perdem a iniciativa própria 85 que pertence à essêD·
eia do shaliah, ainda que essa instrumentalidade signifique a iden-
tificação da vontade própria com a do enviador. Não é preciso dizer
que os rabinos, com tal mecanização do profetismQ_ por interêssea
especulativos, deturparam grandemente sua natureza. Assim se lhes
tornou impossível uma verdadeira compreensão da missão profética,
como também não puderam compre·ender que a essência desta missão
consistia precisamente em que um homem é comisstonado para re-
presentar a vontade e a palavra de Deus. Aqui está a fronteira
racional da re,presentação judaica do shali"ah, e, igualmente, o
ponto em que, apesar de tôda afinidade formal, o apostolos neotes-
tamentário se opõe a êle e de longe o supera.

C. O USO DE APOSTOLOS NO NôVO TESTAMENTO

1. Estatística -- No conjunto, o têrmo aparece 79 vêzes com


tôda a certeza; além disto, ocasionalmente - sobretudo em Lc -
como lição secundária: Lc 9.1 86 ; At 5.34 111 • Em Mt, Me e Jo
ocorre uma vez em cada um; em Paulo 29 vêzes - inclusive 4 vêze1
em Ef, 1 vez em Cl, e exclusive, 5 vêzes nas pastorais; 34 vêzes
em Lc, das quais 28 vêzes nos At e 6 vêzes no Evangelho. Além
disto em Hb, l'.P'e e J d 1 vez, em 2Pe 2 vêzes, em Ap 3 vêzes. Paulo
e seu discípulo Lucas representam 4/5 de tôdas as ocorrências.
Portanto, no estudo do conteúdo do têrmo devem ser aduzidos sobre-
tudo êstes casos. Importante é, além disto, o uso do têrmo como
designação própria nas introduções das cartas (6 vêzes em Paulo,
3 vêzes nas pastorais, na 1Pe e na 2Pe). Neste caso, deve-se contar
com a hipótese de que as introduções não-paulinas dependem do US:O
epii:;tolar de Paulo, não só na fórmula paulina de "graça e paz", mas
também no acréscimo do nome de apóstolo ss.

~1 Texto principal: Tosefta, Sot<L 13, 2: "depois que morreram Ageu, Zacarlal
e Malaquias - os últimos profetas - desapareceu em Israel o .Espírito Santo".
s5 Cf. a fórmula preferida dos rabinos: "É isto que o Espírito Santo diBÂ
através de ... " (Str:ack-Billerbeck I, 74s).
1111 Aqui apostolos é certamente uma antiga glosa alexandrina (J. Weiss, Dcur
F.nang,elium eles Lukas, 9.ª ed., 1901, ad loeum) .

111 Von Soden admitiu apostolous; mas cf. H. H. 1Vendt, KommentaT %'Uf'
Apostelgesehiehte, 9.ª ed. 1913, 53 e F. Blass, Aeta Apostolorum (18!15) 88, ad loeum. _
811 Sôbre a questão das inscrições pauUnas e sua evolução, cf. O. Roller, Da'
1''ormular der paulinischen BTieje, BWANT 4, Folge 9/10 (1933).
136 Karl Heinrfoh Rengstorf

2. A .'Jignifieação do têrmo - De todo êsse material podemos


coligir os seguintes sentidos do têrmo, em parte apoiando-nos na
história do vocábulo e seus sentidos, em parte antecipando os resul-
tados de pesquisas ulteriores, coisas imprescindíveis mesmo num es~
tudo puramente lexicográffoo 89.
a. De'sapareceu totalmente o uso de apostalos comum na litera-
tura extrabíbl;ica, até Flávio Josefo inclusive; nunca no Nôvo Tes-
tamento apostolos designa o ato de enviar ou, em sentido t:ranslato,
o objetivo do envio, mas sempre a designação de um homem que é
enviado, de um mensageiro, de um enviado plenipotenciário. Por
conseguinte, o grego fornece somente a forma do conceito neotes-
tamentário; já o conteúdo é determinado pelo shaliah do judaísmo
tardio.
Isto se pode afirmar tão absolutamente porque em todo o NT
o têrmo só é usado com respeito a varões, embora segundo a natu-
reza das coisas também as mulheres pudessem ter o nome de "após-
tolos". Mas tal coisa seria contra-senso, visto que shaliah é um têr-
mo jurídico e as mulheres no judaísmo, ào ponto de vista jurídico,
só têm direitos restritos e sobretudo não podiam funcionar como
testemunhas (cf. Sifre Deuteronomium 190, a propósito de Dt 19.17)
e eram pospostas aos escravos os quais, como propriedade de seu
senhor, podiam representar legalmente a vontade dêste (p. ex., na
imolação do cordeiro pascal). A êste respeito é significativo o fa-
to de que ao lado de mathetes, discípulo, temos para a mulher cristã
o têrmo mathetria, discípula, embora o judaísmo não tenha conhe-
cido discípulos femininos. Neste caso, porém, os pressupostos eram
totalmente diferentes.
b. Total identidade entre apostolas e shaliah encontramos em
Jo 13.16: "não é o servo maior que o seu senhor nem o enviado
maior do que aquêle que o enviou". Aqui apostolas nada mais é
que a tradução do têrmo judeu, tomado no sentido jurídico mais
puro de "encarregado de representar a pessoa e as coisas de outrem
de modo juridicamente válido".
il:ste sentido é garantido pela justaposição da doulos/kyrios e
apostolos/pempsas; o servo está inteiramente sob a jurisdição de seu
senhor e dêle recebe tudo o que é. Ora, é precisamente isto que ca-
racteriza também o shaliah ( cf. Genesis rabba 78, a propósito de
Gn 32.36: "Rabi Shimon (circ. 150 d.C.) disse: porque está escrito

89 Por si, a resenha dos diferentes significados do têrmo só devia se:r dada
no fim do tn•tado, como resultado das pesquisas que se vão seguir. Mas ilrto
tornaria necessária uma exposição muito prolixa. Por isso as exposições seguintes
devem servir como demonstração da gênese do uso neotestamentário.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Enviar 137

''deixa-me ir" (Gn 32.37), deve-se deduzir que o que envia é maior
que o que é enviado" (no TH está "envia-me") 90.
e. Assim corno shaliah, também apostolos designa o enviado
de uma comunidade.
Tal é o sentido de "apostoloi daR igrejas", de 2Coº ~~~3_LCQ_fil
que Paulo se :refere aos homens que segundo o seu desejo devem
acompanhar a Jerusalém as ofertas das igrejas gregas coligidas por
sua própria iniciativa para os "santos" 91 • No mesmo sentido apare-
ce Epafróditó como "ap'ústolos" dos filipenses a Paulo (Fp 2.25).
Aqui, pela natureza da coisa -- trata-se de provas de amor-fraterno
- , o apostolas não é só uma figura jurídica, mas também religiosa.
d. Finalmente, de modo geral chamam-se apostolai os portado-
res da mensagem neotestamentária. Levam êsse nome antes de
tudo os do círculo dos Doze, os assim chamados "primeiros apóstolos"
(incluindo a Matias, o substituto de Juda~ Iscariotes, At 1.26; .cf.
"os Doze" de 1Co 15.5). Aí se pressupõe o envio por parte de Jesus.
l!:ste uso predomina nos escritos de Lucas, tanto no Evangelho
como em Atos dos Apóstolos. Só os Doze aparecem como "apósto-
los" constituindo um colégio fechado em si, de tal modo que pode
ser justaposto a um outro colégio, o dos anciãos· (At 15.2,4,6,22s;
16.4). Entre êles sobressai a pessoa de Pedro (2.37; 5.29). Como
sede dêsse círculo Jerusalém é expressamente nomeada em At 8.1.
Também J\It 10.2 e Me 6.30 apostolai se aplica aos doze primeiros
discípulos de Jesus. Em todos êsses casos a fórmula se torna abso-
luta e é usada sem qualquer outro qualificativo e portanto traz seu
sentido em si mesma. Aparece, de resto, sempre no plural.
São chamados, além disto, apostolai os missionários da Igreja
primitiva, ou pelo menos os seus mais importantes representantes,
sendo que nunca pertenceram nem mesmo ao círculo mais amplo dos
discípulos de Cristo.
Até mesmo em Atos dos Apóstolos encontra-se êsse uso, pelo
meros em 14A,14, onde Paulo e Barnabé são chamados apostoloi sem
que o autor considere essa expressão como pouco usual s2. Por con-
seguinte, os Doze são certamente para Lucas apostoloi, mas o cír-
culo dos apostolai não se r~stringe a êles. Antes de mais ninguém

110 Strad:-Billerbeck II 558. A expressão shaliah não aparece aqui, mas


msht1h (particípio hitpael); com isto, porém, não diminui o seu significado.

:n Cf. Holl, Geschichtliche Aufsaetze II, 60.


02 A exnressão somente chocou leitores posteriores, como o mostra a tradição
do t<;xto de. 4, 14. C0ntudo não há razão para riscar a palavra apostcioi (como
o fê?. recentemente Wagenmann 76, nota l; cf. Mundle 38, nota 1) como veremos
11~1s t_~x:po3ições seguintes
138 Karl Heinrick Rengstorf

pemnce a êles, e entre êles se enumera Paulo, pois sempre de nôvo


êle se chama apostolos, sobretudo nas introd~ções das cartaH. Se-
gundo Paulo também Tiago, o "irmão do Senhor", pertenceu a êles
(Gl 1.19) 93, embora, como Paulo, só tenha entrado na comunidade
cristã depois da morte de Jesus. Em Rm 16.7 são mencionadof! co-
mo apo.stoloi Júnias e Andronico, dois colaboradores de ' au10, de
resto desconhecidos. Também em lCo 15.7 menciona-se um cir·
culo maior (com inclusão do irmão do Senhor, Tiago).
Nesses textos aparecem, lado a. lado, o fato do envio pela CO•
munidade (em At 13.2ss, a comunidade de Antioquia envia a Bar-
nabé e Paulo), e a designação mais explícita de apostoloa como
apostolas Jesou Christou, nas introduções paulinas. Em ambos êsaea
elementos temos Unhas de contacto com o skaliah judaico. Por outro
lado, é precisamente neste ponto que aparece a diferença entre ê1tt
e aquêle grupo. Se a diferença não está na designação, nem na ri•
f erência a um círculo mais amplo ou mais estreito, então a razio
deve estar no "apostolado" em si mesmo, que não pode ter outro
fundamento senão o encontro pessoal com o Ressuscitado e o rece•
bimento da função diretamente dêle. -
Deve-se observar que ao lado de Paulo são chamados apoatolo4
Barnabé, que pertencia à comunidàde primitiva (cf. lCo 9.h) lt J
o irmão de Jesus, Tiago; Júnías e Andronico, dois compatriotu1 IOUI
que se tinham tornado cristãos antes de Paulo {Rm lB.7); mas nun•
ca é assim chamado Apolo, embora, segundo lCo 3.5ss, era de 11•
que lhe fôsse atribuído o nome de apóstolo. Também Tim6too
é designado como apostolas, conquanto tivesse participado com
ardor e sucesso no trabalho missionário (em Tessalônjca), maa co-
mo adelphos, irmão (2Co 1.1; Cl 1.1; Fl 1), "servo de Cristo Jeau1"
(Fp 1.1) e até "colaborador de Deus" (1Ts 3.2) i"1 ; ora, neubWI
dêsses têrmos é substituto para o nome "apóstolo". Foi, de reato, a
identidade de função, imediatamente recebida do Ressuscitado, Qlt
impediu que, apesar dos fortes contrastes, se chegasse a .uma rupi119

B3 No caso em que se relaciona o ei me de Gl 1.19 a apostolou e nllo H • .


iniciar no vers. 19b uma sentença inteiramente nova. Sôbre Júnías e Andre,,. ·
cf. Th. Zanhn, Roemertrief, a propósito de 16.7. Quanto a 1 Co 15.7, cf. A. Schlol. .
Er!aeuterungen zum NT, ad !ocum; acentua-se aí principalmente o encar10 dlllt .
pelo Ressuscitado.
11.i Assim também Lietzmann, Kommentar zu den KorinterbTiefen, ad IOO'lfflt,
e principalmente J. Wellhausen, NGG 1907 5, nota 1; de outra opinião é BachfnlMt
Kommenta:r zu d,en Korintherbrlefen, ad locum, como também Hall, Geachlchl .....
Atlfsaetze II, 51, nota 1.
1r:> Em favor desta lição de D, 33 e Ambrosiastro, militam fortes ariu~
internos (cf. 1 Co 3.9); como glosa posterior ela seria por demais ousada.
Apóstolo, Fal.so Apóstolo, Apostol<!flo e Enviar 159

ra entre os ap6stolos de Jen'.:salém, representados por Tiago, e Paulo


(At 15.lss; cf. Gl 2.9). A primeira e.arta de Clemente Romano
(42.lss) expressamente fundamenta o apostolado no envio pelo Res-
suscitado. Para o próprio Paulo a consciência apostólica está ligàda
à lembrança de seu encontro com o Cristo vivo (lCo 9.1 e sobretudo
15.8ss) 96,
Segundo êste último os apostolai de 1Co 12.28s não são uma fun-
ção ou um encargo (por "mais elevado" que seja) emanado da co-
munidade 97, mas de Jesus, em têrmos de uma função que constrói
a Igreja. Ê precisamente por causa disto que os_apóstolm:Lestão ao-
lado dos profetas do AT (Ef 2.20; 3.5), cuja função foi preparar
o caminho para Aquêle que haveria de vir, e isto em razão de seu
. envio por Deus. Neste ponto se alcança o pináculo da consciência
apostólica que, por sua vez, só era possível no terreno da escatolo-
gia do cristianismo primitivo, como o mostra sobretudo Paulo (vide
infra, D,3).
Não :resta dúvida que em lCo 12.28 Paulo designa com a ex-
pressão "na Igreja", a Igreja universal, e não a comunidade corín-
tia 98; isto é claro no contexto do versículo. Com efeito, imediata-
mente antes fala êle do corpo de Crido. Ora, isto êle nunca faz
tendo em vista uma comunidade particular, mas sempre o organis-
mo total cuja cabeça é Cristo (Ef 1.22 cf. 2.lls; Cl 1.18 etc.; cf.
Rm 12.5). De resto, o significado local de ekklewt,(J, faria de Paulo
o pregador de uma ética interina, o que não é o seu caso, assim
como nunca fala de Cristo do ponto de vista do homem ou da co-
munidade, antes descreve a êstes do ponto de vista de Cristo (cf.
também Ef 4.11) .
e. Finalmente, em Hb 3.1, .Jesus mesmo é chamado "o após-
tolo e o sumo-sacerdote de nossa confissão". Aí apostoios só pode
significar que em Jesus se realizou a revelação final de Deus, pelo
próprio Deus (1.2).
Tôda a expressão forma uma unidade, como o mostra a ausên~
eia do artigo diante de archiereus 99, e resume do ponto de vista da
decisão a tomar pelos leitores o que até aí se disse sôbre Jesus: êle
é o Fiiho no qual Deus falou por último (1.lss), o supremo sacer-
dote que expiou de uma vez para sempre os pecados de seu povo

M 1 Co 15.!lss compara-se com S.1, a passagem mais explicita; é o que A. von


Ha.rnack, 335, nota 5, não tomou em consideração.
DT Assim Preuschen~Bauer 156.
98 Como geralmente se pensa.
'"E. Riggenback, Kommentar zum Hebraeerbrief (1909u) 67, ad locum.

------------~---~ ~---
140 Karl Heinrich Rengstorf

(2.5ss). Neste caso talvez se deva entender apostolas como supe-


rando infinitamente o prophetes (têrmo que em Hb não é aplicado
a Jesus) mas, em vista do têrmo absoluto "filho" (1.2) deve ser
explicado à luz do shaliah do judaísmo tardio: no Filho fala e age
0 próprio Deus (o nome "Pai" é evitado em Hb). Já mostramos
que o conceito de shaliah foi aplicado aos sacerdotes. Aqui temos
idéias semelhantes (3.õss) que nos autorizam a recorrer a êsse
têrmo. Se nossas reflexões são corretas, a expressão "apóstolo e
sumo-sacerdote" conteria em seus dois membros uma única idéia,
encarada de modo diferente: a idéia da autoridade absoluta ("con-
fissão") baseada na autorização absduta de falar ("apóstolo")
e agir ("sumo-sacerdote"). Ê verdade que o uso do têrmo também
neste caso seria único, mas pelo menos seria deduzido orgânica-
mente do restante do NT.
Recusando-se esta solução, resta, como única possibilidade, ver
no "apóstolo" Jesus o "enviado de Deus, oposto ao maior portador
da Revelação no AT, Moisés", e no "sumo-sacerdote" o "oposto ao
principal representante do sacerdócio legal, Aarão". Teríamos
então um uso que nunca mais aparece em todo o NT e em tôda a
literatura eclesiástica antiga até Justino. Aí Jesus é algumas vêzes,
ae lado de aggelos e didaskalos, chamado avostolos (A.pologia I,12,9
et al.) 100, pela adoção de fórmulas da mitologia gnóstica, segundo a
qual o redentor definitivo é simplesmente o "enviado". Neste caso
é de estranhar que o têrmo falte precisamente no Evangelho de João
onde encontramos ecos, ou o que parece serem ecos 101, de tais re-
presentações, enquanto que em Hb, onde ocorre o têrmo, não se
encontra qualquer indício dessa especulação. Antes de mais nada, po-
rém, com esta explicação se romperia a unidade da descrição de
Jesus, visto que desta forma se isola o sentido de "apóstolo" do de
"sumo-sacerdote", enquanto o autor estava preocupado em mostrar
que em Jesus se encontrava a revelação final, cuja nota caracterís-
tica não é apenas a palavra ou a função sacerdotal, mas a combina-
ção de ambas.

D. A ORIGEM E A ESS~NCIA DO APOSTOLADO NO NT

1. Jesus e o primeiro círculo de discípulos - a. A origem


do apostolado deve ser procurada no círculo dos discípulos de Jesus,
abstraindo do fato de que ~ste foi a céiula-máter da comunidade fu-

rno W etter 28.


101 W. Baue:r, Johan-esev. 5, sôb:re 3.17; R. Bultmann, ZNW 24 (1925) 105ss.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Envid!r 141

tura considerado como tal pelo próprio Jesus 102. Neste ponto deve-
se observar em primeiro lugar que, visto do lado de fora~ êsse cír-
culo em nada se dístinguia dos círculos qua os mestres de então jun-
tavam ao seu redor. Isto aparece até na designação~ visto que os
membros do círculo mais estreito ao redor de Jesus eram designados
como mathetai, da mesma forma como os discínulos dos rabinos. Dis-
tinto contudo é o n, ;do como surgiu êste cír~ulo -{cf. kaleo, chamo;
akoloutheo, sigo) e como evoluiu. Não foi a capacidade espiritual
especfal, nem a vontade dos membros, mas tão-somente a iniciativa
de Jesus, que o criou e formou. 'Para o modo. de agir de Jesus é sig-
nificativo que êle não entregou imediatamente a iniciativa a seus
seguidores, mas que êstes primeiro se tornaram mathetai, isto é,
discípulos que deviam ouvir, embora a própria escolha fôsse na rea-
lidade um apêlo para a ação 103, Se apesar disto os discípulos se
abstiveram de tôda iniciativa, isto se deve ao fato de que "êles
aceitaram com tôda a sinceridade o seu apêlo para arrependimento e
o aplicaram a si mesmos" 104 e assim aprenderam o que é obediên-
cia; aprenderam-no porque Jesus lhes mostrou Deus ao mesmo
tempo como o Santo e o Pai 105. Quando não se compreende isto
cerram-se as portas que levam ao conhecimento da natureza mais
intima do apostolado do NT. De fato, aí se encontram as derra-
deiras razões por que o apostolado não se cristalizou num ofício, mes-
mo depois da morte de Jesus quando se formaram comunidades fir-
memente organizadas 106. Tal não era possível, porque o aposto-
lado se originara em círculos de crentes que sabiam que tinham sido
~hamados por Deus e para os quais o amor se tornara a única regra
nas relações com o próximo 101. · Daí resulta que o fato de pertencer
aos mathetai de Jesus, no sentido pleno da palavra, era o pressu-
posto para qualquer participação prática em sua obra. ·'
Com isto já se disse o essencial sôbre a relação entre "os dis-
cípulos'', "os apóstolos" e "os Doze". Os "discípulos" são a comu-

102 Cf. A. Schlatter, Die Geschichte des Christus, 2." ed. (1923) 406 s.
1os O comportamento dos discípulos o demonstra, sobretudo .a espada na mão
de Pedro (Jo 18.10 e paralelos).
104 A. Schlatter, ioc. cit. 312 e 313, nota 1.
105 Compare-se a êste respeito o Sermão do Monte como um todo e as grandes
parábolas, sobretudo em Lucas.
106 A narrativa sôbre os fatos de Jerusalém mostra em At 15 uma comunidade
"institucionalizada"; cf. também At 6.1.
101 Cf. Mt 22.4-0.
142 Karl Heinrich Rengstm·f

nidade maior, compreendida por essa designação mais geral 163 , sem
a qual nem os apóstolos, nem os Doze são imagináveis. Portanto -
pressuposto o correto uso do têrmo - um apóstolo é também sem-
pre um discípulo, mas não qualquer discípulo é um apóstolo. Em
conseqüência, a expressão "os doze apóstolos", não deve causar admi-
ração (Mt 10.2). Ela não nos obriga a identificar "os doze .. e "os
apóstolos"; isto é excluído pela combinação dos dois tê:rmos, de mo-
do que em M:t 10.2 não se encontra nenhum pleonasmo.
b. A atividade dos discípulos começa somente no momento em
que Jesus se decide a fazer dêles seus colaboradores 109. Os Sinó-
ticos não apresentam :razões para tal resolução. Estritamente fa-
lando, nem mesmo se menciona uma decisão especial de Jesus, mas
só o fato de que êle chamou os "Doze" e os "enviou". Somente Mar-
cos descreve êsse ato como apos"tellein, enviar, enquanto que Ma-
teus e Lucas - como também urna segunda expressão de Marcos -
apresentam como sinal característico dêsse ato a exousia, poder, con-
ferida aos discípulos e possuída pessoalmente por Jesus. Fica assim
claro que se trata de envio autoritativo, no sentido de estar revestido
de autorização plena. Os homens que assim foram enviados, tal co-
mo transparece de seu envio, devem ser considerados sheluhim no
sentido jurídico do têrmo. Só assim se entende que os enviados mais
tarde tenham voltado e "informado" (apaggello, Me 6.30; diegeomai,
Lc 9.10) sôbre o que fizeram.
A questão se o envio dos Doze por Jesus deve ser considerado
um fato histórico, ou se nêle devemos ver somente uma invenção
posterior, proveniente do interêsse de demonstrar que o colégio dos
Doze da comunidade primitiva foi autorizado pelo próprio Jesus
durante sua vida 110, não pode aqui ser investigada pormenorizada-
mente. Contudo, deve-se dizer que, formulada assim, a questão está
falsamente colocada, pois pressupõe a possibilidade, se não a ueces~
sidade, de identificar "os Doze" e "os apóstolos", e para tanto não
existem razões, exceto as fórmulas usuais, para as quais há outras
explicações. Somente queremos dizer que as questões históricas se
tornam mais obscuras se negarmos o envio dos Doze por Jesus, visto
que não se apresentam outros motivos para o envio senão a vontade
de Jesus.

108 R. Bultmann, Die Geschic:htie der synoptischen Tradítícrn., 2.a ed., 1930, 390s,
aponta especialmente para o uso de Lucas.
109 Mt 10.1; Me t>.7; Lc 9.1.
Assim, depois de :muitos predecessores, recentemente Schuetz 72ss; e;:n 71s
110
há uma breve história do problema.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Enviar 143

Mas a instituição do apostolado por Jesus não depende só da


controvertida questão da genuinidade da narrativa do envio dos Do-
ze ; ternos ainda dois outros testemunhos da existência de um apõs-
tolado segundo o modêlo de instituição judaica do shaJiah. Com isto
a narrativa do envio não se torna supérflua, mas as perspectivas
se ampliam pois o nf'vo material nos ajuda a completar u:m_j11ízo.
Um dêles se encontra em Me 9.38ss e Lc
9.49s. Aqui João se
queixa a Jesus de um exorcista que em nome de Jesus expulsa
demônios, sem pertencer aos seus discípulos. e que não se deixa de-
mover por êstes. J cão não podia falar como falou caso se tratasse
apenas de uma questão de prestígio, ou de competência reservada a
Jesus. De suas palavras transparece a revolta pelo fato de que um
estranho se arroga uma coisa que não lhe pertence. A fórmula "em
teu nome" (Me), respectivamente "pelo teu nome" 111, deixa trans-
parecer que o tal estranho usa em seus prodígios, e sem autorização,
um poder que está sob as ordens de Jesus. Autorizados para tanto
são somente os discípulos de Jesus 112• Tal é, em todo o caso, a opi-
nião de João e ela só é possível se para êle a autorização de fazer
milagres não é uma ficção; mas uma realidade no círculo dos dis-
cípulos e que, até então, fôra limitada a êles peio próprio Jesus.
O segundo testemunho são as palavras de Jesus sôbre a signi-
ficação para os homens do tratamento dispensado aos discípulos
(Mt 10.40ss; Me 9.41; Lc 10.16). Elas pressupõem a validade do
princípio de que o shaliah de um homem é como êle- mesmo, e que
a ação dispensada ao shaliah atinge também a êle. Ora, tais pa-
lavras só são inteligíveis quando se pressupõe a plena autorização
conferida aos que o ouvem. É indiferente que neste contexto não
se fale de milagres ou de qualquer outro ato que tenha sido autori-
zado por Jesus, como era o caso de Me 9.38ss e paralelos. Em Lucas
alude-se à pregação da palavra, em Marcos sômente aos seguidores de
Jesus, isto é, ao discipulado (cf. Mt 10.42). Em nenhum dos três
passos se fala de apostolas, como também não em Me 9.38ss e pa-
ralelos. Nem mesmo se fala de a,postellein a :respeito dos discípulos,
mas somente a respeito de Jesus em sua relação com Deus. Apesar
disto, tudo indica que se trata de situações semelhantes às que são
pressupostas pelas considerações jurídicas dos rabinos a respeito
do shaliah.

111 Quanto ao uso cf. os paralelos tirados de Flávio Josefo em A. Schlatter,


Lukas 109.
112 A maneira de :falar dos dois evangelistas nos leva a Ull"..a formulação
universal; o exorcista estranho não é cotJ<!orrente de discípulos determinados, como
seja dos Doze, mas, dos discípulos como tais; cf. em Lucas: "porque não segue
conosco".
144 Ka-rl H eínrich Rengstorf

Ambas essas nos


dos discípulos, uma autorização
é pressuposta e não explicada
se que na primeira
as dos seus discípulos.
do apostolado estejam. evidentemente
pretensão jurídica se
recebe o poder de e. agir 11ome de
não lhe importa um direito, mas pelo
quem recebe o poder.
ex.en1pJlos aduzidos na ""'('""''rl"' passagem mostram que o en~
re-pries(mt;ar Jesus e sua causa significa mas
nas palavras de não só se encontra o
apostolado como mas também sua relação com a idéia de ser-
viço e de humildade, bem como a purificação tôda pretensão a
um direito, essencial para a compreensão do apostolado em
Com isto Jesus excluiu qualquer tentativa fazer da auto-
para falar e agir, concedida por êle, um cargo oficial que
se processa nas formas do direito. A rigor, a êste propó-
totalmente o "oficio" e em vez empregar "en-
• no sentido de plena !imitada no e no es-
paço e condicionada pelo pela pessoa, tal como apare-
ce na judaica do shaliah.
Que não se trata de um a
nlena nãO é· limitada aos e que essa não
~stava nem mesmo no ínterêsse dos chamados "doze apóstolos
primitivos"; contrário a narrativa o envio dos 70
cípulos") (Lc não teria sido na tradição sõbre
Êste episódio 114 evidente que o encargo do kerygma sôbre o
reino futuro se primeiro ao círculo estreito ao redor
isto é, aos sem que por isto lhes tenha con-
uroa preeminência pessoal particular.
da. não-existência um "ofício" é de que
cessa quando retornam a Jesus. Em Le o círculo
não está em ação, e precisamente porque junto de

113 Seria um desconhecimento completo da pessoa de .Tesus, e de suas relações


com os dise1pulos durante sua vida ativa, contentar-se em dizer que "'Jerus reu~
nlu ao seu redor discípulos missionários como pregadores do Reino de Deus e
como operadores de milagres", sem se importar com a idéia da autoridade pessoal
de Jesus e sem fazer desta autoridade a única razão dos discípulos como discí-
pulos. Assim na melhor das hipóteses, uma convergência de interêsseg
terrenos e nunca uma comunidade religiosa. Cf. sôbre ii>w Wagenmann 5s, que
aponta para Judas; como membro dos Doze.
1u Cf. A. Schlatter, Lukas 274ss.
Apóstolo, Fal,._c;o ApóstOlo, Apostolado e Enviar 145

Jesus. Nunca lemos a respeito de uma atividade própria de dis-


cípulos perto de Jesus. Sempre se pressupõe o "envio" por êleH5,
Quando os discípulos estão com êle são simples ouvintes, como seus -
servos na, tal como o eram também os discípulos dos rabinos. Esta
observação é de capital importância para a compree!l$Êiô_do apóstolo
no cristianismo primitiv.o,, z inseparfil.7t: do conceito_ de-shabiah. -,A
respeito disso deve-se ver ainda o que segue 117.
Fica assim evidente que o _apostolado comer falnão tem caráter
religioso, mas que em primeira linha é um conceito formal. O -ca-
ráter religioso é dado aos fJ;_pOBtoloi exclusivamente~ por aquêle que
lhes dá o encargo mas, mesmo assim, sempre -de tal :forma que o
encargo permanece o essencial e o apóstolo simplesmente seu por-
tador, inteiramente dentro do princípio rabínico: "o enviado de um
homem é como êle".
e. Questão mais difícil de responder, que a da existência de
uma autorização por parte de Jesus, parece ser a da exisi;_~p.cia do
têrmo "apóstolo" já no circulo dos discípulos de Jesus. A ~palavra
apostolos aparece algumas vêzes nos Evangelhos como designação
de homens que foram enviados por Jesus a pregar. . Em Mt 10.2
fala-se dos "doze apóstolos" os quais imediatamente antes são cha-
mados "os doze discípulos" (Mt 10.1). Entre essas duas designa~
ções dos mesmos homens 118 está o fato do envio, respectivamente,
à colação do "poder". Temos aí o motivo do uso de apostolos em
10.2: os discípulos se tornaram pela vontade de Jesus apóstolos.
Semelhante é o caso de Me 6.30; aí se narra a volta dos apostoloí
para junto de Jesus, os quais tinham sido ma-µdados -pel<;i uso das
fórmulas "enviar" e "dar poder'"', em 6.7. Em Mt, a partir dêste
passo 1111, e em Me, logo depois da volta, os discípulos são chamados
como antes mathetai, e isto até. o.,fim 1 20: Exclui~se, pois, a conclusão
de que os dois evangelistas tenham visto em "apostolas" a designa-

115 Cf. Lc 10.17.


irn Cf. Mt 19.13 e paralelos; 21.lss e-parilelos; 26.17ss e paralelos; bem.como-
.To 12,20s. O lavapés (Jo 13.lss) só é- inteiramente compreendido q,uando se tem
l.>to em vista. - '
111 Sôbre o envio dos discípulos dois a dois - que também tem modelos -iÚ·
clalcos - ct. pág. 131.
l18 Sôbre a relação entre ambos, éf. pág. 141.
119 Mateus não relata a volta dos enviados.
120 A interpretação dada por Wellhausen 1-40 só pode ser caracterizada como
r:or!catura.
146 Karl Heinrich Rengstorf

ção de um ofício descrito como de caracter fndelebilis 1 21 • Mas com


isto ainda não está afirmado que se deva negar a Jesus o uso do
têrmo apostolos ou do conceito por êle descrito 122 e que nêle se deva
ver a introdução nos evangelhos de uma situação e de um título pos-
t.eriores.
Nossa conclusão parece provir necessàriamente do uso do têr-
mo em Lucas. No Evangelho a palavra aparece 6 vêzes, e destas
em 24.10 como uma fórmula já consagrada, hoi apostoloi, para de-
signar o círculo mais estreito dos discípulos; assim também em
22.14 com referência aos presentes à última ceia, os quais são idên-
ticos com os daquele círculo 123. Em ambos os casos não se faz re-
ferência a um envio. Ora, isto importa na existência de um URO já
consagrado do térmo, sobretudo porque falta a palavra "doze" que
o limita 124. Nas passagens restantes os que são designados como
apostolai são realmente pessoas enviadas. Em 11.49 o têrmo apa-
rece numa citação ao lado de prophetai e portanto não se refere aos
discípulos de Jesus ou aos Doze. Em 9.10 se fala da volta dos apos-
tolai, como em Me 6.30. Em 17.5 narra-se um fato que não se deve
separar do que está narrado em Mt 17.14ss e Me 9.14ss, e onde se
deve pressupor - sem que esteja expressamente afirmado - a au-
torização dos discípulos por parte de Jesus para curarem 125, o que
entretanto não se verificou por causa de sua pequena fé 126. Final-
mente, em Lc 6.12s, temos a escolha e a designação dos Doze como
apostolai, com vistas ao seu envio (9.1, aqui chamados simplesmente
"os doze") 121, do qual voltam, em 9.10, como hoi apostolai.

221 Dêste ponto de vista as objeções críticas contra êsse têrmo são inteira-
mente justificadas.
12::? C:f. pág. 147.
123 A expressão hoi dodeka: apostolai testemunhada por A, C e o Textus Recep-
t11s é. cerúimente, secundária.

1~4 Cf. pág. 142.


1 ~" As~lm também A. Schlatter, Lukas, 384s; cf. H. J, Holtzmann, Díe Syni;yptiker,
3a. ed., 1901, 391 ad locum. A tentativa de entrosar o têrmo a qualquer custo no
contexto de Lucas (Th. Zahn, Lukas, a.d. loc.) tem contra si o fato de que Lucas
freqüentemente faz introduções próprias para as palavras de Jesus CR. Bultmann,
op. cit., 384ss.).
1~11 O fato se dá durante uma ausência de Jesus (Mt 17.lss; A. Schlatter,
Lukas, 385) que é possivelmente a razão da o!igopistia pois vem imediatamente
nntcs das primeiras predições da paixão (Mt 16 21ss).
in Sf'.gundo 6.l2s., é esta a única maneira de designá-los de modo geral pois
níio distinguidos do número dos mathetai, mas ainda não podem ser chamados
llJ"'':to!oi. Portanto, o uso é inteiramente semelhante aode Mt 10.ls.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado ~ Enviar 147

Por const:guinte, encontramos em Lucas um uso em que se con-


serva a relação entre apostolas e apostellein. Ora, tal uso só é in-
teligível numa situação em que se verifica o apostellestliai~ ser en-
viado, e não o apestalthai ou apostalenai, ter sido enviado. É o
que mostra a cristalização posterior da palavra apostolas. Conside-
rando isto, será difícil duvidar-__qu: a fÓ-l'mula apostolas ascenda até
o próprio Jesus, evidentemente não em sua forma grega, mas ara-
maica shelihâ. Trata-se de uma conclusão importante porque ao
shelihâ falta qualquer caráter de ofício, atribuído ao têrmo a;pos-
tolos no uso posterior por causa da posição dos Doze na comuni-
dade prímitíva. Lucas diz expressamente: "e tendo escolhido doze
dentre .êles, aos quais também chamou apóstolos". A proposição re-
lativa é geralmente explicada como um anacronismo, introduzido
sob a influência do judaísmo, quando não é simplesmente posta de
lado como uma interpolação 128, Nem uma nem outra coisa é ne-
cessária quando no apostolos não se vê outra realidade senão uma
fórmula objetiva para indicar um representante plenipotenciário,
designado para tarefas bem determinadas.
Depois das considerações feitas, essa conclusão é não só possível
mas necessária 1 pois do contrário temos uma designação dificilmen-
te aceitável do discípulo em sua relação com Jesus, que leva - como
levou - os exegetas a encontrar sérias contradições nas narrativas.
Todavia, mesmo abstraindo disso, essa interpretação é apoiada pe-
la própria tradição evangélica.
Pela comparação de Lc 6.12s com Me 3.13ss, resulta que as pa-
lavras "aos quais também chamou apóstolos" de Lucas correspondem
em Marcos a "a fim de os enviar a pregar e ter poder"; da mesma
forma as palavras de Lucas "tendo escolhido dentre êles" corres-
pondem em Marcos a "designou doze a fim de estarem com êle".
Nos dois evangelistas a seqüência da narrativa mostra que a de-
signação para apostoloi só veio mais tarde, em Me sõmente em 6.7.
e em Lc somente em 9.1. Assim a escolha dos Doze para o círculo
mais íntimo não coincide com sua designação como apostolai, e
neste ponto Me e Lc se harmonizam inteiramente com Mt (10.1).
Em todo o caso, a escolha de Jesus se processa com vistas à parti-
cipação futura dos eleitos em sua obra. Marcos indica-o expressa-
mente numa sentença final que aponta para o futuro. Neste caso a
proposição relativa de Lucas não pode significar outra coisa, a me-
nos que se queira arrancar a palavra apostolos - que ademais vem
aqui sem artigo - inteiramente da situação dos discípulos tal co-
mo ela resulta da comparação entre Lc 6.13 e 9.lss. É possível que
as fontes que Lucas usou dessem a entender que Jesus, jâ na es-

12s Cf., por ex., Klostermann, Lukas, ad ioc.


148 Ka'rl Heinrich Rengstorf

colha dos Doze, lhes comunicara seus planos a seu respeito e que é
êste o significado "chamou-os apóstolos":· porém de uma
simples conjetura.
De resto, a proposição relativa de Lucas na tradição ma~
Me 3.14, um completo, uma vez que, depois
, é· ela documentada uma série de
n:ianuscritos
W, Codex
muitos e Tatiano) "'!.J"'''"..,.
canônica pela textual
contribuído para sua rejeição as
apostolai. a entendermos
vez se possa variante maior
aconteceu.
Deve, pois, ficar certo que não somente o .... .,v..,•vv•uuv,
seu conteúdo, ascende Jesus, mas que
por êle usado, embora não na sua forma mas como uma
aplicação da instituição do shaliak às relações seus discípulos para
com êle, ao tempo que os na sua obra atribuindo-lhes tôda a
sua autoridade.
d. Dos Evangelhos se pode deduzir mais um elemento que se
tornaria grande importância posteriormente, a saber, a associa-
ção do shalía.k/a,postolos com a da palavra, como obra de
Jesus. Marcos dá como tarefa dos apóstolos, segundo a
vontade de o pregar (3.14) e aos que voltam: "tu-
do o que e ensinaram". Lucas mostra como Jesus os envia
para "anunciar o de Deus e curar" (9.2); o mesmo encargo
recebem em Mt, embora com perspectiva mais ampla e com alusão
clara à obra {10.7s). Com isso o apostolado recebe co-
mo conteúdo um elemento de absoluta objetividade e ao apostolos se
qualquer influxo sôbre a natureza de seu
encargo. Quando a perto o :reino
aos discípulos para ser anunciada, êstes .são por assim
no mesmo nível de com efeito, sob a vontade de Deus
que elimina a autonomia restando-lhes apenas entregar-se
plenamente ao seu encargo. 130.
Ao encargo da palavra está indissofüvelmente ligada a plena
autorização por para que seus mensageiros ajam. Também a

1211 Cf. Mt 10.9ss e paralelos. Poder-se-ia acrescentar muito do que foi dito
aos mathetai como tais e não como apoato!oi; Mt 18.lss e paralelos.
uo Mt 25.14ss; Lc 19.12ss. Note-se que se trata. da de um homem e do
encargo dado a seus servos para o de sua aw:êncl!'i
Ap6stol-O, Falso Apóstolo, Apostolado e Enviar 149

ni:>.,.,..,,,.,..,,..,,. à natureza do visto que por ela o mensageiro


e a prova de que êle é o encarregado de Jesus e que·
o representa. Sob êste ponto de é significativo que já os dll··
cipulos que tomaram parte no envio se tenham pautado ae-
gundo o de Jesus, isto é, os milagres por êles opera.doa
nunca aparecem como conferindo ao seu aµto:r_importância especial
no círculo discípulos; muito menos se atribuía a qualquer um
uma posi~ão em razão da grandeza de suas obras 181, Tam-
bém dos ,. setenta" Lucas sômente narra êles na sua volta anun•
ciaram, com "também os se sujeitam a nós em
nome" (10.17). se abstrai totalmente da pessoa do encarre-
g.ado, o qual se com o encargo; por isto a alegria qUG
os domina é a que se quando o homem entrega sua atividade
e encontra o sentido de sua vida em servi-lo. 1t certo que
Lucas não apresenta o seu ideal do apóstolo, mas deixa falar
a fonte de que se serve. Tanto mais significação tem o fato de que
os mensageiros que voltam cantam jubilosos os seus sucessos CO•
mo se foram os do próprio Jesus, e que êles - como todos os menaa•
geiros evangélicos - inteiramente sôbre as dificuldade1
ligadas ao trabalho realizado nome de Jesus e das quais sem dd-
vida lhes falara ( cf. Me 6.11). l!:ste pormenor ê importante
porque temos um elemento capital da atitude do apóstolo Pau•
lo, elemento presente já no chamamento para um serviço responaA·
vel no dos discípulos de Jesus.
2. O a11ostol.ado da l greja prirr1,1'.tiva como dom, do Ressuscitado.
a. Do uso do têrmo apostolos e situação dos discipulos du•
rante sua convivência com Jesus resultou que o encargo 'de prera··
rem sôbre a Reino de limitado no tempo. CO•t
mo nada se diz sôbre novos envios dos ou sôbre um encararo
permanente para o os discípulos depois da partida
Jesus não constituíam um grupo preparado para continuar sua
obra, n1as totalmente desorientado sôbre o que O que lhu
restava nada mais era que a promessa de que não permane--
na morte 132 e que sua companhia se tornaria permanente 133,

l!l1 Fica duvidoso se pensamentos semelhantes não motivaram o colóquio de


Je;rus com os discípulos em Mt 18ss. e paralelos; entretanto, para que el!Sa passagem
~ja inteligível, não é preciso recorrer a tal hipótese, pois que a questão em :foco
era sempre atual na .sinagoga (A. Schlatter, Mathaetts, 543s).
132 Mt 16.21 e paralelos; 17.23 e paralelos; 20-19.
1!13 Mt 18.20: 26~29 e paralelos.
150 Karl

Toda via, esfa não os preservou da i1egação


136 e sem esperança 137, dos Apóstolos
e os Evangelhos não deixam dúvida quanto ao de que foi obra
do círculo desfeito dos discípulos
numa e pronta para o trabalho 138.
l'tt~ssus1~taüo a renovação do dado
definitiva. para
podem aqui ser de
lado em Também as questões quanto aos
lugares ou Jerusalém) 140 não têm importância
to. O que é que o apostola.do não é transferido
que. precedeu Páscoa para a nascente, mas que
gus. depois sua fêz da comunidade primitiva uma
comunidade de pregação a seu respeito 111. apóstolos são as
temunhas da Ressurreição, sem que no entanto tôdas as testemunhas
da ressurreição tenham sido apóstolos 142. O círculo dêstes parece
não ter sido particularmente grande. Mulheres não faziam parte dê1e,
fôssem mulheres as que primeiro viram o Ressuscitado 143, e
., .., ••,,,~... não faltas sem mulheres profetisas 144.
isto mesmo é duvidoso que os "mais do que 500 ir-
mãos" de lCo 15.6 se tornaram também apostoloi em virtude da
aparição de Jesus a êles. É verdade que precisamente 1Co 15.8s afir-'
ma a entre apostolado e encontro pessoal com o Ressusci-

134 Mt 26.56; Me 14.50.


um Mt 26 69ss e paralelos.
rn6 Nenhum discípulo de Jerns toma parte em seu sepultamento {Mt 27.57ss)
só algumas das mulheres, que o seguiam, ''viram onde o puseram" (Me 15.47;
Lc 23.55s; Mt 27.61). A situação é descrita de maneira típica em Jo 20.19.
rn1 Lc 24.4 (aporeisthai, estar perplexo), 13ss
ll!S Cf. Lc 24.36ss.
1811 Mt 28.16ss; Lc 24.48; At 1.8.
HO Cf. Weiss, Das Urchristentum (1917) 10ss; sóbre o problema "Galiléia no
Monte das Oliveiras" ver a bibliografia dada em Preuschen-Bauer 238.
141 Cf. A. Schlatter, Die Geschichte der ersten Christenheit (1926) 1-0; P. Feine,
Der Apostei Pauhis (1927) 222.
142 Cf. Lc 24.49 e comparar com 24.46 e sobretudo com 1 Co 15.Sss; cl. também
Holl, op cit. II, 51.
H3 Mt 28.lss e paralelos; Jo 20.llss.
lH At 21.Ss; os .4.cta Pauli et Thec!ae dão a Tecla o nome do apóstolo ("Tecla.
a protomártir, apóstolo e virgem de Deus") ed. Lipsius, pág. 272, 20s; mas devemos
ver aí uma assimilação à figura de Paulo.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Ewoiar 151

tado, e que em tôda essa perícope a idéia da fundamentação do apos-


tolado está em primeira linha 145. Por outro lado Tiago, o irmão
de Jesus, que nunca foi seu mathetes -·-mas que, em lCo 15.7 apa-
rece como testemunha do Ressuscitado - pertence mais tarde aos
líderes da comunidade de Jerusalém (Gl 1.19; 2.9,12) e é claramen-
te contado entre os ft;postol-Oi por Paulo 146, embora nunca fale dêle
chamando-o apóstolo 147. ·· ~· ·

Partindo daí parece que, ao lado do encontro com o Ressusci-


tado, o fundamento decisivo do apostolado era o encargo pessoal
dêle recebido. Que êste encargo coubesse antes de mais ninguém
aos Doze, provinha da sua participação na história do Jesus ter-
reno e que os tornara especialmente aptos de mais uma vez recebe-
rem a sua mensagem e transmitirem-na já não mais como mensa-
gera dêle mas como mensagem sôbre êle, o cumpridor das profecias
vétero-testamentárias 1 4 s.
Dois são os elementos ligados ao apostolado na nova comuni-
dade: por incumbência de Jesus, certo número de homens, especial-
mente aquêles que durante sua vida pertenciam ao seu círculo mais
íntimo, tornam-se seus representantes, no sentido de assumirem ~m
seu lugar e assim ocuparem uma posição de autoridade no pequeno
grupo de cristãos. Por causa da nova situação tornam-se êles ao
mesmo tempo missionários, e é êste aspecto de seu trabalho que dá
a seu ofício o caráter próprio.
Não sabemos qual a extensão do círculo dos apostolai cristãos
primitivos. Os Atos dos Apóstolos, e Paulo indiretamente, teste-
munham que até mesmo no círculo dos Doze a tarefa missionária
foi o que realmente ocupou suas vidas. No tempo a que se refere
Gl 1.18ss, afora Pedro e Tiago - sendo que êste não pertencera
ao círculo dos Doze - não havia apostoloi em Jerusalém, embora
anos tivessem passado desde a dispersão da comunidade por ocasião
da morte de Estêvão (At 8.lss) 149. Em At 15.lss somente aparecem

145 "Em Paulo os fatos da Páscoa são encarados lli.""licamente do ponto de vista
de que por êles Jesus criou seus mensageiros" (A. Schlatter, Die Gescliichte des
Christus, 2a. ed. 1923, 532).
146 Cf. o acento dado a tois apostotois pasin, a todos os apóstolos, em 1 Co
15.Th, depois de 7a.
147 Gl 1.19 não é uma prova decisiva, pois do ponto de vista lingüístico não
se pode decidir se o ei me se deve referir a tôda a sentença anterior, ou somente
a apostoion (cf. Lightfoot, ad. toe.).
i.is Cf. os discursos de Atos dos Apóstolos, como também o kata tas graphaa,
segundo as escrituras, de 1 Co i5.Ss; e ainda Rm 1.2; 3.21.
HO 8.1 afirma expressamente que os apostoloi tinham ficado em Jerusalém.
152 Karl Heinrich Rengstorf

hoi a.postoloí, mas não os Doze; tenha-se ainda presente que Tiago,
filho de Zebedeu, já tinha sido executado antes do assim chamado
Concílio de Jerusalém (At 12.ls). Uma atividade missionãria de
Pedro é testemunhada por Paulo em lCo 9.5, se é que se pode ver
no periagein, "levar na viagem", uma alusão às viagens apostóli-
cas 150. Neste te~'to fala-se também dos .. outros apóstolos", e dos
"irmãos do Sd11ho:r", os quais não são identificados sem mais com
os apóstolos .. Pedro como missionário talvez esteja em relação es-
pecial com os judeus babilônicos 151. É, de resto, basta:nte signifi-
cativo que nada saibamos dos outros apóstolos depois do evento de
Pentecostes. O motivo talvez esteja claramente indicado em Mt
28.19.s pois a Igreja nascente dificilmente teria tolerado tal palavra
no Evangelho se ela não correspondesse à realidade 152.
Com o elemento missionário aparece algo que distingue o apos-
tolado neotestamentário fundamentalmente da instituição judaica
do shaliah. Isto vale também no que diz respeito à forma que êle
tomara no contacto de Jesus com os seus discípulos e na participação
dêstes na preparação do iminente reino de Deus. Bàsicamente o
mesmo, antes e depois da Páscoa, o apostolado, contudo, depois da
Páscoa leva a conseqüências totalmente diferentes de antes. Da si-
tuação pós-pascal - que não pode ser separada da experiência que
os discípulos tiveram do caráter absoluto de Jesus - provém a
natureza permanente do encargo que agora lhe foi confiado. O
Ressuscitado não mais chama os seus representantes por um deter-
minado espaço de tempo, mas para todo o tempo que está entre a
Páscoa e a sua volta e da qual ninguém sabe quanto demorará 153•
Dai porque êle os envia uma única vez; isto tem como conseqüência
que o apostolado fôra limitado à primeira geração e não se tornou
um ofício eclesiástico.
Então se repete tudo o que se dera no primeiro envio dos men-
sageiros: a concessão do poder 154, bem como a obrigação de prestar
contas pela entrega do encargo ao conlissionador 155. Em ambas
essas coisas afirma-se que o objeto do apostolado não é a iniciativa

1110 Joh. Weiss, 1 KoringheTbrief, ad. Zoe.


1111 Cf. 1 Pe 5.13 e, ainda, A. Schlatter, Erlaeuterungen zum NT, ad ioc.; Eintei--
tung in die Bfbei, 4a. ed. 1923, 448s.
1112 Cf. também Paulo em Rm 1.5ss; 1 Co 9.16.
158 At 1.6s.
1114Cf. os :milagres de Atos, mas também a fórmula, "sinais do apóstolo", de
2 Co 12.12 e o paralelo real de l Ts 1.5.
rn1 Mt 25.14ss e paralelos; 1 Co 4.4.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Enviar_ 153

própria mas a sujeição obediente à linha seguida pelo nr6prio Je~


sus, atitude esta assumida por Paulo de maneira exemplar.
A Didaquê 11.lss 156 não se opõe à limitação do apostolado, no
sentido técnico, à geração de Paulo .. Na fórmula "apóstolos e pro-
fetas" a ênfase é posta sômeni:é nos últimos 157, pois as cormmidades
são prevenidas não quanto a falsos apósti)lost-mas~qmmto ~i:alsos~c
representantes dêstes. Parece que o têrmo apostolos é aqui empre~
gado unicamente para mostrar que o verdadeiro profeta não vem
em nome próprio, mas no nome de Jesus 158 e se apresenta com seu
espírito 159, isto é, como rnembro de sua Igreja e sob sua ordem 1so.
J;>ara êsse apostolado renovado é imprescindível o Espírito e isso
pela própria idéia de um Deus que impõe obediência. Através do
Espírito a comunidade, e sobretudo os apóstolos, :recebem a certeza
da presença de Jesus e, juntamente, de seu poder 161. · É da natu-
reza do apostolado do cristianismo primitivo que a atividade missio-
nária do círculo dos discípulos se tenha iniciado no dia mesmo do
evento de Pentecostes 162. No Espírito é oferecido ao apóstolo o
padrão dessas atividades, isto é, o que o próprio Espírito é e faz, e
o que Deus e Cristo fazem por meio dêle 163; é o Espírito que cha-
ma o apóstolo para ser seu instrumento mediante a rendição cons-
ciente da própria vontade e não por uma experiência extática de
imersão no poder de Deus 164. Precisamente por isso, na pregação dos

1 "•ll W. Seufert 119 vê nos apos-to!oi da Didaqu~ "missionários independentes que


sem descanso iam de comunidade em comunidade para espalhar a gnosis kyriCYU,
ciência ào Senhor"; cf. também A. von Harnack, op. clt., 347ss. Tal visão
das coisas é objetivamente impossível pois que apostiolos e independência se excluem
muhwmente.
1 :;7 W. Seufert 119 não viu isto.
trí8 Didaquê 12.1.
tnl> Um profeta só é genuíno "se tem os costumes do Senhór" {11.8). Por a!,
e não só por suas palavras, se reconhece que êle tem o Espírito.
160 Cf. 11.11. Note-se também que os embaixadores da comuni.dade romana
para a comunidade coríntia são chamados <rpestahnenoi e não a.postotoi (Clemente
Romano, Aos Coríntios, 65.1).
161 Cf. sôbre isto W. Grundmann, Dter Begriff der Kraft ln der neuteatamen-
ttichen Gedankenweit (1932) 92ss. O "poder" não pode ser considerado em &
mesmo, como Grundmann se inclina a :fazer (92ss), mas está sempre .ligado a uma
pessoa.
162 At 2J.4ss.
133 At 10.26; 14.15; 1!>.11 e já em Ulss.

l<W At 4.19s.
154 Karl Heinrich Rengsto1j

apóstolos ·- como na de .Jesus - e dos evangelistas 165 em Atos dos


Apóstolos, a fé dos ouvintes é o fato central, e não as obras do pre-
gador ou do taumaturgo 166. Seria um total desconhecimento não só
do dom do Espírito, mas da natureza do apostolado no cristianismo
primitivo se se afirmasse serem lendas comunitárias os milagres de
Atos dos Apóstolos wr, narrados in maiorem gloriam de determinado
apóstolo, como seja Paulo, em confronto com o Pedro da primeira
parte do livro. Em tôda parte :reina a firme convicção de que
atrás dos milagres está o próprio Jesus que assim manifesta o seu
poder .através de seus mensageiros, confirmados dêsse modo como
lídimos :representantes seus. Se o "mensageiro de um homem é
como êle mesmo" e se o apostolado neotestamentárío se baseia neste
princípio, a ausência dos milagres testemunharia nada menos que a
ilegitimidade da pretensão apostólica, e a pregação do Cristo Res-
suscitado pareceria mera idéia humana e não mensagem da ação
divina que supera todo o pensamento humano. Por conseguinte, os
sinais do apóstolo (2Co 12.12) são imprescindíveis em razão do obje-
to, isto é, de Jesus, e não em razão do mensageiro. Quem pensa de-
ver suprimi-los por supostas razões de crítica, deve então declarar
como legendários também os milagres de Jesus, ou pelo menos ten-
tar reduzi-los a um processo :natural que a tradição teria transfor-
mado em lendas. Ora, isto significaria destruir o apostolado c::>mo
instituição religiosa, ou antes, como a instituição religiosa funda-
mental da primeira comunidade, reduzindo-a, em última análise, a
uma instituição jurídica pura e simples, coisa que o apostolado nunca
foi 168 nem em sua história nem nos traços mais importante::: de sua
atuação 169. Portanto, em vista dessas considerações, uma cuida-
dosa investigação crítica dos milagres de Atos dos Apóstolos não
será supérflua, antes realmente necessária 170,
Todo o complexo das idéias relacionadas como o "sinal" do após-
tolo tem o seu modêlo no ofício do embaixador semítico (vide sapra,

165 At 8.5ss, 37s.


16~ At 3.16; 5.14s; 14.9, etc.
167 Propriamente só se :fala de milagres dos apostolai, aos quais pertence Paulo,
e talvez também Estêvão, que parece ter sido membro da comunidade desde o
comêço (At 6.3,8). Afora êles, só se diz de Filipe que fêz "sinais e prodígios gran-
des" (8.13), sem que saibamos se tinha o nome de apóstolo.
les Neste ponto verificamos um grave êrro no estatuto de Holl sôbre o conceito
de Igreja na comunidade primitiva; não se reconhece o caráter "pneumático" do
apostolado no seu sentido mais pieno.
109 Sôbre a transmissão do Espfríto, ct. At 8.14ss; 10.44ss; 19.lss.
17Q Cf. Gru.ndmann, ?oc. cit., 98, nota 7.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Enviar 155

Neste caso o tipo do mensageiro de Deus, creden,ciado pe-


é Moisés; em Êx 3.12 os têrmos ••enviar" e "sinal'' estão
a apontando a legitimação por de Deus. A isto
corresponde a que e Mambres, os magos egípcios .que
se opuseram a Moisés, podem mostrar sinais (Ev. N-ieodemi 5, pág.
ed. de ; 7 .11,22). Ver também íª 7,11 (Isaías
ou ainda Jz 6.17,~ pede ao anjo do
de confirmar sua. autoridade de chamá-lo
juiz Até mesmo Jesus poderia ser citado aqui (Mt
171.
; Jo 6.29ss).
o caso é preciso precaver-se neste ponto de uma limi-
das fôrças que em determinados círculos
do primitivo. Também aqui é imprescindível reconhe-
cer que o lugar em que Jesus age como o Ressuscitado é a comunid
dade e não o individuo e que os apostoloi só podem ser seus repre-
sentantes autorizados quando são membros dela. Sempre devemos
ter em mente a conexão e Jesus e o significado dêles como
lideres do movimento que ligado a seu nome. Ora, assim co-
mo Jesus está acima de todos e o seu escopo é a comunidade que
abrange a todos, assim também o ofíeio dos apóstolos torna-se agora
universal 172,
Na universalidade do envio e na aspiração universal. dos envia-
dos está, a rigor, a superioridade do nôvo apostolado sôbre o apos-
tolado pré-pascal, pois aquêle inclui a autorização definitiva dos
discípulos Ressuscitado. Êle está atrás de tudo o que êles di-
zem e Como porém éle é o que foi elevado para junto de
o milagre deve acompanhar os seus mensageiros; contudo,
em análise, o objeto de sua pregação universal do Evangelho
não são os milagres, mas aquêle que os enviou 173,
O que expusemos aqui sôbre a renovação do apostolado
pelo Ressuscitado, bem como sôbre seu estabelecimento definitivo
e sua conexão com o do Espírito - baseado principal-
mente sôbre os Sínóticos e nos Atos dos Apóstolos - encontra con-
firmação no Evangelho de João. Isto é tanto mais importante por~
que o têrmo apostolos não é empregado ai, exceto numa passagem
(Jo 13.16) em que é tomado no sentido próprio e geral e não como
limitado aos mensageiros de Jesus. "Em João o núcleo da narrati~
va pascal serve diretamente ao seu pensamento central : mostra
como o Ressuscitado uniu a si seus discípulos através da fé e lhes

171 Cf. o têrmo semeion, sinal.


112 Cf. A. Schhltter, Geschichte d.es Christus, 534s.
17:1 Mt 10 18ss; Lc 12.lls.
156 Karl

a plena o seu 174. Isto corresponde


ao caso de Tomé (Jo e ainda mais ao de Pedro que com o
recebe, ao míasrno tempo, ·o perdão de sua infidelidade

autorização para "'".""''"'"''..,,.....


e do r. :rv lÇo, e não
ticados uão recebe a como
tal, mas como os "meus cordeiros" (21.15) e as "minhas ovelhas"
(21.16s) ; disto, seu trabalho dominar e decidir, mas
apascentar e pastorear (ib.). Nem todavia, o
se torna simples instrumento; antes de todo o pêso
r:::sponsabilidade que só pode ser quando existe total e
absoluta entrega a. Jesus (21.15,16,17: amar). O paralelismo com
a imagem descrita pelos três outros evangelistas vai ainda ma.is lon-
ge. Também em João o recebimento do Espírito é o pressuposto
imprescindível para o exercício da função apostólica. Por conse-
guinte, em sua narrativa, o recebimento do Espírito e o envio ocor-
rem simultâneamente (20.21sa), e do modo como as sentenças são
formuladas não resta dúvida de que os enviados ser tidos co~
mo seus representantes (20.21).
A da sentença de 20.21 exige uma palavra especial. Je-
sus diz: como o Pai me também eu vos envio". '.É
preciso lembrar-se aqui da relação entre apostellein e pempein no
quarto Apostellein, quando usado por Jesus, serve pa-
rn descrever sua própria missão ao se tratar de fundamentar sua
autoridade na autoridade do Pai; quando, porém, quer afirmar a
participação de em suas obras, Jesus emprega pempein. Êste
uso se encontra exatamente em 20.21, apenas que aqui é aplicado
ü relação entre e seus mensageiros : a que êles têm a
fazer é, em última análise, sua obra, pois é êle quem os "envia" l75.
isto em João a da autorização dos cede
lugar à da participação de Jesus em seus trabalhos, como também
à idéia que Jesus mesmo é o sustentáculo dêles e de seu ofício de
mensageiros. É precisamente em razão disto que a figura do "pa-
ráclito" uma significação capital para a missão dos discípu-
los. No paráclito restabelece-se a presença de Jesus e a sua parti-
cipação nas obras dos mensageiros, pois que também está ao lado

H A. Schlatter, Geschichte des Christus, 532. Sôbre a afirmação que se


segue, cf. também E. Rirsch, JeSU8 Christus der Herr (1926) 3l:ls.
171, Em Mt (10.16) e Le (10.3) diz Jesus a seus discípulos aposteUo hymas,
<'ttvi(1-Vog; pois aí se trata de representar o Jesus terrestre e não o Exaltad.o.
Apóstolo, Falso A póstolo, Apostolado e Enviar 157

dêles como "enviado" (14.26; 15.26) 176; tanto mais que Jesus po-
de dizer que a vinda do paráclito não só é obra do Pai (14.16,26),
mas também - em vista de sua exaltação que o coloca ao lado do
Pai ("junto do Pai,,) - que êle mesmo o enviará aos seus ("envia-
rei": 16.26). No paráclito, que é o Espírito da verdade (14.17), J e-
sus mesmo, como a verdade em pessoa, continuará com êles ainda
que se ausente corporalmente (14.5s; 16.7). Assim, na imagem joa-
nína do apostolado, combinam-se a visão cristológica do evangelista
sôbre o Filho que está ao lado do Pai e age como o Pai, de um lado,
e a. representação judaica do mensageiro píenipotenciár io, de outro.
Esta é posta em segundo plano, mas sem que o oficio de mensageiro
se reduza a mero caso de entusiasmo. João não favorece tal :redução.
Seu interêsse é conhecer e expor aos leitores o Filho como sendo o
que age incessantemente desde o início de tôdas as coisas (logos,
Verbo) até a sua consumação. Pode ser que em razão disto o têr-
mo apostolos não lhe tenha parecido apropriado, pois nêle se entre-
via pelo menos o perigo de que o discípulo de servo se fizesse senhor,
atribuindo-se poder próprio, esquecendo-se o aposto"los que atrás
dêle está um pempsas. que o enviou, o qual já existia antts dêle
(13.16).
e. Sôbre a questão de corno do têrmo hebraico shaliah se che-
gou ao têrmo grego apostolos não se pode dizer muito com seguran-
ça. A única coisa certa é que a escolha da palavra apostolos não
foi obra dos judeus, pois do contrário teríamos mais provas dêste
uso. É bastante raro que uma palavra que originàriamente só ser-
via para designar urna ação ou um grupo de homens, sem possuir
qualquer colorido religioso, se tenha tornado designação de um in-
divíduo com funções expressamente religiosas. A aceitação do têr-
mo taivez se tenha dado em Antioquia da seguinte maneira: apos-
tolos teria designado primeiramente a expedição missionária como
tal e, só depois, os participantes da expedição em particular 177;
finalmente apareceu como sendo o têrmo próprio para traduzir sha~
liah, visto que também era um substantivo masculino. É até possivel
que Paulo tenha participado dêsse processo de tradução, processo,
aliás, que pode ter sido rápido. Em todo o caso é êle o primeiro
que usa o têrmo aplicado claramente a um mensageiro individual
de Jesus no singular, enquant:o os evangelhos sinóticos sempre o
empregam no plural.

11n Cf. H. Windisch, Díe fuenf Johaneische Parakletspnieche, em Festgaba fu,er


A. Juelicher (1927) 132ss.
! 7 7 Talvez seja esta a razão por que, excetuando o caso de P aulo, o têrmo sem-
pre aparece no plural .
158 Karl Heinrich Rengstorf

Mas em nenhuma hipótese deve-se separar apostolos, como


tradução de shali.ah, dos verbos (J;postellein/shalak, pois a tradução
sõmente foi possível em vista da relação entre êsses dois verbos,
muito antes que o substantivo aparecesse. Essa relação era em
grande medida determinada pela própria noção de Deus. E se êste
é o caso de apostolos desde o comêço no ambiente do cristianismo
primitivo, não há dúvida que se trata àe fruto direto daquela re-
lação.
Certa dificuldade provém do fato de que nossas fontes não ex-
plicam a diferença entre apostoloi usado em sentido absoluto e os
apoBt oloi da comunidade (cf. At 13.lss) que também pregam o
Evangelho com plena autorização. Mas tal distinção não é abso-
lutamente necessária porque para o cristianismo incipiente o Es-
pírito era o principio formal de sua ação e isto quer dizer que é
o próprio Jesus quem confere o encargo apostólico. É importante
que em Antioquia os nomea dos para a missão não foram dentre os
assim. chamados profetas e mestres (A t 13.1), e sim Paulo e Bar-
nabé. dos quais o primeiro certamente viu o Ressuscitado, o outro
provàvelmente. Ademais, o ato da comunidade não é descrito como
••enviar", mas como "separar'', e a iniciativa é atribuída ao Espírito
Santo, que já manifestara sua vontade 178, de modo que a comuni-
dade só tem a dar a autorização exterior (13.2s). Por conseguinte,
pode-se afirmar que os dois homens já tinham há tempo o "poder"
apostólico, conquanto ainda não exerciào. De resto, mais uma vez
aparece aqui o caráter universalista do apostolado neotestamentá-
rio, ligado agora à aspiração universal da comunidade. A forma
do envio e da ordem seguida (jejum, oração, imposição das mãos)
é judaica. Notável, porém, é que Paulo nunca se julgou apóstolo dos
antioquenos, mas tão-somente ap6stolo de Jesus Cristo.
d. Das exposições feitas até aqui resulta com certeza que o
fundamento do apostolado neotestamentário é fmicamente a von-
tade e o encargo do Ressuscitado. Entretanto não se deve esquecer
que na comunid ade primitiva desde o início não foi êste o único e
exclusivo fundamento do apostolado. A narrativa da escolha de Ma-
tias para o círculo mais íntimo dos discípulos em lugar de Judas,
mostra que ao lado da indicação e da vontade do Espírito - que
substitui Jesus - um outro elemento desempenhou importante pa-
pel, isto é, a condição de o escolhido ter sido testemunha ocular. Lu-
cas escreve expressamente que o substituto de Judas tinha de preen-
cher a condição de "ter estado todo o tempo junt o com os outr os
apóstolos por todo o tempo em que o Senhor Jesus andou entre nós,
começando do bat ismo de João até o dia em que foi elevado de j un-

178 Cf. também A. von Harnack, op . cit., 348, nota 1.


.4póstolo, Falso .4-póstolo, Apostoladn e Env-iar 159

to de nós " (At l.2ls). Aqui, port anto, o pressuposto mais impor-
tante para a concessão do apostolado é o contacto mais estreito com
Jesus durante sua vida. Isto quer dizer que na prática a comuni·
dade primitiva não viu na missão do Ressuscitado algo radicalmente
nôvo. Embora não possamos concluir, por falta de informações, que
assim reaimente as coisas se processaram, contudo estaremos mais
perto da realidade se admitirmos que para a . .c• nunidade primitiv&
a nova missão nada mais era .que a repetição ou a continuação da
antiga, a do tempo da vida terrena de Jesus. Daí se pode deduzir
que a comunidade primitiva ainda não tinha compreendido em tô-
da a sua profundidade a radical mudança verificada na situação do
mundo, mudança que consistia em que o Ressuscitado fêz de outros
homens seus representantes. Além disso é preciso concluir dai o
significado que a história de Jesus teve desde o comêço para o con-
teúdo próprio da mensagem cristã primitiva 179: o apóstolo de Je-
sus sempre é testemunha de fatos históricos e não de mitos, embo-
ra estivesse inteiramente consciente de que aquilo que anunciava
contradizia a tôda a experiência humana.
Esta conexão do apostolado com a participação pessoal na his-
tória de Jesus foi sentida também por Paulo de dois modosº Em
primeiro lugar, a oposição à sua pretensão de ter como apóstolo
os mesmos direitos que os Doze. pode ter-se baseado em argumen-
tos relativamente sólidos neste ponto. Com efeito, Paulo tinha pe-
rante os Doze a desvantagem de não ter privado com o Jesus his-
tórico. Mas foi precisamente isto que o levou a fundamentar seu
apostolado de um modo que, ao mesmo tempo que o livrava do ve-
redicto de ser apóstolo de segunda categoria, tornou-se de funda-
mental importância para a concepção e as aspirações do apostolado
cristão primitivo. O outro aspecto - que, no caso, liga Paulo à
comunidade primitiva - é a resoluta afirmação de sua participa-
ção na corrente da tradição cristã primitiva a respeito de Jesus
(lCo ll.23ss: 15.lss, etc.). ~ste fat o mostra a sua íntima adesão
à história de Jesus como único funda mento e conteúdo de sua pre-
gação; é esta adesão à história de Jesus que, não obstante teclas as
oposições entre Paulo e os apóstolos da comunidade primitiva, fazia
de todos os apóstolos um corpo unido (At 15.12; cf. Gl 2.9 e espe-
cialmente !Co 15.11).
3. Pwr1lo, exemplo clássico do apostolado - O representante
clássico do apostolado no NT é Paulo. É o único apóstolo que nos
é conhecido precisamente em sua qualidade de apóstolo, enquanto
que de todos os outros nada sabemos sôbre o modo de seu aposto-

17il C:f. sôbre lsto G. Kittel, DeT "hfstorische Jesus", em Mysterium Christt
{1931) 49ss.
160 Karl H einrich Rengstorf

lado. A razão está em sua posição especial entre os outros após-


tolos e sua intensa atividade. Não pertencia nem ao círculo dos dis-
cípulos de Jesus, nem aos primeiros cristãos que, entre a Páscoa e
subida aos céus, tiveram contacto com o Ressuscitado. Apesar disto
pôde êle dizer de si que trabalhou mais que todos os outros após-
tolos no serviço de Jesus (lCo 15.10). Tinha uma forte consciência
de seu ofício, consciência que nfw nasceu dêle mesmo, mas da ex-
periência de sua vocação e que chegou a tão alto grau que, quando
lhe era negado o direito de se chamar apóstolo e de apelar para sua
autoridade apostólica, êle o defendia com todo o ardor.
Portanto, quando se trata de explicar a consciência apostólica
de Paulo devemos ter em vista dois elementos: sua vida antes de
entrar para o trabalho apostólico e sua posição especial como após-
tolo no círculo dos outros mensageiros autorizados de Jesus.
a. A nota característica do apostolado pau1ino é antes de mais
nada a ruptura que se verificou na vida do apóstoio e que o enca-
minhou para sua missão. Êle próprio uma vez comparou o proces-
so de suá vocação com o surgir do primeiro r aio de luz na criação
(2Co 4.6) ; àando, com isto, a entenàer que ai aconteceu algo que
estava fora de tôdas as possibilidades humanas e que vedava qual-
quer tomada de posição autônoma. O cristão Paulo viu atrás de si
a vontade de Deus, firme desde a eternidade, que sômente esperava
a hora de sua realização (Gl 1.15). Pelo fato de o seu chamamen-
to ter significado uma total muàança em sua vida, distinguia-se êle
fundamentalmente àos discípulos de Jesus; êstes sem dúvida tinham
sido arrancados da sua casa e da sua família, mas nunca chegaram
ao ponto de sentir como 'Paulo a aguda contradição entre o seu
passado, de um lado, e o seu serviço como mensageiro de Jesus.
de outro; contradição que Paulo deixa transparecer sempre que fala
dos inícios de seu apostoiado (1Co 15.9 ; Gl 1.13,23; Fp 3.7s). Jus-
tamente em razão disto é de suma importância o fato de que em
taí contexto ê!e. em sua história antes de ser cristão, nunca se nos
apresenta como "pecador" que deve ser inapelàvelmente condenado ;
antes, êle fala em têrmos elevados de seu passado judeu, e pode fa-
zê-lo porque naquele tempo era tão obediente a Deus como o foi no
momento de sua conversão e mais tarde, como cristão e apóstolo.
Daí resulta que a consciência do apGstolado àe Paulo foi deter-
minada essencialmente pelo seu encontro com Cristo perto de Da-
masco. Neste encontro, e na total submissão de Paulo no instante
mesmo em que se deu o encontro 180 , está a particularidade de seu
apostolado perante o dos outros apóstolos que se entregaram total-

mo Gl 1.16, "imediatamente não considerei carne nem sangue" .••


Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostol.ado e Em1iar 1ti1

mente a Jesus somente depois de muitas hesitações e através de um


longo trabalho educativo. De tais coisas não encontramos traço em
Paulo; pelo contrário, o que n@Ie vemos é uma conversão tão deci-
siva como súbita ao Messias Jesus,. até aí perseguido com todo o
ardor. Tal sucedeu porque a noção de Deus desde o início determi-
nou a vida de Paulo no pensar e U'l agir 181 , n:, s . . õmente em Da-
masco chegou ao seu estado definitivo. Somente desta perspectiva
se esclarece a peculiaridade da autoconsciência de Paulo -e a certeza
de sua missão apostólíca.
A maneira como se processaram os fatos de Damasco l'.lão tem
maior importância dêste ponto de vista 1s2. O que importa. é como
êles se apresentavam na mente de Paulo; como ação de Deus e acon-
tecimento objetivo 183, e não como experiência visionária 184. O su-
jeito de todo o evento não é Crist-0, mas Deus 185, embora tenha sido
em Cristo que Paulo se encontrou e com êle falou. Com Alfred Je-
remias 186 podemos explicar isto da seguinte maneira : P~ulo se
tornou instantâneamente. de inimigo e perseguidor de Jesus que era,
em seu apóstolo porque reconheceu a voz de Jesus na voz de Deus
que se revelava ("filha da voz", isto é, Deus que se revelava pessoal-
mente desde que a profecia desapareceu com Ageu, Zacarias e Ma-
laquias) 187 , e assim foi convencido de seu êrro e curado. O próprio
Paulo formulou de maneira clássica .esta concepção quando- se cha-
ma apóstolo de Jesus Cristo. para logo acrescentar: por vontade
de Deus (lCo 1.1; 2Co 1.1; Ef 1.1; cf. 1.5; Cl 1.1) 188• Deve-se obser-

1111 Sôbre seu conhecimento da Lei no judaísmo farisaico fala em Gl 1.14; Fp 3.6.
Não se deve esquecer que, em oposição aos Doze, Paulo era o único dos apostoloi
de Jesus que tinha origem "acadêmica" (escriba) e não provinha do "am-ha-crres'',
povo simples.
1a2 Isto também se aplica à questão de ·saber qual das trbs narrativas de Atos a
rcspeíto da conversão de Paulo merece maior fé C9.lss; 22.5ss; 26.12.ss). Sôbre
éste ponto veja-se E . Hirsch, Die ctr-ei Berichtie der Apostelgeschichte ue ber dte
Bekehru.ng des Paitlus, em ZNW 28 O 929) 305ss.

lKa Gl l.f5; Rm 1.1.


1Rf 1 Co 9.1; 15 4 trata da constatação do fato objetivo e não de uma visão
extática.
18:> GI l.15s: "8prouve àquele que me separcu ... revelar em mim o seu Fi-
lho .. • Veja-se o modo como Paulo tala das aparições do Ressuscítado empre-
gando ophthe, "apareceu" ou "foi visto" (1 Co 15.5ss), no que é seguido sõmente
pelo !'eu discípulo Lucas (24 34; At 13.31).
IHG Numa conferência nn quarta Studientagung zur Judenfrage em Nureriberg
(27í2 ~ 1/ 3/1929).
l 87Toscfta Sota 13.2.
u;s Nas Pastorais o apostolado é constituído pela "ordem de Deus" (1 Tm 1.1;
Tt 1 3); 2 Tm 1.3 retém a tórmula das cartas paulinas mais antigas.
162 Karl Heinrich Rengstorf

var que tanto quanto se pode deduzir das fontes, a atribuição das
origens do apostolado a Deus aparece pela primeira vez em Paulo
(lPe 1.2 depende das exposições paulinas).
O lugar predominante da noção de Deus na consciência de mis-
são de Paulo é especialmente acentuado pelo fato de êle saber que é
separado para o evangelho de Deus. e de chamar a Deus como o
que "me separou desde o ventre de minha mãe" (Gl 1.15). Com tais
fórmulas, Paulo se coloca dentro do plano universal de Deus como
um elo não só lógico, como imprescindível; imprescindível, diga-se,
do ponto de vista de Deus e nunca do seu próprio (lCo 3.5) 189. Por
isto não pode deixar de ver no seu apostolado a prova da graça di-
vina, que não está ligada a quaisquer pressupostos e que, precisa-
mente em razão disto, leva o homem à sujeição obediente a Deus (lCo
15.10) rno. É neste ponto que a consciência de missão em Paulo tem
conexão com a dos profetas, especialmente de Jeremias e Dêutero-
Isaías. Esta conexão só se pode entender a partir do modo parti-
cular da vida de Paulo e como sendo obra própria sua, e nela não
só a consciência de missão dos apóstolos mas mesmo do cristianismo
primitivo atingiu seu clímax.
Os traços paralelos entre Paulo e Jeremias foram notados já
de há muito 1s1, mas sempre do ponto de vista exterior 1s2 e nunca
do ponto de vista da consciência de missão. É, porém, justamente
neste ponto que Jeremias foi o grande exemplo de Paulo.
O significado de Jeremias na· história da profecia véter o-tes-
tamentária consiste na sua renúncia radical a dar qualquer impor-
tância ao homem, e na dedicação à mensagem recebida, com a clara
consciência da posição precária do profeta, e da predominã.ncia abso-
ltrta da idéia de Deus 193. Isto se exterioriza no total desapareci-
mento do elemento extático, característico nos profetas mais anti-
gos IM, e mesmo em Isaías 195, e que reaparece nos sucessores de Je-

180 A mesma idéia se encontra na fórmula "chamado apóstolo" (Rm 1.1; 1 Co


1.1), bem corno em Gl 1.15 ("tendo chamado").
190 Cf. também o eufüeos, imediatamente, de Gl 1.16.
rn1 Cf. E. Lohmeyer, Grundlagen paulinischer Theol ogie (1929) 201.
rn!l A ist-0 leva a alusão a Jr 1.5 em Gl 1.15.
193 Cf., sôbre o que se segue, R. Kittel, Geschicht e c!es Vo!kes Israel II, 6a. ed.
(1025) 336s.

194 Além de Amós e Oséias, também se deve nomear Elias.


105 Como legitimação de sua missão Isaías apresenta ao rei Acaz o milagre
(othfsemeion, Is 7.11), que na verdade não é êle, mas Deus, que faz, como no
c:.w de Elias (1 Rs 18.2lss}, a fim de mostrar que era seu enviado.
Apóstolo, Ji'also Apóstolo, Apostolado· e Envia1· 169

remias 196 (não tanto como volta ao profetismo antigo de Israel -


"nabiismo" - mas antes sob o influxo do incipiente sincretismo he-
lenístico-oriental e de suas tendências "entusiásticas"). Mesmo
quando Jeremias tem "visões" (1.llss; 4.19ss) seria mais certo, no
caso, falar de visões da fé e não de "entusiasmo", pois é caracterís-
tico nêle falar e agir sempre por meio de imagens e comparações que·
pressupõem considerações racionais na mente do profeta e a sua com-~ -
preensão clara da situação. '"No início a profecia é totalmente pas-
siva diante de seu objeto". Por isto a pessoa do profeta "desaparece
no objeto; mesmo quando os profetas refletem sôbre seu objeto,
fazem-no de modo inteiramente objetivo, de tal maneira que o que
nos dizem provém totalmente do objetivo visto" 197. Com Jeremias,
porém, aparece pela primeira vez o ''eu" do profeta, e com tal pre-
ponderância que o profeta se torna pensador religioso. Isto se dá
com tamanha intensidade que nem sempre é possível evitar o con-
flito entre Deus e a própria individualidade 197. lt fato que em
Jeremias só encontramos leves indícios dêsse conflito, como quando
se defende contra o chamamento e o encargo de Deus (20.7ss). A
partir do Dêutero-Isaías o "eu" se introduz entre Deus e o Ji>ro:feta,
de modo que posteriormente se faz necessário intervir uma nova
pessoa como intermediária, o angelus interpres de Zacarias 198. Pre-
cisamente dêste ângulo Jeremias constitui um ponto alto em com-
paração com Dêutero-Isaías. Isto aparece em tôda a sua clareza se,
partindo daí, considerarmos a sua consciência de missão e o modo
como sua vida vocacional se desenrola. Justamente porque nêle fal-
ta o elemento extático, todo o pêso recai na sua ligação com Deus e
na obediente sujeição 'à sua vontade (20.7ss; cf. 15.19ss) ; tôda a
sua vontade é dedicada à pregação da vontade de Deus a qual não
lhe precisa ser revelada de caso em caso, porque.~a cada instante
lhe está presente pela sua união com Deus 199. Daí resultam duas
coisas: uma é que a vocação profética abrange tôda a vida de Je-
remias e, como o povo se opõe a Deus, enquanto que o profeta adere
integralmente a Deus, tôda a sua vida se encontra sob o signo do
sofrimento ( cf ., p. ex., 11.18ss; 15.10,15ss; 20.14ss; bem como os
sofrimentos reais do profeta: 20.lss; 26.lss; 37.lss; 38.lss). A
outra é que somente â palavra determina a atividade do profeta,
dando-lhe ao mesmo tempo fôrça e autoridade (15.16, etc.). Nessa

1116 Sôbre Ezequiel, cf. R. Kittel, op. cit. III (1927) 15lss.
191 R. Kittel, op. cit., II, 336. Cf. também J. Hempel,' Altes 'l'estament und
Geschichte (1930) 65s.
198 R. Kittel, op. cit., II 33i e nota 1.
199 Cf. como êle se volta contra os visionários 23.25ss.
164 Xarl H einrich Rengstorf

!imitação à palavra consiste propriamente a grandeza da profecia


de Jeremias. Nela coincidem o cargo e a vida, aparecendo nela urna
vigorosa noção de Deus: Deus é tudo e o homem é o que é por obr:i
de Deus, e para testemunhar a Deus como Deus (1.9; 15.19, etc.).
Se Paulo se identificou ou não, consciente ou inconscientemente, a
i"ua vocaçã o com o profeta Jeremias é uma questão que dificilmente
pode ser respondida, se é que pode. Mas não resta dúvida de que a
identificação existe tanto na valorização do sofrimento na vida do
apóstolo zoo como sendo da ,vontade de Deus, como também na
concent:i·ação exclusiva na pregação da palavra 201 e a inda, estreita-
mente ligado a isto, na renúncia a qualquer fundamentação "entu-
siástica" do seu apostolado.
Desta renúncia trata 2Co 12:1ss 202, onde Paulo se distingue
dos seus adversários que se gloriam de suas experiências "entusiás-
ticas" para afirmarem sua superforidade sôbre êle. A simples ques-
tão, assim colocada, é característica da situação reinante nas comu-
nidades gregas, onde o "entusiasmo" desempenhava um grande
papel (cf. sobretudo lCo 14.lss, mas também 12.lss); havia nessas
comunidades o perigo de substituir a autorização divina do apóstolo
pela experiência extática que, cercando a pessoa de um halo, ressus-
citava o culto ào homem já condenado por Jesus; tal culto quando
baseado no êxtase poderia tomar a forma de veneração do homem
espiritual e até mesmo do falso homem espiritual 203. É muito signi-
ficativo que Pauio, podendo gloriar-se de numerosas experiências
extáticas, 204 as tem por assunto estritamente pessoal e se nega a
relacioná-las com o seu apostolado 205, a fim àe não colocar nova-
mente a Deus, e a obra de Deus em Cristo, à sombra do homem, o
que seria obscurecer a graça como único valor 206.
A isto também se refere a atitude precavida de Paulo com res-
peito aos "sinais do apóstolo" (2Co 12.12). Só fala dêles por necessi-
dade, ou quando dêles precisa para sua atividade pastoral (Rm 15.19;

200 Ci. 2 Co 11.16ss; 12.10; Fp 3 lOss; Gl 6.17; mas também 2 Co 4.6ss; 1 Ts 3 . 3s


e E. von Dobschuetz, Thess. 135, ad loc.
201 1 Co 1.14ss; 2.lss, etc ..
202 Cf. A. Schlatter. Die Theo!ogie der Apostei, 2a. ed. (1922) 26ls.
2oa Cf. o dom do Espirita das d i akr"iseis pneumaton distinçõe s dos espíritos
(1 Co 12.10). e a luta de Paulo contra os h11Perlian apostolai, ~super-apóstolos"
(2 Co 11.5; 12.11).
201 2 Co 12.1-4: l Co 1418.
2us 2 Cc 12.5.

::o; 2 Co 12.9.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Enviar 165

l Ts 1,5), nunca porém por utilidade própria ou com a finalidade


de se impor. Também em 2Co 12.12, êles só servem para comprovar
sua causa e não para dar importância à sua pessoa. De não menor
valor para a causa representada pelo apóstolo é a relação estabele-
cida entre consciência de missão e consciência de voe.ação dos pro-
fetas. Nesta é mais categoricamente afirmado o caráter revelado
da mensagem, que assim é garantida contra qualquer negação dos
homens. Por isto Paulo acentua sua autoridade apostólica, origi·
nada em Cristo, tôdas as vêzes que tem de falar com autoridade às
suas comunídades, como no caso das int roduções das cartas; aí não
se trata de s ua pessoa, mas àa causa que representa. Como o pro-
feta, também o apóstolo só está a serviço de sua mensagem, isto é,
da pregação da palavra da cruz (lCo 1.18), que como tal é a palavra
da reconciliação (2Co 5.19). Dêste ponto de vista é explicável a
atitude de Paulo, apaixonadamente contrária aos partidos em Co-
rinto, precisamente porque nêles o seu nome é envolvido, contra a
sua vontade e contra o sentido do Evangelho (lCo 1-4, especialmente
3.5ss) ; por outro lado fica explicada a ausência de qualquer ten-
dência à imitatio Christi, primeiramente na vida individual e depois
nos cristãos que imitam a vida do apóstolo (lTs 1.6) 207, tal como
logo apareceu em outras áreas da Igreja antiga 208 • Se havia algu-
ma exemplaridade na vida terrestre ou vocacional de Jesus para
a sua função de apóstolo, 209 é exclusivamente porque êle era seu
apóstolo e sujeitou-se a êle em tôda. a sua atividade; de out ro modo
seu a postolado se transformaria em mero título. Trata-se ~mica­
mente da obediência que o servo deve a seu senhor, e não de um
comportamento merítório 210.
O paralelo estabelecido por Paulo entre apóstolos e profetas é
justificado pelo fato de ambos serem, e de maneira exclusiva, os
portadores da revelação; os profetas, da revelação que caminhava
para a sua perfeição, e os apóstolos, da revelação perfeita. Esta
diferença cronológica em relação ao mesmo objeto 211 e4plica porque
não se empregou o têrmo antigo prophete.<J para designar o mensa-
geiro de Deu:; da revelação neotestamentária, e se recorreu a um
têrmo nôvo, que correspondia à diversidade da situâção, e que tam-

201 Vejam-se os têrmos akoloutheo , sigo, e mimeomai, imito.


2os Ver TWNT, I. 214; 29.

209 Cf. sôbre isto P. Feine. Der Apostei Paulus (1927) 407ss.
210 1 Co 4. l s.

ll.U Rm 10.15 cita Is 52.7 ("aquêle que anuncia o bem") para descrever a sal~
vação messiânica como objeto da mensagem apostólica. Cf. Rm 1.15; 1 Co 1.17:
916; 15.ls; 2 Co 11.7, etc.
166 Karl Heinrich Rengst01·f

bém incluía em si a autorização de Jesus dada aos seus. LJe out ro


lado, fica explicada a justaposição de apóstolos e profetas do ponto
de vista de sua significação histórica no aparecimento da comuni-
dade, tal como o vemos em Ef 2.20, justaposição que é possívei ter
sido f eita não só na prjmeira geração apostólica, mas também pelo
próprio Paulo 212.
De resto, também deveria ser clar o que os prophetai neotesta-
mentários (lCo 12.28 e Dida.quê) de modo nenhum correspondem
aos do VT, e que, pelo menos no tempo das g randes cartas pau1inas,
os p1·ophetai eram certamente apreciados, mas não desempenhavam
um papel relevante.
b. Também a posição peculiar de Paulo no círculo dos outros
apóstolos de .Jesus não pode ser separada da sua autoconsciência
profética, baseada na sua dominante iàéia de Deus. Entretanto, tal
posição não é primàriamente determinada a partir dela mesma, mas
pelo chamamento para ser mensageiro, no sentido de shaliah ju-
daico, tal como no caso dos outros apóstolos. Se em Paulo encon-
tramos maior insistência neste aspecto fundamental de seu ofício,
é porque, em última análise, os seus adversários contestavam sua
paridade com os demais apóstolos.
Segundo o início de Gl, tal contestação se deu na Galácia no
sentido de a sua autorização ser reduzida à comunidade (Antioquia)
da qual saíra (At 13.lss), ou a Barnabé que, segundo a tradição
(At 9.27), o introduzira na comunidade primitiva; daí porque Paulo
em Gl 1.1 se chama "apóstolo não da parte de homens nem por meio
de homem algum, mas por meio de Jesus Cristo"; a partir de 1.10
demonstra que seu apostolado independe de homens e, a partir de
2.lss, que é igual ao dos outros apóstolos e reconhecido em Jerusalém.
Para esta convicção contribui, além disso, a concepção do ofício
de mensageiro, originado da experiência pessoal com Jesus comu
Messias e da significação do Espírito como Espírito de Jesus 213,
possu ído por todos os cristãos que se encontram nêle (lCo 3.16;
6.19 e pass.). A partir daí, Paulo chega a fórmulas ousadas: diz
que, em razão de seu ofício "em lugar de Cristo", como represen-
tante de Cristo, pode chamar os homens para a recouciiiação com
Deus (2Co 5.20) designando essa prerrogativa como colabora1· com
Cristo (2Co 6.1).

212 Dêste ponto de vista é difícil concluir algo de decisivo contra a autenti·
cidade de Elésios. A, fórmula em si só afirma que a cnrta pertence a um tempo
em que se ~locavam objetivamente lado a lado os apóstoios neotestamentár ios e
os profetas vétero-testamentários, e êste é o tempo das cartas paulinas.
213 Rm 8.9, etc ..
Apóstolo, Falso Apóstolo, A.postolaào e En/1.1ia.r 167

O ponto alto é aqui de nôvo a idéia de Deus. Na medida em


que Paulo vê em tôda a sua vida a mão de Deus, e t ambém porque
a vida, a paixão e a morte de Jesus, bem como a pregação sôbre
êle, estão fundamentadas em sua vontade 21 4, pode êle chamar-se
cooperador de Deus (1Co 3.9) 215 e afirmar assim sua participação
no plano de Deus, não em têrmos de ação própr~a. mas comt, aih uém
a serviço de Deus e que executa uma parte do trabalho (lCo 3.8,llssj.
Daí resulta que romper com o apóstolo significa romper com Cristo,
equivalente a desprezar a obra salvadora de Deus nêle ( G1 1.6ss).
Assim é, não em virtude da pessoa do apóstolo, que sõrnente é
"alguma coisa" graças ao encargo recebido e ao Senhor que está
atrás dêie 216; mas precisamente por isso Paulo é tudo o que um
homem pode ser pela graça de Deus 217. E se não fica orgulhoso é
porque pela cruz de Cristo êie sabe que é seu servo, e ao lado da
graça que lhe foi atribuíàa também vê a responsabilidade que o
apostolado lhe impõe (1Co 3.llss). Não obstante. reina nêle a
alegria vitoriosa que é o sinal característico de seu apostolado 2U,
porque Deus controla tôda a história e porque Jesus é o Senhor de
tudo a.quilo que o ofício de mensageiro do Crucificado lhe acarre-
ta 219 • A idéia de que o sofrimento, e especialmente a pobreza, sãn
da natureza do mensageiro de Deus já se encontra no Sócrates de
Platão (Apologia 23b-c). O que em Sócrates era genuíno tornou-se
nos cínicos quase pura convenção. Em Paulo a idéia revive, mas
baseada agora no modo como se originou seu apostolado (vide sqrta.
pág. 164) e é por isto uma realidade mais amarga, só suportável
porque testemunha a dependência do apóstolo do seu Senhor. É
dêste ponto de vista que se deve entender a palavra paradoxal de
2Co 12.10. De mais a mais, a antiga Igreja católica most ra que sua
posição diante do sofrimento e da pobreza foi uma esquematização

214 Cf. o kata tas graphas, segundo i:1s Escrituras, de 1 Co 15.3s, e, além disto,
tenha-se presente o fato de que Paulo. afora 1 Ts 4.14 (onde se diz: "que Jesus
morreu e ressuscitou") , sempre se fala da ressurreição de Jesus como ato de Deus
(Gl 1.1, etc.).
21 Cf. também 1 Ts 3.2.
216 Note-se o tí de l Co 3.5; kyrios é aqui naturalmente Jesus r;omo o Enviado
e o plenamente autorhado. Cf. também 1 Co 1.13.
217 Muito significativa é a relação entre aposto!ê e charis que Paulo quase
tem por sinônimos.
21s Cf. 2 Co 1.24. "somos cooperadores de vossa alegria" ; e ainda 2 Co 8.9.a;
7.4. Essas passagens se encontram numa carta mtúto severa em que Paulo luta
pelo reconhecimento de seu apostolado.
2111 S6bre a conexão entre os sofrimentos de Paulo e os sofrimentos de Jesus,
veja-se principebnente Fp 3.10 .•
168 Karl Heinrich Rengsto1·f

<lo conceito de 'Paulo assim como no caso dos cm1cos com relação a
Sócrates; com a agravante de que o desconhecimento da situação
teve a1 conseqüências mais sérías do que no caso dos cínicos.

E. JESUS COMO "ENVIADO"

1. Só uma vez Jesus é chamado apostolos no NT, isto é, em


Hb 3.1, tBxto de que jã falamos (supra, pág. 139s). Mas a questão
e se, embora faite a palavra, a idéia não está também no Evangeiho
de João. Com efeito, aí as afirmações de Jesus sõbre suas relações
com o Pai são em larga escala expressas pelo verbo aposteilein,
enviar 220. Em vista dêsse fato deve-se perguntar se não temos aí
uma influência dos mitos orientais do salvador enviado dos céus,
que é ao mesmo tempo o "primeiro homem". Foi depois da
publicação das fontes mandéias 221 que o problema se - tornou
atual 222. Por isto é preciso dizer alguma coisa sõbre êle do ponto
de vista lingü.fstico.
No livro mandeu intitulado Livro de João (cap. 66) trava-se
um diálogo, por ocasião do envio do redentor (rnanda d'hayye) onde
se diz: "Meu Filho, vem, sê para mim um mensageiro; vem, sê
para mim um executor (de tarefas) ... " :i;:ste enviado é depois mais
bem caracterizado como o .. enviado da luz" (Lidzbarski, Ginza 58,
17.23 e passim), ou como o "verdadeiro enviado" (ib. 59.1), ou ain-
da como o "enviado da vida" (ib. 59.15). Êle mesmo se chama
•enviado ao mundo'', nos fragmentos mandeus de Zaratustra 2 2:i.
Nas fontes mandêias o mensageiro sempre se chama "a.shganda" e
para o envio sempre se emprega "shadar"; ora, esta raiz é muito
freqüente no aramaico do Talmude babilônico e corresponde aí a
"mandar, enviar··, do qual Pempein, e não a.postellein, seria o aná-
logo grego :12•. Além disto, precisamente nos textos gregos que tra-

22a Cf, G. P. Wettcr, Der "Sohn Gottes'', FRL 26 (1916) 49.


221 M Lidzbarskl, Das Joho.nnesbuch der Mandaeer (1915); Mandaeische Li-
turgien (1920); Gtnza (1925).
222 R. Bultmann, Die Bedeutung der neuerschlos~nen mandeeischen und mani-
chAeilche"i Quellen fuer das Verstaendnis des Johannesevanaeliums em ZNW 24
(1925) 100-1U; W. Beuer Johcmnea 55, a propósito de 3.17; h. H. Schaeder, em R.
Reil.zenstein unti H. H. Schae(ler, Studien zum antiken Synkretismu.s - Aus Ira:n
und GnecPLe111<tn.d (108) ~ss. especialmente 306ss; H. Odeberg, The Fourth Gospel
(1929) U 7ss; G. P. Wetter. Op. cit'.
2:s Cf. llei~stein, Iranisches Erloesungsmysterium (1921) 3; R. Bultmann,
op. cit. 106 <:om nota 7
~u Ver os exemplos em Levy, Woerter, IV, 513b.
Apóstolo, Falso A póstolo, Apostolado e Enviar 169

t.a m do .. enviado" encontra-se apostellein para descrever seu envio,


como é o caso de textos gregos cristãos como os A.cta Thomae 225.
Também no Evangelho àe Pedro se fala do envio de Jesus como
apostellesthai, envio ao qual se segue sua volta ao lugar de origem.
Aqui o discípulo responde às mulheres que buscavam a Jesus na
manhã de Páscoa: "a quem procnrais? . . . i:;"is ressuscitou e foi
para o lugar de onde foi enviado" (cap. 56) 226 • Aqui podemos
:perguntar se na expressão "foi enviado'', ainda predomina a idéia
da autorização como no uso da Septuaginta, ou se se t r ata simples-
tnente da idéia de distância espacial. Em Justino, .Jesus é expressa-
mente chamado avostolos 227 e dotado assim de um título que por
~sse tempo já tinha recebido conteúdo bem determinado, como o
ln.ostra a Primeira Carta àe Clemente Romano, onde os embaixa-
Qores da comunidade de Roma não são chamados apostolai mas
<tpestalmenoi (particípio perfeito passivo de apostellein, enviar) e
(1ue contraria, o uso cristão primitivo (vide nota 249). Assim
~e pode pensar que a noção de "enviado" que Justino aplica a Jesus
vem dos mitos orientais. A preferência a êsse título é demonstrada
Peio fato de que Mani é para os seus adoradores o Enviado 228 , como
também Maomé é chamado apostolos nos papiros greco-arábicos 229 ;
Ilum tempo posterior - certamente à imitação de Apolônio de Tiana
-- até mesmo Alexandre M:agno foi glorificado com o título de "en-
v'iado" :i:m. Em todos êsses casos aquêle que foi dotado do nome de
"enviado divino" era também anunciador da verdade 231 e, antes de
t\Jdo, aquêle que restabelece a união entre o mundo divino e humano
Pregando aos homens a fim de libertá-los de seu êrro. Tal é tam-
~m o caso de Jesus nas passagens onde Justino o chama apostolos:
C()mo aggelos de Deus êle tem a tarefa de transmitir pela palavra
1 verdadeiro conhecimento a seus ouvintes; a êste fim está subor-

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Exemplos em Bultmann, op. cit.,
2 z5 106.
2.26 Ve r também Constitutiones Apostolorum VIII, 1, 10: - " foi elevado para
jI~1to daquele que o enviara".
2:21 Cf. pág, 140.

2:28 W~tter, op. cit. 15ss. Mani tinha outros enviados a seu lado (cf. Bauer,
d'' cii.t. 55) .
!!::lll PreiS'igke, Sammelbuch ureichischer Vrkunden aus Aegypten, 0915ss).
rf 72"'10, 5.
2ruo Cf. W. Bacher, Nizdmi's Leben und Werke und der zmeite Te iZ des Nizâ-
ni liiJch.en Aiexanderbuches (Dissert., Leipzig 1871} 90.

:ia.1 Isto v ale até mesmo de Alexa ndre que é considerado como o representante
d• ve:rdadeira religião <Bacher, op cit. 9(' 94ss passim).
170 Karl Heinrich Rengstorf

dinada tôda a sua vida e obra 232. Ainda que sua finalidade seja
entendida de modo diverso da do "enviado" dos mandeus e de Mani
- e isto em razão da natureza de sua pessoa - contudo, o paralelo
objetivo existe. Por isto nem em Justino, nem nas fontes mandéias,
nem nos fragmentos maniqueus há a idéia da autorização para falar
e agir por encargo e como representante de quem enviou, mas quan-
do aparece o ''enviado", apenas se fala de sua vinda de uma outra
esfera que permanece misteriosa e da qua.i só indícíos se dão aos
seus seguidores 233, De resto, o têrmo apostellein (apostolos) em
Just ino e nos outros autores cristãos se apóia claramente na termi-
nologia do Evangelho de João.
2. Contra a referida concepção mandéia o Evangelho de João
se opõe, não do ponto de vista formal, mas quanto ao fundo. É
certo que aí Jesus aparece como enviado pelo Pai ; mas a idéia do
envio só visa explicar o significado de sua pessoa e dos fatos
decisivos que nêle se realizam, uma vez que é o próprio Deus que
fala. e age nêle. Isto se pode mostrar de três modos: (a) nos sinais
do Jesus joanino Deus o revela como prometido. e também como
aquêle em quem e por quem o pr6p~o Deus age 234; (b) na pessoa
de Jesus e na atitude que se toma em relação a êle - e não em
relação à doutrina por êle ministrada - decide-se a sorte daqueles
que o encontram 235. Assim é precisamente porque nêle Deus está
presente e porque êle r epresenta literalmente em sua pessoa o
Pai236; (e) da palavra de Jesus não se pode separar nenhuma de
suas obras nem a sua morte. Em João a morte e a glorificação de
Jesus - isto é, sua elevação para junto do Pai para participar na
sua glória e para que seja plenamente revelado como Filho - são
e constituem unidade indissolúvel 237.
Tais afirmações sôbre Jesus seriam vagas se no Evangelho de
João êle fôsse apresentado anàlogamente ao " enviado" da gnose
oriental. Jesus é muito mais do que isto, mesmo quando apostellein
é um àos têrmos mais importantes com que se descreve sua função.

2 3:? Apologia I 63, 5: "0 Filho d e Deus é chamado anj o e apóstolo, pois êle
anuncia tudo o que deve ser conhecido e é enviado para explicar tudo o que é
anunciado ... " Também em outras passagens de Justino, Jesus é chamado aggelos
(Wetter, op. cit., 28s).
233 Cf. G. P. Wetter, "lch. bin es". Th. St. Kr. 88 (1915) 224ss, 235.
234 Cf. Jo 4.34; 5.36; 9.3s; 10.37, etc •.
2Sii 3.18; cf. 3.17; 12.47 e de modo geral a preponderância da idéia do jufzo em
João .
2sa 8.16, 9; cf. 5.36s; 8.13; 10.25; 12.49; 14.10, etc .•
237 12.23ss; veja~se dêste ponto de vista 18.lss com Mt 26.36ss e pnraleloE.
Apóstolo, Falso Apóstolo, A2Jostola.do e Enviar 171

Esta palavra não corresponde ao conceito empregado pelos mandeus


quando falam do envio do Manda d'hayye. De mais a mais, quando
se encara o Jesus do quarto evangelho dêste ponto de vista, é preciso
considerar que, ao lado de apostelle-in também pempein aparece
como expressão de sua consciência de missão, de tal modo que 11ão
restam dúvidas quanto às relações entre os dois têrmos. Por isto
mesmo deve-se dizer aqui que em João a idéia do "enviado" não
influencia a sua cristologia, mas ao contrário recebe da cristo1ogia
o seu colorido. Por aí se vê que tôda a exposição de J oão est á n a
linha da missão dos profetas e tem sua característica especial no
fato de que êste "enviado" não é um homem - nem " homem pre-
existente .., nem "primeiro homem" - mas o Filho no qual o Pai
testemunha sua presença e pessoalmente oferece aos homens escolher
entre salvação e condenação.

FALSO APóSTOLO
O têrnw pseudapostolos, falso apóstolo ou pseudo-apóstolo. per-
tence aos yocábulos compostos com pseud( o) dos quais o NT tem
pseuàadelphos, :falso irmão, psoododidaskalos, falso mestre e pseu-.
domartys , falsa testemunha 238, Não se registra seu uso fora do N'l'.
Aparece sr,mente em 2Co 11.13 onde o próprio Paulo o explica:
"transfigurando-se em apóstolos de Cristo,,. Portanto, por falsos
apóstolos êle entende aquêles que se apresentam como apóstolos de
Cristo sem serem autorizados por êle. A falta de autorização se
mostra no fato de que não estão ligados total e exclusivamente a
Cristo e a Deus e por isto procuram o que é seu, em vez de servirem
com desprendimento (cf. "trabalhadores dolosos", 11.13) ; por não
saberem que é àa essência do apostolado de Cristo que .o a póstolo
seja h umilde e sofra, recebem ainda o epíteto de "super-apóstolos "
( 11.5,íl ) , fórmula que já do ponto de vista lingüístico exprime o
absurdo de tais apóstolos, de vez que um aposto los de Jesus não
poder ser suplantado por coisa alguma.
Com essas duas fórmulas, Paulo tem em vista seus opositores
judaizantes que lhe tinham contestado o direito de apóstolo (cf. Gl
1.1) ou tentado indispor as comunidades contra êle.

238 Sôbre as palavras compostas com pseudo , cf. a bibliografia apresentada


em Preuschen-Bauer, 1420 sub voce pseudo -martys e , para a história dessas com-
posições com pseudo, cf. Debrunner, Griech. Wcerterb. 37. De modo especial para
pBeudapostolos v er K. Holl, Pscudomart')Js. cm Gesammelte Aufsaetze zttr KG II:
Der Osten (1928, 110-114) 114; J. Slckenberger, Kor., 145.
172 Karl Heinrich Rengstorf

O emprêgo único do têrmo na referida passagem não só nos


leva a ver nêle uma palavra forma.da pelos cristãos (talvez por
Paulo) como também, inàiretamente, a ver no próprio têrmo pseu.da-
postolos um testemunho da linguagem cristã e paulina, que preci-
sava preservar o nôvo têrmo para designar a nova instituição dos
mensageiros autorizados pelo próprio Jesus. O Apocalipse não traz
o têrmo mas descreve a realidade: "e provaste os que dizem ser
apóstolos mas não o são '' ( 2.2).

APOSTOLADO
No grego profano o têrmo apostolê é relativamente freqüente
com seus sentidos mais diversos deduzidos de apostellein. Significa:
(a) envio de naves {Tucídides VIII, 9); {b) envio simplesmente,
até mesmo o envio de um projétil (Filão, Mechanicus, Belopoica
68,33; ed. Diels-Schramm em AAB, 1918, N. 0 13,46), como também
o afastamento ativo de um homem {Aristóteles, Rhetorica II, 23 p
1400b,lls: "errou Medéia no afastamento dos filhos"), ou ainda
:para o sepultamento de uma múmia (Papiro Oxyrin, 736,13). De
apostellesthai, ser enviado, vem o significado "expedição" (Tucí-
dides VIII, 8). Em todos êsses casos é um nonumi actionis.
Entre os judeus aparece primeiramente no sentido comum
(Carta de Aristeas 15). Mas, influenciado por shalah/apostellein
no sentido técnico. passa a significar "entregaº, como aparece nas
Epístolas de Juliano 204 (pág. 281, 4a. ed. Bidez-Cumont) em rela-
ção com o ofício judaico dos shelu.him 230 • Na Septuaginta aparece
doze vêzes 240, sempre com referência a shalah quando é tradução,
exceto em Jr 39.36 (Jr 32.36) onde em lugar de "pela espada, pela
fome e pela peste", temos: "na espada, na fome e na apostolê'" ~ aí o
tradutor modificou o texto original e em lugar de deber (peste)
interpretou dabar, palavra (de Deus). Em lRs 9.16 aposto lê sig-
nifica " <;lom, presente"; em outros lugares simplesmente "envio"
(Sl 77.49) 241; finalmente significa "envio de presentes". Flávi1J
Josefo emprega o têrmo em Antiquitates 20,50 para significar "des-
pedida solene" (cf. Vita 268) 242.

230 Cf. s. Krauss, JQR 17 (1905) 375.


240 Destas, três passagens (l Rs 4.34; 9.16; Ct 4.13) só são atestadas em parte.
J Macabeus 4 4 tem, além disto, e:rapostolê.
2u Apostotê cheiros, com sentido figurado em Áqüila <Is 11.14) onde Súnaco
e Teodócio lêem ektasis e a Septuaginta nada tem de semelhante (t.as chei'ra3
epiballo11si n, impõem as mãos).
212 Passagens citadas por Thackeray, Lexicon Josephi , 76.
Apóstolo, Fa.lso Apóstolo, Apostolado e Enviar 173

No NT apostolê aparece 4 vêzes, a saber em At 1.25, ao lado


de diakonia, serviço; em Rm 1.5 ao iado de charis, graça; em lCo
9.2 e em G 1 2.8, isoladamente. Em toàos êsses casos o têrmo clara-
mente se refere ao ofício do apostolas de J·esus em sentido técnico,
e exercido como tal. Por conseguinte, no NT o têrmo é inteiramente
determinado, quanto ao seu sentido, por apostolos e assim ocupa
posição pecul iar dentro da história geral de sua semàntica, além de
mostrar como o novo conceito de apostolas tem a tendência incoer-
cível de atrair a seu serviço têrmos afins.
Talvez tenha havido certa pré-história àessa evolução. A versão
armênia do Test.:'1.mento de Neftali tem, no cap. 2: " . .. meu pai
Jacó me destinou para tôda missão e mensagem", que pressupõe,
no texto grego, apostolen kai aggelian, além de que no têrmo apostolê
pode haver uma alusão ao sheluhâ (enviado, sôlto ?) de Gn 49.21 2.43.
Contudo, o texto grego eàitado por R. H. Charles não tem essas
palavras, mas simplesmente "para tôda a mensagem" 244. Em todo
o caso estão aí postos lado a lado apostolê e a.ggelia.
Nas fontes rabínicas aparece além disto algumas vêzes o tênno
shelihuth referindo-se a missões de mensageiros (anjos) 245 o que
corresponde objetivamente a mal'akhim; porém, não se pode con-
cluir com certeza se não foi formado a exemplo dêste.

ENVIAR
A. APOSTELLO E PEMPO NO GREGO PROFANO

1. A. postello - no sentido fundamental de "enviar", "mandar"'


é, ao lado da forma simples stellein e de pempein, têrmo cons-
tante na literatura grega e na linguagem falada tanto do tempo
clássico corno do helenismo; é abundantemente empregado para falar
do envio de pessoas ou coisas 246. Como composto de stellein reforça
em primeiro lugar o sentido dêste. Tal refôrço se observa especia l-
mente quando é empregado em sentido translato 247 ou quando apa-

243 Conjetur a de F . Schnapp em Kautzsch, llpokryphen und PSieudigraphen.


244 The Greek Versions of the Testaments of the Twelve Patrlarchs (1908) 145.
2411 Genesisrabba 50, 1 a propósito de Gn 19.1. Mais material em S. Rapport,
Agada u11d E:reg,ese bei 1'' lavius Josephus (1930) 105, e Levy, WoeTterb. IVs.

216 Numerosos exemplos em Fr. Passow. Woerterbuch def' griechischett Spra,che,


5.0 ed. 184lss; re-editado por W. Croenert (1913).
2H Cf., por ex., Tu cídides III, 89, 5.
174 .Karl Heinrich Rengstorf

:rece quase como terminus technicus us. Desta forma a,postellein se


ínclina de modo mais acentuado para o lado da consciência de um
objetivo e da tendência com vistas a um fim. Também se distingue
de pempein, o que influencia profundamente no sentido de am-
bos. Pempein encara a missão em si mesma, o ato de enviar, tal
í!omo se verifica na transmissão de um objeto. de um encargo, ou
no envio de um homem; apostelleiri, ao contrário, exprime o envio
de um ponto de vista bem determinado, único e peculiar, que não
põe simplesmente em relação o que envia e o que é enviado, mas
estabelece uma união íntima entre o enviado e o que envia. Daí
Tesulta que apostellein recebe o sentido secundário de encargo con-
fiado à pessoa enviada. No grego helenístico isto aparece cada vez
mais claramente com o correr do tempo. Já os Dikaiom.ata Graeco.,
(século III a.C.) têm esta sentença: "os que foram enviados
(apestalmenoi) pelo rei" (1,124; cf. 147.154). Temos aí um exem-
plo int.eressante de evolução semântica, tanto mais que se trata de
formação puramente verbal 249. É verdade que algumas vêzes se
fala dos administradores das províncias enviados por Roma como de
hoi pempmnenoi ( Aélio Aristides, Oratio 26 [14], 37), mas o con·
texto mostra com suficiente clareza que não se encara tanto o escopo
do "envio" dêsses administradores, isto é, a tomada de posse da
respectiva função, como o fato de sua vinda de Roma, sede do
Jmpe rium.
1

Para a distinção entre pempo e apostello é muito instrutivo


considerar os diferentes sentidos de pom;pê (envio, ou chegada,
"pomposa") e o fato de que êsse têrmo não a.parece uma única vez
no NT. e uma só vez na Septuaginta, assim mesmo num passo duvi-
doso (SI 43.14), atestado sômente por Crisóstomo (Field, Hexapla,
ad loc.) e que não é apoiado pela tradição manuscrita. De resto, o
têrmo pompê tem aqui sômente uma afinidade exterior com pempo,
estando mais próximo do theatron, espetáculo, de lCo 4.9. Na Sep-
tuaginta aparecem as formas compostas a;popo·m pê (Lv 16.10),
pampompê (!Macabeus 9.37) e proponipê (lEsdras 8.51).
2. A fórmula "enviados (apestalnuraoi) pelo rei'~, além da
idéia do envio, contém a da autorização do enviado; os homens assim

248 Ct. U. Wilcken, Urkunden der Ptolomaeerzeit (1922ss) 15, 24 (século II


a. C.), onde apost;ellesthai significa "tir ar o comando".
219 A f6rmula se conservou e tem sentido diferente de agge!os, mensageiro .
.P~«sim em Flávio Josefo (Be!!um Jtulaicum 4,32) Tito é um ap.esta!men-0s de seu pai,
isto é, segundo o contexto, "a caminho com um encargo"; e, em Clemente Romano
(Aos Corintfo:; 65, 1), os embaixadores da comimidade de Roma para a de Corinto
são chamados hoi apestalmenoi aph' hymôn, os enviados de nossa parte. Mas ver
também Lc 19.32.

..
Apóstolo, Fa.lso A..póstolo, Apostola.do e Enviar 175

designados são representantes de seu monarca e de sua autorida-


de 250. O uso de apostellein neste sentido não se restringe, pot"ém,
ao terreno jurídico. Pelo contrário, o têrmo só recebeu seu sentido
supremo quando se tornou expressão consagrada para uma autori-
zação de cunho religioso-moral. Isto se deu na diatribe cínico-estói-
ca 251, que nada mais íêz que adotar um uso da religiosidade f,'10& j_
fica 252. O cínico sabe que é "mensageiro, observador e arauto dos
deuses" (Epicteto, Dissert. III, 22, 69), não por vontade sua, ou de
seu mestre, mas porque tem a consciência de ser um enviado de Deus,
um apostaleis, como o era Diógenes (I,24,6). Epicteto estabelece a
regra (III,22,23) de que "o cínico de verdade deve saber que foi
enviado como mensageiro por Zeus". Isto significa que o último
fundamento do verdadeiro membro da escola cínica é a consciência
da missão divina.
Em todos êsses casos 253 apostellein. é te'nninus techni.citS que
designa a autorização dada pela divindade. enquanto que é empre-
gado quando se trata de um encargo confiado a um cínico1 por ini-
ciativa humana 254, para tarefas bem determinadas (l,24,3: "e ago-
ra nós mandamos um observador a Roma ... " (id. !,24,5) i55. De-
paramo-nos com um uso diferente - mesmo do ponto de vista
lingüístico - quando Epicteto descreve o cínico como sendo a única
autoridade - mesmo perante César e seus representantes - por-
que "enviou-o Zeus a quem êle cultua" (IIl,22,56, cf. 59). Temos aí
uma formulação pleonástica da consciência de missão, geralmente
expressa por a,postellesthai, ser enviado. Isto se aproxima da con-
cepção que afirma o caráter divino do verdadeiro filósofo, expressa-
mente afirmada em primeiro lugar pelos cínicos (theios anthropos,

!?líO Cf. Preisigke, Fachwoertcr 29 .


~ ~ t Sôbre êste assunto ver E. Norden, Beitraege zur Geschichte der griechischen
Philosophie , em Jahrbuch fuer Philosophie, Suppt. 19 (1893) 377ss; K . Holl, Die
schriftstellcri sche Form des griecMschen HcHigenlebiens, em N.Jb.k!.Alt. 29 (1912)
418 ; K. Deissner, Das Sendwngsbewustsein der Urchristenheit, em Z.S.Th. 7 (1929-30)
783.
2G2 Cf. pág. 117.
2G:~ Cf., por exemplo, ainda III, 23, 46; IV. 8, 31 "els que eu vos fui enviado
por deus como um modêlo" (palavras do cínico a seus ouvintes).
2:14 Note-se, porém, que numa inscrição encontrada na Sfria, um eseravo que
esmolava para o santuário da deusa sfria refet'e-se a si como pemph.theis, mandado,
pela sua irenhora (BCH 21, 60). Pode-se acaso deduzir daf que só se trata de Uina
autorização comercial e não religiosa'!
2r,;; Note-se que em 1, 24, 6 se diz de Diógenes de modo absoluto que êle é
apostaleis, enviado.
176 Karl Heinrích Rengstorf

homem div!no), !nvocando-se um pen~amento de Antístenes zr.;;. Não


é preciso ocuparmo-nos agora dessa ~oncepção , mas aludimos a ela
po-rque apesar de usar o t~n;io kata'Ae-mpein, 0 sentido dêste :rerbo
deve ser ai entendido a partir de ªP(Jstellein e não de penipein.
O emprêgo de apostellein para clesignar a comissão de um en-
cargo religioso não se restringe a E~>icteto. Irineu assim resumiu
a pretens!o de Menandro, disdpulo (le Sim.ão 1\fa,go; "como se êle
fôsse o salvador enviado uma vez do q,1to dos mundos invisíveis para
a salvação dos homens" (I,23,5; cf. Eusébio de Cesaréia, História
Eclesi6stica III. 26,1) ; certamente Il'ineu entendia tanto a fôrça do
térmo como a e:x-tensão do seu senttdo, Também Filão de Alexandria
conhece e emprega o têrmo do rn~smo modo como aparece de
Migratio Abrahae 22; a! se diz de J ª!Sé: "parec~-me que não foi en-
viado da parte de homens, mas foi ~pontado pela mão de Deus".
Temos assim um uso "religfoso"'• do têrmo em três autores que
pertenceram a ambientes muito .diferentes e que também do ponto
de vista geográftco estavam mmto ~istanciados entre si. Trata-se
de um fato que não deve ser subest:imado quando se estuda a ex-
pressão lingttrstka da consciência de, missão no cristianismo primi-
tivo (cf• .. apostolos...,.
~ evidente que o sentido origin~rio de apostellein não foi limi-
tado para desfgnar sômente a m!ss~o e a autorização religiosa de
um homem; temos ar ~nicamente o ~límax alcancado pelo têrmo em
sua evoluç!lo sem~ntica .• Ao lado dêisse empr~go, encontramos, :r:ies-
mo na (;poca do cristiamsmo, o senttido original "profano". Disso
temos diversos exemplos tambêm UQ.is textos não-literários 257.

B. .4.POSTELLO E PEMPO ~A SEPTUAGINTA E NO


JUDAfSMO ftABfNICO

1. Na Septuaginta apostel~o ªl:>~arece mais de 700 vêzes e dentre


estas, muitas vêzes, em sua v~nan~ exapostello. Com poucas ex~e­
ções serve para tr::duzlr a raiz stilk , geralmente de formas ver~a1s.
Por outro lado shlh ~ preferen~ial:Qnente vertido por apostellein, e
respectivamente por exapostellein :15 ;R. Comparados com êsses dois

~~ff Norden, op. cit., 380.


!!ü7 C!. Preisigke, l'\roerterb. I, 194.
:?:111 Estão naturalmente excluídos todos ~ casos em que a trífdução de shl h por
ap03tellein seria absurda; isto V!lle, oo:r ~X. ~a expressão shlh yd, "estender a. mão",
onde sh!h e aigumas vêzes traduzido Por ekrl'i11iftn, estender, outrllt v&tt po1
epi"ballein, impor <Gn 3.22; 22.12), conforrn'e 0 sentido
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Enviar .l77

têrmos os verbos simples stellei-n e pe1npein quase não são empre-


gados. A forma stellein nem sequer aparece, mas sõmente stellesthai,
que não entra na linha de consideração de nosso estudo. Pempein
aparece 26 vêzes 259 mas só 6 vêzes corno tradução de um original
hebraico 260 ; nas outras vêzes encontra-se em textos que só existem
em grego. Os compostos de pemrpein também são raros 261, de modo
que o quadro apresentado não é modifícado. Isto significa que para
a Septuaginta. apostelleín é o equivalente grego do shlh vétero-tes-
tamentário. Não é tarefa nossa expor todos os sentidos de shlh,
pois não tratamos aqui da palavra hebraica, mas de seu equivalente
grego. Em resumo, entretanto, pode-se dizer que na Septuaginta
apostellein corresponde ao uso do original hebraico. pois é de pre-
ferência usado quando se trata de um encargo com uma mensagem
a transmitir, ou com uma tarefa a executar. Os têrmos mal'ak e
s halah ("mensageiro" e "enviar") aparecem freqüentemente lado
a lado, sendo indiferente que se trate de um encargo com tarefas
humanas 262 ou divinas 263.
Mas, fora disto apostellein/ shlh é o único terminus technfous
para exprimir o envio de um mensageiro com uma tarefa especial,
mesmo quando esta não é expressamente nomeada 264. Por conse-
guinte, o acento está no fato do envio em conexão com a pessoa que
envia, enquanto que a pessoa do enviado fica em segundo plano.
Esta linha de significação da palavra alcança seu ponto alto na des-
crição ela vocação de Isaías. Aí (6.8) Deus pergunta: "a quem
enviarei e quem irá por nós?" significando com isto que êle preci-
sa de alguém que possa enviar com tôda a sua autoridade como seu
porta-voz, sem que isso precise ser dito de modo especial e sem que
venha a ser expresso na curta resposta de Isaías: "eis-me aqui,

~;;n Estatística conforme Hatch-Redpath.


!?r;r; Gn 27.42; 1 Rs 20.20; Ed 4.14; 5.17; Ne 2 5 como tradução de :h!h.; Et 8.5
como tradução de kthb, pois ai temos uma comunicação escrita.
2n1 Dos compostos aparecem: apopempeln, uma vez; diap;empeln, seis vêzes
(Pv 16.28 corresponde a shlh); eispempeín , uma vez; ekpempe!.11., nove vêzes (das
quais como tradução de shlh em Gn 24 54, 56, 59; 1 Rs 10.2-0 (como variante de
pemp,ein); 24.20; 2 Rs 19.31; Pv 17.11); epípempein, três vêzes <Pv 6.19 corresponde
a slt!h); parapempein, duas vêzes; propempein, cinco vêzes. ~ss es casos, em geral,
não correspondem ao mesmo original hebraico. Em todos os .textos . citados (sôbre
Pv 17.11 ver nota 279) o emprt"go de stellein, ou de um de seus compostos, desfigu-
raria o sentido da frase.
202 Gn 32.4; Nm 20.14; Js .7.22; Jz 6.35;. 7. 24;. 9.31, etc ..
!!Ga 2 Cr 36.15; Ml 3.1.

!!fl1 Gn 31.4: 41.B, 14, etc ..

...
17'8 Karl Heinrich Rengstorf

envia-me". Neste passo t orna-se claríssimo o que é característico


de shlh em todos os seus significados: a vontade e a consciência.
presentes na ação com finalidade precisa, qualquer que seja essa
finalida de. Por conseguinte, shlh, mais do que uma afirmação sõ-
l:>re o envio, o é sôbre o que envia e os seus inter~sses 265, e somente
dêste ponto de vista o enviado se torna objeto de inter@sse, encar-
nando de certo modo o que o enviou. Pouco importa quem envia
(Deus ou um homem) e quem é o enviado (um mensageiro celeste
ou terr eno) ou ainda o que é enviado. O p~so da afirmação sem-
pre recai sôb1·e quem a faz. Sob êste ponto de vista a sit uação de
Abraão é igual à de Eliézer (Gn 12.lss; 24.lss), bem como à de
Moisés e de todos os profetas.
2. É significativo que esta 1inha de pensamento também foi
adotada na linguagem da Septuaginta. Isto transparece do fato de
que não existe uma tradução mecânica de shlh por a.postellein 266,
e que algumas vêzes, mesmo contra o contexto, se usa apostellein,
e isto para fazer sobressair o elemento voluntário e autoritativo da
ação correspondente. e assim sublinhar a posição do agente.
Dêste modo, em hebraico não só se diz shlh yd, "enviar" a mão,
mas também simplesmente shlh para significar "estender a mão".
Logicamente a Septuaginta deveria escolher, conforme o contexto,
um dos diferentes sentidos dados na nota 258, quando aparece a fór·-
mula mais curta. lVIas não é êste o caso. Assim, em Sl 18.17 se diz
de Deus: enviou do alto, tomou-me; Sl 143.7 tira tôda a dúvida de
que se trate da extensão da mão de Deus para salvar o salmista. A
Septuaginta traduz o primeiro passo por "en11iou. do alto e me to-
mou"; 2 c7 ora, como o mostra a tradução de Sl 143.7, seria óbvio tra-
duzir por "enviou" sua· mão-. Em oposição a isto 2Rs 6.6 traduz
(em lugar do simples "e enviou") "e estendeu a mão", conforme o
exige o contexto. :Mas em Ob 13, num caso semelhante, shlh é inter-
p:retaào por "impor", em inteira correspondência com o contexto e o
matiz do sentido. Nas outras vêzes traduz-se por (ex) a,posteilein
cheira a expressão shlh yd (Êx 9.15; Jó 2.5 e·Ct 5.4). Só na última
passagem a expressão se refere a um homem, e ainda assim no
sentido especial de "meter a mão" por uma fresta. De outro lado,

:!Sã Deve-se notar que o sentido básico da raiz é "soltar" e que só no sentido
translato chega a significar, no intensivo, "enviarH, significado que prevaleceu com
o decorrer do tempo. Contudo, o têrmo nunca chegou a negar sua origem . Como
ficou dito, mes mo no sentido de "enviar" a ênfase é ainda determinada por SU5
origem; o sujeito agente, e não o objeto, está no centro da afirmação.
!:136 Cf. nota 258.
:ier Cf. também SI 55.4.
A.póstolo, Falso A.póstolo, Apostolado e Enviar 17.'J

ekteinein ten cheira, estender a mão, s~mente se diz de homem 268 •


Atrás dessa diferença de tradução se oculta a]go mais que uma re-
presentação espiritualizada da mão de Deus. Na limitação de apos-
tellein à ação de Deus está expressa uma nota essencial de Deus,
isto é, o absoluto da sua vontade; ademais apostellein não só tem
uma relação externa com shlh, mas também incorporou em si o ele-
mento característico da consciência e da existência de um enca~o.
Em oposição a isto, ekteinein simplesmente constata o fato da ação,
sem maior interêsse pe]o seu sujeito. Portanto, temos aí algo se-
melhante à relação entre apostellein e pem,pein, no grego clássico 269.
É evidente que também na Septuaginta apostellân não esconde
sua origem. Aquilo que apareceu como característico da palavra
no uso do grego profano, não se perde ao passar o têrmo para o
grego bíbiico, antes permanece e coexiste com o que lhe é acrescido
por influência de seu equivalente vétero-testamentârio. Neste sen-
tido deve-se notar que na Septuaginta o têrrno absolutamente não
se restringiu ao colorido religioso, mas teve, como no hebraico do
VT, uso muito amplo. Também nas narrativas da missão dos pro-
f etas 270 o Mrmo não é usado no sentido religioso ; nesses contextos
designa simplesmente o envio; só recebe um colorido religioso quan-
do a atmosfera da situação é religiosa, e porque se encara a obe-
diência ao que envia como uma atitude natural perante Deus, obe-
diência que pelos resultados práticos não se distingue da que é pres-
tada a um rei. Nota-se que com isto não se estabelece (nem se po-
de estabelecer) o uso de shlh/apostellein no sentido da descrição da
consciência de missão, tal como a possuem os cínicos que, aliás, a
descrevem com apostelesthai 211. Ao lado da subordinação incondi-
cional à vontade daquele que envia - tal como a pressupõem shlh/
/apostellein para os mensageiros - não há lugar para um alto sen-
timento de auto-estima. Por outro lado, aí estão as razões por que
não era preciso limitar ao terreno 1·eligioso o seu significado e o seu
uso - nem mesmo no caso de apostellein - embora êsse têrmo te-
nha uso consolidado nos contextos religiosos e exista, realmente, a
tendência de usá-lo como única palavra para descrever a missão di-
vina 212•

268 Segundo Hatch-Redpath, não há -exceções; quando na Septuaginta se usa


ekteinein ten cheira de Deus, o original tem notei, estender (:l!:x 7 5; Sf 2.13), ou
nasd, levantar t:tx 6.8), e não shlh.
269 Cf. pág. 173s.

270Js 6.8; .Jr 1.7; Ez 23: cf. Ag 1.12; Zc 2.15 (11); 4.9; MI 323 (3.4); :l!:x
3 .10; Jz 6.8, 14.
211 Cf. pág. 175.
272 Ver ainda nota 34.
180 J(arl Heinrich Rengstorf

3. O judaísmo rabínico emprega shlh dentro do quadro geral


que traçamos do têrmo. Em nenhum caso se constata qualquer uso
especial que não se enquadre nos sentidos profanos. Uma posição
particular é ocupada somente pelo têrmo derivaào shaliah, res-
pectivamente shaiuak ( cf. aposto los). Flávio J osefo, em quem apos-
t ellein aparece umas 75 vêzes 273 , emprega-o mais ou menos como
sinônimo de ponpein 274; às vêzes recorre a êle para descrever uma
embaixada oficial 275, Freqüentemente pempein nada mais é que
um descolo1·ido verbo auxiliar, como o nosso "deixar" 276, Mas t al
nunca é o caso de apostellein que sempre -- mesmo quando usado
ao lado de venipein - traduz a consciência da ação de que se trata.
Por isto é natural que também Flávio Josefo. quando fala de mis-
são da parte de Deus, empregue apostelleín, como a Septuaginta 211.
:tsse também parece ser o caso de 4Esdras, onde o míssus est pro-
ferido pelo Anjo (4.1; 5.31; 7.1; cf. mísít 6.3; misí 14.4; etc.) pres-
supõe um apestale, ou semelhante, no texto grego. Quanto a Filão,
j á lembramos 2 i 8 que êle conhece um uso absoluto de apostellein e
apostellesthai 279, semelhante ao da diatribe cínico-estóica ; e isso

:?n Thackeray, Lexicon to Jos,ephus, 76. Em numerosos casos Flávio Josefo,


em Ant!qu.itates, tira aposttllein da Septuaginta, sua fonte.
274 Cf., por ex ., Antiquitates 7, 191; 11, 190s; 12, 181-183. Razões estilísticas
determinam, certamente, o uso de apos!ellein ou pempein em A ntiquitates 20, 37;
Vita 51, etc..
zrn Ct. Bellurn Judaicum 4, 32: Tito como apestalmenos de Vespasiano; 7, 17s
e 7, 230: envio de tropas com escopo bem determinado; .4.ntiquitates 12, 193: apo:i-
talesomenoi com sentido de "alguns mensageiros ".
!lrn C!. por ex ., Antiqui/ates 13, 23.
::71 ''Deus en\.Iou a angdstfa dêsses"; Antiquitates
Bellum Jtulak--um · 7~· · 387:
7, 334: "Deus tem enviado um pr.efeta a -êle" (Davi).
:!78 Cf. pág. 176.
2 10 Cf. ainda De po:steritate Caini .44 . . , O elemento religioso transparece aqui
no uso passivo (epipempietai. • • apostelletai). Deve-se notar. qu e o nifal de shlh
aparece em todo o VT sômente em Et 3.13, porém atrás do passivo não está Deus.
No pual shlh aparece dez vêzes (em Mandelkern falta Gn 44.3), mas a Septua-
ginta só traduz duas vêzes pelo passivo, isto é, em Gn 44,3, num contexto profano
(os irmãos de José apestalesan, istÕ é; "foram deixados. ir") e em Dn 10.11 nas
palavras do anj o err.'iadõ a Daniel (ap;estaien, fui enviado); aqui, atrfls do pas-
sivo está Deus como quem envia. Finalmente em Dn 5.24 o particípio passado
sheliah (de shel.ah ) é conservado no passivo por apestale, foi e nviado, sendo que
a mão que escreve diante dos olhos do rei é assim interpretada como de um anjo.
Nas outras passage:ns (Jó 18.8; !s 16,2; 27.10; Pv 29.15) shlh é tradu:údo de acôrdo
com o sentido e não por apostellein. Em Pv 17.11 11eshuUah., ser á enviado, é tra-
duzido por ho kyrfos ekpempsei, o Senhor mandará; ai a escolha de ekpempein t em
sua razão de ser, pois trata-se de um aggelos aneleemon, mensageiro sem miseri-
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Enviar 181

o isola tanto em relação ao uso rabínico como ao de Flávio Josefo,


pois o seu a,postellein não está sob a influência de shlh, a cuja na-
tureza não pertence nenhum tom religioso.

C. APOSTELLO E PEMPO NO NT

1. No NT encontramos apostello umas 135 vêzes. A palavra


é sobretudo empregada nos Evangelhos e em Atos sendo que fora
dêles s6 apar,ece umas 12 vêzes, das quais 3 em lJo e 3 em Ap;
também I:aulo tem 3 exemplos (Rm 1015; ICo 1.17; 2Co 12.17),
4 com a inclusão de 2Tm 4.12. Além dêstes passos aparece ainda
€m Hb 1.14 e lPe 1.12. Nos Evangelhos e em Atos o têrmo ocorre
uniformemente, correspondente à extensão de cada um dêsses livros.
Portanto aí apostellein é parte integrante do vocabulário. Dos com-
:postos encontra-se ainda, afora exapostellein, synapostellein (2Co
12.18).
Ao lado de a,postellein., pempein aparece umas 80 vêzes. Des-
tas, 33 se encontram em Jo e 5 em Ap; das restantes, 10 em Lc,
12 em At, somente 4 em Mt e uma única vez em Me (5.12). Em
Mt sempre aparece na forma pempsas, tendo enviado, com um outro
verbo na forma finita. Por conseguinte, em oposição a aposteUein,
pempein é distribuído muito irregularmente nos livros históricos.
Numa visão de conjunto de todo êsse material, o quarto Evangelho
QCupa posição especial no que diz respeito ao empr~go de pempein,
-0 que nos obriga a tratá-lo em separado.::- Mas afora o quarto Evan-
gelho, é nos escr itos de Lc que o uso de pempein se destaca parti-
cularmente. Isto se .torna ainda mais notável quando consideramos
os compostos de pernpein e observamos sua distribuição dentro do
NT. Com efeito, anapempein aparece 5 vêzes, das qtiais· 3 em Lc,
1 em At; ekpempein, 2 vêzes (At); rnetapempesthai, 9 vêzes (At);
prop~w.pein, 9 vêzes, das quais 3 em At e nenhuma no Evangeiho;
.synpempein, 2 vêzes (Paulo). Portanto, do total de 27 casos, en-
contramos em Lc e At não menos de 18, enquanto que Mt e Me não
-0s usam; Jo (no sentido mais lato), só usa uma vez (2Jo 6, pro-
pempein). Mas a estatística recebe todo o seu valor só quando é
completada pela ínvrstigação de cada caso em particular. Daí trans-
parece que para Lc, como para Flávio Josefo, pempein não é ""o
têrmo de uso normal" para "enviar" 2so, pois, mesmo do ponto de
· 1 · á l tão estreitamente com Deus como acon-
-cõrdla e o tradutor não quis rc ac1on - o 1 E J 5 15 (texto bl•
• ece~ com apost.c!!cin e como acontece no texto orl11na . n:1 z . 1 n formu
' t ) . Ob 1 · Is 'iO l trntn-i;e de assuntos profonos e CI Scptungmtn una n
<!er o , • • ·
.ativa.
280 Thackerny, Ll':rfcoon to J os1~11111111, 711
182 Karl Heinrick Rertgstorf

vista estatístico, o emprêgo de apostellein é mais freqüente. Não


obstante, êle se aproxima de Flávio Josefo porqae como neste, ao
lado do uso específico tanto de apostellein como de pem-pein, trans-
parece um uso mais ou menos sinônimo dos dois verbos (cf. supra,
pág. 180) 281 • Assim Lc, como Flávio Josefo, ocupa posição inter-
' ie1...iári a entre o uso de apostellein determinado pelo sh.lh vétero-
testamentário (imbretudo na Septuaginta) e o uSo muito menos di-
:f erençado próprio do helenismo ; mesmo assim, êle está mais pró-
ximo do uso neotestamentário do têrmo do que Flávio Josefo.
Pal:'ece que também existe uma afinidade entre Lucas e Flávio
~foseio :no fato de que ambos, aparentemente, eJXlPregam pe1npein
tina le{Tonta e pempein legon, "mandar (alguém) dizer", alternada-
mente com apostellein; isto certamente provém de razões estilísti-
cas. Se esta observação é correta, a fórmula expressaria a entrega
de urn encargo ( legein!), apesar do uso de pempeiti, o que seria mais
um ~rg umento para a tese de que Lc e Flávio J 0sefo nãG dão valor
especial a apostellein. Compare-se, por exemplo, Lc 7.6 com 7.3
(apesteilen, enviou); 7.19 com 7.20 ("enviou-nos a ti para dizer");
At 15.22 (enviar varões ... escrevendo por meio dêles, cf. 25) com
15.21 (<enviamos portanto ... ) e 15.33 (foram de~ados ir para jun-
to dos ~ue os haviam enviado); Flávio Josefo, }..ntiquitates 18,235
(enviar o mais fiel. .. para dizer) com 326 (o rei me enviou).
Os motivos principais da diferente ocorrência. dos dois têrmos
no NT e de sua diferente distribuição residem no caráter religioso
desta literatura e de seu conteúdo; outro moti~O se encontra na
orievtas;ão diferente dos dois verbos tal como se verifica na sua evo-
lução ('.cf. pág. 174). Esta última diferença pode encontrar-se
mesrno onde parece não haver nenhuma diferença. no uso de apos-
tellei:n e pempein 2s2.
Enn todo o caso, pode-se dizer, de modo geral, que no NT o uso
de ptnmpein desloca a ênfase para o envio como tal, e o de apos-
telleín. !!Jara a função ligada ao envio, pouco importando a projeção
daquel~ que envia ou daquele que é enviado. A-e,rolução do emprêgo
do têrrl'lo, tal como se pode observá-lo na Sept1l&ginta, e também
em flá.vio Josefo explica porque os sin6ticos nunca usam pempein
quando falam de Deus, mas s&mente apostellein 283 e - se nos é licito

2& 1 Cf., por ex., hot pemphthentes, os enviados (pelo centurilo de Cafarnawn)
cm LC 7 .. 10, depois de usar apesteilen em 7.3; comparar êste uso com Flávio Josefo,
Vita iao:s.
2s2 'I:"alvez não seja impossível fazer-se distinção compsrando-se Mt 21 .36ss e
Me 1~.4s:s, de um lado, e Lc 20.11, de outro.
2s3 Iwlt 10.40; Me 9.3, (Lc 9.48); Mt 15.24; d. Jo 1.6.
•I Apóstolo, Falso A.póstolo, Apostolado e Enviar 18S

formular juízo sôbre a linguagem de Paulo apesar do pouco uso que


faz do t.lrmo - explica também porque Paulo se coloca nessa mes-
ma linha284.
2. Uma posição peculiar ocupa o Evangelho de João. Aí usa-
se ora apostellein e ora pempein. indiferentemente. Com efeito, do
mesmo modo corno Jesus, para caracterizar sua autoridade em face
dos judeus28ã e dos discípulos 286 emprega o têrmo apostellein -
dando assim a entender que atrás de suas palavras e de sua pessoa
está o próprio Deus e não seu desejo de se impor - e também do
modo como nas orações descr eve por esta palavra sua posição pe-
rante Deus 287, igualmente, e no mesmo contexto, êle usa pempein,
sem que transpareça qualquer diferença de sentido. Porém, olhan-
do de mais perto, vê-se que o Jesus joanino quando fala de seu en-
vio por parte de Deus e emprega pemtpein, sempre fala de Deus
como o pe1npsas me, que me enviou. ~ste modo de falar é restrin-
gido por Jesus a Deus, podendo a fórmula ser ampliada para ho
pempsas me pater, o Pai que me enviou 288 ; contudo quando Jesus
se refere a si mesmo, usa outras formas de pempein. Não aplicada
a Jesus, a fórmula aparece uma única vez nos lábios de João Ba-
tista "aquêle que me enviou para batizar com ãgua". Das 33 pas-
sagens com pem;pein que se encontram em João, não menos de 26
pertencem a esta rubrica 2139. Por ºoutro lado, nesse Evangelho Deus
nunca é chamado ho aposteilas me, o que me enviou , mas em todos
os casos onde se diz apostellein do envio de Jesus por Deus, temos
uma proposição indicativa.
::8;ste fato, à primeira vista extraordinário, tem sua explicação
em que no Evangelho de João usa-se apostellein a respeito de Jesus
quando está em foco a fundamentação de sua autoridade na de

284 D~s duas passagens não !nteiramente claras deve-se dizer o seguinte: em
Rm 8.3 a tônica não cai tanto sôbre o env!o de Jesus como sôbrc sua vinda,
::onnide:::ada como uma obra de Deu s; neste sentido pempein tem aqui um bom
sentido. E."ll 2 Ts 2.11, ao contrário, apostellein também da::-ia um bom sentido.
:s3 5.36, 3B; 6.29, 57; 8.42; -1-0.36.
2611 3.17; 2Q.21.
2lr7 1U2; 17.3, 8, 18, 21, 23, 25.
288 5.37; 6.44; 8.18; 12.49; 14.24. A fórmula é tão complexa que no decurso
da história do texto o simples ho pempsas me foi freqüentemente aiongado pelo
acréscimo de ho pater; por ex., em 5.30; 6.29; 8.16.
2ss Dwe-se.,. jqntar: ainda 7.18 e · 13.16' embora eom ho pempsas auton s~ fale
de um hemem que envi:a, p<iis ambas as passagens se entendem a partll' da
posição de Jesus a quem "o Pai enviou"; o primeiro é uma ilustração, o segundo
uma conseqüência para a atitude interna e externa do "apóstolo".
184 Karl Heinrick Rengstorj

Deus. isto é, na autoridade que responde por suas palavras e obras


e que garante seu direito e sua verda<'.ie. Ao contrário, a fórmula
ho perr1,psas (pater) serve para afirma).· a participação de Deus nas
obras de Jesus pelo fato de o ter enviaôo - sentido êste que se har-
moniza inteiramente com a idéia joavina sôbre Jesus, cuja "obra
procede da obra de Deus " e através de quem "a ação divina realiza
• seu propósito" 2 110•
Do ponto de vista puramente lingüístico temos neste uso de João
um significativo paralelo com Epicteto nas afirmações sôbre o en-
vio do cínico por Zeus. De um lado, o encargo confiado pelo envio
é descrito por apostellein, e de outro, zeus é para o cínico o katape-
pornphôs, que o enviou (Dissertatio, JlI,22,56). Não se deve dar,
porém, demasiada importância ao par"'lelismo. Com efeito, a pró-
pria f órrnula aparece uma única vez em Epicteto, e por isto não
temos a priori nenhum direito de dar-lhe maior valor. Além disto.
embora h aja aí uma afinidade exterior entre Epicteto e João, a ten-
dência daquele é totalmente diversa do ]!O pempsa.s (pater) de Jesus.
O cínico não reconhece nenhuma autoriàade humana acima de si,
pois como mensageiro de Zeus só a êste deve prestar contas. Ora,
ta l pensamento está fora do campo de visão do quarto Evangelho,
de vez que é excluído pelo fato de que entre Jesus e o "Pai" existe
uma unidade de querer 291 e de agir (10.30; 14.9), que não dá mar-
gem para a idéia de "responsabilidade"; mas a razão fundamental
por que aquela concepção é impossível em João é que, ao lado de ko
pater apestalken me (5.36), o Pai me enviou, também aparecem
as fórmulas eltkon, vim (10.10; 12.47) e elelytha, tenho vindo (12.46;
16.28; 18.37), que afirmam a unidade de Jesus com Deus já anterior
à sua existência terrena. Tais concepções são impossíveis :par a o
cínico. Por :mais que o uso do têrmo em João encontre eco em ter-
reno extrabíblico, também se torna claro que êsse uso reflete a
cristologia especificamente joanina, a qual descrevendo a Jesus sim-
plesmente como o Filho sublinha de maJleira categórica a ·unidade de
Jesus e Deus. ~ desta concepção qae apastellein e pe·m pein receberam
seu carát~ próp:rio no quarto Evangt!lho, sem que, por sua 'Vez,
tenham influenciado na sua cristologiil· Isto provém do fato de
que também em João essas duas palavras não se tornaram .têrmos
teológicos como tais. mas receberam o aeu sentido religioso ·tto pró-
prio contexto, a despeito de serem antes t@rmos profanos.- .

• 2110 A. Schlatter, Joha1t11es 130, a propósito 6• 4.34.. Em passagens como 5..36ss


e 7.28s, esta diferença entre apo3tellein. e pemµein é confirmada. Observe-se dêste
ponto de vista cristológico que, quando se faltl do envio do Espírito por Jesus,
sempre se di:z: pempetn e não apostellein (15.26; 16.7; cf. 14.26).
2 111 Note-se neste ponto a redação da perfçope do Getsêmane em Jo 18.llss,
em comparação com a de Mt 28.:IBs e paralelos.
Apóstolo, Falso Apóstolo, Apostolado e Envfar 185

Dêste ponto de vista cai por terra a opinião de que em João


apostellein manifesta de modo especial a "fiiiação divina de Jesus
antes de sua entrada no mundo" 292. Não é verdade que essa fi-
liação receba a sua garantia no envio de Jesus, mas ao contrário:
porque Jesus é para João o Filho, o seu envio recebe significado,
isto é, torna-se o ponto de referência da decisão e da separação dos
homem~.

3. Olhando agora para o conjunto do emprêgo de apostelleirt


no NT. devemos finalmente dizer que o têrmo começa aí a se tomar
um terminus theologious 293 com o sentido de e'!llViar pa.ra, o serviço
no Reino de Deus, com autoridade (fu.ndada ern Deus) . Não se trata
de uma evolução a partir do sentido original do vocábulo 294. Antes,
é o resultado claro da influência do uso neotestamentário de apos-
tolos. E assim a história semântica de apostellein desemboca, no
NT, na de apostolos.

D. O COMPOSTO EXAPOSTELLO

Êste têrmo aparece pela primeira vez na Carta de Filipe em


Demóstenes ( Oratio 18,77) e é freqüente no grego desde Políbio ~ 911 •
Quanto ao sentido é essencialmente sinônimo de apostellein 296. Na
Septuaginta é usado promlscuamente com apostellein, como o mos-
trãm numerosas variantes, embora não seja tão freqüente como êste.
Também Filão não conhece diferença de sentido entre exa,pos-
tellein e apostellein, como se pode ver do fato de que ê!e interpreta
o nome Mathousala (metushelak, Gn 5.21ss) ora como apostolé tha-
natou 297, ora como exapostolê thanatou 2D8, isto é, "expedição ou
embaixada da morte". Também em Flávio Josefo o têrmo (Vita
57,147) 299 não tem sentido especial.

:.'ll:: Cf., por ex., Cremcr-Kocgcl 1018.


!!fl~ Mt 10.5, 16; Lc 22 35; Rm 10.15; 1 Co 1.17.
2!H Isto é demonstrado pelo fato de que em todos os evangelhos - tal como
em todo o resto do NT - encontramos o sentido original dos vocábulos lado a
lado com sentidos que já começam a se limitar. Exemplos são supérfluos.
211:1 H. Anz, Subsidia ad cognascendum Graecorum sermcmem vulgarem ex Pen-
tateu.chi versione Alexandrina repetita (1894), 396.
290 Cf. também os exemplos em Preisigke, Woerterb. I, 509.
201 Cf. o texto de Filão em De posteritate Caini, 73.
:os Ib 41; 44.
29~ A. Schlatter, Lu1ea:r 121.
1s6 Karl H ei.rtrick Rengst-0,1·/

No NT e:tapostello aparece 13 vêzes, das quais 11 en1 Lucas


(Lc 1.53; 20.10,ll; 24.49 ; At 7.12; 9.30; 11.22; 12.11; 13.26; 17.14;
22.21) e 2 em Pa ulo (Gl 4.4,6). Todos os passos de Lucas, exceto
24.49, trazem a fórmula exa.<>postellein tina kenon., mandar embora
de mãos vazias, fórmula corrente na Septuaginta ( Gn 31.42; Dt
15.13; etc.), mas não encerra qualquer sentido especial soo. Tam-
bém as outras passagens se enquadram sem dificuldade no ~ue dis-
semos acêrca de apostelleien.
Por aí se vê que do ponto de vista puramente lingüístico não
se pode sustentar a tese de Zahn 301 de que em Gl 4 4.4 302 c:i ex- ele
exapesteilen, enviou, serve para significar que "o enviad(), antes
da missão, estava junto daquele que o enviou", a saber. q11e neste
caso "Jesus antes de seu envio, isto é, antes de seu nascimento _
como o afirma a expressão "feito de mulher" - estava fonto de
Deus (Jo 17.5) ou em Deus (Jo 1.1). "A verdade é que est:t passa-
gem de :Paulo, que lembra a João, não atribui no verbo "enviar"
nenhum sentido cristológico, mas que a tonalidade cristológica do
têrmo se deve ao contexto em que é empregado. Até mesmo se pode
dizer, numa fôrça de expressão, que Paulo em Gl 4.4,6 :não fala
de Cristo prôpriamente, mas de Deus e da salvação por êle querida
e realizada "a seu tempo".
\,

* * *

soo Marcos, na passagem pa171lela a Lc 2.10 tem apcsteilan kenon <Me 12.3>.
s111 Th. Zahn, Ga!uteT 199, ad Zoe.; bem como muitos outros antigos e lhodernos .
so2 Mutatis mut4ridis, esta tese também vale para 4.6: "enviou ... e EsPfrito
de seu Filho".
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STHACK-BILLERBECK, III 2ss.
BI SPO

por
HERMANN WOLFGANG BEYER
fNDICE
BISPO

Episkopos no grego extrabíblico 193


1. Os deuses como episkop-oi, 193
2. Homens como supervisores, vigias e espiões, 195
3. O cínico como kataskopos e episkopos, 196
4. Episkopos como designação de cargo público... 197

Episkopos no judaísmo ············· ~ ······~~·····•ª


201
1. Deus como episkú1XJS, 201
2. Homen<> como episkcrpoi, 202

Episkopos no Nôvo Testamento 203


1. Cr isto como episkopos, 203
2. Episkopoi como líderes da comunidade, 204

Origem e pr:imeira evolução do episcopaào 207


Bibliografia
BISPO

A. EPISKOPOS NO GREGO EXTRABíBLICO

A palavra episkopos é melhor traduzida pelo vocábulo "super-


visor" ou "vigia". A partir dêsse significado básico àesenvolveu-se
um duplo uso ào conceito, que, no cristianismo, volta a unificar-se
de maneira clara.
No grego clássico, episkopos é usado no sentido de: (a) "defen-
sor " e "patrono'', em sentido amplo; a ação de episkopos consiste aí
em mostrar benevolência e cuidado para com aqu~l e que está entregue
ao seu patronato; (b) título para designar diferentes funções e
encargos; as atividades incluídas nessas funções são as mais varia-
das. Usado neste sentido. episkopos não possui qualquer ressonância
religiosa; ao contrário, êle sempre se aplica a encargos inteiramente
profanos, a obrigações técnicas e financeiras. Em oposição a isto,
sob o sentido de "protetor", "defensor", "patrono ", oculta-se todo
um mundo de representações religiosas; isto transparece do fato de
que geralmente os deuses recebem êsse título.
1. Os deuses cpmo episkopoL .
Sempre que os gregos sentiam a presença de alguma fôrça
superior ao homem, afirmavam a existência de uma divindade. Os
deuses gregos são f~rças naturais persnnalizadas 1, isto é, ~rças
parciais da fôrça universal e original que a tudo preside. Por con-
seguinte, os deuses têm uma relação especial com as partes do mundo
criado que lhes estão mais pr óximas e que estão sob os seus cuidados,
quer se trate de homens particulares por êles protegidos. quer
de cidades, povos, lugares, fontes, florestas, etc. A divindade vela
sôbre os homens e as coisas que e:f;ão entregues à sua proteção,
cuida d~les e até luta por êles conLra outras divindades ou podªres.
Do fato de que deuses presidem aos diferentes domínios da vida so-
cial, esta recebe seu caráter sagrado e obrigatório. Nesta sua qua1i-

1 O. Gruppe, Gri,echische Mythoiogie tmd Religionsgeschichte II (1906) 1059;


U. von Wilamowitz-Moellendorf, Der Giaub2 der Hellene n I (1931) 18s.
'194 Hennann Wol.fgang Beyer

dade e atividade de patrono e protetor, um deus pode ser designado


como episkopos, pois nesta palavra é claramente expresso o núcleo
central da relação entre êle e seu protegido. Presiàe como guaràa
e vigia sôbre as instituições que estão sob a sua proteção.
Já Homero (llíaàa, 22, 254s) chama os deuses "supe1·visores "
dos tratados, que assim são santificados e tornados invioláveis:
"serão testemunhas e supervisor es (episkopoi) dos tratados"- A
união dêsses dois conceitos "testemunha e supervisor " - que mais
tarde desempenharia papel tão relevante na comunidade cristã -
encontra-se mais uma vez em Herodiano (Historia.e VII, 10, 3) onde
Zeus é chamado "testemunha e supervisor" das ações. Píndaro
(Olyr,.pia 14, 5) louva as Charites como protetoras dos habitantes
da cidade dos mínios. I!squilo (Septem contra Th ebas 271s} designa
os deu ses como protetores do mercado, assim como patr onos da
cidade e do campo. Da oração de Electra (~ squilo, Choephori 124ss)
transparece que os deuses são não apenas protetores, mas também
retribuidores que castigam o mal praticado: Electra espera que os
deuses se interessem pelo pai assassinado e se mostrem favoráveis
ao seu vingador. Nêmesis, a mensageira da deusa Justiça, é descrita
como episkopos, destinada a vigiar sôbre os pecados dos filhos con-
tra seus pais (Platão, Leges IV, 717d). Numa inscrição tumular
do século II d. C., em que se ameaça o violador de túmulo, as Erínías
são invocadas como evislcopoi, enquanto que se deseja que Charis e
Ilygieia, (as deusas) Graça e Saúde, velem (e pisk opeie) sôbre quem
se aproximar com boa intenção (lG XII, 9, 1179, 30ss); veja-se t am-
bém IG XII, 9, 955, lOss. Igualmente o daim oní-on, gênio protetor
do indivíduo, pode desempenhar o papel de episkopos (Papy rus
Grecs du ]1,fosée dit Loiwre 63, col. IX, 47ss: século II d. C.). Baco
é chamado vigia (epislcovos) das vozes noturnas (Sófocles,
A n t1;gone, 1148). Palas Atena eleva as mãos sôbre a cidade como
episkopos (Demóstenes, 01·ationes 421; ed. J. Bekker 1854). Calí-
maco chama a Ãrtemis "vigia dos caminhos e dos portos" (H11m ni
III, 39) ; e a certa altura (III, 259) emprega a palavra composta
lim enoskopos, vigia dos portos 2. Da mesma forma em Plutarco
(Quaestiones Graecae 47, II, 302c), Ártemis tem o título de episko-
pos. Segundo a .4ntho!ogia Palatina (IX, 22) também as parturien-
tes estão sob a sua proteção.
De maneira bem ampla 'Pluh1rco (De Camillo 5, I, 131s) chama
a Zeus e os deuses de "vigias sôbre t ôdas as obras boas e más", de
modo que já o Thesaurus Graecae Linguae de H. Stephanus (1831 ss)
tenta elucidar o conceito mediante uma alusão a Hesíodo (Opera,
et Dies 267): "o ôlho de Zeus que tudo vê e tudo entende". •

2 Cf. E. Spanhemii , in Ca.l!imachi h·ymnos observationes (1697) 158.


Bispo 195

Na representação de uma divindade como episkopos transparece


a antiqüíssima concepção de que o olhar de Deus vê a ação do ho-
mem até nos seus recessos mais secretos, de modo que nada lhe é
oculto. Sexto Empírico (Ad·verS'"úS 1'rfathetna.ticos IX, 54) reproduz
tradição paralela a esta concepção segundo a qual os antigos legis-
ladores, represenU:.ndo a divir 1aue como vigias ( episkopoi) das
ações boas e dos pecados dos homens, entendiam que ninguém pod•!
praticar secretamente o mal contra o próximo sem o temor do cas-
tigo dos deuses (Cf. também Plutarco, De Fato 9, II, 573ª). Lúcio
Aneo Cornuto leva até as últimas conseqüências a idéia de que cada
deus tem seu âmbito particular, sôbre o qual domina como epi.<;kopos,
vigiando, protegendo, castigando: Zeus e Palas Atenas são os pro-
tetores de cidades ( Theologia Graeca 20, ed. C. Lang 1881, pág. 38,
1); Pan, Posêidon, Apolo, Diontsio, Hermes são patronos de regiões
particulares. A musa Erato é a protetora do poder da convicção
dialética (Theologia Graeca 14, pág. 16, 18).

2. Homens como supervisores, vigias e esp-iões.


No mesmo sentido fundamental em que episkopos é aplicado
aos deuses, pode também ser aplicado a homens tendo em vista as
suas atividades, com a diferença de que, neste caso, tem sentido
menos caracterizado e mais variável. Mesmo aí, porém, a vigilância
protetora é a idéia central da atividade que os homens exercem como
episkopoi. Assim), o Thesau.rus Graecae Linguae pode resumir 'l
sentido do têrmo com esta definição: qui 'rei alicui curandae prae-
1ectus est, quem. foi encarregado de cuidar de alguma coisa.
Na fronteira entre o divino e o humano acha-se o ser fabuloso,
Argos, o qual, segundo Hesiodo (Frag1ne-nta 188), exerce a funçii.o
de vigia, e com seus quatro olhos vê em tôclas as direções. Os guar-
das de um cadáver são episkopoi (Sófocles, .4.ntigone 217). Um
dragão é o guarda de Dirce (I<Jurfpldes, Phoenis.c;ae 932), Platão
exige que os nomophylakes, guardas da lei, se.iam epfalcopoi, vigias,
de modo que não haja transgressões (Leges VI, 762d), e designa a
própria retidão corno vigia (ib., IX, 872e). Segundo Plutarco, Sólon
instituiu um conselho como vigia ( e'[Fi.skopori) e guarda àe tôda::; as
leis (De Solone 19, I. 88d).
No sentido de .. supervisor" de bens é aplicado, em Homero, ao
capitão de navio e ao mercador (Odisséia 8, 163). Segundo Platão,
mulheres devem ser supervisoras dos jovens casais (Leges VI, 784a;
cf. também VII, 795d). Os vigias do mercado são supervisores tanto
do comportamento bom, como do inconveniente (VIII, 8t19a) ; Fídiag
é o episkovos, supervisor, das construções de Péricles (f1utarco,
De Pericle 13, 1, 159e). Domatôn episkopos (Ésquilo, Eumenidrm
196 Hermann Wolfgang Beyer

740) significa "administrador dos edifícios". H eitor morreu como


" protetor" da cidade de Tróia (Homero, Ilíada 24, 729s). E. final-
mente, episkopos pode significar "espião", "informante" (Homero,
Ilíada 10, 38, 342; Sófocles, Oedipus Coloneus 112).

3. O cínico como kataskopos e episkopos.


Na filosofia cínico-estóica 3 os tê1·mos episkopôn, vigilante, e
episkopos, vigia, são usados em sentido especial. Para compreen-
d ê-los bem é preciso ver a relação que existe entre as formas deri-
vadas de episkep - , vigiar, e a forma afim kcdask opos, observador,
têrmo com o qual Epicteto descreve a atitude fundamental do cínico.
Êste sabe-se filósofo, n ão no sentido de que medi ta sôbre o enigma
do mundo, mas no de ser portador de uma missão divina no mundo,
como profeta e pregador do arrependimento, que ataca a vida cor-
rupta de seus semelhantes, exercendo assim profunda influência nas
vidas dos homens. Esta missão é definida com os têrmos aggelos kai
kataskopos kai keryx tôn theôn, mensageiro, observador e arauto
dos deuses (Epicteto, Dissertationes III, 22, 69), ou aggelos kai
kataskopos, mensageiro e observador (lb., III, 22, 38) ; mensageiro
dos deuses enquanto sabe que é enviado por êles 4; e arauto e -pre-
gador dos deuses porque anuncia o juízo divino sôbre os homens.
Nessas duas designações de sua atividade aparece kataskopos tôn
theôn, observador dos deuses. Isto significa duas coisas, e em ambas
está presente o significado básico de "espiar" : em primeiro lugar
o cínico se informa sôbre o que "é amigo e inimigo do homem" (III,
22, 24). Esforça-se, portanto, por conhecer a verdade como base
para uma vida ao mesmo tempo moral e racional. "Vendo-a clara-
mente deve, então, voltar e anunciar o que é verdadeiro" (III, 22,
25). Em segundo lugar, é tarefa do pregador cínico provar os
homens e ver se sua vida é conforme a verdade reconhecida como tal.
Neste ponto, para descrever a atividade observadora do cínico,
em vez de kataslceptestha,i, observar, usa-se algumas vêzes episkopein,
vigiar (III, 22, 72. 77, 97). Sua tarefa consiste em "pôr à prova"
todos os homens, e ver o que fazem, como vivem, o que lhes interessa,
onde deixam de cumprir seus deveres. "Desta forma êle se dirige
a todos; <lesta forma êle cuida de todos ". No mesmo sentido conta
Dion Crisóstomo que Diógenes visitou os jogos Ístmicos, não para
ver os competidores "mas penso que para obsenar ( episkopôn) os

3 Cf. a respeito E. Norden, Jahrb. fuer Phil. Supplementband XIX (1893) 378,
com numerosos exemplos; Wendland, Hellenisttsche Kultv.r, 2" edição, 82; sobretudo
o artigo Apóstolo (pág. 118-123).
1 Epicteto, Dissertationcs III, 22, 2; aggelos apo Díos, mensageiro da parte de
Zeus ; Epicteto, Díssertationes III, 22, 23; III, 1 37.
Bfapo 197

homens e sua estultícia" ( Orationes 9, 1). Segundo Luciano ( Diawgf.


Mortuorum 10, 2), Hermes diz a Menipo: "entra (na barca de
Caronte) e ocupa o primeiro lugar no alto ao lado do timoneiro
para que vigies ( episkopeis) a todos" .
. De gra~d? interês_:ie é o fato de que. a forma verbal (particípio)
episkopón, v1gllante, nao conduz, em Epicteto e no·· outros escritores
ao conceito de epískopos. Quando necessário' sempre recorrem a~
~rmo kataskopos, observador. A razão pode ser que episkopos de-
mgna em geral aquêle que tem (supervisiona) determinado encargo
ou ofício. Sõmente no século III d. C. - e a partir de representa-
ções mais recentes (cf. o artigo "Apóstolo", nota 19) - aparece,
uma única vez, o substantivo episkopos no sentido em que Epicteto
emprega kataskopos: o cínico Menedemo, segundo a descrição de
Diógenes Laércio (VI, 102), disfarçou-se em Erínia e se apresentou
como observador ( episkopos) dos pecados dos homens, enviado do
Hades, para depois voltar e informar os deuses sôbre o que viu. Mas
o caso é único 5 e, de resto, êste sentido de episkopos e episkop~n
não se impôs.
4. Episkopos como designação de cargo 'JJÚblico.
No grego antigo a palavra episkopos foi usada de formas muito
diversas para designar os portadores de funções públicas mais ou
menos determinadas.
a. Em Atenas o título episkopos aparece nos séculos IV e V
a. C. e é aplicado aos funcionãrios do gov~rno. Quem nos informa
a respeito é sobretudo Aristófanes que em Aves ( 1022ss) d~screve
o comportamento de um episkõpos no reino dós pássaros. Trata-se
evidentemente de alusão a exemplos históricos que existiram, como
se deduz das glosas feitas à sua poesia e das inscrições, nas quais
o funcionãrio é descrito tal como Aristófanes o pinta. Segundo
Harpocrácio, sub voce s, epislcopoi são funcionários que os atenien-
ses enviam para junto dos membros da aliança marítima ática. Em
AteI\as êles eram escolhidos por sorteio dentre os cidadãos e enviados
aos lugares designados, onde exerciam uma espécie de cargo oficial
cujo âmbito e extensão não pode ser exatamente determinado 7,

!! Pcrt:into, é preC'iso ater-se à clara distinção entre kataskopos e episkopos,


tal como Nordl'n a elaborou (cf. nota 3, :s78) e Rengstorf a aprofundou (cf. artigo
Apóstolo). A atividade de kataskop os como episkopôn dirlg~·se a todos
os homens. Cf. K. Deissner, ZSTh 7 (1929/30) 783.
e HarpoC1"ationis Lexicon tn decem OratOTea Atticos, Ed. W. Dindorf <1853).
Cf. também Suldas, rub i•oce: e também Anecc!ota Graeca I, 254.
T G. Busolt, Griechische Geschichte bis zur Schlacht bet Chaironcia (1885/1904)
III, l, 225 e 590; U. von Wilamowitz-Mocllendorf, Philologische Untcrsuc1'.ungen
1 0800) i6 e 75s.
'1'()8 Herm.ann W olfgang Beyer

Certamente tinham de zelar pela ordem pública e pelas relações


normais com Atenas. Talvez fôssem investidos ainda de atribuições
judiciárias a. Da descrição de Aristófanes deve-se deduzir que não.
eram muito estimados. Exemplo da chegada de um episkopos temos
na inscrição de Eritréia (IG I, 10, 11) 9: aí no ano 465 a. C., devia
&;r introàuziàa uma nova constituicãolO com auxílio de funcionários
enviados de Atenas, a saber, o chéfe da guarnição ("frurarca") e
os episkopoi, êstes como funcionários civis a quem cabia providen-
ciar a convocação do primeiro conselho de cidadãos; no caso, as
convocacões ulteriores eram da responsabilidade do "frurarca" e do
conselhÓ anterior. Não resulta daí, porém, que os episkopoi só
exerciam atividades temporárias e estritamente determinadas. Em
l\Iitilene êles aparecem corno funcionários permanentes (Dittenber-
ger, Sylloge 76: 427 /6 a. C.) 11.
b. Também em outros lugares os episkopoi aparecem algumas
vêzes como funcionários do govêrno. A.piano (Historiae Romanae,
Mithridateios 48) narra que Mitridates nomeia Filopoimeno episko-
pôn dos efésios. Segundo Arriano (Historia Indica 12,5) na índia,
em diferentes partes do país, existiam episkopoi que exerciam o
cargo de policiais secretos. Quanto ao Egito, os papiros nos dão
notícia de que também aí se conheciam episkopoi: "epíscopos" de-
signados distribuirão justiça a quem o administrador ordenar" (The
Plinders Petrie Papyri III, N. 0 36a, verso 1. 17, século III a. C.}.
Segundo esta fonte os episkopoi teriam exercido também atividade
judiciária, ou pelo menos a supervisionavam. Também um fabri-
cante de moedas de Éfeso, em um caso, é chamado episkopos numa
moeda do tempo de Cláudio, na qual se especifica que êle ocupa o
cargo "pela quarta vez"; em outros casos êle é chamado archôn,
chefe, ou grmnmateus, secretário 12.
e. (~eralmente de modo mais freqüente os episkopoi aparecem
como funcionários de comunas ou de associações. É a êstes que se

8 E. Saglio, Dictionnaire des _4ntiquités Grecqv.es et Romaines


C. Daremberg -
0817-1919) II, 698s; P. Guiraud, La Condition des Alliés p.endant la premiere
Confédération Athénicnne. cm Annales de la Facu!té des Lettres de Borde::mx V.
0883) IM.
o A r estauração àe tous episkopos, p3rcialmente destruído, é assegurada pelo
p:iralclo de IG, I, 11.
10 G. Bu.solt, Grl.echische Staatskunde (1926) 1355.
i 1 Jõ., nota 4.
1~ F. lmhoof-Blumer, Kiei1wsi.atisC'he Muenzen 1 (1901) 59; F. Friedlaendec,
Zettschrift .f11er Numcsmatik 6 (1679) 15; H. Lietzmann, ZwTh 55 (1914) 105.
Bispo 19fJ

volta a atenção dos estudos teológicos, visto que constituem o ponto


de contacto mais próximo do uso cristão do têrmo, sobretudo quando
se trata de autoridades públicas relacionadas com o culto. Mas, tam-
bém aqui é preciso contentar-se em verificar que epi-sko110i é um
título, e pressupõe alguma atividade diretiva ou governativa sem
delimitação exata, de modo que a conceituaç:ão permanc· luida. 0 ..

O jurista Carísio, pelo ano 340 d. C., conta entre as autm:ida-


des citadinas também episcopi, qui praesunt pani et ceteris venalibus
rebus, quae ci-vitaturn populis ad cotúlianuni victum usui sunt,
"epíscopos" que cuidam do pão, e de outras coisas vendáveis que
são necessárias ao povo para o alimento diário ia. Trata-se, por-
tanto, de intendentes do abastecimento. Em Megalópolis (século
I/ II d. C.) fala-se de um "epíscopo" e guarda do bom comporta-
mento dos cidadãos; não sabemos se se trata de um funcionário
público, ou de um apóstolo de bons costumes à maneira dos cínicos.
Em Rodes foram encontradas listas de cargos oficiais em duas co-
lunas (século II a. C.), semelhantes àquelas em que também ocorre
o têrmo diakonos (cf. art. "Diácono", pág. 288), onde episkopos
aparece em meio a outras funções (IG XII. 1, 49, 42ss; 50, 34ss).
Trata-se evidentemente de funcionários comunais, cujas funções,
todavia, não nos são suficientemente esclarecidas. Numa das listas
fala-se de cinco, noutra de três episkovoi, É de notar que os episko-
pui nunca aparecem nessas listas a; lado dos diakonoi.
Nas fontes até aqui citadas não se constatou qualquer conotação
religiosa da função examinada. Há um texto, porém, (IG XII, 1,
731) em que se trata claramente de funcionários de uma associação
que tinha por encargo zelar pelo santuário de Apolo em Rodes. Aqui,
.ao lado de três epista.ta?'., presidentes, fala-se de um grammateu.~
hierophylakôn, secretário dos guardas do t emplo, de um epislcop o.~ 14,
de seis hieropoioi, ofertantes, e de um tamias, tesoureiro. A maioria
dêsses não exerce atividades cultuais propriamente - os hieropoioi
tinham de providenciar os sacrifícios - antes ocupa-se dos atos
profanoS' pressupostos da atividade cultua!. Haja vista a inscrição
que se pode ler em IG XII, 3, 329 (século II a. C.) : uma associação
cultuaJ para venerar a Antíster, na Ilha de Tera, resolve estabelecer

13 . Digesta Iu.stiniani Augu.sti 50, 4, 18, 7 (ed. Mommsen II, 1870, 914); sõbre
(·ste ponto d. W. Liebenam, Staedteverwaltung im roemischen Kaiserreiche (1900)
370.
H J)eissrnann (Neue Bíbelstudien, 57) chama a atenção para o tato que é
um só - embora a última letra seja um tanto duvldosa, podendo-se também ler
episkopoi (cf. H. Lictzmann, ZwTh. 55 , 1914, 102i. Deissmann diz !linda: "Não
faço conjeturai; ~úbrc a função dêsse episkopos. Só o !ato de que o têrrno aparece
C'm contexto i,acrol, já ontcs do cristianismo, ó bastante slgniticr:tivo".
200 Herrnn.n n Wolfgang Beyer

um fundo e nomeia os episkopoi Dion e Nielehipo, a fim de provi-


denciar.em. mediante impostos, o dinheiro necessário. Trata-se,
portanto, de supenisores do dinheiro da associação. Numa inscrição
encontrada em Dolistovo, na Bulgária, o ep,iskopos t em obrigações
cultuais, embora bastante reduzidas 15, sendo citado em meio a outros
provedores das coísas necessárias ao culto. Também aí o episkopos
só remotamente se relaciona ao culto 16.
Resumindo, pode-se dizer com E. Ziebarth 17 que "uma caracte-
1·ística tôda particular da ter minologia das associações gregas é que
lhes falta a exatidão nas designações; epf,skopoi, assim como epúne-
letai significam em geral "provedores" e "administradores".
Quando Plutarco (De Nurn,a 9, I, 66b) narra que o Pontifex
romano é guarda ( episkopos) das virgens sagradas, não se trata,
evidentemente, de título oficial mas simplesmente da descrição da
tarefa que lhe incumbia em relação às Vestais. A palavra alienígena
episcopus já entrara para o latim ao tempo ào paganismo e era
usada ocasionalmente para designar os encarregados do abasteci-
mento 18.
d. Finalmente, existe empr~go da palavra epískopos como de-
signação de cargo público, conforme nos é conhecido principalmente
da Síria, Uma inscrição de Kanata, do ano 253 d. C. 19 diz: "Por
liberalidade da aldeia construiu-se êste edifício com dádivas de
Juliano Dionísio, por causa da salvação dos senhores (imperadores).
sendo "epíscopos" ( episkop01..mlôn) Anemo Sabino, Baulanes Odeni-
to e .Pasifilo Camasano". Um tal Juliano Dionísio dera fundos à
comunidade e com êste dinheiro a aldeia constrói um edifício (a
pedra com a inscrição foi encontrada em meio às ruínas de uma
mesquita) para demonstrar sua lealdade, e em honra dos dois im~
pera<lores reinantes. Os três senhores citados constituíam como que
uma "comissão de construção" 20. A sua tarefa torna-se clara. à luz
de uma outra inscrição proveniente de Derat 21 ; aí se distingue entre
a função do legado romano Estatílio, do arquiteto Vero e da "supe-

J!I Arch.aeologisch-epiarnphische Mitteilunaen aus Oesterreich XVIII (1895) 108.


16 E. Ziebarth. em Rheínisches Museum NF 55 (1900) 506ss (século II d. C.).
17 Das griechische Veneinswesen (1896) 131; cf. também F. Poiand, Geschichte
des griechischen Vereinswesens (1909) 337ss; sôbre episkopos, ib., 377 .
18 C!. C!L V , 2, 7914 e 7870; Mommsen, ib., 916b.
li) W. H. Waàdington, Inscriptions Gre cqu.es et Latines de la Syrie (1870) 2412s.
20 H. Lietzmann , ZwTh 55 (1914) 102.
21 Ditt'i'nbffger. Orientis Graecae Inscriptionea II, 614.
Bispo 201

rintendência" {episkopê) • composta. t ambém aí, de três homens 22 •


Dêsse texto conclui-se que a episkopê supervisionava a marcha dos
trabalhos e certamente também administrava o dinheiro empregado
na construção. Desta forma deve-se explicar também a atividade
àe todos os outros episkopoi citados nesse contexto nas inscrições
da Síria (ci. Waddington, Inscriptfons Grecques et Latínes de La
Syrie, 1911. 1989, 1990, 2298, 2308, 2309, 2310, 2312e). Natlll·al-
mente não se deve confundir os episkopoi como "supervisores de
construções" com os episkopoi, "bispos" cristãos que a partir do
século IV freqüentemente aparecem nas inscrições de edifícios 23,
Dittenberger ( Orientiis Gra.eci Jnscriptiones II, 611) reproduz um
te:i..-to em que se diz que certo Menéias foi "epíscopo" de tôdas as
obras que aqui se fizeram 2".

B. EPISKOPOS NO JUDAfSl\10

1. Deus como episkopos.


A Septuaginta emprega o t~rmo episkopos nos dois sentidos em
que o usa, conforme vimos, o grego profano, isto é, como designação
de Deus e no sentido profano de "intendente" sôbre qualquer ma-
téria. Se, conforme a concepção politeísta, cada divindade. é
episkopos sôbre determinados homens ou coisas, o único Deus é
episkopos de modo muito mais amplo; D~s é, pois, o episkopos que
tudo vê e tudo observa ilimitadamente.
Em J ó 20.29 a Septuaginta traduz o hebraico 'eZ, Deus, por
episkopos; como tal, Deus é o juiz dos infiéis. ltste é também o
pensamento de Filão, que chama a Deus epho1·os kai episkopos,
observador e vigia (De Mutatione NominU'tn 39, 216). Também a
união entre martys e episkopos, testemunha e vigia, que já aparece
em Homero, encontra-se em Filão (Legum Allegori.ae ~II, 43). Dian-
te de tal atributo de Deus, a maldade não se pode ocultar. A frase:
ho tôn. holôn episkopos (De Somniis I. 91) significa simplesmente
"o onisciente". Segundo Filão, Moisés já nas primeiras linhas da
Bíblia apresenta a Deus como "o Pai de tudo e o contemplador de
tudo o que existe" quando se diz que "Deus viu tudo o que fizera e
eis que era muito bom" (Migratio Abrahae 185). A profunda idéia

22 Além disso, fala-se de "presidõncia de Magno Basso". Não sabemos se sua


atividade se referia à construção ou à comissão de construção.
23 Por ex., Publicat'i1J11B of the Pri ncieton Untverrity Expeditfons III B 1003,
1187, 1199, etc.
24 Cf.. G. Geftcken, que sustenta ser o texto seguramente de origem judaica.
do inicio do século III d. C.; TU XXII! CNF VII!) 48s, 52.
202 Hermann Wolfgang Beyer

a respeito de Deus como quem, pelo seu olhar, tudo contempla, levou
no judaísmo à formação do vocábulo panepiskopos, observador de
tudo, que aparece freqüentemente nos Livros Sibilinos (1, 152: "poi8
t udo sabe o imortal salva<lor que tudo observa"; 2, 117; 5, 352).
É sobretudo para o coração humano que se volta o olhar de
Deus. Também nes1.. c0ntexto a Septuaginta combina rnartys kaí
episkopos: "Deus é testemunha de seus (i.é, do ímpio) rins. obser-
vador veraz de seu coração e ouvidor de sua língua" (Sab 1, 6). Cf.
a respeito At 1.24, onde Deus é chamado kardiagnostes, conhecedor
do coração. Deus vê o que se oculta na alma do homem, diz :F'ilão
(l"it1:gratio Abrahae 115) . Só Deus vê os pensamentos do homem
(ib., 81).

2. Homens como episkopoi.


A Septuaginta não conhece o título episkopos como descrição
técnica de um cargo ou de uma função. Mas usa-o no sentído de
"intendente" de diferentes modos.
Antíoco estabelece episkopoi em Israel como seus "lugar-tenen-
tes" (1 Macabeus 1.51) e Abiméleque um seu "representante" (Jz 9.
2,8). Em Is 60.17 são chamados episkopoi pessoas que em textos
paralelos são chamados archontes, chefes, evidentemente por falsa
interpretação do hebraico. Em Nm 31.14; 4Rs 11.15 (Septuaginta)
são chamados episkopoi tês dynameos , "epíscopos" da fôrça, os
"oficiais". Temos um ótimo paralelo para as inscrições em edifícios
na Síria em 4R s 12.11 (Septuaginta) e 2Cr 34.12,17; nesta segunda
passagem narra-se como era juntado o dinheiro necessário para a
reforma do templo, como era depositado nas mãos dos episkopoi,
supervisores da construção, e como êstes pagavam os operários.
Possui já um caráter mais cultual o conceito episkopos em Ne
11.9.14,22 onde é aplicado aos "superintendentes" do:; filhos de
Benjamim, dos sacerdotes e dos levitas. Em 4Rs 11.18 (Septuaginta)
episkopos significa "vigia do templo", Quando, em Nm 4.16, Eleazar
é constituído episkopos "sôbre o óleo das lâmpadas, o incensório, as
ofertas de alimentos, o óleo de unção, tôda a tenda da aliança com
tudo o que nela havia de vasos sagrados'', trata-se de carg o rela-
cionado diretamente com o culto, sem contudo ser prôpr iamente
sacerdotal. Símaco traduz, em Gn 41.34, episkopos, onde a Septua-
ginta tem toparchês, administrador local.
Em Filão, Moisés é uma vez denominado simplesmente episko-
pos no sentido de "conhecedor de almas" (Quis Rerum Divinarum
Heres Sit, 30). Num outro trecho Eleazar e Itamar são chamados
episkopoi kai ephoroi, intendentes e observadores, por alusão a ~x
28.1 (De Smnniis II, 186).
Bispo 2M1

'l'ambêm Flávio Josefo conhece o têrmo e'[Y':.Skopos. Põe-no ao


lado de kritês, juiz, e dá-ihe o sentido de "vigia dos costumes e do
direito" (Antiquita.tes 10, 4, 1; cf. 12, 5, 4 onde significa "'funcio-
nários da polícia").

C. EP!SKOPOS NO NT

No NT o têrmo episkopos - que, além de possuir uma pré-


hist ória tão rica, possui uma história ainda mais rica - só aoarece
cinco vêzes. -
1. Em lPe 2.25, Cristo é chamado episkopos: "pois éreis
como ovelhas errantes mas fôstes convertidos para o pastor e "epís-
copo" de vossas almas". À primeira vista parece que aqui episkopos
reforça o têrmo poimên, pastor, e que simplesmente significa "vigia"
das ovelhas. Dir-se-ia até que os verbos poinwinein e episkopein.
pastorear e vigiar, estão estreitamente relacionados entre si para
designar a atividade do pastor, pois que, além dessa passagem, êsses
Mrmos se encontram também relacionados em At 20.28 e 1Pe 5.2
(cf. também Nm 27.16). Mas é justamente na palavra epislcopos
que se encontra, para quem conhece sua plenitude, um sentido duplo
muito profundo. Segundo ela, Cristo é aquêle que melhor conhece
as almas e todos os seus segredos, como dão a entender Sab 1, 6 e
os textos de Filão atrás aduzidos (cf. pág. 201s). Mas ao mesmo tem-
po o Senhor é quem, de maneira mais dedicada, cuida da alma dos
fiéis !10 sentido em que epi3kopos é, por exemplo, usado em Hb 12.15.
Daí porque os conceitos de pastor e vigia podem estar tão intima-
mente relacionados entre si. Tudo o que os pagãos e os judeus, que
falavam grego, entendiam por Deus como episkopos ecoa quando se
fala aqui do "past-0r e conhecedor de vossas rdmas'~. for conse 0

guinte, epfakapos - como mostra o contexto alusivo aos mistérios


mais profundos da história da salvação - é um título de grandeza
do Jesus, que age em meio à sua comunidaàe.
A influência que esta passagem teve - excedendo o seu sentido
original - torna-se clara quando, conservando o têrmo grego em
sua forma transformada, traduz-se como Lutero por "o Pastor e
Bispo de vossas almas", de tal moào que as funções cristãs do pastor
e bispo aparecem a.plicadas a Cristo. O efeito que tal tradução
produz transparece na própria epístola em questão quando, em 5.2sa,
incitam-se os presbíteros da comunidade a pastorearem o :rebanho
de Cristo. Neste lugar muitos manuscritos antigos introduzem, ao
lado de voirna.inein, pastorear, o verbo epislcopein no senti.do de
"cuidar" que êle t em em Hb 12.14; isto fazem evidentemente sob a
i11 í"lu~nc.ia do 7wüni>ti e Gpislcopos de 2.25, onde Cristo é o modêlo de
pastor o IJiHpo.
2. Nas passagens restantes do NT em que o t êr mo aparece,
episkopos é aplicado a homens que são os "líderes da comunidade".
Imediatamente surgem aí duas questões importantíssimas para a
história das instituições eclesiásticas : (a) quem t:. de..,ignado por
ep-iskopos? (b) a partir de quando epfakopos começa a significar
mais do que uma atividade livremente exercida por membros da
comunidade, para tornar-se o título oficial de pessoas que ocupam
determinado cargo para o qual só alguns são chamados?
a. A resposta à primeira questão é que nunca os pregadores
carismáticos do Evangelho (apóstolos, profetas, doutôres). que se
deslocavam livremente de um lugar para outro, são chamados
episkopoi. Esta desígnação só aparece quando em determinados
lugares se formam comunidades e nelas faz-se necessário exercer
certas atividades. Para êsses primeiros líderes locais da vida comu-
nitária , desde cedo, aplicam-se as designações presbyteroi, ou episko~
pai (kai diakonoi). A princípio êsses dois conceitos - a evolução
ulterior será exposta mais adiante - não designam coisa diferente,
muito menos coisas contrárias. A prova é dada por At 20.28, no
discurso de Paulo aos presbíteros de Éfeso. Como Lucas ouviu pes-
soalmente êsse discurso e o registra na sua narrativa de viagem, e
como uma exata investigação já demonstrou tratar-se de conceitua-
ção visceralmente paulina, deve ser considerado um testemunho
muito antigo 25.
Os homens que presidem a comunidade de Éfeso são, no início
da narrativa de Lucas, chamados presbyteroi. Paulo, porém, se
dirige a êles nestes têrmos: "Atendei por vós e por todo o rebanho,
no qual o Espírito Santo vos constituiu como episkopoi a fim de
pastoreardes a Igreja do Senhor, que êle adquiriu com seu próprio
.sangue ". Eis os pontos capitais a considerar: (1) Paulo chama a
todos os presbyt eroi indistintamente episkopoi. O primeiro título
ihes convém pelo que êles são (não pela idade, mas em virtude da
sua posição e das suas atribuições na comunidade) ; o segundo, pela
sua tarefa. (2) Esta tarefa é descrita por meio do verbo poimainen,
pastorear, em correspondência com 1Pe 2.25 e 5.2ss. Todavia, o
têrmo usado não é poimên, pastor, mas episkopos. (3) Numa única
comunidade existem diversos episkopoi, entre os quais evidentemente
não há distinções de ordem. ( 4 ) O chamado dêsses homens para

25 Se o discurso só pode ser entendido como vaticinium ex ieventu, como pre-


tendem alguns, então devemos dizer que nunca homem algum se d espediu de
seus parentes com o coração comovido ao empreender uma viagem cheia de
perigos . .. Cf. v. 22.
Bispo 205

serem episkopoi é obra, segundo Paulo, do Espírito Santo. Com isto,


naturalmente, não fica excluído que tenha havido algo como uma
escolha (cf. At 1.21ss e G.3ss), ou uma designação pelo próprio Paulo
(At 14.23). Mas o ponto capital não é êste, mas tão-sbmente a acão
do Espírito Santo, de quem depende a missão e o podei· do episw-
pado. (5) O conteúdo do cargo de cpiskopos é - como o mostra
o contexto - a direção vigilante e cheia de cuidado (ambos ~sscs
conceitos estão contidos em poima.inein!) da Igreja, baseada na
obra salvadora de Cristo, já realizada, pois só a êle a comunidade
deve a sua existência.
b. À segunda questão - quando episkopos, de designação
de uma atividade livre tornou-se designação de cargo estável? -
deve-se responder que houve um processo evolutivo necessário desde
o comêço. É certo que em At 20.28, 'P aulo simplesmente quer des-
crever a atividade e a tarefa dos homens responsáveis na comuni-
dade. Mas, dirige suas palavras já a um círculo bem determinado
cujos membros podem ser denominados presbyteroi ou episkopoi,
para distingui-los de outros. E êsses homens têm consciência de sua
vocação. O "cargo" já existe objetivamente; mas a designação ainda
não é firme e permanente. Cedo, porém, sê-lo-á. Quando Paulo em
Fl Ll manda saudações "a todos os santos em Cristo Jesus que
estão em Filipos juntamente com os "epíscopos" e os "diáconos", com
estas últimas palavras designa pessoas da comunidade que são conhe-
cidas precisamente por êsses nomes; do contrário não teria sentido
a alusão a êles 26, Exclui-se, pois, a interpretação de que se trata
simplesmente de uma atividade, e não de um cargo 21. Se Paulo
quisesse apenas dizer que saúda aqu@les que coletaram e lhe envia-
ram auxílios, êle o teria expresso com palavras claras sem recorrer
a dois nomes de uso corrente entre os gregos. Assim como estão
registradas, as palavras se referem àqueles cujo encargo é epislco-
pein e dialconein, sem que, contudo, dêsses t~rmos se possa deduzir
algo bem determinado sôbre os deveres do encargo 28.

2 6 Ler synepiskopois, co-"epíscopos", numa só palavra, é impossível, mesmo


do ponto de vista gramatical.
21 F. Loofs, ThStKr 63 (1890) 628, distingue fortemente entre nome do oficio
e descrição do ofício, e para o tempo da Epístola aos Filipenses só deixa prevalecer
a última. Não posso conceber a existência de tal oposição. É certo que pelo ano
60 ninguém em Filipos era saudado por "senhor Bispo" . Mas a descrição clara
de um oficio por meio de um só substantivo - já nntes usado para designar cargos
- necessàrlamente se torna nome de offeio.
28 II11upt, Gcfcmacnschaftsbriefc, mi locum, idt>ntiflcn cpiskopoi e dfakonoi,
1in•!<'lllkmlo <Jlll.' ~:;::l 0 :1 t~rmo" 11L,..·ll.!11nrh1m utivhlnc!C's dlfcrcntr:: do:; inr•::moa hornrno;
11111w !.t to f'11111·11 "" 1·0111 o c1111tc·~lo 1• ~ '·x1·hitdo por 1 '1'111 :urm o lli;n. A opl11lfi11
'"' 1 .rth111 .. .\•w1·, l'ltllh•r1·r1rh•J, clr• q1111 1• • ,, 11~1 tlloJ,·011111 1 10 11111111••11111 11nrq11n
206 H ennann Wolf gang Beyer

c . As cartas pastorais permitem ver maís um passo na evo-


lução ào têrmo epfakopos. Segundo lTm 3.1, a episkopê, "episco-
pado" é um cargo bem àeterminado a que se pode "aspirar"; quem
quer chegar a êle deve satisfazer a certos requisitos morais. É de
notar que a passagem só descreve os pressupostos, não a atividade
do cargo de "epíscopo" como tal; o autor procura expor uma regra
clara quanto aos critérios que a comunidade deve seguir em sua
escolha. A aridez na enumeração das exigências - as quais são
parcialmente evidentes por si rn.esmas - e o fato de que não se fala
mais do Espírito Santo quando se trata das qualidades para o cargo
de "epíscopo", mas tão-sõmente de qualidades humanas consideradas
nccessá:rias, mostra quão for tem'3nte a evolução foi determinada
pelas conveniências circunstanciais.
Permanece, porém, a consciência da grandeza do cargo confe-
rido ao "epíscopo". Com grande sabedoria pastoral lTm enumera
as exigências que devem ser feitas aos que exercem o episcopado 29.
Primeiramente, vêm as qualidades morais; não se exige uma santi-
dade ascética especial ; também o líder de uma comunidade cristã
está exposto a tôda sorte de tentações humanas. Mas êle deve le-
var uma vida regrada, honrada, exemplar, e abster-se de toào ex-
cesso. É o que se entende quando se exige que não seja beberrão,
nem briguento ou avarento. Em segundo lugar, é preciso que, em
sua própria casa, tenha demonstrado possuir os dons necessários
para presidir uma comunidade. O celibato católico está em eviden-
te oposição à palavra bíblica. Esta pressupõe claramente a mono-
gamia do "epíscopo" e pondera que uma casa pastoral exemplar,
hospitaleira, onde se educam os filhos em obediência e honradez,
constitui uma bênção que, por sua vez, é como que a pedra àe toque
para apreciar a capacidade do "epíscopo" de dirigir a comunidade.
Em terceiro lugar o "epíscopo"· deve ser capaz na doutrina, isto é,
apto para pregar. Em quarto lugar. deve ser um cristão aprovado
para não cair na tentação da soberba, pela qual o servo de Deus se-
ria prêsa fácil do demônio. Não se pensa, porém apenas nas qua-
lidades prôpriamente cristãs do "epíscopo", pois iste, em razão de
seu encargo eclesiástico, deve, em quinto lugar, ser irrepreensível
também segundo os padrões do ambiente não-cristão, a fim de estar
a salvo àe maledicências.

se encontravam na prisão, é uma conjetura que não se pode provar. Algw..s


pensam que êsses nomes indicam simplesmente as atividades dos epi8kopoi e d!akonoi
com respeito às ofertas enviadas a Paulo. Isto explicaria porque são tão especial~
mente destacados dentre os outros. (Cf. W. Brandt, Díenst imd D!encn. im NT
0931) 167s).
20 Cf. J. Jeremias, em NT Detit'Sch III (1934) 14.
Bispo ior
Expressões semelhantes estão contidas em Tt 1.5-9: cabe a
Tito estabelecer, nas diferentes cidades de Creta, "presbíteros", co·
mo o fêz Paulo nas localidades da Asia Menor (At 14.23), medida,.
aJiás, a única para se garantir a vida comunitária depois da parti-
da dos missionários.
As exigências que dey, 11 .ser feitas aos presbíteros são intei-
ramente iguais às que, conforme 1 Tm 3.2ss, devem ser feitas aos.
"epíscopos". Na realidade, em Tt 1.7, verifica-se uma mudança de
expressão: em vez de presbyteros, assunto da passagem, fala-se de
repenh~ de episkopos, o que vem a ser mais uma prova cabal de que
as õirns designações significam or iginàriamente a mesma coisa, isto-
é1 a direção e a representação da comunidade e o encargo de pregar
e dirigir o serviço divino. e isto quando não há apóstolos, profetas.
ou d o ut~res presentes. Talvez de l Tm 5.17 se possa inferir uma pri-
meira distinção de funções quando, dentre os presbíteros, são des-
tacados e declarados dignos de "dupla honra" aquêles que se distin-
guem como kalôs proestotes presbyteroi, presbíteros que presidem
bem, e que se dedicam, de modo especial, à pregação da palavra e à
doutrina. Êstes são, precisamente, os veículos da evolução que le-
vou à preeminência do episcopado.
Em Tt 1. 7 e 1 Tm 3.2, ao se falar do "epíscopo" no singular. com
o artigo, deve-se entender o "epfscopo" em sentido típico, absoluto,
nada se afirmando, no caso, sôbre o número dos "epíscopos'' em
determinado lugar. Em nenhuma passagem se fala do episcopado
monárquico. Pelo contrário, todos os trechos do NT, atinentes à
questão, mostram unãnimemente que, no começo, em tôda parte,
diversos epislcopoi orientavam colegialmente as comunidades. Tam~
bém é evidente que o sentido do cargo era servir, e apenas servir.
Um comportamento puro e disciplinado era a condição para o car-
go. Também o "episcopo" aceitava exortação fraternal. Fôrça e
autoridade eram dadas sômente pelo Espírito Santo.

D. ORIGgM E PRIMEIRA EVOLUÇÃO DO EPISCOPADO

Da mesma forma como na questão da origem do diaconato -


tão estreitamente ligado ao episcopado (cf. pág. 289) - tam-
bém aqui importa distinguir entre a origem do cargo, e a designa-
ção dêsse cargo por episkopos, nome que se impôs às outras ex-
pressões neotestamentárias como presbyteros, presbítero, hegoume-
noi, dirigentes, proistamenoi, presidentes, poimenes, pastôres.
No mundo de falã grega, entre os cargos designados pelo ~r­
mo episkopos, não encontramos nenhum que tenha suficientes ca~
rncterísticas comuns com o episcopado cristão, e que permita afír-
208 Hermann Pr'olfgang Beyer

mar seriamente uma base histórica dêste episcopado. Os funcio-


nanos governamentais e comunais, os encarregados do abasteci-
mento, os comissários de construções e os administradores dos ne-
gócios das associações cultuais, chamados ep-iskop~. não consti-
tuem modelos dos líderes das comunidades do jovem cristianismo.
Também não nos presta maiores auxílios o que sabemos sôbre a
ordem reinante nas fraternidades das religiões de mistério do mun-
do helenista. É verdade que, como pregadores ambulantes, os filó-
sofos cínicos representam um paralelo instrutivo do apostolado cris_-
tão primitivo, mas não do episcopado.
Poder-se-ia pensar em modelos judaicos. K. G. Goetz defendeu
hltimamente, e com insistência, a opinião àe que o archisynagogos,
chefe da sinagoga, e o hyperetés, servidor da sinagoga, foram os mo-
delos do episkopos e do diakonos ªº· Dada a estreita conexão que
desde o comêço existe entre essas duas funções cristãs, na reali-
dade só um cargo duplo correspondente pode valer como modêlo.
De fato, assim como existem muitas correspondências entre o culto
divino da sinagoga e o da igreja primitiva, essas correspondências
existem, igualmente, entre os cargos cultuais cristãos e judaicos.
O chefe da sinagoga tem por tarefa dirigir o serviço divino, cuidar
da ordem exterior da sala de culto, e zelar pelo edifício. "Não se
pode com certeza deduzir das fontes se sempre existia um só, ou
mais chefes de sinagoga" 31. Ao lado do archisynagogos também há
presbyteroi. Além das correspondências há, contudo, importantes
dfrergências, pois. antes de mais nada, o archisynagogos, tanto quan-
to sabemos, nada tinha a ver com a direção da comunidade com res-
peito à fé e ao amor entre seus membros,
~ste último ponto é particularmente importante quando consi-
deramos os chefes da comunidade da "nova aliança" em Damasco,
nos quais J. Jeremias vê o rnodêlo ào bispo cristão 32. Esta comu-
nidade farisaica é'dividida em "acampamentos" e à frente de cada
um se acha um rnbqr lmhnh, vigia ào acampamento (Escrito de Da-
masco 13,7; talvez também 9, 18, 19, 22; 13, 6) ; aos "acampamen-
tos" como um todo preside um "vigia de todos os acampamentos"
(14,Ss). É incerto se o "vigia dos muitos" (15,8) se refere ao "vi-

~o K. G. Goetz, Petrus al.s Gruender und Oberhaupt der Kirche und Schauer
von Gesich.ten (1927) 49ss.
31 J. Elbogen, Der juedische Gottesdienst in seiner geschichtlichen Entwicklung
(1024) 483; Strack-Billerbeck IV. 1, 145ss.
3:! J. Jeremias, JeT-..isalem zur Zeit Jesu ll, 1 (1929) 139ss. K. G. Goetz defendeu
sua opinião contra a de Jeremias em ZNW 30 (1931) S9ss. Nesse meio tempo
Jeremias continuou com suas pesquí.sas e tentou provar a opinião acima exposta.
O autor lhe é gr:.to pelos conselhos dados.
/li.'f'[IO 2 O!I

gia" geral ou ao vigia de cada acampamento. 'l'n111lii·111 l: i11cndo HI! o


"sa~erdote ... que~ seg1!~do J.1,6, tem por taHfci. l111r ( n.11: • .upeu-
thai) deve ser 1dentif1cado como o mbqr, vigia (o têrmo mbqr é
um particípio piel de bqr, investigar ou vigiar). O mbqr é ttuem
decide sôbre aceitação de um membro na comunidade e RÕh1·c !Hill t>X-
clusão; é mestre e pregador; deve compadecer-se dos membroR <la
comunidade "como um pai de seus filhos" e deve perdoar tôdas uti
suas transgressões; como um pastor a um seu rebanho - atente-se
para a imagem! - deve libertar os membros dos laços que os apri-
sionam 33; cabem-lhe tarefas judiciárias, fôrça de comandar em mui-
tos assuntos externos, convocar e dirigir as reuniões àa comunida-
de, receber e dividir as ofertas.
Na Septuaginta traduz-se algumas vêzes bq1· por episkeptomai
cujo correspondente hebraico geralmente é pqd, visitar. Seria .certa-
mente possível traduzir mbqr por episkopos 34 • J. Jeremias mostra
que a posíção e a jurisdição do cargo se correspondem, nos seus por-
menores, à do bispo na Didaskalia siríaca. Dai êle deduz que o
cargo de líder de uma comunidade farisaica, tal como o .conhecemos
pelo mbqr do Escrito de Damasco - e que existiu também em ou-
tras comunidades de fariseus - "foi o modmo do episcopado cris-
tão". Aí está como, em todo o caso, Jeremias chama a atenção dos
estudiosos para um paralelo, digno de nota, do cargo de bispo. To~
davia, também aí muitas questões permanecem insolúveis. O pró-
prio Jeremias reconhece que a peqm•na comunidade de Damasco não
podia ter sido modêlo da comunidade cristã em geral. Além disto,
o mbq1· tem traços muito mais monárquicos do que a mais antiga
forma do episcopado cristão e seu correspondente próximo seria o
bispo do século III, muito mais do que os epislcopoi do cristianismo
primitivo. De resto, falta aí um elemento essencial: a correlação
entre episkopos e diakonos. De mais a mais, nossos conhecimentos
sôbre os precedentes farisaicos da ordem instituída em Damasco são
muito limitados 35 para dêles podermos tirar conclusões certas. Por
conseguinte, os chefes de acampamento da comunidade de Damasco
não nos oferecem uma solução definitiva do enigma.
Nem é necessária tal solução. É certo que determinadas formas
de ordem sinagogal e farisaica estavam diante doa olho~ dos cris-
tãos. Mas como sua comunidade era em tudo algo de nôvo e diferente,
surgido em função da incumbência de anunciar o Evangelho e de

n:i Escrito de Damasco 13, 7ss <Schcchter, 1910). Novn tradução: W. Sl.aerk:,
BFTh 27, 3 (1922) 287s.
:1.. St<.erk traduz: ephoTos .
a;i Cf. o que diz Jeremias, loc. dt., 121, nota 4.
210 liermann H'olfgang Beyer

vivê-lo na mais intima relação comunitária, os cristãos, por neces-


sidade criaram novos cargos para cumprirem a sua missão, quando
não deixaram que surgissem por si mesmos, espontàneamente.
Com efeito, a necessidade de criar novos cargos comunitários
era uma exigência das circunstâncias. Jesus e..c:;colhera e enviar1t
os Doze a pregar em seu nome, para que fõssem seus ajudantl ., e,
antes de tudo, os portadores da Mensagem, depois de sua morte.
O Ressuscitado enviou-os como missionários, assim como chamou a
outros, por meio de aparições pessoais, para serem apóstolos. O
apostolado, portanto, em razão dessa comissão direta, estava liga-
do pessoalmente a Crist o e era intransferível. O cargo extinguiu-
se, ( 0 1110 também o dos profe tas e doutôres que, ao lado dos após-
tolos, tinham recebido do Espírito o dom e o poder de fundar e edi-
ficar comunidades por fôrça da palavra dada por Deus. Todos êles
tinham cumprido sua missão, deslocando-se de lugar para lugar.
:Mas lá onde tinham surgido comunidades devia haver homens que
constituiriam o seu núcleo central, mesmo quando não estavam pre-
sentes apóstolos, profetas ou doutôres. Tinham de íevar avante os
negócios referentes à direção e à ordem, sem o que a vida comuni-
tárfa não podia subsistir. Para se exercerem essas kyberneseis, go-
vernos, era. necessário um charisma, dom (1Co 12.28) . . Em pouco
tempo todos começavam a ver que aquilo que no com~ço parecia ser
uma ocupação purament e formal era, na realidade, um serviço de
grandes responsabilidades pastorais em meio às crises externas e in-
ternas da comunidade. A tarefa de dirigir o serviço e de pregar im-
pôs-se, naturalmente. Tudo isto formava o conteúdo do cargo, a
que se alude quando Paulo e Barnabé informam que já na primei-
ra viagem missionária estabeleceram presbíteros (At 14.23), ou
quando o apóstolo fala de proistamenoi, pessoas que presidem, em
Roma (Rm 12.8) e em Tessalônica (11's 5.12); em Gl 6.6-10 pres-
i::upõe-se que nas comunidades dos gálatas havia doutôres do Evan-
gel ho com direito de receberem recompensa em dinheiro para o seu
suste ntb 36, Em Filipos êsses chefes da comunidade se chamam
ep i.."!kopoi e diakonoi. Tais cargos permaneceram mesmo depois que
cessou a irrepetível missão dos apóstolos, dos profetas e dos dou-
tõres e foram se tornando, cada vez mais, a espinha dorsal da vida
comunitária.
De forma análoga se processou a designação técnica dêsses car-
gos. Os judeu-cristãos tinham à sua disposição o têrmo p1·esbyte-
1'M. Os têrmos r.1Jiskopoi e diakonoi foram adotados primeiramen-
te pelo cristianismo helênico. pois é em Éfeso e em Filipos que. pela
primeira vez, são usados pelos cristãos. Tratava-se de designações

3(1 NT Deutsch II (1933 ) 478s.


Bispo 211

de misteres comuns, muito conhecidos, mas pouco caracterizados e,


em razão da pluralidade de seu sentido. capazes de novas caracte-
rizações. É notável que, no caso, os cristãos se tenham servido de
expressões simples, de palavras que não tinham na origem cono-
tação espiritual. Os t~rmos episkopoi e diakonoi ficam, neste sentido
particular, muito aquém de "apóstolos e profetas". Não eram, con-
tudo, têrmos vazios: diakon-0s fôra consagrado pe1o que Jesus en-
sinara sôbre o serviço como essência do discipulado de Cristo (cf. o
artigo "Diácono", pág. 276); o têrmo episkopos, por sua vez, evocava
tôda a sua rica história, desde os t empos de Homero, para descrever
a natureza e a ação da divindade, até que Cristo surgiu como episko-
pos. Desta maneira, os dois têrmos eram, a um tempo, despreten ·
siosos na forma externa e profundos no significado interior, como é o
símbolo do peixe ou da Ceia.
Mas é igualmente certo que a despretensão dêsses vocábuios
transformou-se, no decurso de quase dois mi1ênios, em pretensiosa
afirmação de um homem, que por fôrça de seu cargo, poàe, em ques-
tões de fé e de moral, anunciar ex cathedra verdades infalíveis. A
história dessa evolução não pode ser aqui exposta, nem mesmo resu-
midamente. Ela começou com a distinção notável, em lTm 5.17,
entre os kalôs proestotes, que presidem bem, e os restantes presby-
teroi, e com a pretensão dos primeiros de receberem uma honra, ou
recompensa, dupla. A identificação entre episkopos (kai dfokonos)
e presbyteros ainda é conservada em I Clemente. Mas aí a evolu-
ção foi acelerada de duas maneiras: Ciemente é o primeiro a for-
mular a doutrina de que bispos e diáconos foram por tôda parte
instituídos pelos apóstolos, estabelecendo assim uma escala hierár-
quica, a saber, Deus - Cristo - Apóstolos - bispos - diáconos.
Ao mesmo tempo encontrou uma prova escriturística para os dois úl-
timos graus; com efeito, o texto de Is 60.17, que no texto Massoré-
tico e na Septuaginta, soa: "E porei teus chefes em paz e os teus
guardas em justiça", é reproduzido por Clemente na seguinte forma:
"Estabelecerei seus bispos em justiça e seus diáconos em fidelidade".
Mas é na Didaquê onde podemos reconhecer a verdadeira situa-
ção. Os líderes da comunidade assumiam maior importância tão logo
os missionários carismáticos deixavam o lugar, ou morriam. A ati-
vidade d~stes precisava, então, ser continuada por episkopoi e dia-
lconoi. :f':st e momento preciso é descrito pela Didaqu.ê (15,l), quan~
do se diz: "Também êles (os bispos e os diáconos) fazem para vós
o serviço dos profetas e dout5res; portanto não os tenhais em pe·
quena estima, pois são pessoas honradas para vós, assim corno os
profetas e doutôres". Como êstes últimos não deixaram descendên-
cia, a importância dos cargos eletivos cresce a olhos vistos. Den-
tre êstes, o cargo de bispo eleva-se ao primeiro lugar. acima dos diíi.-
Beyer

te fórmula: o
se em raziio de
um verdadeiro
a organização
grande perigo
tade comum, mas para decidir
o que é a verdade não está
em poder de l\:tesrno de bispo deve uni~
camente estar
* * *
BIBLIOGRAFIA
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PRESBíTERO

por

GUENTER BORNKAMM
f NDICE
PRESBíTERO

A. Significado do uso do têrmo 219


1. Presbyteros como ccmparativo de presbys, 219
2. Presbyl'erion, 222

B. Os "anciãos" na história das instituições israelítico-


judaicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
1. Na obra histórica javista-eloística, 223
2. No tempo dos juízes e dos reis, 226
3. No Deuteronômio, 227
4. No tempo exílico e pós-exílico, 228
5. No Sinédrio de Jerusalém, 230
6. Presbyteros como designação de doutor, 231
7. Presbyteros no judaísmo helenístico, 232
e. As "tradições dos andãos" na pregação de Jesus 234
D. Os presbíteros nas comunidades cristãs primitivas 236
1. Na primitiva comunidade de Jerusalém, 236
2. A ausência de presbíteros nas comunidades paulinas, 238
3. Formação da instítuição presbiteral sob a influência das sinagogas
da Díãspora, 238
4. Os 24 presbyteroi do Apocalipse de João, 244
5. O presbyteros na Segunda e Terceira Carta de João, 247

E. Os presbíteros nos padres apostólicos e na Igreja Antiga 250


1. A Primeira Carta de Clemente, 250
2. O Pastor de Hermas, 253
3. Inácio de .Antioquia, 254
4: Policarpo de Esmirna, 256
5. Pá.pias, Irineu, Clemente Alexandrino e Orígenes, 257
6. Did'liscalia Siríaca e Ordenações Eclesiásticas de Hipólito, 264

Bibliografia 267
PRESBÍTERO
A. SIGNIFICADO E USO DO T~RMO

1. Presbyteros, forma comparativa de presbys, velho, ancião,


é usado:
a. Para designar a idade mais elevada de uma pessoa em re-
lação a outra (desde Homero, inscrições gregas antigas, papiros,
a Septuaginta, Filão, Flávio Josefo, literatura cristã). Muito cor-
rente é o sentido "mais velho" (de dois): ho hyios ho presbyteros,
o filho mais velho ( cf. Cláudio Eliano, Varia Historia 9,42; Lc
15.25; Carta de Barnabé 13,5) ou os representantes da geração mais
velha ("os velhos") em oposição aos jovens. Daí, o sentido com-
parativo é por v€zes secundário 1, e p'resbyte-roi pode significar
simplesmente "os velhos", "os anciãos" (Flávio Josefo, Antiqid~
tates 13,226.292; Pastor de H ermas cf. v III,11,3; 12.2; a Igreja
aparece a êste autor como lian presbytera, muito velha: cf. v III,11,2
e II,1,3; III,1,2 etc.). Distinguindo-se de outras designações para
a idade (p. ex., gerôn, velho, ancião; palaios, velho, antigo), o gru.~
po de palavras derivadas de prçsb- não conota nenhum sentido ne-
gativo (diminuição de fôrças e semelhantes), mas desde a origem
designa o elemento positivo de respeito e honra 2. Assim se com-
preende a distinção: ego palaiotatos, sy de presbytatos, eu sou mui-
to velho ("gasto"), tu porém muito "respeitável" (Plutarco, Nicia,o;
15,2 (I,533b). Daí provém o uso geral do comparativo e do super-
lativo para designar aquilo que tem pêso e maior, ou máximo, valor:
as coisas de Deus foram feitas "melhores", presbytera, que as dos
homens (Heródoto V,63; cf.. Eurípides, Fragmenta 959; Tucídide;;
IV,61); insti:utivo é também o que diz Platão (Syrnposion, 218d):
"para mim nada é mais valioso (z;resbytei'on) do que eu me tornar
algo melhor... Sobretudo, exalta-se o conselho e a sabedoria das

1 Cf. Blass-Debrunner, § 2'14, 2; Sch-...,J':i:er II, 1S4s; St. C. Caratzas, Sur


l'histoire du suffixe de comparatíf -teros (presbyt<eros, exoteros, neoteros), em
Glott.a 32 (1953), 248-261; . K. Jaberg, El.ation tmd Komparatkm, em Fesíschr. Eà.
Tieche (1947-), 56.
2 Sôbre a etimologia, cl. Ffofmann, sub voce presbys. Sôbre os sinônimos cf.
J. H. H. Schmidt, Synonimik der griechischen Sprache, !I (1878) 87s; IV (1886) 311.
220 Guenter Bornkamun

pessoas : "os e os anciãos" (Aristóteles, Ethica


Udemia ancião", em oposiç.ão à
precipitação jovem (Píndaro, 2,65). A honra devida aos
anciãos e à idade elevada é tema da doutrina moral po-
pular: honrando os mais como a pais, os coetâneos
como a irmãos e os mais jovens como a filhos" (Inscrição de Priene,
século I a.C,, 117,55s); "respeitando os como irmão, os
mais velhos como filho e as çrianç.as como (IPE I,22,28ss; cf.
também Platão, Apologia 31b; Jâmblico, De Pythctg01·ae 8,40) 3 ;
e ainda o dito espirituoso de Pluta:rco, Apophi:hegmata Laconica
12 (Il,232s): "'alguém numa viagem vendo homens sentados em
liteiras, disse: longe de sentar-me aí onde não se pode · 1e-
vantar para um mais velho!" Da honra devida aos velhos fre-
.,,,,.,,,,,,,..,., se fala também na sabedoria proverbial da (Pv
20.29; Sabedoria 2.10; cf. Lc 19.32}. Sôbre o louvor à sabedoria, à
experiência, à judiciosidade e ao temor de Deus dos velhos, ver so-
bretudo Siraque 6.34; 25.4-6.
b. Para o uso bíblico é de importância o fato de que
presbys era, na constituição de Espar+..,a, também um título político
e designava o presidente de um colégio, que pode pertencer aos "éfo-
ros" (IG 5,1,51,27; 6,552,11) ; aos. "guardas das leis" (6,555b,19) ;
aos "efebos" ( 6,556,6) ; "ao colégio dos magistrados" ( 6,504,16),
Independente dêste uso de Esparta é o emprêgo de presbyteroi no
de cargo político em inscrições e papiros do Egito do tem-'
po dos Ptolomeus e dos Césares 4, Ai são designados como presb11-
teroi os membros de diferentes instituições e colégios políticos: o
presidente, livremente eleito, dos agricultores do Estado, organiza-
dos em (vresbyte1·oi "presbíteros"
neses (BGU 1,85,9ss; The Tebtunis Pa;p1Jt'i I,13,5; 40,17s; 43,8;
50,20; Les pa.pyreB de Geneve 42,5; Papyri in the B?·itish
seurn. II,(Z55,7); e presbyteroi tôn olyrokopôn, "presbiteros"
dos moageiros, em Alexandria, em número seis asuja frente
va um sacerdote (século III a. C.) 5 • Presbyteroi também aparecem
constituindo órgãos auto-administração das aldeias: presbyteroi

:i Cf. Deissmann, Licht vom Osten, 263; Dibelius, Pastoralbríefe, a propósl!o


de 1 Tm 5.1.
4 Cf. Mitteis-Wilcken I. 1, 275; · Deissmann, Bibe!.studien, 153-155; id., Nm;e
Bible:m.1,dien 60-62; id., Licht vom indí!!t' sub v~e presbyteTos.
~ M. L. Stradt, Inschriften 01Ua ptotomariltcher Zeit, APF 2 (1903) iá.,
Die Muellerinnung in Alexandri111i, em ZNW 4 (HJQ3) 213-234, com uma
de exemplos mais antígos, pág. 230s.
Presbítero !B:21

tes têm funções administrati-


vas e · (dois, ··quatro e .. d~
dez); sua função é limitada a um ano. :m importante notar que pres-
byteroié também atestado como título para os sacerdotes ••do gran-
de deus Soknopaios" (BGU I,16,5s): tratàva-se de uma organização
de cinco . ou Si : s .nembros, substituídos anualinente, e que se ·fü:.
da administração dos bens e do contacto com as autoridades;
seus-.m:embros não são pessoas velhas'" em sentido absoluto (o texto
fala de presbíteros com a idade de 45, 85 e 80 anos) 7.
Diferentes dêsses são os pretibyteroi das confrarias gregas B,
Ai não se pode um uso titular, pois presbyteroi não desig-
na aí oficiais, mas ligas de anciãos de diferentes espécies (em
oposição às ligas de jovens). Assim devem ser entendidos os hym-
nodoi presbyteroi, anciãos cantadores de hinos, de uma inscrição
encontrada em Radanovo 9, e os numerosos ."clubes" de "pessoas hon-
radas" que pertenciam à .. gerusia" 10. Outras vêzes presbyteroi
designa os membros mais velhos de uma associação profissional em
oposição aos seus membros jovens 11: "convenção, em Alexandria,
dos expedidores mais velhos (Dittenberger, Orientis Graecae Ins-
criptiones I,140,7ss); "os tecelões mais velhos" i2, ou "os constru-
tores mais velhos" 1s. · · · ·
O uso egípcio de presl>yteroi tâlvez ex.plique a preferência da
Septuaginta por presbyteroi como equivalente do hebraico zeqenin,
anciãos, em vez de gerontes; e viee-versa, · deve-se admitir uma in-
fluência judaica na comunidade do theos hypsistos, deus altíssimo 14 ,

6 BGU I, 195, 30; R. Taubenschlag, The Law óf Graeco-Roman Egypt in the


Light of the Papyrí (1955) 580s. '
1·w. Otto, Priester und Tempel I (1905) 47-52.
s Exemplos em Zieba:rth {cf. bibliografia) e, sobretudo, Poland (cf, bibliogra-
fia) passim.
s Ziebarth, 90; Poland, 98.
lO :tstes se chamam mais freqüentemente geraioi, gerousl,~taí; cf. Poland,
98-102.
l l ·cf. Ziebarth, 213; Poland, 171s; Strack, loe. cit. (nota 5) 232 entende
presbyteroi como designando os mais idosos da respectiva profissão.
u Egypt Erp!oratio1kFWnd III, Fayum Towns and Their Papyri. (1900; 54,
inscrição 6.
ia Inscrlptiones Graectre a.d res Romanas pertinentes, ed. R. Cagnat, I (1911)
n.0 1155.
1.11 Sõbre é!es escreve E. Schuerer, Die JmU!n itn hMmn·ra'Yl.tsc:rum Re!che und
die Gemein.,<>chaften der sebomenoi theon hypsiston, em 000-225; G.
Bornkamm, Das Ende des Gesetzes (1952) 153-156.
222 Gium.ter Bornkarnm

com grande exatidão inscriç6e11


na Criméia e que pertencem aos séculos I~III d.C. 16,
Aqui, quadro de comunidades maiores, encontramos cfr·
culos restritos de w11sta.i, membros de associações de mistérios.
e que em uvvõ''"ª'v aos membros comuns da comunidade se chamam
ei~po1·etai irmãos adotivos, é, "filhos de Deus"; à sua
testa se presbyteroi 16; não se de outros oficiais. 1t
evidente que título foi tomado da instituição sinagoga! judaica.
Não designa um numerosos cargos da comunidade geral, mas é
reservado ao mystai 17.
e. O problema do uso de presbyteroi no judaísmo e
no cristianismo se origina duplo sentido da palavra, que pode ser
de idade e ao mesmo tempo titulo do ocupante de um car-
os dois significados nem sempre se podem distinguir
com clareza. Falam claramente idade (mais) alta Gn 18.lls;
19.4,31,34; 24.1 ; 35.29 e muitos outros textos. Esta significação
se conservou também na literatura cristã:· Jo 8.9; At 8.17 (Jl 8.1)
onde é oposto a neani<Skoi, jovens; 1Tm 5.1,2; 1Pd 5.5 (oposto a
neote·ros, nôvo), e mais outras vêzes. ll:ste é também o caso
quando p1·esbyteroi designa os antepassados (Hb 11.2). Mas, pas-
sagens como Mt 15.2 e Me 7.3,5 ("tradição anciãos") já mos-
tram que presbyteroi são os portadores da doutrinária nor-
mativa, e lPe 5.5 e I Clemente 1.3 mostram que o conceito designa
ao .mesmo tempo uma posição honorífica na comunidade. Também
titular aparece quando os são roem-
govêrno local, como sinédrio de Jerusalém, das autori-
da.s comunidades sinagogais (cf. infra 230s), ou
ainda como os que presidem as comunidades cristãs, de
determinadas oficiais.
2. o presbitério no·· singular) na li-
teratura só aparece no Susanna 50 (Teo-
dócio) : os anciões : vem e senta-te no meio de
n6s e explica-nos, porque Deus te deu o "presbitério" (os textos de
B. 88 e .no têm presbcion). Ai evidentemente presbyterion signifi-

u1 A inscrição se encontra em JPE II, n ° 437-467; sôbre a instituição dessas


e<:munldades cf. Lietzmann {cf. biblíografia) 118-í23.
IPE U, n.0 450, 452, 456.
15

11 Segundo convincentes provas de Lietzmann, 120~123. Ainda que a ins-


crição date do III d. C., é de notar o paralelo com o cQnvenUculo dirigi.do
pelo Presbítero de 2 e 3 Jo (cf, pág, .247-250),
Presbitero 228

ca "dignidade de ancião" 18, em virtude da qual o jovem ( !) Dk!i'ihl


é rapacitado para falar no conselho dos presbyteroi. ·' '·
De resto, a palavra só aparece na literatura cristã com 'sen~
tido de "colégio de anciãos", seja para a autoridade suprema ém
Jerusalém (geralmente synedrion, sinédrio; Lc 22.66; At 22.5), co-
mo desígnação corrente entre os judeus helenistas, seja para o con~
selho dos anciãos das comunidades cristãs: 1Tm 4.14 (cf. infra,
pág. 241). '
É de notar que o uso dêsse têrmo ao lado de "epíscopo'~ e·· de
diácono é muito freqüente em Inácio (13 vêzes), mas não nos outros
Padres Apostólicos (Efésios 2,2; 4,1; 20,2; Magnésios 2; TraJenses
2,2; 13,2; Smirnenses 8,1). Visto que em Inácio a posição hierár-
quica dos presbíteros corresponde à dos Apóstolos, em Filadelfen-
ses 5,1, os apostolai podem ser designados como presbyterion ekkle- ·
sias, presbitério da Igreja. O presbyterion é a reunião do conselho
(synedri.on) do bispo (Filadelfenses 8,1) e como êste está "em lu-
gar de Deus" é a "reunião do conselho de Deus" (Tralenses 3,1).
3. Ho sympresbyteros (só na literatura cristã), o co-presbí~
tero, aparece em lPd 5,1, em Irineu, Epistola ad Victorem, (Eusé-
bio, Hist. Eccl. V,24,14) e no Antimontanista (Eusébio, Hist. Eccl.
V,16,5). Mais tarde, assim como sylleitourgos, symmistos, co-cele-
brant€s da liturgia nas religiões de mistério (e os seus equivalentes
latinos) é a maneira corrente de o bispo se dirigir colegialmente a
seus presbíteros rn.

B. OS "ANCIÃOS" NA HISTóRIA DAS INSTITUIÇõES


ISRAELfTICO-JUDAICAS

1. Tôdas as camadas tradicionais do VT pressupõem a exis~


tência de anciãos (haz-zeqenim) 20 sem nunca se falar de sua ins-
tituição ou da constituição de seu colégio. Sua origem se·· encontra,
como de modo geral se admite, nas antiqüíssimas instituições tribais
de Israel, anteriores à sua vida sedentária e ao agrupamento das
tribos num só povo. Como cabeças e representantes das famílias
patriarcais e dos clãs, cabia-lhes a direção nas reuniões de maior
18 Cf. J. Jeremias, Pnesbyterion ausserchristiiich bezeugt, em · ZNW 43 (1957)
12'7s, onde também se trata da questão do texto.
19 Cf. A. Achells, Das Chrístentum in den ersten dreí Jahrhundertcn II (1912)
16; E. G. Selwyn, The First Epistle of St. Peter (1955) 228.
20 Zaqen significa origbàriamente o que tem barba, isto é, um homem de
plenos direitos nas reuniões públicas; depois, de modo particular, o ancião. Cf.
Koohler-Baumgartner, stib voce :zaqrni. Pelos velhos é cor.stitu!do, em sentido
estriio, o colégio dos "anciãos" que são representantes responsáveis do clã, da
cidade, da região, do povo. Cf. M. Noth, Geschichte lsrae!s 0956) 104.
224 G'u.enter Bornkam.m

importância. Já, porém, nas fontes mais antigas du hlstór1~ d•


constituição de Israel como povo (isto é, na obra histórlcA javl1ta o
eloísta) as origens tribais não mais transparecem 21 , O• ancllo•
sempre aparecem como representantes de todo o povo e i1to aem·
pre no papel da simples representação e não como investidos do di·.
::reito de iniciativas ou de podêres d; et1vos, sendo sempre aubordf·
:nados aos líderes do povo (Moisés, Josué, etc.) 22. Em_ situnçõoK
importantes que diziam respeito a todo o povo eram reunidos paru
serem certificados da vontade de Javé.
Moisés, por incumbência de Javé, deve convocar os anciãos de
Israel para anunciar a êles, e com isto a todo o povo, a iminente
libertação (Êx 3.16; 4.29) e para apresentar-se a l!"'araó na sua
companhia (Êx 3.18). Os anciãos cuidam da imolação da vítima
nas famílias, para festejar a Páscoa (Êx 12.21). Celebram com
Jetro o banquete sacrificial (Êx 18.12) e, no Sinai, recebem de
Moisés a revelação de Javé (Êx 17.5). "Alguns dos anciãos de
Israel" se tornam testemunhas do milagre da fonte no Horeb (Êx:
19.7); "setenta dos anciãos de Israel" contemplam, na narrativa
do estabelecimento da aliança, a glória de Javé no Sinai juntamen-
te com Moisés e seus três acompanhantes (Êx 24.1,9). Como re-
presentantes de todo o povo "os anciãos de Israel acompanham a
Moisés na expedição para castigar a Datã e a Abirã (Nm 16.25),
bem como a Josué na expiação do roubo de Acã (Js 7.6) 23, Na
marcha contra Ai seguem a Josué na frente do povo (Js- 8.10);.
Josué os convoca na assembléia de tôdas as tribos de Israel em Si-
quém (Js 24.1; cf. 23.2).
A expressão do eloísta "os anciãos de Israel" (Êx 3.16,18; 12.21;
18.12; 24.l,9 e passim) 24 , certamente sem base histórica e que pres-
supõe que já antes da conquista do centro de cultura palestinense-
o povo constituía uma unidade é, não obstante, muito significativa;
assim também o é sua evidente tendência de pôr a serviço de to.do Is-
rael a autoridade dos anciãos a qual não precisa de legitimação ou
justiffêação legal. Nessa direção colegial não 'ºarticipam todos os

2.1 Neste sentido ainda 1tx 12.21.


22 M. Noth, Ueberlieferu.ngsgeschichte des Pentatieuch (1948) 172-191 mostra
que os anciãos eram, nas narrativas pré-mosaicas sôbre a saída do Egito e ao
revelação do Sinai, os verdadeiros lideres do povo e só foram rebaixados a pessoas
decorativas e inativas sob a tendência de fazer sobressair o papel liderante de
Moisés.
23 O contexto de Js 7.16-18 ainda deixa reconhecer claramente a divisão das
tribos em clãs.
:24 Cf. também ziqnev beney ysraei, anciãos dos filhos de Israel: tbt 4.29~
ziqney ha-'am, os anciãos do povo: ÊX 19.7; Nm 11.16, 24.
P1·esbítero B25

mas sômente dêles, por Moisés.


sentido da 11.16s,24s, da
dos setenta cujo serviço
dotados de
1':rata~se evidentemente
o influxo do movimento profé..
extat1c:o 21 , a qual, partindo da iga instlh1ição dos anciãos, a
nH)CHUc:a substancialmente; com uma escolha e
J\II.oisés faz
subordina a setenta como do dêle,
com o que são legitimados como um cargo
oficial. Essa narrativa tem evidentemente relação com a narrativa
javística o estabelecimento da alia.11ça no Sinaí (Êx 24.19: apa-
recimento Javé a e a setenta "dos de
Israel") ; é uma variante de 18.13ss, onde por conselho
de Jetro são instituídos 28 como
(sarim, "príncipes .. ) e de
dez e feitos juízes para casos O mesmo processo
é finalmente descrito em no discurso
Moisés o as :fontes darem
à escolha e à instituição dos indica que
a de Nm 11.16ss,24ss só quer narrar um milagreúni~
co - como sucede com a história · · - mas
tem finalidade a de 30 f azen-
do-a até Moisés, embora aqui não tenham
ainda de "autoridades''
As duas narrativas de 24 e têm no texto bíblico e na
exegese pós-história. evidente dependência :S::x

2:; Noth Ccf. nota 22) 34, atribuída a J.


26 Parece o número 'í'f.l é de origem cananéia (cf. nota
nfuneros os membros de uma grande fa.'Jlilia axistocrâtica
Jz 8.30; 9.2, 5;,_, 12.14).
21 A rei>J>eíto da concepção de Espírito e do sentido da na:rrativa
de 'f'I1!3. 11, cf. Noth, 141-143.
2s :ll:x 16 não fala nem de anciãos nem da escolha dos 70.
29 Também aqui não se fala de anciãos, mas sinonimicamente de "home»a
sâl;iios, inteligentes e prudentes dentre os: chefes oo vossas ttibo.9" (Dt 1.13, 15).
O Dt também em outros lugares evita c.a:rat''erlsticamente de talar de "anc!iioa
de Israel"; ro conhece anciãos locais com :funçves juridlcas bem delimitadas (d.
2271':1). ,
ao Portanto o "ESpfrito" se tornou em Nm 11 "!'!Sp.l'rito instltul!ionafu:adé;
ct. Eicbrodt, Thealogie des AT 11, 23, nota 7.
lll'DOB 70 ancião;;:, como representantes de todo o povo, se :fala ainda em
hUl.
226 Guenf.er Bornkanim

21.9s, a descrição do juízo universal e a v1sao do reino futuro de


Javé em Sião e em Jerusalém termina com as seguintes palavras
no tardio apocalipse de Isaías: "E àiante de seus anciãos está a
Glória" (Is 24.23). Esta passagem é o primeiro exemplo de como
0 apocalipsismo gosta de tirar seus quadros escatológicos de textos
sagrados fazendo assim verdadeiro trabalho de exegese 32. O mei::-
mo se repete mais tarde com respeito a Is 24.23 no livro do Apo-
calipse na visão dos anciãos diante do trono de Deus ( cf. págs. 244s).
Também na exegese rabínica, Êx 24, em conexão com Is 24, desem-
penha importante papel, mas agora com a finalidade de mostrar a
honra especial que os anciãos gozam neste mundo e no futuro ( cf.
S1:{re Numeri 92, a propósito de Nm 11.6: "Não só em uma passa-
gem e nem em duas atribui Deus honra aos anciãos, mas em tôda
a parte onde lês "anciãos" a:í Deus lhes atribui honra") 33. Nm
11.16s,24s apresenta o modêlo do Sinédrio e o número de seus mem-
bros (cf. infm, pág. 231) 34 e serve como prova escriturística da
organização rabínica 35. Também a igreja cristã antiga aplica al-
gumas vêzes êsse texto na í11stituição dos presbíteros 36.
2. Se nas nan·ativas que falam do tempo anterior à ocupação
de Canaã o papel atribuído aos anciãos se apóia em ficções poste-
:riores e tendências evidentes, já o quadro se modifica quando se
trata do tempo. que se segue à ocupação. Aqui os anciãos aparecem
pela primeira vez como líderes da nobreza local de diferentes ci-
dades, tanto israelitas como não israelitas ~·. Nas mãos dêsses an-

32 Indicação de G. von Rad.


3:; Cf. também Leviticus Rabba 11 (113b) em Strack-Billerbeck, III, 653s.
;;.; Também em outros lugares encontramos c:::légios de 70; Flávio Josefo pede
70 anciãos para a administração da Galiléia (De Bello Judaico 2, 570s); os zelotas
instituem em Jerusalém um tribunal de 70 membros (ib., 4, 336 341); 70 nobres
estão à frente, da colônia judaica babilônica de Batanea (ib., 2, 482; Vita 56) e da
colônia judaiêa de Alexandria (Talmude de Jerusatérn; Suk.ka 5,1 (55a, 70s). 'ram-
bém os ebionitas tinham um colégio magisterial de 70 anciãos (Epistola Petffi ad
Jacobum 1.2. Cf. H. J. Schoeps, Theologi.e und Gieschichte des Judenchristentums
(1949) 290.
3;, Cf. K. G. Kuhn, Sifre Numeri (1934) 247.,251.
36 Orde;<ações ·Eclesiásticas de Hip-Olitc 32,3 (ed. F. X. Funk, 1905, 103. Cf.
também Orígertes, Homiliae in Numeras 22, 4 CGCS 30, 208).
37 Anciãos moabitas e rnidianitas se encontram já em Nm 22.4, 7 (glosas), bem
como os anciãos do Egito (no sentido de dignitários) que são nomeado.s ··no ·
sepultamento de José (Gn 50.7·). Anciãos de cidades não israclilas: Gibeon
(Js 9.11), Sukkoth (Jz 8:14, 16); Siquém (Jz 9.2); de cidades israelitas: os
ancliios da cidade e do território de Gilead (Jz 11 3-11), de Jabes (1 Sm 11.5-10),
de Bd;'.m (1 Sm 16.4), <lat1 cidades de Judá {1 Sm 30.26-30; cf. ainda Rt 4).
ciãos encontra-se o poder decidir questões políticas e
litares bem como os procedimentos jurídicos as. Ultr,9-passando os
limites das cidades, os anciãos aparecem também comó che;fes que
decidem comum regiões inteiras e sôbre muitas ou tôdas
as tribos (Jz 11.5; 1Sm 30.26; 2Sm 19.12), e como tais não raras
chamados •anciãos de Israel" {2Sm. S.JJ; .5.3 e passim).
A do Juízes e d.os Reis mostra o poder que estava
concentrado em suas mãos em tempos de guerra e o quanto valia
para os reis, e seus adversários, tê-los de seu lado.
Os Israel decidem. para o acampamento a Ar-
ca de Javé durante a contra os filisteus (lSm 4.3). Exigem
de Samuel a instituição de um rei (1Sm 8.4). Saul, depois de ter
caído em desgraça, pede para ser reabilitado diante dos anciãos do
povo (lSm 15.30). Davi, depois que Abner ganhou para êle os an-
ciãos de Israel (2Sm 3.17), chega à realeza por meio de uma alian-
ça com êles (2Sm 5.3). Na revolta de Absalão, os anciãos de Is·
rael abandonam a Davi (2Sm. 17.4,15), e êste só pode retornar à.
depois de ter reconquistado os anciãos (2Sm 19.12). Na
inauguração do templo de Salomão os "anciãos de Israel" aparecem
pela última vez como representantes de todo o povo (lRs 8.1,3). De-
pois da separação dos reinos aparecem como representantes de uma
parte do povo, do povo do país (1Rs 20.7s), ou de uma só cidade
(lRs 21.8,11; 2Rs 10.1,5). Ao tempo da formação do funcionalis-
mo r.eal a influência dos anciãos entra em acentuado declínio; per-
manecem contudo como potência da qual os reis se devem socorrer
em situações (1Rs 20.7s), na execução de decisões impor-
tantes (lRs 21.8,11). A oposição profética e política, conforme mos-
tram 2Rs 6.32 e 10.1,5, procurava e encontrava entre os anciãos
terreno favorável.
3. O livro do Deuteronômio atribui, ou deixa, aos anciãos com-
petfü:wia judiciária .e bem delimitada, em clara referência a
antigos usos que subsistem (cf. Rt 4.2,4,9,11); mas, ao mesmo tem-
po, ihes delimita as funções judiciárias locais colõcand'o, ao lado de
se\is. cólégios, juízes e funcionários subalternos. .
.Os casos judiciais que cabem aos anciãos são descritos casuls-
tica~ente: Devem entregar ao vingador o assassino que fuja para

·:is A questão de até que ponto os israelitas assimilaram a institulció dos


anciãos . dos cananeus, e . até que ponto oom a sedentarização conservaram llUllB
inst~tulç(.)es
tribais numa forma mais ou menos modificada, é difícil de resolver;
cerfariie~te devi.H;e contar com as duas ordens de instituiç&!s .. Já para o tempo
de• Tell-el-Amarna {século XIV a. C) são atestados regimentos aristccrátlcos· nas
cidades; cf. A. Knudtzon, Die E!-Amarna Tafeln, Vorderasiàfüche · Biblíothek 2
(1907), n." 59; 89, 48s.
228 Guenter

sua cidade (Dt ; devem fazer por um assassl·


não esclarecido que O(:orra em sua (Dt 21.1-9) ; do-
as queixas pais contra rebeldes ( Ut
) , ou as queixas um marido contra sua mulher culpada
(Dt 22.13-21); Dt 25.5-10 devem cuidar para
verifioue o casamento levirato. As decisões são toma-
dã cidade (Dt , cf. Pv 81.23). Ao lado dos
~,kUAVL•··~ juízes (shophetini, Dt 1.16;
..

; juízes e oficiais em 16.18. e


entre os três grupos (anciãoA,
"''"""'uv de que os juízes, como
juiz, no singular!), o
ser sempre dn
"""""'Vº - lá onde man-
tinham funcões judiciárias em colégios - tinham caráter do
:autoridades~ vitalícias conquanto de competências restritas. · A le-
;gitimação, que Nm 11 se referia aos anciãos, é ap'.icada
:agora aos oficiais
ª"'""- '
Enquanto na deuteronômica os "anciãos de . Israel"
-ocupam lugar na historiografia deuteronômica êle:-i
.conservam seu papel ""'"'"<''-"'"'v; aparecem ora como promulgadorc.:-i
juntamente com (Dt 27.1), era como recebedores rcs-
dela (Dt 5.23; 31.9); também aparecem freqüentemente
em assembléia o povo como um todo deve ser. reR-
(Dt 29.9; ; Js 8.33; 23.2; 24.1). Mas neste caso
"'''"""1"r'"".,.. um corpo que geralmente aparecem
funcionários com eargos determinados.
da dissolução tribal, já pelo fim do tem-
"'-"'"""''"'-''h e sua ruína total deportação, a representa-
ção tanto os que ficaram no paiR, co-
mo entre
Com entre interior e
eapitab dos anciãos da
terra", segundo (26.17), se contra o juízo pro-
ferido na capital e se colocam ao lado do profeta. Ex. 8.lls .conhe~
ce anciãos de evidentemente como representantes· de to-
o povo (o profeta desde Babilônia, o· comportamento ído!á-
dos setenta em Jerusalém). também à testa da
comunidade dos encontram~se anciãos (Jr 29.1; Ez 8-1;
; 20.1,3). E no depois que tôdas as suas outras funções
foram mais uma vez conseguem uma si-
tuação como representantes de uma limitada.: auto-
.administração do povo. a sua estrutura durante e depois do
Presbitero ~~g

€xílio se modifica profundamente. Com a dissolução das triboa


(alianças endogâmkas) cresceu a importância das familias C'caaaa
patriarcais") 89 , que depois do exílio formam a pedra anrular dl\
nova comunidade; ora, com isto cresceu também a lmport&nola · dll
:algumas dessas famílias, certamente as de maior d11tino&o,••0Ujo11
chefes aparecem à testa do povo depois da reconstitut~o da,.oomU•
nidaàe. Só a partir dê:o/9 I-onto é que se deve considerar como:&l'll! ~
tocracia do povo os anciãos e as famílias de que provêm. A oart&·di
nobreza que fundamenta a hereditariedade da dignidade nesaa1 t ..
mfüas consiste no fato de se poder provar oficialmente que se per-
tence ao grupo original dos exilados que voltaram (Ed 8.1-14; Ne
7,6-65, onde contudo o têrmo zeqenim não aparece). Se antigamente
>0s anciãos recebiam sua autoridade da posiçã9 que ocupavam den-
tro das grandes famílias e clãs, agora essa autoridade se funda na
-posição especial de suas famílias dentro do próprio povo.
Esta mudança de estrutura já se reflete na terminologia da
1iteratura pós-exílica: o têrmo zeqenim, originário da constituição
tribal desaparecida, é usado cada vez menos 40; em seu lugar en-
tram outras designações (chefes de família, cabeças, presidentes).
Quando ocorre o conceito "ancião", o têrmo usado passa a ser o
-aramaico sab que a Septuaginta traduz, segundo o sentido, p9r pres-
byteros (Ed 5.9; 6.7,8,14). :ltstes estão à testa do povo e é com
.êles que trata o administrador persa; juntamente com os "admi-
nistradores dos judeus" dirigem a construção do templo e a reorga-
nização do povo. Sua autoridade sôbre todo o povo deve ser defen-
dida com resolução, corno demonstra a luta de Neemias contra os
poderosos "nobres e chefes (ha-horím we-ha.s-sega:nim, Ne 2.16;
4.8.13; 5.7; 7.5). Também Ed 10.7-17 mostra que a instituição dcs
"anciãos da cidade" (10.14) ainda não desapareceu totalmente. Em
.dependência da antiga instituição, encontramos aqui "juízes e an-
ciãos de cada cidade" (ziqney 'fr wa-'ir) quando a comunidade dos
exiladoa reunidos em Jerusalém resolve a separação dos que vivem
em matrimônio misto. :Êsses anciãos devem comparecer a Jerusalém
jurtti1tmsnte com os atingidos pela resolução. Mas êles não são idên-:-
ticos com os que já foram nomeados em 10.8 (h,_as-sari-rn we~kaz~
:zeqenirn, os princípes e os anciãos) e que convocam a assembléia dos
exilados 11. Também se deve notar que com chefes escolhidos das

:;9 Sôbre sentido e uso dessa expressão, cf. Rost (cf. bibliografia) 58-59.
4o Aparece em Crônicas, na re-elaboração de textos mal;; antigos de Sm e Ra,
no documento P só raramente, em Ne não mais, em Ed só em 10.S, 14 (em 3.12
trata-se de velhcs no sentido natural). Cf. Rost, 61-64.
H Sómente aí aparece o título arcaico ::erl'mim, anciãos, mais uma vez para
designar os representantes de todo o povo.
280 Guenter BornJcamm

composta
Êsses
como
n1tütoa
nú·
uma assem-

·--· anciãos", eomo autt.;ridade dos


judeus em Jerusalém, s6 com certeza o tem-
po dos (i\ntfoco III, 223-187 Contudo os inícios
desta de velhos, e do consequente as-
cendem persas 42.
O conceito de pre8byteroi sofre evidente hansforrnação no de-
curso da história, cheia de incidentes e de lutas partidárias, destn
central. todos os membros da gt·-
conselho dos se torna designação
"'"'"""'"1"' para os repre~cn-
das famílias as era escolhido o Ali·
{lUe tinha a presidência do para dis-
tingui-los do grupo dos teólogos que a di-
Sinédrio 1mnca estava em mãos Contudo,
admitir que os p1·esbyteroi, como do presti-
de Jerusalém, eram seguidores da ori-
entação sacerdotal-saducéia 44 • Em caZ"io, dos numerosos si-
nônimos que Flávio Josefo, o NT e empregam para de-
signar os fica evidente que, como aHstocracia leiga, êles
tinham e voz ativa no Sinédrio bferioTidade em f nce

42 Flávio Josefo, Antiquitntes 12, 138-144; CI. ScJrtm~r(:~ (c:t ,bibliografia) Il, 239.
4.44; 1L27 e compnrar
com Macabeus 14, 20.
44 'Flávio Josefo diz e~pressamente que os "nobre;;» pertenciam ao partido
:;aduceu (Jl.ntiquitates 18, 17). Com a ruína do estado juóaico (70 d. CJ desapnrece
a orientação saducéia e a nobreza a ela ligada, A partir talvez se
explique. o desaparecimento de uma especial sôbte os "anciãos" na Oração
das dezoito súplicas, PQr obra dos Beraka que, s~gundo Tosefta BeTakot,
estava em diversas versões. ct. K. G. Aehtzehn.Jebet 1md Va:terun~eT und
(1950) 18s, 21s.
1r><Há diversos sinônimos que mostram que os andiios constitufam a nobreza
leiga: os do (Le 19 , ao iado de ~'chiereis, gnmnn.a«•is); os
Josefo, 9); os chefes cm povo (ib., 194): o~ nobres
etc. Os grupos são 4'amados dynatoi. o~ pode-
Presbítero 231

dos dois outros grupos transparece ainda 111111 fórmulH do NT qu1


geralmente apresentam como membros do Slnódrlo 11 prlnolp1S1 U•
cerdotes, escribas, anciãos", isto é, os primclro11 aumprt na frtl'8
(do ponto de vista formal mantinham a liderança, embora h6 •ui•
!~~~r: ~~e;i~~~6 .perdido de fato para os gramm<ite11w),: 01. ~-
. Gomo éontinuação e herdeira do grande Sinédrio de Jtra
surge, depois da destruição da cidade, o Sinédrio de Jabne .(J'Gzd&),.
que também faz ascender seus 72 anciãos ao conselho de ancilo1 tn..
tituído por Moisés. Seu caráter é evidentemente diferente do OOU•
selho supremo de Jerusálem, já que lhe foram tiradas as competln·
cias políticas e só lhe restando pequena esfera jurídica. Seus mem-
bros se compõem exclusivamente de intérpretes fariseus, pois não
mais existe aristocracia sacerdotal ou leiga. Nesta nova forma, co-
mo última instância doutrinária da interpretação e aplicação da
Lei e como escola superior de erudição rabínica, êste Sinédrio logo
se tornou autoridade suprema para todo o judaísmo.
6. No sentido desta evolução, a tradição judaica - que orna
os mais eminentes dentre os sábios a:ntigos com o título de zaqen 47 -
afirma que quem leva êste título honroso pertence a.o Sinédrio •s.
Mas também membros de gerousiai, conselhos de velhos, locais são
chamados zeqenim 49 • Em todo o caso um tal zaqen deve ser legiti-
mado como mestre: "zaqen só é quem possui sabedoria" (Qiddushin
32b). Partindo daí, compreende-se que na Michná sejam designados

rasos, os chefes dos sacerdotes e os nobres dos fariseus (ib., 2, 411). No Talmude
os membros leigos são repetid11mente chamados "os grandes da geração", "os
grandes de Jerusalém", "os nobres de Jerusalém"; outros exemplos em J. Jeremias,
83-100 .. ·
46 lWas também é postivcl mudança na ordem (por ex., Me 8.31 e-paralelos:
presbyieroi, archíereis, grammateis). A designação dos membros do Sinédrio
niio cscifa pouco nos três prímeirosc Evangelhos. Enquanto Me geralmente nomeia
lado a lado as três ordens (11.27; 14.43, 53; 15.1 e também MJ 16.21; 27AíJ; iv:rf
prefere a fé>tmula archiereis kai hoi presbyteroí (tau laou), os chefes dos sacerdotes
e cs anciãos (do povo) (21.23; 26.3;. 27.1, 3. 12, 20; 28 lls). Em Mt é noiável a
freqüente omissão dos grammateis, doutôres da Lei. Lc é certamente o menos
correto na designação das autorídades no seu Evangelho (cf.. 7.3: 9.22; 20.1; 22.52);
nos Atos se diz archontes, presbyteroi, grammateis, chefes, anciãos, doutôres da Lei
(4.5~ ;·:iirchontes tou 1aou kai presbyteroí, chefes do povo e anciãos (4.8); arclii€Téi8,
pnesby.~rrni (4.23; 23.14; 25.15); cf. ainda 6.12; 24.1.

17 Orla, 2,5; Sukka 2,8 <Shammctí); Arahim 9,4; Shebi 10,3 <Hillel); seus
disdpulos ~e chnnnm bcney haz-z.eqenim, filhos dos anciãos (Sukka 2,7).
·ill ..Cf. A Sr;mmter. Dic sechs Ordnungen der Míschna l (1927) 181, notn a,
-ill Ci. S. Krauss, Synagoga1e Aitertuemer (1922) 143s. :
232 Guenter Bornkani1n

.como zeqenim mestres ordenados, e com freqüência no. MaA


não significa que hakham, sábio, no sentido termino-
também um zaqen. ltste é um título honorífico, enquan-
é um conceito
aproximação dos hakhamin e zeqenim, sábios e
- completada na - já deve ter sido preparada an-
teriormente. Ela já se encontra na lenda das origens da tradução
da (primeira metade do século I a.C.) na carta de Aril·
. Conforme Ptolomeu pede ao sunío-sacer-
mande 72 ·conhecedores da Lei, parn
realizarem a não é aqui usado como
título pois são da Lei e não ·como
"anciãos". Contudo, na escolha dos 72 de cada uma das 12
tribos) aparece a idéia antiga da representação de todo IH·
rael. Presbyteroi no sentido de "doutôres da Lei" aparecem ainda
em Me 7.3 ("tradição dos anciãos") e Flávio Josefo (Antiquita.ted
13.292, "ouYímos dos anciãos").
As recentes descobertas que falam da seita de Qumran, pou-
agora !) nos a respeito da instituição judaica <lo:-4
A regra da seita (1 QS 6,8-10) nomeia os zeqenim nn
da ordem de precedência da sessão plenária ; é-lhes d<~­
lugar atrás dos sacerdotes - que ocupam o primeiro lugar
- e antes do povo, com a determinação de que também as pergun-
tas em questões jurídicas e comunitários se façam nestn
ordem;· mas a função exata que lhes cabia não é clara. Possivel-
mente era idêntica à dos 13 homens segundo 1 QS 8,1, junta-
mente com os sacerdotes decidem as transgressões da Toní.
Em todo o caso, êles são representantes leigos subordinados. aos sa-
cerdotes, como também se deduz da passagem de 1 QM 13,1.
Um "juízes", todos os devem ser doutôres da
lei {com a 25 até 60 anos), conhecido também p~~o Es-
crito de Damasco (10,5s (11,2)) : "quatro do tronco de Levi,e Aarão
e seis de Israel"). ~ste consistório está sujeito ao mebaqet~ "~pís-
' e juntamente com êste cuida também dos pobres · (12,'tlAS
( (14,12-16)) 51.
7 .. O significado político dos anciãos no uso dos judeus que
falavam grego transparece já do fato de que a Septuaginta traduz
o hebraico zeqenim ora por presbyteroi, anciãos, ora por gerousia,

l'it'l Erubim. 3, 4; 8, 7; Sanhedrin 11, 1-4; Aboda. Zara 4.'l.


Ct. B. Relcke, Die Verfassung der Urg,r!meindc im Lichte :jued..
llt Dti/.:imente,
em ThZ 10 (l91S4) OIS-112.
Presbíte·ro .283

conselho dos velhos 52. Para a situação reinante no tempo dos Ma-
cabeus são característicos os livros de Judite e dos Macabeus: Aqui
a expressão patriarcal presbyteroi é aplicada tanto aos membros
da autoridade suprema do povo, i. é, ao senado de Jerusalém 53; co-
mo para as autoridades locais do país 54, isto é, como designação de
cargos públicos. Mas presbyteroi também pode, em sentido mais
amplo, designar as pessoas de destaque e ser distinguido dos rnem---
bros da gerousia (3 Macabeus 1.8,23) e dos a·rchontes, chefes (1 Ma-
cabeus 1.26). Também o uso geral de "velhos" (em oposição a
"moços") é corrente, como mostram 1 Macabeus 14.9; 2 1\ifacabeus
5.13; 8.30. Portanto presbyteroi conserva o seu sentido amplo. A
história de Susana, que pertence à diáspora babilônica, fala expres-
samente de anciãos que "naquele ano foram constituídos juízes"
(Susanna 50 (Theod.) e 29.34 (LXX).
A antiga constituição comunal das comunidades locais judaicas
conserva-se na constituição da sinagoga. À autoridade local, que ge-
ralmente consta de 7 membros, corresponde - nos lugares que têm
uma comunidade judaica cultualmente organizada - a autorida<ie
siRagogal. Também se conserva o título presbyteroi para os líderes
da comunidade e os que na sinagoga têm o poder de disciplinar
(cf. Lc 7.3) 55. É notável, porém, que o título se torne muito raro
nas sinagogas da diáspora durante os primeiros séculos da era cris-
tã; ao passo que ocorrem com freqüência os títulos que na lingua-
gem institucional grega eram mais correntes (gerou.sia, conselho
de velhos, gerousiarches, chefe da "gerusia", a,rchontes, chefes,
phrontistês, curador, gramrnateus, letrado, prostatês, presidente) 56,

52 Gerousfrr: Ez 3.16; 18; 4.29; 12.21; Lv 9.1, 3; Nm 22,4, 7; Dt 5.23, etc. Em


:t!:x 24.9 Codex B: gerousia; Coàex A: presbyteroi.
;,3 1 Macabeus 1, 26; 7, 33; 11.23; 12, 35; 13, 36; 14,20; 2 Macabeus 13, 13; .14, 37.
54 Os anciãos de Betilua (Judite 6, 16.21; 7, 23; 8, 10; 10, 6) distintos da gerousia
de Jerusalém (4, 8; 11, 14; 15, 8). Em 1 Macabeus 14, 28: presbytieroi tes che»raa,
anciãos da terra. Cf. Lietzmann (bibliografia) 124-126.
M 11/fuiío importante é a existência de ;presbyteroi como designação de chefes
de sinagoga numa inscrição de Jerusalém que é anterior ao ano 70 d. C.: Supp4
Ep!w. Gra.ec. VIII, 170, 9; texto e explicação 11>rn Deissmann, Licht vom Osten,
378-380. '
5~ Cf. Schuerer (cf. bibliografia) III, 9ls. Deve-se notar também' o uso de
têrmos gregos tirados da linguagem institucional: boulê, bouleutês, grammateus
tês boulês, synedrion, dikastés, kriMs, dekaprotos, ethnarches (conselho, conselheiro,
secretário do conselho. sinédrio, juiz, chefe de dezena, chefe de povo). . Isto
significa que os judeus da diáspora não se consideravam um ihiasos, confraria
cuHual, mas um povo.
:!ti~ lluenter Bornkarnm

dos judeus em Roma, no1


ocorra uma só vez 117. Maia
~"~~·~ mais tardias, são as ocorrências da Ásia Menor,
Palestina 58. Aí presbyteros não é título de oflctal, 1
idade, mas título honorífico para membros de fa•
ao senator /romano). 59. Também ai
da dignidade "senadores", como o dt•
título a pais e nas inAcriçõ11
o uso de presbytera mulheres 111 , de·
es1)0111a de um presbyteros É de estranhar
seja mais nos primeiros Ré·
ao fato de que presbyteros é titulo
sem caráter 63 · - o que o especialmente
n».nn·r n para insc:nçoes
1 - mas sim que em grego êle real-
não é comum como título de dignidade 64. Os exemplos que
possuímos mostram que nas sinagogas da diáspora oriental êle não
desaparece. Confirmam-no os códices Theodosianus e Justinianus
do.s e V que, em ordenações de cargos, folam •
de como membros da sinagoga! 65,

C. A "TRADIÇÃO DOS ANCIÃOS" NA


PREGAÇÃO DE JESUS

Na polêmica o que é puro e impuro (Me 7.1-23; Mt 15.


66 Jesus opõe o mandamento de Deus à paradosis tôn presby-

r.1·cr. Frey. Corptrn, I, nº 378 e págs. LXXXVIs.


Ml Ib., II, n.<' 735. 739. 790. 7tl2. 800. 801. 803. 828. 829. 931. 1277. 1404.
oii. Em· Let~iticus Rabba, 2, 4 usa-!'e zaqen de um senador romano: a tradução
grega ':orrente parn s<incttor, contudo, não é presbyteros, mas bouieutês e gerôn.
eo Cf. Th. Rein2ch. Inscription juive des environs .de Consta,ntinople, P EJ 26
(1393) Hl7·171.
'.,-;:.'
.n1 ~!:'. I?rey. I, n." 581. 590. 597 (três e:l!:emplos de Venosa, na Itália
do Sul), 692
62 É pcssível que o título archisynagagos e pateressa (=: mateT syncrgogae)
•{:w.lieano. também a· mulheres, an.àlogamente ao uso greco-romano. Cf.
(bibliografü1) II, 512; :m, 17.95. Frey, CÓTP-Ull I, n.O 606.
oo Assim E. Schuerer, D!e Gemeindeverfassung der Jururn tn Rom 0879) 19.
_11.1 Sôbre o uso de presbyteros no Egito, cf. 8'11.PTO., pâgs. 220s.
6~ Exemplos em Schuerer III, 89s; Lietzmann (cf. bibliografia) 130s.
'ÍÍu discurso polêmico e didático de Jesus, evldent~mente muito importante
de Me e por isto tão extenso e elaborado". <Klostermann, Mark.us,
a análise da pericope, cf. Die F'ormge:schichte des Eva11geliums
(1933) 222s; Bultmann, Tmct, 15s.
Presbítero - 2fJ5

f1·nh1, tradição dos anciaos (Me 7.8; cf. 9.13). O uso que,nesta
passagem se faz de presbyteros é corrente mais tarde no judaismo,.
tmm o significado de "doutôres da lei" (cf. supra págs. 230s).
A "tradição" dêles é equiparada pelos rabinos à Torá 67, en-
f\uanro que os saduceus rejeitam qualquer ampliação da Torá 6S, A
~rítica de Jesus opõe-se aos dois grupos, já que não discute a -au'-
t.oridade formal da Torâ ou da tradição mas sujeita ambas a cri-
térios superiores. Por isto êle pode ora aduzir a Lei e os Profetas
\•onfr::i. a tradição (Me 7.6-13), o:ra opor a Lei propriamente dita às .
Pxplicações da Torá de Moisés. Êste último caso se verifica de mo-
do mais claro em Me 10.1-12, como também no logion de Me 7.15,
{1ue nega qualquer impureza produzida por alimentos, com o que não
116 é atingida a tradiçã-0 , mas também a lei cultual de Moisés 611. Por
outro la.do, a ampliação da Torá não é criticada em si mesma, mas
antes pressuposta como evidente 70, e Jesus pode até mesmo ·fazer.
usn de profecias da Halaká em suas polêmicas n, apesar de criti-
(•ii-las severamente em outro lugar (Me 7).
Que aqui não temos a teologia da comunidade primitiva, m.as a
J>osição do próprio Jesus, transparece do fato de que Marcos corren-
temente afirma a oposição entre mandamento de Deus e manda-
mento humano (7.9,13) e interpreta a palavra de Jesus de 7.15 por
meio de um catálogo de vícios helenístico (ve:rs. 20-23) 72; Mateus,
ao contrário, sem abandonar sua fonte, que é Marcos, nega, é ver-
d:u:le, que se fique impuro por não lavar as mãos ( 1\'It 15.20), mas
omite a afirmação gerai de que todos os alimentos são puros (Me
7.19) e não critica a tradição dos anciãos nem o magistério dos dou-
tôrcs da Lei em si mesmo (Mt 23.2) 73 , mas tão-somente sua inter-

a1 Shabbat 31a; Abot l, 1; 3, 14; Sanhed.rin 11,3.


flrl F1ávio Jos!lfo, Antiquitates 13, 297s. Klostermann, Markus, excursus sôbre
2.16.
OG Sôbre o significado teológico desta relação, cf. E. Kaesemann,··Das Probl.em
dcs historischen Jesus, em ZThK 51 (1954) 144~148; G. Bornkamm, Jesus vem
Nazareth (1957) 88-92.
10 Por exemplo, Mt 5.43.
Mt 12.11; cf. ainda Kuemmel, JieBUs und der juediliche Tradi.tionsgeda'l'.ke,
11
im ZNW 33 (1934) 119s.
72 Em :Mt 15.19 reduzido ao decálogo.
7:l Mt 5 23s; 17.24-27; 23.16-22; 24-20. Ct. G. Ba:rth, Untersuchungen Ztim Ge-
·etzverstaenà.nis des Evangelísten. Mo.ttr..aeu~, dissertação feita em Heidelberg (1~55),
nnnusc:rito 48-53.
236 BQrnkamm

preta~ão n11:1oc~n1;a deixa o é principal. Portanto para


ê1e a lei não é abolida mas subordinada à lei do
amor 75.

D.

1. Conforme existem "an-


na comunida.de pela pri . .
vez na entrega, por e Barnabé, da Igreja
aos presbíteros em Jerusalém ( na des-
Concílio dos Apóstolos e na redação do apostólico
(At ; 16.4) ; finalmente, na chegada de Paulo a Jerusa-
lém e seu encontro com Tiago (21,18). Uma comparação entre essas
diferentes passagens mostra que só em 11.30 e 21.18 se fala dos pres-
bíteros sem nomear os apóstolos, com os quais formam, em todo o
capítulo 15 e em 16.4, um grupo e que, em 11.30 e
são simplesmente representantes da comunidade local de Je:rm;a1err1.
espécie de autoridade sinagogal judaica. 21.18, reúnem-
se êles ao redor de Tiago, o qual evidentemente é o líder de seu co~
légio 77.
Na narrativa êsses presbíteros relativamen~
te Até 11.30 estão ausentes, não o fato de que não
já a comunidade tenha aparecido representativamente
e decisões. Logo da notícia de Tiago apa~
primeira vez como da comunidade ( 12.17). A no~
a entrega das coletas aos presbíteros de Jerusalém (11.30)

74 Cf. G, D. The Origins of thc; Gospe! According to St. Mattilew


0946) 108. G. 44-4!t Em Mt 23.33 expressamente são reconhecidas
algumas., regras
· 7l:i Já em Mt Jesus tem erri vista o preceito do como núcleo da Lei
e dos Profetas (cf. 9.13; 12.7; 22.40, embora o da Lei seja afirmado
à maneira judeu~cristã. Cf. Schwei:f;zer, Anmerkungen zum Gezetzverstaendnis
l'rft, em ThLZ 77 (1952) 479-484.
76 A seqüência que adotamos neste ponto para os escritos neotestamentários
e extracanônicos é evidentemente discutível do ponto de vista histórico; só o fa 8

zemos para dar uma vista de conjunto.


77 É incerto até que ponto esta passagem de!lCl'eve a relação entre Tiago e os
presbíteros. no sentido de um presbiterado "'monárquico". Sôbre a questão do "'ca-
lifMlo" ou do· "episcopado" de Tiago, d. E. Stau:tter, Zum Xalifat des Jakobu!, em
Zeitachr. fuer Rel. und Geistesge:ch. 4 (1952) 193 - 214; H. von Cernpenha'U!lell,
Die Nachfolge des Jakobus, em ZKG 63 (1950/1) 133 - 144; id., Lehrerreih;m und
Dischofsrethen im 2. Jahrhund;ert, em In Memoriam. E. Lohmever (1951) 240 -
24(). Sl'ibre At 11.30 e 21.18, e!. Haench, Aposteigeichichte, 325.544.
foi com certeza inserida pelo autor dos Atos dos Apóstolos num lu-
gar errado, isto é, antecipadamente 78. Em 21.17-26, encontra-se·
uma tradição bem mais antiga. É precisamente o contexto desta
passagem que contém o argumento crítico decisivo contra a apresen-
tação feita, no cap. 15, do concílio dos Apóstolos e do decreto dai .
emanado, e confirma Gl 2 onde nada se diz dêsse decreto. - A narra-
tiva de Paulo está também em contradição com a imagem institu-
cional que nos oferece At 15: os dokountes, "que pareciam", com
que Paulo, segundo Gl 2.2, trata numa sessão "especial", são exclu-·
sivamente os três apóstolos designados como styloi, colunas ( Gl
2.2,6,9), enquanto At 15 fala repetidamente de apóstolos e pres-
bíteros e isto num sentido que se afasta não só de Gl 2, mas também
de At 11.30 e 21.18.
Em At 15 e 16.4 os apóstolos e presbíteros funcionam clara-
mente como suprema instância judiciária e instância doutrinal nor-·
mativa para tôda a Igreja, e como tais tomam uma decisão a res-·
peito .das exigências mínimas da Lei que devem ser impostas aos,
gentios. Portanto, aqui apóstolos- e presbíteros são uma imitação d°'
Sinédrio judaico (cf. págs. 230s) e não mais apenas uma es-
pécie de autoridade sinagoga! (cf. pág. 233). Esta nova situação.
de apóstolos e presbíteros transparece do fato de que só êles são no-
meados (sem ekklesia) em 15.2,6,23 e em 16.4, a saber, nas pas-
sagens em que aparecem como autoridade para tôda a Igreja (mas
não em 15.4,22 !) .
Daí se infere que ,At 15 não narra fatos históricos, não só em
razão do resultado principal do concilio (decreto apostólico) mas.
também em razão da instância doutrinal aí afirmada. Embora a
participação do autor, tanto do ponto de vista literário como teo-·
lógico, na reelaboração das narrativas de Atos, fôsse grande (agru-
pamento dos oradores, tendência harmonizadora de seus discursos!),
êle depende contudo de tradições judeu-cristãs, conquanto sempreri-·
camente elaboradas, mesmo em sua obra histórica. Nessas tradições
a extensão da autoridade dos presbíteros locais de Jerusalém ao·
ponto de constituírem uma instância judiciária e doutrinal à seme-·
lhança do sinédrio já deve ter-se completado quando Lucas as usou.
Do ponto de vista histórico, a análise acima feita demonstra
que a formação de uma autoridade presbiteral - primeiramente à ·
imàgem ·da .autoridade sinagoga! e mais tarde (talvez em conexão,
com ô decreto de At 15 com pretensões próprias de um sinédrio -
deve ser localizado no tempo que se segue ao afastamento de PedrQ,.
durante :a crescente judaização da comunidade primitiva sob Tiago,
como o descreve muito bem At 21.17-26. Trata-se de uma situação·

71J Esta narrativa é inconciliável com Gl 1 e 2.


238 Guenter Bornkarnm
da Igreja primitiva da qual também dep~em
ra:;i;oe~s
internas : ecrme:nto dos Doze; evolução doe
uma realidade crescimento da comunida·
membros mais antigos e provados para a. for•
um presbiterado.
2. Em oposição a essa constituição da comunidade primitiva.
formada segundo modêlo judaico, as comunidades helenistas do âm·
missionário de Paulo nos mostram uma imagem totalmente
80
Nas indiscutivelmente autênticas dêsse após.
nunca se fala de presbíteros, embora nas comunidades pauli-
nas não faltem certas funções de liderança. Os que ocupam êsses
numa comunidade s6 raramente são designados por
Paulo por títulos como diáconos e "epíscopos" (cf. supra). Ge-
ralmente designados conforme a função que exercem na co-
munidade (Rm 12.7s; 1Co 12.28; 5.12): proi.stamenoi, os que
presidem; lcopiontes, os que trabalham; homens aos quais foi dado
o carisma da antilempsis, socorro, da kybernesis, govêrno, da diako-
nia, serviço. se exige dedicação total· sua autoridade é dedu-
zida do serviço prestam e não de um que lhes seja próprio.
Nem em razão sua idade, nem do tempo de sua participação na
vida da comunidade, provém alguma autoridade. O princípio
institucional das comunidades é a multiplicidade dos carismas e nüo
o de uma tradição que naturalmente e que qualificasse al-
para a liderança.
3. O aparecimento e a de uma instituição prcsbit.e-
ral imagem e modêlo da Diáspora só ocorrem
no1''1't:>"'" nos escritos pós-apostólicos, os quais - também de ou-
pontos de vista - têm acentuada influência helenística 81,
a. Para a, situação do judeuMcristianismo (helenístico) temo!4
a carta de que em 5.14 nomeia como único cargo o dos prcsbi-
teros82. Em casos de doença deve-se chamar. "os anciãos da co-
munidade" para que oração e unção "no nome do Senhor" curem

'TB Cf. a noticia exagerada de 21.20.


80 Cf. H. · Greeven, Propheten, Lehrer, Vorstieher bei Pau.lus, em ZNW 44
(1952/53) 1 - 43. Cf. von Campenhausen (bibliografia) 59 - 81.
si Cf. Bultmann, Theologie des NT, 448.
82 Infelizmente não podemos afirmar com certeza a que região eclesiâstlca
pertence A afinidade com 1 Pe e 1 Clemente e ainda com o Pastor de Bermas
não se em dependência literária, mas no uso de tradições parenéticas · oome.:.
lhantes do judaísmo da Diáspora que não pode ser localizada geogràficamente; Clf.
Dibelius, Jakobusbrief 29.33.
of! doentes 83. Aí se fala de comunidade (no·
tar· o artigo!) e não velhos carismáticos. Ta.mbémaparece ·cla.-
ramente a pressuposição de que por fôrça de
. dos do poder da oração que produz ef~ití)s ~.
Embora "presbíteros"' devam ser representados à maneira
de uma autoridade sinagoga!, coptJ,l'(!oJl.JillP~Q&içf) ~vidente de>qae .
em razão de seu cargo podem fazer orações que têm poder de curar,
não tem paralelo no judaísmo e pressupõe a experiência ca.rismáti:..
ca do cristianismo primitivo, a qual aqui já é uma realidade insti~
tucionalizada. todo o caso a do judaísmo ~tardio an~
dão como aproxima-se da situaçãó narrada passa~
gem de Cf., por exemplo, Baba Batra ll6a: "Quem tem
um doente em sua casa, dirija-se a um sábio para que suplique
por misericórdia'' 85. Mas nunca se atribui ao .ancião judeu como
tal essa qualificação. Como Tg 5.16 não fala da confissão de peca-
dos dos presbíteros, mas de confissão e oração mútua~ bem
como da fôrça da oração do justoem geral, a indicação de 5.14 não
permite fazer inferências sôbre a· posição do presbítero como con-.
f essor 86, nem sôbre sua função cde dirigente da 1iturgfa na comu-
nidade 87. ·

b. As passagens mais antigas que falam de presbíteros como


líderes de comunidades gentio-cristãs eneontram~se em
Atos (14;28;
20.17-38). Embora não nos informem sôbre o tempo de 'Pa.ulo, con-
tudo são de grande importância e ricas de conseqüências -· sobre-
tudo a segunda para as comunidades p6s-apostólicas. ·
No momento em que Paulo e Barnabé se despedem das .comu-
nidades, escolhem "em tôda parte nas comunidades" anciãos e os
encomendam ao Senhor com "jejum e orações" (14.28). 'Mas é an-
tes de tudo o longo diàcurso do ªp6stolo aos presbíteros de l!!feso (At
20.18-35, sobretudo vers. 28ss) que mostra o que··@les significam:
o Espírito Santo os pôs como sµpen;is()res ("epíscopos") .e pagtô-..
res da,.s comunidades e . o apóstolo os iniciou e:m ".tQd~ a. vontade
de Deus:'. Devem administrar a.herança do após.t~lo,jmitar () seu
exemplo e vigiar sôbre a comunidade ..~. vista dos perigos exte:r-:
nos ( vers. 29) e internos ( vers. 30) quanto a ·.falsas doutrinas. ·

63 A ação tem sentido exorelstico e busca acura do doente.:··· Não se ta~ ~qúi · ·
da "extrema-unção" de moribundos.·
s-i. Dibelius, Jakobusbríef, ad Eocum.
sa Sôbre a milagrosa intercessão. de alguns rabinos, ct.
lfagiga 3.1'; Cf, A. Meyer, Das RaetireE des JJs. {1930) 164s. ·
StJ Assim :a.
Poschmann, Paenitentia secunda (1940) 54 ....,, 62. .
in Assim Knop! (ct. blbliografla} 176s.
240 Gue-nter Bornka,mm

Ê pela primeira vez que aparecem in corpore como guardai


da tradição do apóstolo, por estabelecidos e feitos lideres da
comunidade.
Do ponto de vista da das instituições é de especial ln·
designação dos ,,,,..,..o,,,tv.rr·""'""r'I• como episkopoi (cf. supra o
págs. corrente que seja em Luca1
o de lhe é totàlmente desconhec!-
pelo autor e mesmo assim
n»;P<ttfrr.~ ..,,..,, Por conseguinte, o tf tu·
n<>nnYra que aqui Lucas
0
m"' 7"·" missionário de Paulo,
mas não do sentido que tem em At 20.28), "a fim de
identificar os seus portadores com os no que diz respeito
ao seu sentido e assim fundir numa só as duas tradições" 88,
e. Quadro não essencialmente diferente nos oferece a Primei-
ra Carta de Pedro. Pelo seu enderêço ela aponta as comunidades
campo missionário paulino na Ásia Menor. ainda que o lugar de
sua redação seja Roma. Aí se fala de presbyteroi num contexto em
que se exortam primeiramente os mais velhos (5.1-4)', depois os mais
( vers. 5a) e finalmente tôda a comunidade ( 5b-9) . O para-
presbyteroi-neoteroi, mais velhos-mais novos, poderia su~
primeira vista que trat.a de "estados" naturais segundo
também em outras passagens, lPe divide a comunidade
2.18ss; mulheres-homens, 3.lss). Não obstan-
essa coordenação demonstra o caráter patriar-
cal do não se põe em dúvida que os anciãos sejam
realmente um colégio que dirige a comunidade e, portanto, oficiais
comunitários. A sua função é resumidamente descrita como
em At 20.28 com a imagem do Mas as exortações
especiais e típicas a êles reservadas entrever certas parti-
cularidades: tanto a entl·ada no cargo como os deveres que lhe são
""'"'''"'"1,,,,...,,.,..., homens que agem constrangidos, mas es-
fato de que o cargo pode levar ao en:riqueci-
infere-se que os presbíteros dispunham do dinheiro da co-
muriidade. Finalmente a advertência sôbre o desejo de dominação
(vers.- 3} mostra que os presbíteros também poder disci-
89. Para evitar qualquer abuso de seu cargo os anciãos são

!'!~ Ct von Campenhausen Cbibliogra:fia) 88; Haench, Apostelgeschichte. 530s.


ao Klêroi é conceito paralelo de poimnion, r.ebanho (ve:rs. 2.''); por conH'guinte,
não se deve entendê-lo como sendo ofertas e dádivas materiais, mas signi:ríca as
comunidades particulares que foram entregues à direção dos presbíteros <Wendland,
Pt, a.d locurn). Mas com isto não se deve pensar que uma região era dívididi'l em
Preooít-ero-----241

exortados a serem exemplos para o rebanho e a olharem para Cristo,


o .. A:rquipastor" (arckipoimên, pastor supremo), que dará a imar~
cescível coroa da glória aos que se tiverem mostrado fiéis (vers.
4). Como se vê, tôdas essas expressões excluem qualquer tentati~
va de criar uma autoridade própria e independente que se apoiaria
talvez nos elementos naturais que estão incluídos no C!lrgo -de an-
mao. Claramente aparece que o cargo de pastor estâ subordinado
à autoridade do "Arquipast-0r" Cristo, ao qual unicamente se re-
serva o título de episkopos (2.25) 90 (cf. o artigo epfakopos, su-
pra, pág. 203). · ·
A insistência com que aqui se fala das tentações inerentes ao
cargo de presbítero mostra em comparação com o texto de At 20
que o cargo já se caracterizou e se firmou. Sua dignidade trans-
parece ainda do modo como 'Pedro se designa: ko synvpresbyteros,
o co-presbítero ( 5.1). É verdade que com isto o apóstolo modes-
tamente se iguala aos presbíteros, mas ao mesmo tempo os coloca a
seu lado. É de notar ainda que em 1Pe 5 o cargo de presbítero
ainda não aparece como guarda e defensor da tradição apostólica
contra as falsas doutrinas. ·
d. A fusão dos cargos originalmente diferentes - que já nos
Atos dos Apóstolos é mais que produto teológico e literário de seu
autor - se fêz de diversas maneiras na história das instituições
cristãs antigas. É o riue mostram antes de tudo as cartas pasto-
rais 91. Nas quatro pa"3sagens em que aí se fala de presbyteros, o
uso do têrmo não é inteiramente unívoco.
Em lTm 5.1, presbyteros (cf. também vers. 2) é claramente
designação de idade avançada (oposto a neoteros, mais jovem).
rvfas esta única passagem não nos deve levar a admitir o mesmo
sentido nas outras passagens das cartas pastorais. Pelo contrário,
nessas. outras presbytero8 é evidentemente terminus technieus para
designar os portadores de cargos de liderança na comunidade. Os

comunidades, ou·'que uma comunidade fôssc dividida em "circunscrições pastollais".


cada uma das quais teria sido entregue a um presbítero; o piural se explica pelo
caráter encíclico da carta (poimmion, rebanho, como têrmo eclesiológico não pode
ser usado no plural). Cf. Knopf (cf. bibliografia) 175, nota 1. Em bera o tê:rmo
claramenie designe a "parte" atribuída por Deus, é no entanto possível fazer dela
um objeto .;J.e posse e domínio. Dificilmente kl~ro! pode significar "the severaL
parts•ofAr;e P,pirituai kleronomia" (1.4), como diz Selwyn (cf. nota 19) a p):opósito
de l Pe 5.3.
f!o Embora episkopos não seja usado aqui em sentido funcional, pode contudo
aludir ao titulo de bispo; e!. vem Campenhausen, 90, nota 4; A. M. Farrer, The Mi~
nistry. in the NT, em Kirk (ct. bibliografia) 161 - 163.
. IH Cf. Spicq (cf. bibliografia) Excwrstts XLIV-XLVII; Dibelíus, Excur.ml! ad
1Tm3.7e517,
242 Guenter Bor1ikanini

presbíteros formam um colégio (presbyterion, presbitério, 1Tm


4.14) que coopera na admissão de Timóteo pela imposição . dJa.1
mãos si. Tito deve "estabelecer" presbíteros em cada comunidade
local (kata polin, em cada cidade) tendo por objetivo a ordem (Tt
1.5). Possivelmente se deve entender 1 Tm 5.22 como advertência a
Timóteo para não ordenar apressadamente 93 • Conforme 1Tm 5.17,
os presbíteros gozam de um direito especial de defesa e aquêles den-
tre êles que "presidem bem" devem ser honrados duplamente. Não
é certo se a expressão "sejam julgados dignos de dupla honra",
significa honra material, isto é, remuneração dupla, ou honra espe-
cial, isto é, grande estima. A continuação do texto fala mais em
favor da primeira interpretação. 94.
As funções dos presbíteros podem ser inferidas em certà me-
dida de lTm 5.17. Não é certo, contudo, quais as diferenças que
têm, em vista das duas expressões "os que presidem bem" (cf. nota
140, infra) e "especialmente os que se afadigam na palavra e no
.ensino". Porventura a primeira frase significa que dentro do co-
légio dos presbíteros um grupo (ou cada indivíduo?) exerce um
cargo de presidência e dentre êsses só os que presidem bem, de-
vem ser duplamente honrados? E que a segunda frase, por seu

92 A óbvia expli::ação de que a expressão de 1 Tm 4.14 "com a imposição das


mãos do presbitério", designa o colégio dos presbíteros como instância ordenadora
(ge-netivus subjectivus), foi recentemente contestada por D. Daube, Evangcli;;tcn
und Rabbinen, em ZNW 48 (1957) 119 - 1213 e Jeremias (cf. nota 18). Os dois
autores entendem a t>xpressão no sentido da fórmula judaica semikhath zeqe1iin,
imposição das mãos pDra anc.:ião (g:zni.tivus fincrii~). Com isto a contradição entre
1 Tm 4.14 e 2 Tm 1.6 desapareceria. Mas precisamente 2 Tm 1.6 "pela imposição
das minhas mãos") mostra que o genitivo é subjetivo e descreve a ação aqui de
uma só, lá de diversas pessoas (como aliás em At 8,18: "pela imposição das mãos
dos apóstolos"). De mé:is a mais nunca nas pastorais se fala da dignidade presbi-
teral de TLT.óteo (ou Tito) e em nossas liturgias priesbyter1on sempre é usado no
sentido de colégio. ·Por isto o único exemplo para o sentido abstrato ("dignidade
de· presbitero") em Susana 5 (Theod.) não prova êste sentido, ainda mais que
aí está implicada a relação para com um colégio concreto (cf. supra, pág. 222). A
difl:Írença entre 1 Trn 4.14 e 2 Tm 1.6 se pode explicar pelo caráter diverso das duas
cartas (regra da comunidade e testamento do apóstolo); cf. Dibelius, Pastoral-
briefe, 56s.
93 Assim interpretam numerosos exegetas (J. Jeremias, Lohse, Mfohaelis,
Schlier). Mas,parece que entre 19 e 20 se àeve colocar uma censura (cf. o plural
no vers. 20!) e interpretar o vers. 22 da reconciliação de pecadores arrependidos.
Cf. P. Galtier, La réconcHiation des pécheurs dans !ct premiere épitre à Timothée,
em Récherches de Science Religieuse 39 (1951/52) 317 - 320; Dibelius, Past., 62s.
94 Michaelis (cf. bibliografia) que defende a outra opinião deve - sem ·razão
suficiente - declarar inautêntico o vers, 18. A afirmação de que os funCionários
àa comunidade conservavam conforme 3.4, 12 seu ofício civil, não é objeção, pois
.dip!é timê não se pode referir a "cargo". mas a "honorário".
Presbtt~ro 141
distingue dentre êste grupo mais uma vez os que alo atlvol
pela e pelo ensino"? Sendo êste o caso resultaria uma ira-
duação quádrupla, distinguindo-se os diferentes graus qúer pelá
qualidade de seus resultados, quer pela diferença das funções, Mii
esta é irrealizável. Com. efeito, a conexã~ entre os _que ..il~
pela palavra e doutrma e os que presidem bem, moatiia:
que aqui se fala que supervisionam determinàdOI
Portanto a expressão "os que presidem
segundo I 44,3 são chamados
kata.Statlumtes, frente, ou o Pastor de Bermas,
p,roistamenoi presbyteroi, presbíteros que à frente (cf. v II,4,8).
Êles exercem um trabalho especial - não se fala de resultados
especiais - que é duplamente honrado. O caráter patriarcal da
instituição intacto. De 1Tm 5.17 se infere queexigências con-
cretas da da comunidade traziam espontâneamente consi-
go a escolha e a designação de determinados presbíteros, embora
inteiramente dentro do quadro instituição colegial dos presbíte-

que nas além dos presbíteros também


(cf. o artigo supra págs. 206s) desempenhe
importante e coincidam cóm as dos pres,.
a propósito e 1Tm 3.5 onde ocorre o ver.:. ·
presidir, e 3.2 onde o "epíscopo" ser "apto
o ensino"; cf. ainda . Está portanto à a conclus.ão
nas pastorais, os cargos são idênticos. Só
se explica que na passagem em que se exorta a Tito de es-
tabelecer presbíteros (Tt 1.5) imediatamente se segue a deseriçã()
das qualidades do "epíscopo"-pad:rão (vers. Mas ao' mesll'.!O
tempo não se identificá-los totalmente, como demonstra o siin-.;
'fato de nas pastorais epfakopos sempre aparece no si~"."
gular, que os presbyteroi um colégiô 95. ·
presbyteroí. estão ela"'
ramente episkopos (e do diakonos)
(lTm 3.1-7 Somente em Tt as palavras dirigidas
aos presbíteros e ao "epíscopo" se seguem imediatamente. Mas pre-
cisamente a do número e a enumeraÇão em separado das qua-;
lídades falam contra a identidade das duas designações.
Como porém os três cargos do ºepíscopo", dos presbíteros e. dos
au~cono:E1, nunca são nomeados em c.onjunt-0, não se pode ordená-los

!15 Sôbre a ídenfüicação entre "epfacopos" e presb!teros investigação ça-


cl. U. Rclzmeister, "Si quis episc()l,Patum desiderat, opus desiderat" .
3.1), em Bíblica 12 (1931) 41~69. Contra um uso genérico de epfakcpoa eétã ·
o :fatQ de que h.i uso não se verifica com certos cargoB.
244 CrUenter Bornkammi

dentro de uma hierarquia de três graus 96. Antes dove-8A roconho-


cer que nas passagens que falam de episkopos se pode entrever um
princípio diferente de organização do que nas passagens pro1blt.o·
rais, e que o cargo episcopal - que nas pastorais tende claramontt
à monarquia - está em processo de fundir-se com a organlzaolo
presbiteral oriunda da tradição judaica. ltste processo pode ser vil•
to também em At 20.17,28 em estágio anterior de evolução para a
mesma região geográfica (Ásia Menor) e em I Clemente para Ro·
ma 97. Êste processo fàcilmente se explica pelo fato de que 01
presbyteroi desde há muito já não eram os representantes naturais
da comunidade, mas o colégio dos líderes da comunidade, estabele-
cido pelos apóstolos (At 14.23) ou seus sucessores (Tt 1.5) para
as comunidades locais, e confirmado pelo exercício de determinadas
funções administrativas por alguns dêles ,;___ sem prejuízo da auto-
ridade patriarcal própria de todos os presbíteros - o que pelas no-
vas situações se tornara necessário. Desta forma os "epíscopos" das
pastorais devem ser concebidos como presbyteroi proestotes, pres-
bíteros que presidem, ou episkopountes, superintendentes. "Em to-
do o caso trata-se de uma identificação posterior que não existia
desde o princípio" 98.
4. Problemas especiais se ligam às passagens do livro do Apo-
calipse em que, nas visões do vidente, 24 anciãos juntamente com
os quatro sêres viventes cercam o trono de Deus no céu ( 4.4,10;
5.6,8,11,14; 7.11; 11.16; 14.3; 19.4) 99, Os tronos em que estão
assentados ( 4.4; 11.16), as vestes brancas e as grinaldas de ouro
que os ornam ( 4.4) identificam-nos como figuras celestiais, e o tí-
tulo presbyteroi significará aí uma espécie de conselho de anciãos
de Deus. Entretanto, nada indica que Deus entre em conselho
com êles, ou que êles desempenhem funções de juízes {cf. 20.4).
Sua função não é o exercício de um poder, mas somente a adoração
daquele que "está assentado no trono" ( 4.10; 19.4) e do Cordeiro
exaltado (5.8-10). ~les se inclinam até o chão, ·prestam homena-
gem,, e atiram suas grinaldas diante do trono do Dominador eterno

96 Cf. Spicq, 91 - 96, que entende episkopos como primus inter pares, não
distinto ainda dos presbíteros pela dignidade sacerdotal, mas distinguido dos outros
cerno presbyteros ka.t' exochên, presbítero por excelência, por causa do kalon ergon,
obra boa (1 Tm 3.1) da oikodomê, edificação da comunidade, com o que se toma
colaborador e sucessor dos apóstolos.
01 Nada nos obriga a considerar as passagens que falam do episkopos - como
sendo interpolações posteriores.
98 Dibelius, Past., 46.
99 Cf. Michl (cf. bibliografia) onde se encontrará uma exposição pormenorizada
da histór'a das interpretações.
Presbíte,ro 245

(4.10), em meio a cânticos de louvor (4.11; 5.9s; 11.17s; 19.4, etc.).


Conforme 5.8, com cítaras e taças de ouro cheias de incenso, pres-
tam serviços sacerdotais em favor da comunidade terrestre. O
serviço divino no céu acompanha a realização da salvação e juí.;. do
zo na terra que os anciãos iniciam e terminam com gestos ·e .. Câ.n-.
ticos.
Nada denota que êsses anciãos devam ser entendidos como·sê"
res humanos salvos e glorificados 100, antes, são ciaramente distm::
guidos dos glorificados (Ap 7 e 14). São igualmente distintos das
miríades de anjos {5.11; 7.11) que cercam o trono, dos quatro sê:res
viventes e dos 24 anciãos; são •1ma classe superior de anjos mais
próxima do trono de Deus do que os outros e de maneira especial
conhecem os mistérios de Deus. Um dos anciãos (5.5; 7.13) faz às
vêzes de angelus interpres e é saudado pelo vidente pelo nome de ex-
celência "senhor" (7.14).
~~imagem dêstes anciãos depende da representação corrente no
e no apocalipsismo sôbre o conselho de Deus no céu (cf. lRs
19; Sl 89.8; Jó 1.6; 2.1; Dn 7:9s; Livro de Enoque 1,4.9; 47,3ss;
60,2, etc.) 101 • O paralelo mais antigo e mais próximo é Is 24.23:
"O Senhor reinará em Sião e em Jerusalém, e diante dos anciãos·
será glorificado"º O único ponto que chama a atenção é o número
dos anciãos no Apocalipse. Possivelmente dependa de representa-
ções astrais : segundo a astrologia babilônica, 24 estrêlas pertencem
ao zodíaco, a metade ao norte e a metade ao sul, e são chamadas
"juízes de todos" 102• Segundo o Testamento de Adão (4.19), po-
dêres angelicais oferecem honra e sacrifícios durante as (24) horas
do dia e da noite 103, É preciso lembrar também os yazatas que,
segundo a doutrina persa, formam o estado divino de Ahura
Mazda 104. Quando nos lembramos que a polêmica com as antigas
religiões orientais se deu no judaísmo precisamente no terreno da·
doutrina dos anjos, e que também outros números e símbolos_,_40

100 A tese de Michl, 91 - 114, de que os presbíteros devem ser entendidos-como·


os justos da velha aliança, presbíteros celestes do povo cristão, parece-me. insus·
tentáveL
~ 101 A tese de Michl, 91 - 114 de que os presbíteros devam ser entendidos como
representação das multidões celestes ao redor do trono de Deus, ct. Volz, Escoo~
~ofogie, 27613.

102 Diodoro Sículo, 2. 31. 4; cf. H. Gunke1, Zttm Retigionsgeschichfüchen. Vier#-


taendnia des NT (1930) 43; F. Boll, Aus &er Offenbarung Johannes (1914) 35s.
101;1 J. Welhausen, Analyse der Offenbarung Johannes (1907) 9. Boll, ?oe.
cit. 36.
104 W. Bousset, Apoka!ypse, 247.
Apocalipse 105, e ainda quando
ramos que os como sêres celestes, os
paralelos-religiosos dos fôrça prova. Contudo, o
sentido originalmente astral das figuras do Apocalipse, recebidas de·
tradições mais antigas, estâ totalmente apagado. Por isto, em vista
das funções cultuais dos anciãos, deve~se na divisão dos
sacerdotes e classes (lCr ; 25.lss) 100, ainda
mais que os primeiros são em 1Cr 24.5 "prín-
dpes" 107 e também .. anciãos" 108; além disto a
tarefa dos do templo de com alaúdes,
e címbalos., 25.1) concorda com as funções
anciãos em
Do 24 anciãos celestes se podem tirar
sóbre a constituição da comunidade judaica . ou das comunidades
cristãs o Apocalipse e para as quais foi escrito 1os.
Antes, o Apocalipse mostra-nos ainda a imagem - pelo menos a su-
posição de uma comunidade "pneumático"-profética sem cargos
firmemente instituidos. Nunca se fala de "episcopos", diácónos,
doutôres, pastôres, presbíteros de comunidade. A única autoridade,
ao lado dos apóstolos os profetas 111, representados pelo pró-
prio vidente e "todos os seus irmãos que têm o testemunho de Jesus",.
a saber, o espírito de profecia (19.10; 22.6}. Esta profecia se· di-
rige a cada comunidade e à totalidade delas, sem a instância inter-
mediária de 112,

cit., 16 - 29.
100 :Boll, Zoe.
1otJCf. Schuerer, II, 286 - 290.
101 l Cr 24.5; cf. Ed 8.24, 29; 10.5; 2 C:r 36.14.
1oa Yoma. 1, 5; Tamid 1, 1; Middot 1, 8.
109 Isto dizemo& contra Michl, 38 e von Campenhausen, 00: "0 que êles fazem
se deve espelhar sem dúvida no presbitério terrestre da Igreja".
110 O conceito de apóstolo não é claro no Apocalipse. Em 2.2 alguns pregadores.
ambulantes, desmascarados pela como mentirosos, :reivindicam para si êsse
titulo. Portanto, pressupõe-se o lato de apóstolo como "mísaionário". Em
21.14, ao contrário, os doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro estão escritos
nas pedras fundamentais da nova Jerusalém.
111 Apóstolos e profetas são nomeados em conjunto em 18.20 como em Ef
2.20; 3.5. Em ambos os escritos (Ap e Ef) "profetas" se deve entender como
sendo pro:fetas cristãos. Dos profetas vétero-testamentárlos não se fala no Apo-
calipse como de figuras próprias. No máximo afio :figurações dos profetas cristãos
(11.10, 18). O uso freqüente e livre de ditos de profetas neotestamentários pertence
ao estilo do Apocalipse (mas que nunca são citados como Escriturai). Ap l,S;
10.7; 16.6; 19.10; 22.6s, 9, 18s mostram que os profetas fàz!am parte da comunidade
criw..ã e que sua profecia tinha valor.
u~ como dos presbíteros celestes não se podem fazer itlfe:rêneias wbn ,
presbíteros terrestres, também dos. aggeloi das cartas iniciala não se pode inferir
nada sôbre os "epíscopos".
Presbítero 247

Se. essas deduções são verdadeiras surge a não fãcil questão


da situação institucional do tipo de comunidade que encontramos
·no Apocalipse. Que Éfeso e as outras comunidades da Ásia Menor·
ai nomeadas - tôdas pertencentes ao antigo âmbito missionário de
Paulo - sejam ainda pelo fim do século I comunidades .dirigidas
por "pneumáticos" e profetas, sem cargos fixos, está.simplesmente
excluído; nem pode ser conciliado com a imagem que para a mesma
região apresentam contemporâneamente ou poucos decênios depois·
os seguintes escritos: Atos dos Apóstolos, Pastorais, 1Pe, Inácio e
Policàrpo. É tambérú certo que a estrutura das comunidades do
Apocalipse nada tem a ver com Paulo 113 • O ambiente para a idéia
de comunidade aí representada deve antes ser procurado em con-
venticulos judeu-cristãos de todo peculiares 114 • Nesses conservou-se
uma antiga tradição apocalíptica que veio da 'Palestina 115 e entre-
mentes se desenvolveu e se tornou literária. As origens dessa tra-
dição devem ser muito antigas, do tempo em que o elemento
"pneumático"-profético ainda conservava a liderança tanto na teo-
logia como' nas instituições comunitárias. Com o tipo de eómunidade .
como era a de Jerusalém ao tempo de Tiago e sobretudo· com o
judeu-cristianismo legalista dos anos seguintes, onde a profecia nã<>
encontrava mais nenhum lugar 116, o Apocalipse e sua doutrina de
comunidade nada mais têm em comum. O cultivo e o. desenvolvi-
mento ulterior da tradição apocalíptica, tal como se pode reconhecer
no Apocalipse, é o pressuposto imediato do aparecimento do monta-
nismo na segunda metade do século II 117,
5. A terceira carta de João espelha o conflito aberto entre <>
portador de um cargo comunitário, no sentido do episcopado mo-
nárquico, e o representante de uma autoridade independe:i;ite e· nã<>
ligada a determinado lugar. ·

113 O Apocalipse nada deixa entrever sôbre a atividade de Pau:lo há fi..sia :M:enor-
e a fundação por Paulo da comunidade de É:!'.eso. Cf. W. B:mer, Rechtgfaeubígiteit
und Itietzerei (1934) 87s.
H4 Portanto, é preciso desfazer-se da idéia de que o João a:Pocalfptico e seu.
livro sejam representativos da Igreja de seu tempo e de sua rea,l.ão. Cf. Bauer,
Zoe. cit., 8ls. · ·
115 Sôbre a estreita relação entre .Asia Menor e Palestina, cf. K. Hon, Der
Kirchenbegriff des Paulu.s in seinem Verhaeitnu zu dem der Urgeweinde, em
Gesammelte Aufs«etze II (1928) 66s. A influência do judeu-cristianismo palesti-
nense sôbre a Asia Menor é mostrada claramente no século II pelos quartodec:!manos;.
sôbre ísto cf. B. Lohse, Das Passafest der Quartadecim.aner (1953) !14 - 98.
1Hl C:i. von Campenhausen 196 - 198.
111 C:i. H. Y...raft, Die altkirchiiche Prophetie unà die Enúrtehu.-ng des Mcnitanf,a~ ·
mus, em THZ 11 (1955) 249 - 271; êste autor explica a :!.ns!stência de Inãcio no.
cargo episcopal pela sua oposição às comunidades proféticas do Apocallpse.
248 Guenter Bornkamni

O e te:rceira carta João se dá (na intro-


dução) o nome presbyteros sem qualquer indicação e com êle apela
para uma autoridade até agora lhe foi reconhecida pelos desti~
natários, mas que lhe negada pelo seu adversário Diótrefes.
A expressão philoproteuon, que ama o primeiro lugar (3Jo 9)
com que é caracterizado claramente a pretensão
do adversário, e a de seu comportamento deixa dúvida
de que não só aspira à monárquica, mas que
Com efeito, reteve uma carta pelo presbytm·os à
mandou de volta seus enviados e castigou com a exclusão Igreja
oA que os (vers. ns, Visto que nada se diz sõbre
diferenças - embora estas possam ter entrado em con-
1-1ideração 119 - e que as medidas disciplinares deixam entrever
pies oposições deve~se definir o conflito como de
<iclcsiástico .., o representante de um comunitário local
impede - e com evidente sucesso - por de calúnias contra
o pre.'!lJ11teros e seus enviados, que alguém de fora influa em sua
comunidade 120, Deve-se supor que Diótrefes, em virtude da auto-
ridurte de seu cargo, de volta os enviados presbítero sob
o pretexto de serem ambulantes ilegítimos, pois são apre-
:11~ntados pelo autor carta como estando a da verdade
(~~Jo 5-8) e, já em 2Jo 10s, dos doutôres heréticos que
perambulavam nas comunidades.
O que significa aqui o presbyteros? l!:
linicamente a avançada idade do autor, pois ev.mtmLernten
deve sua especial autoridade e dignidade. Tampouco se
pode compreender esta autodesignação como uma expressão
da dignidade do autor. · Com em se tratando
um apóstolo, o comportamento do seria ininteligível e
nem o autor teria deixado de apelar para o seu cargo de apóstolo
Finalmente, não pode significar
local 121.

118 Embora a expressão phi.loproteuon contenha uma crítica evidente, não se


ataca a posição de Diótrefes com<i tal, mas s9 o seu comportamento (calúnia e
talta contra o direito de hospitalidade). Portanto, o autor não defende uma or
ganização presbiterat contra pretensões monárquico-episcopais,
119 Bauer (cf. nota 113) 97, sem razão chama a Diótrefes "chefe de hereges".
t~<) M. Gogel, L'égUse primitive (1947) 136s; von Campenhausen (cf, B.!blio-
gra!ia) 132.
121 A tese de que o autor se designa como "Presbítero", no sentido de autori-
dade local numa comunidade, foi recentemente defendida por E. Kaesemann, Ketzer
1md ZRugen, em ZThK 48 (1951) 292-311. Kaesemann tira amplas conseqüências
dêste seu estudo sôbre a posição histórico-eclesiástica e teológica do Evangelho de
.João e d::is Cartas joaninas: o autor désses eimrltos (que n!ío é o mesmo do Ap)
Por conseguinte, o sentido de presbytero:> em 2Jo 1 e 3Jo 1 não
se pode explicar nem a partir de uma instituição episcopal nem
prc1:1biteral. Antes, o Presbítero "tanto no ponto de vista de sua
vontade como de sua ação, está ainda aquém de qualquer instituição
flcleRiástica" 122, Portanto, é preciso representar-se -0 Presbítero não ·
como o portador de um cargo comunitário, mas como um mestre
., doutor que goza de especial estima (cf. infrd, pâgs. 257ss), ou como

:U!ria um presbítero excomungado por um representante do episcopado monárquico;


., ":Presbítero" no entanto, "teria prosseguido em seu trabaL.'10, apesar do vere-
dicto da ortodoxia, e organizado um grupo eclesiástico próprio, com missões pró-
prins entre os gentios, na esperança e com a vontade de competir com o lado
adverso" (Pág. 301). Contudo, o que as cartas dizem sôbre posição e obra dêsse
"Presbítero" contradiz a construção de Kaesemann. A própria designação como
"Presbítero", omitido o ncme próprio, teria sido algo totalmente singular para o
portador de um cargo comunitário local; pois a dignidade presbiteral só exist.e
·'lempre no quadro de um colégio e nunca fadividualmente. A objeção de que
µrccisamente êste "presbítero" teria sido forçado pela excomunhão a tornar-se
solitário, não convence, pois o autor se apresenta com o mesmo nome honorífico
já na introdução de 2 Jo onde nada ainda transparece sôbre o conflito com Diótrefes
e a contestação da autoridade do autor. De mais a mais o "Presbítero" exerce sua
influência por meio de cartas e enviados sôbre uma comunidade local sem que lhe
.;ejam impostos entraves, o que supõe que se atribui competências que pelo menos
não correspondem ao título de presbítero comunit5rio. De resto, segundo as cartas
essa sua atividade não constitui uma medida necessária em razão de sua excomu-
~hão como se pretende. Com efeito, a carta comunitária anterior a que se alude
em 3 Jo 9 (ser.ia 2 Jo?} deve ter sido escrita pelo menos na hipótese de que a
comunidade receberia bem a carta e os irmãos enviados. Os seus enviados estão
a serviço de seus cuidados em favor das comunidades e não é de supor que fo.
:-am precisamente enviados a comunidades com as quais o "Presbítero" estava em
conflito. Pelo contrário, êsses enviados são missionários que passavam de uma
comunidade à outra, dando seu testemunho em tôda parte (Jo 7), que já tinham
sido antes aceitos por Gaio {v. 5s) e que agora, depois de terem dado garantias de
roa sinceridade, podiam esperar receber hospitalidade e assistência para novos ser-
'efiço:; missionários (sôbre prop;empomai cf. Rm 15 24), coisa que lhes é vergouho-
5amente negada por Diótrefes e companheiros. Seu reaparecimento deu origens,
ou pelo menos elevou ao clímax o conflito entre Diótrefes e o "Presbítero". Mas
sôbre uma "excomunhão" do Presbítero nunca se diz nada. Segundo Kacsemann
e.la teria dado ocasião para que o Presbítero se tivesse separado da comunidade
tiranizada por Diótrefes e para que êle insistisse na sua posiçã-0 que lhe era
contestada. Mas neste caso o autor não poderia ter recorrido a êsse titulo já na
sua segunda carta, escrita em circunstâncias inteiramente pacíficas. Ou deverão
diZer que a "excomunhão" foi imposta ao Presbítero in a.bsentia.? Neste caso
'ff"..illlO pode ser que um bispo local - que em nenhuma hipótese pode sei conce-
bido como bispo de uina igr.::ja "ortodoxa" e "católica" que sai dos limites de
J>ua comunídade particular - pode "excomungar" um ausente? De resto ekba!iein
significa: expulsar da comunidade local. Mas a verdade é que a excomunhão não
pode ser afirmada nem mesmo como tendo atingido ·os mensageiros do Presbítero
lf!rtranhos à localidade; pois segundo 3 Jo 10 só são atingidos os membros da
e:imunidade que os abrigaram.
122 Cf. von Carnpenhauser;, 132.
250 Guenter Bornkarnm

um ·profeta à. semelhança dos antigos, e explicar.º seu título como


significado "o Antigo", expressão que Pápias e alguns padres da.
Igreja posteriores aplicam aos discípulos dos apóstolos enquanto
mantenedores da tradição 123.
É certo que não é muita a confiança que merece essa "tradição.",
poiR f ói precisamente d~sE; cL:culo que saíram alguns representantes
que transmitiam as mais incríveis tradições 124, e além disto os
gnósticos sempre apelavam pa1·a tradições apostólicas. Tudo isto
explica, diríamos quase bem demais, a tentativa de desacreditar a
posiçflo do Presbítero e a rigorosa intervenção de uma autoridade
loc.a'l do tipo da de Diótre:fes. O autor das três cartas de João se
npreRenta como o portador de tradições e especialmente as tradições
joaninas 125, como resulta da comparação entre 1Jo e o Evangelho
do João 126, Nessas tradições não se dava importância qualquer aos
cargos institucionais e nem mesmo restava qualquer lugar. para êles. ·
Mm:i foram êstes que finalmente triunfaram em tôda a linha. O
"cristianismo joanino", que defendia um tipo mais antigo de comu-
nidade, mas entrementes desacreditado, foi obrigado a refugiar-se
cm· conventículos 127.

E. OS PRESBíTEROS NOS PADRES APOSTóLICOS E NA


IGREJA ANTIGA

1. Tanto do ponto de vista geográfico como cronológico a


l'rúnefra Carta de Clemente se aproxima da Primeira de Pedro,
o 6 o documento mais importante para a história do presbiterado
noM tempos pós-apostólicos. Com argumentos de grande alcance

1w C1. C. H. Dodd, The Johanníne Epist1es 0947) 155s


1~4 Assim Kaesemann (cf. nota 121) 300.
i2n A questão de se o "Presbítero" das cartas de João é idêntico aos "presbíteros"
d11 .lí.sln Menor de que fala P.ãpias (Eusébio, Hist. Ecl. llI. 39, 4} não fica resol-
vl<ln com isto. Por ora basta saber o seguinte: (1) eY.i'ltia, independentemente
dos cargos comunitários, um grupo honorário de upresbiteros", isto é, mestres e
doutôrcs, considerados intermediários e garantidores da tradição; (2} êssea "pres-
b!tcros" aparecem, não sempre 1nas geralmente, como garan:Udores da tradição
jonn1nn. A respeito dos escritos joaninos se deve no entanto notar que êle.s nunca
se np1·esentam como tradição de um "Apóstolo", um conceito que não desempenha
nenhum papel no Evangelho ou nas cartas.
i211 Sõbre êste ponto, ct. E. Conzelmann, "Was vem Anfang an war" em Ne1.1.ten:
SI. fuer R. Bultmann (1954) 194-201.
1:17 Sõbre isto, muito bem Kaesemann, 303. Dêste ponto de vista existe, não
obstante tôdas as diferenças, uma relação sociológica entre o Apocalipse e os ou-
tros escritos joaninos.
Pr~sbíterQ 251

defende ela os direitos e a posição dos presbíteros contra uµia. co-


munidade que por agitadores se deixara levar a depor algtins de
seus presbíteros. Infelizmente nada ficamos sabendo sôbre os
motivos da revolta 12s. A carta nada diz sôbre o modo de agir 'dos
adversários, nem sôbre as faltas dos presbíteros. Para a l Cleniente
a deposição de alguns presbíteros equivale à revolta da comunidade
contra todos os presbíteros (44,5; 47,6; cf. ainda 54,2; 57,lJ:- -
O primeiro e sempre repetido argumento de l Clern..ente contra
a revolta corintíaca é que ela é uma transgressão do mandamento
que diz que se deve honrar os "anciãos". Neste sentido geral o
têrmo presbyteroi é usado no início da carta (1,3; 3,3; 21,6), e11-
quanto que as passagens posteriores, que só aparecem quando de
mais perto é tratada a contenda, presbyteroi sempre se refere aos
oficiais da comunidade ( 44,5; 47,6; 54,2; 57,1). Ambos os signi-
ficados contudo coincidem quando em 1,3 e 21,6 a sujeiÇão aos
chefes (archontes) é posta lado a lado com a honra deyida aos
••anciãos"; e vice-versa, quando em 3,3 o procedimento dos coríntios
ó caracterizado como uma revolta de "jovens" no sentido moral.
Compreende-se que tal argumentação só é possível porque os• pres-
l>[tcros de fato formam um colégio patriarcal e têm direito à' .hon-
ra 1 21'1 que na comunidade se deve aos anciãos ( cf. supra, págs. 243s).
Do colégio dos presbíteros sobressaem claramente os oficiais
Pncnrregados do culto das ofertas ( 44,1.4). l'.l:stes são chamàdos
liclercs" (hegoumenoi 1,3; proegoumenoi 21,6) 130 e - o que é im-
portante - são caracterizados com o título oficial de episkopoi
(cf. 42,4s; 44,1 e 44,6) 131 • :Jtste cargo, contestado em Corinto, ·é,
como ::;e explica na carta, o representante e o portador de uma o.rdem
divinamente instituída 132• É aqui pela primeira vez que se encara

1 ~~ As tentativas para explicá-la são as mais discordantes: movimento de gnós-


1t•·on e "pneumáticos" entusiastas, desejo de mando dos presbíteros e transgres-
111'!<•" ele suas competência, um conflito de gerações, rLxas pessoais entre cliques, etc.
1211 Em 3,3 são chamados ao mesmo tempo "honrados, gloriosos, pi;ude'iítes",
A comddcração de que gozam não só se funda em sua idade, mas ainda na .sua
lonitn !!delidade como membros da comunidade (1, 3; 63, 3): · . ·
1:111 Knop (cf. Bibliografia) 168s conta. também os profetas e doü:tôres. entre
Off preRh11teroi. Mas êsses nunca são nomeados em I Clemente.
J ~ 1 "Os episkopoi são presbíteros ( 44, 4.5), mas nem todos os presbíteros são
.rphkopoi". Cf. Mueller (c:f. Bibliografia) 275 e Sohm (Bibliografia) .Sl5-163. , A
r11Niío dos tltulos mostra que "a instituição presbiteral foi pervadida pelos ele-
nwnfo~ ele uma ordem episcopal, coisa provàvelrnente já mais antiga em Roma", cf.
vo11 Cumpcnh:msen, 91. Ambos os t!tulos só são usados no plural. I Cleme~~ não
••nnlrncc episcopado monárquico. Juntamente com os bispos, são nomeaqps ta.nJ.·
hi\111 Oft diáconos (42, 4s),
rn~ A id~ia de ordem em I Clemente provém da idéia dos estóicos sôt?~e. o
~nnnio~ o o estado.
ll/St Guenter Bornkamm

o cnrgo de anciãos e comunidade sob um ângulo mais vasto e con-


aqUentemente é valorizada a idéia de ordem elevada a um princí-
Jllo dogmático 133 • O importante aqui é que a tarefa do presbite-
rRdO não é mais a salvaguarda da tradição apostólica, mas que a
ln"tltuição como tal é vista como elemento portador da tradição
npoHtólica e que assim se fundamenta a intocabilidade do cargo.
(~um deito, o cargo de presbítero deriva imediatamente dos Após-
toloH o através dêles de Cristo e de Deus (42 e 44). Também os
·11rN1hHcrqs têm seu "lugar firmado" 134 o que corresponde à idéia
clu or·cl~m cósmica e da ordenação divina a qual dá à comunidade
111111 11nt11rcza como organismo e coloca sob um preceito intocável e
1111nlo tauto o tempo como o lugar e as pessoas de seu culto. Em
1-1,:\ m~ explica como se processou a iransmissão do cargo: esta se
v1•rificou, quando não mais era feita pelos próprios apóstolos e por
nquülcM que por êles tinham sido estabelecidos na sua sucessão, por
l11lcnnédio de "outros eminentes homens com a aprovação de tôda
n lgr(~ja" 135, -
O serviço, leitourgia, ( 40,2; 44,2s.6) 136 dos presbíteros, res-
1wctivamente dos "epíscopos", é um serviço cultua!. Devem apre-
111•11t.ar as ofertas da comunidade ( 44,4), e são portanto os oficiais
cio 1~11lto da eucaristia comunitária. 1 Clemente 40-43 expressamente
014 põo na linha de sucessão dos sacerdotes vétero-testamentários e
mmim pela primeira vez faz dêles um clero que é distinguido dos
"lc•isros" 137 na comunidade por direitos e deveres próprios. Esta
c1xdwüva orientação do cargo de presbítero para o culto - do cargo

ia~ JF:to é considerado com razão por von Campenhausen 102s como a contri-
l111li;lio própria de I Clemente.
ta·I Vc:r a expressão "para que ninguém os deponha do lugar que lhes foi
l"lll(JU" ('14, 5).
mil "Os que foram postos por aquêles ou em seguida por cutros
vurõc11 ilustres com o consentimenio de tóda a Igreja" (44, 3). A analogia com a
1,ri1n<•irn gerac;ão exige que também os "ilustres varões" posteriores fóssem pres-
lilteros cfíciais da comunidade local. Cf. Mueller (bibliografia) 276. Contra a
<·oncc·pdio de G. Dix em Kirk (cl. bibliografia) 257-266, de que esta passagem não
trato da colação de cargo local, mas de especial poder apostólico pleno de insti-
1.uir sucessores, com razão argumenta von Camptnhauscn 97, nota 2. A parti-
l'1puc;ão d:i comunidade na instituição <los presbíteros deve .ser entendida s'.m-
pl1.•1 mente como voto de aprovação (aclamação).
·uu Sõbre o conceito de diakonia cf. F. Gerke, Die Ste!lung des 1 Ci innerhaH>
der Ent~vfcklung der a!tkircMichen Gem.eindeverfaSS"Ung und im Kirchenrecht em
TU ·47, 1 0931) 116-122; cf. ainda TWNT IV, 235, 26ss.
137 O têrmo la'ikos, laico-leigo, aparece pela primeira vez em I Clemente
40,5 em
oposição aos encarregados do culto no VT, mas também em relação com a
situoçiio comunitária cristã (c:f. Preuschen-Bauer, sub n1ce).
Presbítero 2li3

magisterial do presbítero nunca se fala -- e sua patente cle:ricali-


znção dão à l Clemente a possibilidade de proclamar a inamovibili-
dade dos portadores do cargo e a vitaliciedade de seu cargo ( 44,5)
enquanto não se tornaram culpados da quebra do dever e de alguma
indignidade. Assim a solução do conflito em Corinto só pode con..,
i:1istir na reabilitação dos depostos e na submissão dos revoltosos
aos presbíteros (E,7,1) 138 e o exílio voluntário para um lugar de-
terminado pela comunidade (cap. 54) 139, para que "o rebanho de
Cristo viva em paz e união com os presbíteros constituídos" (54,2),
2. 1\'.Iais ou menos idêntica imagem de constituição comunitá-
ria i't de I Clemente nos oferece o Pastor de Her-mas, composto alguns
dPd'!nios mais tarde em Roma; êste, contudo, se distingue de
J Clemente no fato de que aqui o cargo como tal não é de modo algum
problemático e não precisa ser fundamentado, e ainda no fato de que
o livre profetismo -- que o próprio Hermas representa - ainda
fala diretamente "aos santos" (v III,8,11), independentemente dos
oficiai8 comunitários mas não em oposição a êles. A direção da
1·omunidade também aqui está nas mãos de um colégio de presbíteros
(v I1,.1,2s; III,1,8). Ao colégio pertencem "epíscopos" e diáconos
1 v 111,5,1; s IX,26,2; 27 ;2), ambos responsáveis pelo cuidado dos
1whn~R e a administração das finanças da comunidade. Como líderes
da comunidade os presbíteros são chamados "pastôres", têrmo com
que se costuma designar sempre o ofício dos cuidados espirituais
(s IX,:n,5s); êles ocupam o lugar de honra nas reuniões da comu-
11idade (v III,9,7) 140. A alta posição que ocupam transparece em
:nia comparação com os apóstolos (v III,5,1,) 141 • Sua posição na
rnrnunidade não é contestada, ainda que sejmn fortemente censu-
1·ados por causa de suas rivalidades ao serem opostos aos simples
apc'>Ht.o1os e doutôres de outrora (s VIII,7,4; v III,9,7 e passim) u 2 ,
1·:111 todo o livro não há indício de luta entre profetas e oficiais da

1:1:1 Su se pode tratar dos presbíteros que permaneceram em seus cargos (contra
v1111 llnrnack, Einfuehrung in àie A1ten Kirchengeschichte (1929) 95).
1:111 Dns duas pas$agens se deve deduzir que os presbíteros cumprem o ato
111·.,•iplinar, mas diante de tôda a comunidade. Cf. ainda 63, 1.
Ho A expressão em v IL 4, 3 "com os presbíteros que dirigem a Igreja"- (IÕ-
hre iHto cf. ainda 1 Tm 5, 17; I Clemente 54, 2) mostra que se faz distinção entre
pn·~:IJ!Lnros que exerciam o ofício e um círculo mais amplo de pessoas tidas ena
lio11r11,
111 Aqui aparecem debaixo da "pedra branca quadrada" também os doutõre1
111' ludo dos apóstolos. Parn Hermas os doutôres são figuras ideais do passado
"qw· pregaram a todo o mundo" e portanto não são portadores de um cargo (d.
1; IX, rn, ri; 2~. 2). l'v!as os portadores de tais cargos ·- "epíscopos" e diáconos -
llten l'iio postos ao lado.
11:1 ('(. von Cnmp0nham('D lü4s.
:!!i.~ Guenter Bornkamm

corn1111irl:lrle 143. Ainda existe profecia na comunidade, mas geral-


'"""''~ falsa, contra a qual se chama a atenção (m XI). O próprio
l ínrmn1'1, não obstante sua atividade literária na linha do a'.poca-
1lpMl1-1mo, 11unca se chama "profeta" e recebe a ordem de entregar
tmu livro aos "presbíteros" e de lê-lo para a comunidade na pre-
Mc•11c.:n tlôlcs (v II,4,2s). Também o envio do escrito para as outras
~omunidacJes deve ser fe( ·o vor um membro encarregado pelo pres-
lilt.l•rio ( v ll,4,3) 144 • Por conseguinte está liquidada a concorrência
1111t r1• carp:o e livre profecia. Pretender o primeiro lugar é eo ipso
Hl1111l de• profecia vazia e soberba (m XI,12), enquanto que o verda-
d11lro prnfeta se distingue pela quietude e humildade (m XI,8) 145.
1>rn•La forma o Pasto1" de Her-mas .oferece a imagem de uma
or1lc•111 preHbiterial já não posta em xeque por livres "pneumáticos";
111M PHHll ordem ainda está longe do episcopado monárquico.

::. Completamente diferente é a posição dos presbíteros nas


<.'111·/11.'I de Inácio. Aqui êles ocupam um lugar fixo numa hierarquia
onrunlzada e graduada, em cujo cume está um bispo. ftste é cer-
rndo c<Jmo de sua "assembléia consultiva" pelos membros do pres-
l11ff<rlo 146 (F'iladelfenses 8,1), que juntamente com êle constituem
11111n 1111i<ladc harmônica como as cordas de uma cítara (Efésios 4,1).
Nnda n0. diz sôbre qualquer independência quanto à competência e
1\ atividade dos presbíteros; sua função se reduz a ser "uma coroa
c•11pil'itllal dignamente trançada" ao redor do bispo (Magnésios 13,1),
no 1g1al estão subordinados (Magnésios 3,1; Tralenses 12,2), mas
pnrn o qnal estão ao mesmo tempo ordenados como representantes

11:1 l>il>elius, Hermeneut'k 454.457.635.


IH:rt verdade que Clemente não é designado expressamente como presbítero,
1111111 uimpleRmente como correspondente da comunidade; contudo sua participação
1111 l"""'hitériu fka fora de dúvida pelo contexto (v II, 4, 2).
11~ Sómente n passagem de v IH, 1, 8s, onde Hermas recebe ordem de tomar
lllRll1' nnks dos presbíteros aos quais de
início quer dar precedência, parece apon-
tnr que n "pneumático" tem direito à "protocatedria". Assim, Knopf (biplíbii~afia)
11111, o qual sem razão conta os profetas entre os "líderes" e "presidenté's"· de
que• fala v III, 9, 7s, e os coloca entre os bispos, doutôres e diáconos ·de que
ue fnla em v III, 5, 1. Mas o lugar de honra à esquerda - o da direita é
r1•ll<'rvndo aos mártires - é reservado a Hermas não como profeta, mas como
crlstfio penitente. Cf. von Campenhausen, 103s. '
1': caracteristico como Inácio prefere a expressão impessoal e que aponta
1 ·tR
p11r11 11 ordem hierárquica presb-iJterion (Efésios 2, 2; 4, l; 20, 2; Magné..'lios 2;
Trallm$es 2, 2; 7, 13, 2; Filade!fenses 4; 5, l; 7.1; Smirnenses 8, l; 12, 2); contudo a
oxpres.~ão hoi presbyteroi não é tão rara (Magnésios 3, l; 7, 1; Tralenses 3, l; 1!, 2; ·
Fllad.clfcnses: na inscrição; Policarpo 6, 1). Essa preferência de presbyterion. é
tanto mnis digna de nota porque a palavra n&o ma:s aparece nos padres apos-
t61kos.
Presbítero S55

da hierarquia que tem seu cume 147, de modo que_a êles convêm
como a um estado espiritual e santo 148 a obediência da comunidade
(Efésfos 2,2; Mag1iésio8 7,1; Traler.JJes 2,2; Policarpo 6,1) 149.
~aaoncial e característico para o conceito que Inácio teni do cargo
6 o fato de que o dever de obediência da comunidade nunca é fun-
damentado no mandamento do respeito para com os velhos (como
cm 1 Pd; I Clemente) , como também não no argumento jurídico-
ocleeiástico de sua instituição pelos apóstolos e de -sua- autoridade
como portadores da tradição, mas unicamente no mistério
dade da Igreja, na qual se :reflete o mistério da ordem
Cristo e os apóstolos e a como realidade
porul 150, Hierarquia terrestre e celeste se correspondem ex:at.a~mcm­
t.c m. Por isto vale o princípio: "Segui todos ao bispo como Jesus
Crhito ao Pai, e ao presbitério como aos ap6stolos; diante dos . diá-.
conos porém tende respeito como diante do mandamento de Deus"
(Smirnenses 8,1). Que comparação valha mais do que uma
.iimples comparação e que ela encerre a idéia da verdadeira repre-
aentação é mostrado sobretudo em lr!ag1iésios 6,1: " ... enquanto o
hh1po preside em lugar de Deus e os presbíteros no lugar da assem-
b16ia consultiva dos apóstolos" 152• Esta comparação do presbitério
com os apóstolos ocorre freqüentemente em Inácio i:;a.

IH Portanto, não o contrário! Nunca se diz que o bispo seja um do circulo


dos presbíteros. A expressão S"Jmpresl.:ryteros (cf. nota 158} seria impossível de
nplicar a um inaciano. A expressão usada em Filactelfenses, (na inscrição)
é por Bauer nota 113) tradÚzido com razão: "e aos presbíteros e diáconos
(unidos) com êle".
us Cf. Magnésios 3, 1; "os santos presbíteros".
149 Também aos diáconos a comunidade 'deve respeito e obediência; contudo
na série de cargos sempre aparecem em terceiro lugar, não têm posição prõprla~
mente espiritual e estão subordinados ao presbítero. Nunca são nomeados com o
bispo como uma unidade tal como se dá com os presbite:ros.
um Sôbre esta 1m1ctamenta.cao e sôbre a ausência em Inácio da idéia
de direito e tradição, cf. ;von CaJ::np·cntiau$n 105-112.
1111 Representar o mistério da hierarqu!s divina é a mais nobre do
prebitério. É assim que sempre de nõvo. se argumenta que é J>l'll".ÍSO ri•b10t"....,.11e
também aos presbíteros. Por isto também são chamados "sinédrio de Deus e
vinculo dos apóstolos" (Tra1e?1.8es 3, 1), assim como vlce,-versa os apóstolos são
"presbitério da Igreja" (Fi!adetfe'l'..8€lf 5, 1). Em Magnê.rio• 2 se fala de uma su·
bord!nação ao bispo "como à graça de Deus", e ao presbitériQ "como à lei de .J'etl1.'IB
Cristo ...
11>2 Sôbre a conjetura do sentido de e!.s typon, segundo o tipo, neues dois
textos, cf. Bauer, loc. cit. ·
1118 Cf. ainda Tratemes 2, 2; 3, 1; Fi!adelf!eMH ti, l (aqui os ap~6sttlklll ,do
chlllll8.d® "presbitério da Igreja").
160 Guenter Bornkamm

DêRtc modo as cartas de Inácio nos mostram um quadro que é


funda.mentalmente diverso do que se encontra contemporâneamente
o decênios mais tarde ainda em Roma, no que concerne às institui-
çõou du comunidade 154.
4. A energia com que Inácio defende o reconhecimento da
hl11rnrquia dos cargos e a posição do bispo deixa entrever que a
con:itltuição hierárquica por êle declarada como obrigatória de modo
mmhum se tinha impôsto de modo geral nas comunidades da Ásia
Menor. É o que confirma a carta de Policarpo de Smirna, que de
rm1to está tão próxima de Inácio. Quando se observa como Inácio
pr<~C'isamente em sua carta a Policarpo sublinha a posição peculiar
do l>ispo (1,2; 4,1; 5,2; 6,1) é tanto mais notável que na carta de
l 'oi icarpo aos Filipenses nada se diz sôbre a posição especial do
hi:ipo e não se diz uma sílaba sôbre os "epíscopos" ou o "epísco-
po" 155, mas se fala unicamente de diáconos (5,2) e presbíteros
( G,1). É verdade que também aqui se sublinha a submissão a êsses
dois cargos (5,3) mas o cume da pirâmide - tão acentuada em
lnúcio - falta. Esta situação dificilmente se explica dizendo que
precisamente em Filipos, onde já no tempo de Paulo havia
"epíscopos" e diáconos (Fp 1,1; cf. supra pág. 205) não havia "bis-
pos". Nada também indica que o "bispo" de Filipos tenha sido um
herege e assim não foi nomeado 156• Ao contrário a explicação certa
é que em Filipos os "epíscoposu como portadores de um cargo ainda
a<lministrado por vários membros já tinham desaparecido no grêmio
mais amplo dos presbíteros 157 e não recebem de 'Policarpo o titulo
de "epíscopos" porque para Policarpo êste título já designa o bispo
monárquico. Êle próprio não entende o cargo episcopal como hie-
rárquico, mas expressamente se coloca num único plano com os
presbíteros 158,

154 Esta diferença se reflete também no fato de que em Rm não se encontra


nenhuma alusão sôbre o cargo epíscopal, enquanto que em quase .tôdas as out.rDI
cartas os bispos são expressamente nomeados e na única exceção - em FiladelfenHI
- pelo menos não falta a insü;tência em "um só bispo" (1, 1; 3, 2; 4),
155 Cf. von Campenhausen, Polykarp von Sm:yrna. und di;e Parr.:0ralien, em SAH
(1951) Abh 2 (1951) 33-36.
156 Assim Bauer, loc. cit (nota 113) 77s.
u;1 Por c<>nseguinte a instituição presbiterial recuperou aqui a ordem mal1
antiga do tempo paulino. Cf. von Campenhausen 130, nota 1.
158 É isto que diz a expressão usada no prescrlpto: "PoUcarpo e os presbftero1
com êle", o que se deve entender assim: "Policarpo e os que são presbíteros fUD•
tamente com êle", isto é, como o têrmo sympresbyteros (1 Pe 5.1). Esta 'dlUma
expressão - que se encontra também alhures precisamente para a re15llo da
Asia Menor (cf. Eusébio, Hist. Ed. V, 16, 5) - mais tarde se torna um modo
Presbítero __ 2!i] ___

Sôbre a função dos presbíteros informa-nos êle - afora 6,1 -


~obrotudo em 11,ls: o presbítero deposto Valens maculou (junta-
111011te com sua mulher, 11,1.4) o "cargo" 159 que lhe foi entregue
1uJministrando mal o dinheiro da comunidade. Trata-se portanto de
dovcres econômicos e caritativos; mas também funções disciplinares
u Rnbretudo cura de almas e pregação da palavra pertercem às suas
ohrlsr.nçõcs 160, Com isto Policarpo está lado a-ládu com At, 1Pd,
111u.t1 t1obrctudo as pastorais, as quais claramente pertencem ao am-
blon lo de Policarpo tanto do ponto de vista do tempo como de lu-
~nr 1111 • Elns mostram da mesma forma como Policarpo que o cargo
cio PplHr.opado monárqúico que in praxi se estava formando podia
-·- H•~m qualquer reflexão sôbre graduação hierárquica - coexistir
Hl'ITI qualquer choque com a ordem presbiterial. Diferentemente das
paHf.ornis, contudo, em Policarpo o cargo episcopal só é admitido
du facto sem designação titular.
G. Do conceito de presbyteros tratado até aqui e que aponta
111Lrn a história das instituições do cristianismo primitivo, deve-se
dhitinguir um uso totalmente diferente do têrmo, que é atestado
11obretudo por Pápias e Irineu, como também por Clemente Alexan-
drino, Orígenes e Hipólito. Aí presbyteros (tanto no singular como
110 plural) não é título para os portadores de um cargo comunitário
local, mas designação de membros da geração mais antiga que como
i 1Jtermcdiários da tradição autêntica são tidos como doutôres dignos
de tôda a confiança. O nome honorífico que lhes é atribuído pode

comum de bi2pos se dirigirem aos seus presbíteros (cf. s<.I.pra pág. 241). Por
con~eguinte não se deve entender a fórmula simplesmente como a que está em
Inflrio: "se estiverem em unidade com o bispo e com os presbíteros e diáconos
11uc (estão) com êle". Aqui os presbíteros e diáconos são o clero ordenado para
o bispo e a êle subordinado; em Policarpo os presbíteros são colegas aos quais
f·lc modestamente se equipara como prim'I.!$ in.fier pares. O fato de o bispo per-
1.Pnccr ao presbitério dá a medida de sua posição e dignidade. Ainda Irineu na
Episiol-0; ad Víctorem (Eusébio, Hist. EcLV, 24, 14-16) chama o bispo de Roma
e seus sucessores sempre presbyteroi. Kraft, loc. cit. (nota- 117) 267s compara
com isto a preeminência da dignidade episcopal na carta mais ou menos contem-
porânea de Policrates de Éfeso (Eusébio, Hiilt. .Eci. V, 24, 2-7) e suspeita uma
hist6ria institucional tendenciosa em Irineu, em razão das designações "pelo
menos antiquadas" dos cargos usadas pelo bispo Iríneu oriundo da Ãsia Menor e
amigo dos montanlstas. Contudo, deve-se dizer que êste modo de falar corresponde
ao que pelo ano 200 sabemos a respeito ~· relações entre presbíteros e bispos
em Alexandria e Roma. Sôbre cf. Mue!ler (bibliografia) 274-296.
lü!I Aqui locus = tcpos como na carta de Inácio a Policarpo 1, 2.
160 Sôbre a direção da solenidade eucarística nunca se fala, no que se dis-
tingue de Inácio.
- 161 Isto foi demonstrado por von Campenhausen (nota 155). O valor desta
prova independe da aceitação ou rejeição de sua tese particular de que Policarpo,
ou uma personalidade próxima a êle, seja o autor das pastorais,
!58 Giunter Bornka1trvm
aer melhor traduzido pela palavra corrente no judaísmo "pais"
(Cf TWNT V 977, 13ss) 102.
a. A passagem importante em Pápias é a conhecida cita~
çllo que faz Eusébio de Cesaréia (História Eclesiástica III, 39,3ss)
dn prólogo de Pápias em sua obra "Exposição das Palavras do
8~nhorº. Aí Pápías que tudo o que outrora aprendeu e be..vn
SlUardou "dos antigvs" (apo ton presbyterôn) quer colecionar em
MUnH .. gxposições" para assim garantir sua verdade Pápias
rhama a êsses presbyteroi seus garantidores, embora aqui não se
roflra diretamente ao conhecimento teve dêles, mas uu)-sou1e:i::tw
n ncuR discípulos 164: ""Se vinha acaso um daqueles que
nntigos (presbyterous) eu costumava inquirir sôbre as
cloH antigos : o que dissera André ou ( eipon) , ou o que Filipe,
m1 o ·que Tomé, ou Tiago, ou o que João ou Mateus, ou um outro
doa discípulos do Senhor, e o que Aristion e o Velho João (h.o pres-
1>11tcros Joannes), os discípulos do Senhor, dizem (legousin). Pois
c•u era de opinião que o que se pode tirar dos livros não me era tão
úLil como o que (procedia) da voz viva e permanente". Em nenhu-
ma hipótese se deve confundir os presbyteroi aqtli lembrados com
os apóstolos citados por seus nomes ainda que sem outra designa-
ção 165 , Antes devem ser como também mais tarde
os isto é, como "discípulos dos apóstolos" (cf. infra,
págs. . Pápias, apelando "antigos" expressamente
se separa· tradição e da heréticas (Eusébio, !Iist. Ecles.
III, 39,3); contudo o método por observado para chegar a uma
doutrina digna confiança se parece inteiramente com o costume
dos seus concorrentes gnósticos. Precisamente entre êstes se dá
grande pêso em apelar para um apóstolo individual e para uma
tradição por êle garantida e êles se representavam os apóstolos
como doutôres que reuniam ao seu redor um "circulo de discípulos••
que transmite suas e elabora o que recebera

162 Assim, depois de Zahn, Forsclmng VI, 83, também von Campenhausen 177s;
contudo a expressão usada por von Campenhausen, "os líderes" (Fuehrer) da Igreja,
pode ser mal entendida porque não toma em conta o significado único dêsses pres-
bíteros no que concerne à transmissão da doutrina de que são garan.tidores.
16~ A frase: "Fortalecido pela aua deve ser entendida das "hermen-
eiai" de Pápias e não da doutrina dos presbiteros (ver o contexto).
164 l'!: isto que diz o próprlo :fragmento; que Pápias não pertence. diretamente
aos discípulos dos apóstolos é afi.."lnado com razão por Eusébio, Hist. Ed. m,
39, 2; portanto não se trata de afirmação tendenciosa.
1e:1 A clara distinl:ão entre o Apóstolo João e o Presbítero João - o que 3â
transparece da mudança ·tlo tempo 'do verbo e o Eullléb!o (Hist. Ect m, 39, 5)
com razão anota - não deve- 6'1!l:' apagada pela de ambos, o que sem~
pre de nôvo é tentado Pol'. alguns.
Presbítero - 259

por transmissão oral ma. As demais amostras trazidas por Eusébio


a respeito das informações atribuídas aos "presbíteros" dão adclara
.impressão de constituírem tal tradição geralmente fantástica, mas .
que justamente se apresentava como autêntica. A essa. tradição
pertencem também informes eruditos sôbre cada um dos escritos,
como a que se refere à origem de Me e Mt 167•. Dos verbos com que
Pàpias descreve a relação de discipulado entre seus garantidores e
os presbyteroi bem como o comportamento dêstes (parakolouthein.
mais freqüentemente erchesthai, 39,4.7) aparece que o método esco-
lar usado pressupõe um magistério ambulante. Nada denota uma
relação dos "antigos" e de seus discípulos com os cargos de comu-
nidades constituídas. O quadro que se nos oferece concorda com o
que se pode deduzir de 2 e 3Jo (cÍ. supra, págs. 249s), só que em
Púpias se acentua pela primeira vez a especial autoridade dos
presbyteroi como discípulos dos apóstolos e com isto a legitimidade
de seus discípulos, enquanto que o "Presbítero" das cartas não sen-
tia necessidade de apresentar tal argumento em seu favor e de seus
enviados 168,
b. A mesma escola de presbíteros, que encontramos em Pápias
cm seus inícios, ficamos conhecendo sob uma forma muito evoluí-
da 169 em Irineu que utilizou abundantemente os 5 livros das Exe-
geseis de Pápias e expressamente introduz uma série de doutrinas
como ensinamento dos presbíteros. Êle os designa como apostolôn
mathetai, discípulos dos apóstolos (Adversus Haereses V,5,1; 36,2;
Dernonstratio Evangelica 3). Conforme Adversus Haereses II,22,5;
V,30,1; 33,3 êsses presbíteros estiveram na Ásia Menor em contacto

166 Que Pápias e seus antecessores devem suas afirmações a respeito dos Evan-
gelhos a um "aprendizado escolar", tram,11arece de seu testemunho sôbre o Evan~
gelho de Marcos: Marcos teria coligido e escrito os "ensinamentos" de Pedro,
tlrando tudo da memória. A expressão "intérprete de Pedro", faz de Marcos
o intermediário dos ensinamentos apostólie:os.
157 Cf. nota 166. -- Seg-Jndo Eusébio, Hist. Ecl. III, 39, 15 Pápias expressamente
atribui a noticia sôbre Marcos só à informação "do presbítero"; o mesmo vale cer-
tamente ta."llbém de Mateus. Segundo o contexto "o Presbítero" não pode ser
outro senão João de que se fala em III, 39, 4 e outras vêzes ainda; comparar sobretudo
III 39, 14 onde as exposições de Aristion e as tradições do Presbítero João são
citadas.
168 A designação de João ainda vivo pelo apelido ho presh1fteros de pre!e~
rência a outros "anciãos" não torna certo que seja o autor das cartas. Para
Pápias o Presb1tero João é slmplesmente a autoridade decisiva para os dois pri·
meiros Evangelhos.
169 Não :me parece suficientemente fundamentada a tese de Harnack de que
tôda. a tradição dos presbíteros de Irineu se baseie cm Páplas.
PresbíterQ 251

defende ela os direitos e a dos presbíteros u;ma. co-


munidade que por agitadores deixara levar a depor algtins de
seus presbíteros. nada ficamos sabendo sôb:re os
motivos da revolta 128. nada diz sôbre o modo de agir dos
adversários, nem sôbre as faltas dos presbíteros. Para a 1 Cle~e
a deposição de equivale à da comunidade
contra todos (44,5; 47,6; 54,2; 57,1).~
O repetido de l Clernente contra
que ela· é do mandamento
honrar os Neste sentido geral o
têrmo é usado no carta (1,3; 3,3; 21,6),
quanto que as passagens posteriores, que só aparecem quando de
mais perto é a contenda, presbyteroi sempre se aos
oficiais da comunidade (44,5; 47,6; 54,2; 57,1). Ambos os signi-
ficados contudo coincidem quando em 1,3 e 21,6 a sujeiÇão aos
chefes (a'rchontes) é lado a lado com a honra deyida aos
'"anciãos"; e vice-versa, quando em 3,3 o procedimento dos coríntios
é caracterizado como uma revolta de "jovens" no sentido moral.
Compreende-se tal argumentação só é possível porque os pres-
bíteros de fato um colégio patriarcal e têm direito à hon-
ra l2fl que na se deve aos supra, págs. 243s) .
Do colégio dos presbíteros sobressaem claramente os oficiais
encarregados do culto das ofertas ( 44,1.4). · :fi:stes são chamados
líderes" (hegoum.enoi 1,3; proegou:-menoí 21,6) 1so e - o que é im-
portante ·são caracterizados com o título oficial de epislcopoi
(cf. e 44,6) 131 • contestado em Corinto, ·é,
"""!J"'"'"" na carta, o e o portador de uma ordem
instituída 132• primeira vez que se encara

12s As tentativas para explicá-la são as mais discordantes: movimento de gnós-


ticos e "pneumáticos" desejo de mando dos presbíteros e transgres-
sões de suas competência, um de gerações, rLxas pessoais entre cUqueii, etc.
1211 Em 3,3 são chamados ao mesmo tempo "honrados, gloriosos, Pl'.ll<Íe'ntes".
A consideração de que gozam não só se funda em sua idade, ;:nas ainda na sua
longa fidelidade como membros da comunidade (1, 3; 63, :n. · '
1ao Knop (cf. Bibliografia) 16Ss conta. também os profetas e doutôres. entre
qs presb11teroi. Mas êsses nunca são nomeados em I Clemente.
1:n "Os episkopoi são presbíteros (44, 4.5), mas nem todos os presbiteros
.epfskopoi". Cf. Mueller (cf. Bibliografia) 275 e Sohm (Bibliografia) .115~10.J. · A
fusão dos títi.;Ios mostra que "a instituição presbiteral foi pervadida ele-
ip.entos de uma ordem episcopal, coisa provàvelmente já mais antiga cf.
vem Campenhausen, 91. Ambos os títulos só são usados no plural. I "'"'"'~"f.I.'""
conhece episcopado monárquico. Juntamente com os bispos, são nomea4ps
bém os diáconos (42, 4s).
132 A idéia de ordem em l Clemente provém da ideia dos est6ícos sôbre. o
.cosmos e o estado.
252 Guenter Bornkarn:m

o cargo de anciãos e comunidade sob um ângulo mais vasto e con-


seqilentemente é valorizada a idéia de ordem elevada a um princí-
. pio dogmático 133• O importante aqui é que a tarefa do presbite-
rado não é mais a salvaguarda da tradição apostólica, mas que a
instituição como tal é vista como elemento portador da tradição
apostólica e que assim se fundamenta a intocabilidade do cargo.
Com efeito, o cargo de presbítero deriva imediatamente dos Após-
tolos e através dêles de Cristo e de Deus ( 42 e 44). Também os
'presbíteros têm seu "lugar firmado" 134 o que corresponde à idéia
da. ordem cósmica e da ordenação divina a qual àá à comunidade
sua natureza como organismo e coloca sob um preceito intocável e
santo tanto o tempo como o lugar e as pessoas de seu culto. Em
4'1,S se explica como se processou a transmissão do cargo: esta se
verificou, quando não mais era feita pelos próprios apóstolos e por
aquêles que por êles tinham sido estabelecidos na sua sucessão, por
intermédio de "outros eminentes homens com a aprovação de tôda
a Igreja" 135.
O serviço, leitourgia, ( 40,2; 44,2s.6) 136 dos presbíteros, res-
pectivamente dos "epíscopos", é um serviço cultua!. Devem apre-
sentar as ofertas da comunidade ( 44,4), e são portanto os oficiais
de culto da eucaristia comunitária. I Clemente 40-43 expressamente
os põe na linha de sucessão dos sacerdotes vétero-testamentários e
assim pela primeira vez faz dêles um clero que é distinguido dos
"leigos" 137 na comunidade por direitos e deveres próprios. Esta
exclusiva orientação do cargo de presbítero para o culto ·-- do cargo

1:l3 Isto é considerado com razão por von Campenhausen 102s como a contri-
buição própria de I Clemente.
134 Ver a expressão "para que ninguém os deponha do lugar que lhes foi
fixado" (44, 5).
135 "Os que foram postos por aquêles ou em seguida por cutros
varões ilustres com o consentimento <le tôda a Igreja" (44, 3). A analogia com a
primeira geração exige que também os "ilustres varões" posteriores fôssem pres-
bíteros cficiais da comunidade local. Cf. Mueller (bibliografia) 276, Contra a
concepção de G. Dix em ;Kirk (é:f. bibliografia) 257-266, de que esta passagem não
trata da colação de cargo local, mas de especial poder a.postólico pleno de insti-
tuir sucessores, com razão argumenta von Campenhausen 9'1, nota 2. A parti-
cipação d:i comunidade na instituição dos presbíteros deve ser entendida s'.m-
plermente como voto de aprovação (aclamação).
·130 Sõbre o conceito de diakonia cf. F. Gerke, Die SteHung des 1 ci innerh<ifü
der Entwícklu:ng der altkirchHchen Gemeindeverfasmmg und im Kírchenrecht em
TV ·47, l (1931) 116-122; cf. ainda TWNT IV, 235, 26ss.
137 O têrmo iaikos, laico-leigo, aparece pela primeira vez em I Clemente
40,5 · ém oposição aos encarregados do culto no VT, mas também em relação com a
situação comunitária cristã (ct. P:reuschen-Bauer, sub i'oce).
mngístcrial do presbítero nunca se fala - e sua elericali-
znçiio dão à I Clemente a de proclamar a inamovibili-
<.lude dos portadores do cargo e a vitaliciedade de seu cargo ( 44,5}
enquanto não se tornaram culpados da quebra do dever e de alguma
indignidade. Assim a do conflito em Corinto só pode con-
11hd.ir nn reabilitação dos e na submissão dos revoltosos
am1 presbíteros (é·7,l) 138 e o exílio para um lugar de~
t.•rminado pela comunidade (cap. 54) 139, para que "o rebanho de
Crh1to viva em paz e com os presbíteros constituídos" :(54,2), .
2. Mais ou mcmos i-dêntica constituição
ria ú de l Clemente nos oferece o Pastor de He:rrrw,s, composto
dP1°1!níoH mais em Roma· contudo, · se distingue
J <:fomente no fato de que o cargo como tal não é de modo algum
problemático e não precisa ser fundamentado, e ainda no de que
o livre profetismo - que o Hermas representa - ainda
fala diretamente "aos (v III,8,11), independentemente dos
oficiais comunitários mas não em oposição a êles. A direção da
1·onumídade também nas mãos de um colégio de presbíteros
<v IIA,2s; III,1,8). colégio pertencem e diáconos
1 v 11 l,5,l; s 27 , ambos cuidado dos
fll'bn~~' e a finanças da Como líderes
da comunidade os são chamados "pastôres", têrmo com
sempre o ofício cuidados espirituais
ocupam o lugar de nas reuniões da comu-
140. A alta posição que ocupam transparece em
nua comparação com o;; apóstolos (v III,5,1,} 141 • Sua na
rnmunidade não é contestada, ainda que sejam
rados por causa de suas rivalidades ao serem opostos aos simples
npôstolos e doutôres de outrora (s VIII,7,4; v JII,9,7 e passim) lcrn.
t·:m todo o livro não há indício de luta entre e oficiaís da

1:JH Só se pode trator dos presbíteros que permaneceram em seus cargos (contra
von narnack, EinJ1iehmng in die Alten Kirchengeschichte U929) 95).
13~ Das duas se deve deduzir que os presbíteros cumprem o ato
tôda a comunidade, Cf. ainda 63, l.
Ho A expressão em v II. 4, 3 "com os presbíteros que dirigerri a Igreja'' (llÕ·
bre isto d. ainda 1 Tm 5, 17; I Clemente 54, 2) mostra que se faz distinção entre
prcsbíi"ros que exerciam o ofício e um círculo mais amplo de pessoas tidas em
honra.
H! Aqui debaixo da "pedra branca quadrada" também os doutôÍ'es
no lado dos Parn Hermas os doutôres são figuras ideais do passado
"que pregaram a todo o mundo" e portanto não são portadores de um cargo (Cf,
s IX,,l6, 5; 25, 2). Mas os portadores de tais cargos,_ "epíscopos" e diáconos -
lhea· dio postos ao lado.
H2 Cf, vrm Campenh;iusen 104s.
2.'14 Guenter Bornkamrn

('om1111idade 143. Ainda existe profecia na comunidade, mas geral-


mente falsa, contra a qual se chama a atenção (m XI). O próprio
l rermai:i, não obstante sua atividade literária na linha do apoca-
li pAhlmo, nunca se chama "profeta" e recebe a ordem de entregar
seu livro aos "presbíteros" e de lê-lo para a comunidade na pre-
1mnça dêles (v II,4,2s). Também o envio do escrito para as outras
comunidades deve ser fei o por um membro encarregado pelo pres-
bitério (v II,4,3) 144 • Por conseguinte está liquidada a concorrência
entre cargo e livre profecia. Pretender o primeiro lugar é eo ipso
sinal de profecia vazia e soberba (m XI,12), enquanto que o verda-
<leiro profeta se distingue pela quietude e humildade (m XI,8) 145.
Desta forma o Pastor de H erma8 oferece a imagem de uma
ordem presbiterial já não posta em xeque por livres "pneumáticos";
mag essa ordem ainda está longe do episcopado monárquico.
3. Completamente diferente é a posição dos presbíteros nas
Cartas de Inácio. Aqui êles ocupam um lugar fixo numa hierarquia
organizada e graduada, em cujo cume está um bispo. Êste é cer-
cado como de sua "assembléia consultiva" pelos membroo do pres-
bitério 146 (Filadelfenses 8,1), que juntamente com ê1e constituem
uma unidade harmônica como as cordas de uma cítara (Ef ésios 4,1).
Nada se diz sôbre qualquer independência quanto à competência e
à atividade dos presbíteros; sua função se reduz a ser "uma coroa
espiritual dignamente trançada" ao redor do bispo (Magnésios 13,1),
ao qual .estão subordinados (Magnésios 3,1; Tralenses 12,2), mas
para o qual estão ao mesmo tempo ordenados como representantes

143 Dibeiius, Hermeneut'k 454.457.635.

lH É verdade que Clemente não é designado expressamente como presbítero,


mas simplesmente como correspondente da cámunidade; contudo sua participação
no presbitério fica fora de dúvida pelo contexto (v II, 4, 2).
H5 Somente a passagem de v III, 1, 8s, onde Hermas recebe ordem de tomar
lugar antes dos presbíteros aos quais de início quer dar precedência, parece apon-
tar que o "pneumático" tem direito à "protocatedria". Assim, Knopf (biplioin'afia)
185, o qual sem razão conta os profetas entre os "lideres" e "presidehtéS'' de
que fala v III, 9, 7s, e os coloca entre os bispos, doutôres e diáconos ·de que
se fala em v III, 5, 1. Mas o lugar de honra à esquerda - o da direita é
reservado aos mártires - é reservado a Hermas não como profeta, mas como
cristão penitente. Cf. von Campenhausen, 103s. •
146 É característico como Inácio prefere a expressão impessoal e que aponta
para a ordem hierárquica presbyterion (Efésfos 2, 2; 4, 1; 20, 2; Magné8ios 2;
Tralenses 2, 2; 7, 13, 2; Filade!fenses 4; 5, 1; 7.1; Smirnenses 8, l; 12, 2); contudo a
expressão hoi presbyteroi não é tão rara (Magnésios 3, 1; 7, 1; Traienses 3, l; Ul, 2;
Filad;elfenses: na inscrição; Policarpo 6, 1). Essa preferência de presbyterion é
tanto mais digna de nota porque a palavra ni:o ma:s aparece nos padres apos-
tólicos.
Presbítero !55

da hierarquia que nêle tem seu cume 147, de modo que a êlés convêm
como a um estado espiritual e santo 148 a obediência da comunidade
(Efésios 2,2; Magnésios 7,1; Tralerises 2,2; Policarpo 6,1) 149.
Essencial e característico para o conceito que Inácio tem do cargo
é o fato de que o dever de obediência da comunidade nunca é fun-
damentado no mandamento do respeito para com. os velhos (como
em 1 Pd; I Clemente), como também não no argumento jurídico-
ecleaiástico de sua instituição pelos apóstolos e de -sua- autoridade
como portadores da tradição, mas unicamente no mistério da uni-
dade da Igreja, na qual se reflete o mistério da ordem entre Deus.
Cristo e os apóstolos e a representa como realidade cultual-tem·
poral 150. Hierarquia terrestre e celeste se correspondem exat.amen-
te 151. Por isto vale o princípio: "Segui todos ao bispo como Jesus
Cristo ao Pai, e ao presbit.ério como a.os apóstolos; diante dos diá-
conos porém tende respeito como diante do mandamento de Deus"
(Smirnenses 8,1). Que esta comparação valha mais do que uma
8imples comparação e que ela encerre a idéia da verdadeira repre-
sentação é mostrado sobretudo em Magnésios 6,1: " ... enquanto o
bispo preside em lugar de Deus e os presbíteros no lugar da assem-
bléia consultiva dos apóstolos" 152 • Esta comparação do presbitério
com os apóstolos ocorre freqüentemente em Inácio 153 •

H7 Portanto, não o contrário! Nunca se diz que o bispo seja um do círculo


dos presbíteros. A expressão sYmpresbyteros (cf. nota 153) seria impossível de
nplicar a um bispo inaciano. A expressão usada em Filmi,elfenses, (na inscrição)
ó por Bauer (cf. nota 113) traduzido com razão: "e aos presbíteros e diáconos
{unidos) com êle".
H~ Cf. Magnésios 3, 1; ".os santos presbíteros".
149 Também aos diáconos a comunidade ·deve respeito e obediência; contudo
nu série de cargos sempre aparecem em terceiro lugar, não têm posição prôpria•
mente espiritual e estão subordinados ao presbitero. Nunca são nomeados com o
bll!DO como uma unidade tal como se dá com os presbíteros.

1 ~o Sllbre esta fundamentação do cargo. e sôbre a ausência em Inácio da idéia


de direito e tradição, cf. ,von Campenhau®n 1{)6-112.

2111 Representar o mistério da hierarquia divina é a função mais nobre do


prebltério. t: assim que sempre de nôvo se tu"gumenta que é l>r<t"'.iso m•'b111tr~se
também aos presbíteros. Por isto também são chamados "sinédrio de Deus e
vinculo dos apóstolos" (Tralenses 3, 1), assim como vice-versa os apóstolos são
"presbitério da Igreja" (Filadelfenses 5, 1). Em Magnésios 2 se fala de uma su·
borcllnação ao bispo "como à graça de Deus", e ao presbitério "como à lei de Jesus
Cristo". . .
1111 Sõbre a conjetura do sentido de eis tvpon, segundo o tipo, nesse11 doá
toxtos, d. Bauer, loc. clt.
1111 Cf. ainda Tra!enses 2, 2; 3, 1; Fi!ade!flemes 5, 1 (aqui os apóstolos.*
chamados "presbitério da !greja").
256 Guenter Bornkamm

Dêste modo as cartas de Inácio nos mostram um quadro que é


fundamentalmente diverso do que se encontra contemporâneamente
e decênios mais tarde ainda em Roma, no que concerne às institui-
ções da comunidade 154.
4. A energia com que Inácio defende o reconhecimento da
hierarquia dos cargos e a posição do bispo deixa entrever que a
constituição hierárquica por êle declarada como obrigatória de modo
nenhum se tinha impôsto de modo geral nas comunidades da .Ásia
Menor. É o que confirma a carta de Policarpo de Smirna, que de
resto está tão próxima de Inácio. Quando se observa como Inácio
precisamente em sua carta a Policarpo sublinha a posição peculiar
do bispo ( 1,2; 4,1; 5,2; 6,1) é tanto mais notável que na carta. de
Policarpo aos Filiperu;es nada se diz sôbre a posição especial do
bispo e não se diz uma sílaba sôbre os "epíscopos" ou o "epísco-
po" 155, mas se fala unicamente de diáconos (5,2) e presbíteros
( 6,1). É verdade que também aqui se sublinha a submissão a êsses
dois cargos (5,3) mas o cume da pirâmide - tão acentuada em
Inácio - falta. Esta situação dificilmente se explica dizendo que
precisamente em Filipos, onde já no tempo de Paulo havia
"epíscopos" e diáconos (Fp 1,1; cf. swpra pág. 205) não havia "bis-
pos". Nada também indica que o "bispo" de Filipos tenha sido um
herege e assim não foi nomeado mi. Ao contrário a explicação certa
é que em Filipos os "epíscopos" como portadores de um cargo ainda
administrado por vários membros já tinham desaparecido no grêmio
mais amplo dos presbíteros 157 e não recebem de 'Policarpo o título
de "epíscopos" porque para Policarpo êste título já designa o bispo
monárquico. ~le próprio não entende o cargo episcopal como hie-
rárquico, mas expressamente se coloca num único plano com os
presbíteros 158.

154 Esta diferença se refiete também no fato de que em Rm não se encontra


nenhuma alusão sôbre o cargo episcopal, enquanto que em quase .tôdas as outras
cartas os bispos são expressamenie nomeados e na única exceção - em Filadeifenses
- pelo menos não falta a insistência em "um só bispo" (l, 1; 3, 2; 4).
155 Cf. von Campenhausen, Polykarp von Sm:yrna und diie Pasroro:!ien, em SAH
(1951} Abh 2 {1951) 33-36.
156 Assim Bauer, Zoe. cit (nota 113) 77s.
1~1 Por conseguinte a instituição presbiterial recuperou aqui a ordem mais
antiga do tempo paulino. Cf. von Campenhausen 130, nota 1.
158 É isto que diz a expressão usada no presc:ripto: "Policarpo e os presbíteros
com êle", o que se deve entender assim: "Policarpo e os que são presbíteros jun-
tamente com êle", isto é, como o têrmo sympresbyteros (1 Pe 5.1). Esta última
expressão - que se encontra também alhures precisamente para a região da
Asia Menor (cf. Eusébio, Hi.st. Ect. V, 16, 5) - maia tarde se torna um modo
Sôbre a função dos presbíteros inform..a--nos êle - Q.fora. 6,1 ....._
tmbretudo em 11,ls: o presbítero deposto Valens macúlou (junta-
montc com sua mulher, 11,1.4) o "cargo~· 159 que lhe foi entregue
administrando mal o dinheiro da comunidade. Trata-se portanto de
deveres econômicos e caritativos; mas também funções disciplinares
ti imbrctudo cura de almas e pregação da palavra pertenem às suas
obrlsr,ações 160, Com Policarpo está lado a~Jaãu l:!Onr At~ 1Pd,
ums sobretudo as pastorais. as quais claramente pertencem ao am-
hlonte de Policarpo tanto do ponto de vista tempo como de lu-
Jenr 161 • Elas mostram da mesma forma Policarpo que o
do episcopado monárqúico que in. pra.xi se estava formando
- t·H!m qualquer reflexão sôbre graduação hierárquica - 1,;v1c.;u•;::>1.-.uc
Hem qualquer choque com a ordem presbiterial. Diferentemente das
}lastoraís, contudo, em Policarpo o cargo episcopal s6 é admitido
de facto sem designação titular.
õ. Do conceito de presbyteros tratado até aqui e que aponta
Jlllfn a história das instituições do cristianismo primitivo1 deve~se
distinguir um uso totalmente diferente do têrmo, que é atestado
11obrctudo por Pá pias e como também por Clemente Alexan-
drino, Orígenes e Hipólito. Aí presbyteros (tanto no singular como
110 plural) não é título os portadores de um cargo comunitário
local. mas designação membros da geração mais antiga que eomo
i1)termediários da tradição autêntica são tidos como doutôres dignos
de tôda a confiança. O nome honorífico que lhes é atribuído pode

<:um um de se dirigirem aos seus presbíteros (cf. S'.Jpro pág. 241). Por
conseguinte se deve entender a fórmula simplesmente como a que está em
TnMio: "se esti,1erem em unidade com o bispo e com os presbíteros e diáconos
<1ue (estão) com êle". Aqui os presbíteros e diáconos são o clero ordenado para
o bispo e a êle subordinado; em Policarpo os presbíteros são colegas aos quais
l"le rnoJestamente se equipara como prtmus in.Ver pares. O :tato de o bispo per-
ti•ne1~r no presbitério dá a medida de sua posição e dign!dade. 'Ainda Irineu na
1'Jpis'tola ad Victorem (Eusébio, Hin. Ed., V, 24, 14-16) chama o bispo -de Roma
e seus sucessores sempre presbllteroi. . Kra!t, loc. clt. (nota 117) 267s compara
com isto a preeminência da dignidade episcopal· na carta mais ou menos contem-
porânea de Policrates de :éfeso (Eusébio, Hia:t. Eci. V, 24, 2-7) e suspeita uma
hist&ria institucional tendenciosa em Irlneu, em razão das <:iesignações "pelo
menos antiquadas" dos cargos usadas pelo bispo Irineu oriundo da Asia Menor e
amigo dos montanistss. Contudo, deve-se dizer que êste modo de falar corresponde
ao que pelo ano 2{)0 sabemos a respeito d4s.. relações entre presbíteros e bispos
em Alexandria e Roma. Sõbre cf. l'.-fue!ler (bibliografia} 274-296.
lõO Aqui locus= topoi como na carta de Inácio a Policarpo 1, 2.
it10 Sôbre a direção da solenidade eucarlstfoa nunca se fala, no que se dl!!-
tingue de Inácio.
- 161 Isto foi demonstrado por von Campenhau11en (nota 155). O valor desta
prova independe da aceitação ou rejeição de sua tese particular de que Polica.'"P<>,
ou uma personalidade próxima a êle, seja o autor das pastorais.
258 G'!Unter Bornkamrn

ser melhor pela palavra corrente no judaísmo "pal1"


(Cf TW1\1T V 18ss) 162.
a. A passagem importante em Pápiaa é a conhecida alta-
ção que faz Eusébio de Cesaréia (História, Eclesiástica. III, 89,8u)
do prólogo de Pápias em sua obra ·~Exposição das Palavru do
Senhor". Aí Pápias que tudo o que outrora aprendeu e bem
guardóu "dos antig\,s" ton presbyterôn) quer colecionar llll
suas "Exposições" para assim garantir sua verdade lGa, PAptu
chama a êsses presbyteroi seus garantidores, embora aqui nlo l i
refira diretamente ao conhecimento que teve dêles, mas tlo-lbmatt
a seus 164: ''Se acaso um daqueles que serulra OI
antigos (presbyterous) eu costumava inquirir sôbre as palavru
dos :o dissera André ou Pedro (eipon), ou o que FIUpe,
ou Tiago, ou o que João ou Mateus, ou um outro
dos discípulos Senhor, e o que Aristion e o Velho João (ho pr.,.
byteros Joannes)1 os discípulos do Senhor, dizem (legousin), Poli
eu era de opinião que o que se pode tirar dos livros não me era tio
útil como o que (procedia) da voz viva e permanente". Em nenhtl•
ma hipótese se deve confundir os presbyteroi aqui lembrado1 com
os apóstolos citados por seus nomes ainda que sem outra dealsna.
ção lm''. Antes de-vem ser como também Irineu mal1 tarclt
os chama, isto é, como "discípulos dos apóstolosº (cf• ..,,..,
págs. 206s). Pâpías, apelando para. êsses "antigos,, expre11amtntl
se separa da tradição e da doutrina heréticas (Eusébio, Hiat. Jlol.,,
III, 39,3); contudo o método por observado para cherar a uma
doutrina digna de confiança se parece inteiramente com o co1tu. .
dos seus concorrentes gnósticos. Precisamente entre ê1te1 l i d&
grande pêso em apelar para um apóstolo individual e para lml
tradição por garantida e êles se representavam 01 1p6.+a1M
como doutôres que reuniam ao seu redor um "círculo de dl1óSpiiõail
que transmite suas e elabora literàriamente o que rtOlblN

102 Assiro, depois de Zahn, FOTschung V!, S3, também von camponblUllD "'lt
contudo a expressão usada por von Campenhausen, "os lideres" (Fuehror) da .......
pode ser mal entendida porque não toma em conta o significado ónloo .u... ,,...
b!teros no que concerne à transmissão da doutrina de que são garantldoret.
163 A frase: "Fortalecido pela sua verdade" deve ser entendldll dH "ht""l"9
eiai" de Pé.pias e não da doutrina dos présbiteros (ver o contexto),
164 :t isto que diz o próprio fragmento; que Pé.pias não pertenci ~
aos discípulos dos apóstolos é afirmado com razão por Eusébio, HtlL lel, Ili,
39, 2; portanto não se trata de afirmação tendenciosa.
ie11 A clara distinção entre o Apóstolo Joio e o Presbítero .Tolo - o - 1111
transparece da l!O tempo do ve:rbo í! o que Eusébio (Jiftt • .lol, DJ1 • • li
com razão anota ....... deve ser apagada pela identificação de ambot, o •• _.
pre de nõvo é tentado por. algw:aa.
Presbíte1'VJ · -~59

1>or transmissão oral 166. As demais amostras trazidas por Eusébio


u respeito das informações atribuídas aos "presbíteros" dão &:,·clara
impressão de constituírem tal tradição geralmente fantástica, mas
<1ue justamente se apresentava como autêntica. A essa. tradição,
pertencem também informes eruditos sôbre cada um dos escritos, ·
como a que se refere à origem de Me e Mt 16'1•. Dos yerbos com que
PfLpins descreve a relação de discipulado entre seus garantidores e
011 presbyteroi bem como o comportamento dêstes (parakolouthein,
mnls freqüentemente erchesthai, 39,·1.7) aparece que o método esco-.
lnr usado pressupõe um magistério ambulante. Nada denota uma
rulnçüo dos "antigos" e de seus discípulos com os cargos de comu-
uldndes constituídas. O quadro que se nos oferece concorda com o
que se pode deduzir de 2 e 3Jo (cÍ. supra, págs. 249s), só que em
l'fLpius se acentua pela primeira vez a especial autoridade dos
p1·esbyteroi como discípulos dos apóstolos e com isto a legitimidade
dn seus discípulos, enquanto que o "Presbítero" das cartas não sen-
tia necessidade de apresentar tal argumento em seu favor e de seus
tmviados 168,
b. A mesma escola de presbíteros, que encontramos em Pápias
um seus inícios, ficamos conhecendo sob uma forma muito evoluí-
da 1611 em Irineu ·que utilizou abundantemente os 5 livros das Exe-
gcseis de Pápias e expressamente introduz uma série de doutrinas
como ensinamento dos presbíteros. Êle os designa como apostolôn
mathetai, discípulos dos apóstolos (Adversus IIae1·eses V,5,1; 36,2;
Demonstratio Eva,ngelica 3). Conforme Adversus Haereses II,22,5;
V,30,1; 33,3 êsses presbíteros estiveram na Ásia Menor em contacto

166 Que Pápias e seus antecessores devem suas afirmações a respeito dos Evan-
gelhos a um "aprendizado escolar", transparece de seu testemur.ho sôbre o Evan-
gelho de Marcos: Marcos teria coligido e escrito os "ensinamentos" de Pedro,
tirando tudo da memória. A expressão "intérprete de Pedro", faz de Marcos
o intermediário dos ensinamentos apostólieos.

167 C:f. nota 166. ·- Segundo Eusébio, HiBt. EcZ. III, 39, 15 Pápias expressamente
atribui a noticia sôbre Marcos só à informação "do presbítero"; o mesmo vale cer-
tamente também de Mateus. Segundo o contexto "o Presbítero" não pode ser
outro senão João de que se fala em III, 39, 4 e outras vêzes ainda; comparar sobretudo
III 39, 14 onde as exposições de Aristion e as tradições do Presbítero João são
citadas.
168 A designação de João ainda vivo pelo apelido ho presbyteroit de prefe-
rência a outros "anciãos" não torna certo que seja o autor das cartas. Para
Pápias o Presbítero João é simplesmente a autoridade decisiva para os dois pri-
meiros Evangelhos.
169 Não me parece suficientemente fundamentada a tese de Harnack de que
tôda a tradição dos presbíteros de Irineu se baseie em Pápiag,
260

ne,ssc>~ucom João, o discípulo 170• Ao seu círculo pertencia,

Irineu, também Policarpo (Epistoki a.d Florinum, em Eusé-


EcL V,20,7), a quem Irineu em sua juventude ouviu con-
tar a respeito de seu contacto íntimo com João e os outros que ti-
nham visto o como suas dos milagres e da
doutrina do Senhor Híst. Eel. 111 • Também

pías, que êle só literàriamente, é por êle "ouvinte


de João" e "companheiro de Policarpo" e caracterizado como ar-
c"P.aios aner, é, como homem tempos antigos (Adv.
V,33,4).
do claro papel de literário que
para Irineu 112, os são contudo
imediatamente, e só como garantidores
o Jesus terreno e sua doutrina (assim Adv. II,22,5;
, mas também em geral como autoridades doutrinárias para
exposição da Escritura e precisamente dou-
discutidas na contra a heresia, as de
conteúdo escatológico (Adv. Haer. V,30,1; 33,3s; 36,ls; Demons-
tratio 61). É evidente que em sua obra. contra as heresias (IV,
27-32) Irineu o ensino dos que contra Mar-
cion defende a do Pai de Cristo e do Criador
do mundo, bem como a íntima reiação os testamentos 173, Da
multidão de escriturísticas e neotestamentârias
inseridas nesses capítulos compactos reconhecer a grande
parte que presbíteros tiveram na evolução do
cânon no que medeia entre e Irineu.
Somente em sua escola 174 se aprender a correta 1,,,,-,,.,..,
posição da Escritura, de onde a firmeza

Para Irineu é joão, filho de Zebedeu.


171 Eusébio) Hist. Ecl. ''~ ôs de "lições" de Policarpo que IrLrieu não
escreveu mas conservou no coração.
mi Cf. Harnack:, Die Chronologie der .altkirchlichen Litteratur bis Eusebius I
(1897) 333-3'10.
li3 Bousset e Harnack demonstraram que à base de Adv. Haer. IV, 27-32 se
encontrava a homilia de um presbítero. Cf. M. Wldxnann, lri:naeus und serne theo-
Iogische Vaeter em ZThK 54 {1957) 156-173.
lH Será que se pode cum grano scrlís chamá-la como "a primeira Faculdade
de Teologia" na forma em que é pressuposta por Irineu? Para a escola dos
presbíteros l:rineu, Paulo é de nôvo autoridade reconhecida e o Evangelho de
João da mesma ordem que os outros. A exposição do VT vai aqui lado a lado
com a do NT. t precisamente na luta contra Marcion que a teologia recebe seus
contornos nesta escola. Sôbre as particularidades de seu cânon, de sua doutrina
sõbre de sua Cristologia e de sua Doutrina sôbre o Espirito, cf. W. Bousset,
Kyrios (1926) 27.192, nota 2. 255.
11a m. Na introdução à doutrina dos presbíteros (Adv. Haer. IV,
20,2) contrasta~os fortemente com os presbíteros falsos e sublinha
a autoridade que obriga à obediência aos presbíteros verdadeiros pelo
fato de atribuir-lhes não a sucessão na doutrina :mas também a
1rncessão do cargo 176• li:: verqade que êle está longe de
di11tínguir um carisma institucional do charis~LJtis, isto--é,
lia doutrina por tradição 117 ; contudo a ··1dentificação
feita em algumas passagens 11s entre "presbíteros" e "bispos" sig-
ui fica sem dávida algo de inteiramente nôvo em compara·
çüo com a que transparece em Pápias. Essa identificação
ú realizada com intuitos apologético-polêmicos a fim
de a doutrina eclesiástica contra a heresia e suas tradições
particulares 179, Isto se tornou possível pelo duplo sentido de
1Jresbytero8 como doutor da geração antiga e portador do cargo
diretivo da comunidade, mas sobretudo porque se verificou nesse
meio tempo com tôda a certeza uma clerlcalização do estado magis-
terial que antes era livre. Ao mesmo tempo não se deve esquecer
que estado magisterial e cargo episcopal são aqui relacionados entre
si a posteriori para garantir por uma dupla via a constância
da doutrina Com efeito, as citações que tratam dos
presbíteros nunca para o cargo episcopal dêsses "discípulos
dos apóstolos". ·

nr. Ad. Haer. lV, 32, 1: post deínde et omn.is sermo ei constabít, d d scrip-
u.u.toe11oi.:r Iegerit apud eos, qui in ecelesia sunt preslnJteri, apud qu.os ellt

rni Adv. Haer. IV, 26, 2: Quapropter eis qu.i in ecciesia. su:rit, presbyfierls
obamlire h.is qui sttccessionem habent ab apostoHs, sicut. cniúindimur, qui
<7Um successione charisma verltatis. . . acceperunt.
111 Sôbre o significado da expressão charisma-vérltatis, K. Mueller, J{letne
Beitraege zur. alten. Kirchengeschichte 3: Das chari.sma ·veritaUB und der Epíikopat
des lrlnaeus, em ZNW 23 (1924) 216-222; von Campenhausen, 188. Ver ainda a
descrição do verdadeiro presbítero em Adv. Haer.. .. IV, 26, 4: qui et aposrol.orum,
sícut praediximus, doctrlnam custodiunt ei cum presbyterli . ordine senncnem &a-
ninn et ronversationem sine offensa pra;estan.t ad conf!rm.a.tionem et COfT'ep~
reliquorum. A seguir, depois de citar a passagem profética•já usada por I cie..
mente 42.5 (Is 60.17)' os presbíteros são caracterizados como "ep!seópos .fui jililtlÇa». e-
a verdadeira doutrina s6 é reconhecida para aquêles apud quos est e~ q:u.ae est ab
apostolis ecc!esíae succesrio. Segue~se então um resumo muito caraeter!atico de
sua doutrina: Hi ením et eam quae est .i-ii unum d.eum, qui omnia fecit, ff,dem MI•
trem custodiunt: et eam quae est in fiZJ,~m deJ dUectk>nem adaugent•• ! iet scrip. .
tu7am sine perlcu.to nobis exponunt nequ!\.D .o,eum. 'blruphemantes neque .Prttrta.rc'hal
4!Xhonorantes nequ.e prophetcre contemnente-1\ (26, 5). _
11s Além de Adv. Haer. IV, 26, 2.4 a!n~a V, 20, 1.2.
J
mi Cf. von Campenhausen 188.
lflt Guenter Bornkamm
e. Em oposição à clara tendência em Irineu de identificar. a·
HUccssão doutrinal e jurisdicional, em Clemente Alexandrino o cargo
magisterial se conservou ainda em sua forma livre. Também êle
apela para os antigos como os doutôres dos tempos passados 180 ;
"~stes guardaram a verdadeira tradição da bem-aventurada dou-
trina que êles receberam dos santos apóstolos Pedro e Tiago; João
e Paulo, como filhos dos pais. . . e assim com o auxílio de Deus
chegaram também até nós a fim de depor em nós aquela semente
paterna e apostólica" 181. Também aqui os presbyteroi são as auto-
ridades que 1'ecolhem e transmitem as notícias sôbre os apóstolos
e para a correta exposição da Escritura do Velho e do Nôvo Tes-
tamento 182. Aí presbyteroi não só é designação para os discípulos
dos apóstolos, mas é usada também por Clémente Alexandrino pa-'
ra designar mestres da geração anterior 183, na medida em que são os
intermediários da tradição e da verdadeira gnose ; assim é chama-
da sobretudo o seu mestre Pantainos, o "bem-aventurado presbíte- ·
ro" 184. Segundo sua obra Eccles. Proph. 27 êles transmitiam suas
tradições oralmente e deixavam que outros escrevessem livros, mas
o "penhor" por êles deixado exigia elaboração literária.
Nas suas linhas essenciais a imagem dos presbyteroi em Cle-
mente Alexandrino se parece com a que pinta Pá pias ( cf. supra,
págs. 257s) e Irineu (págs, 259s) 185 ; contudo, de Irineu se distingue

1so Como tradição dos mais antigos presbíteros aduz êle a afirmação de que
os primeiros Evangelhos eram os que continham o registro genealógico; em seguida
a notícia um pouco modificada - conhecida de Pápias - sôbre a origem de Me;
finalmente, caracteriza Jo como o último "Evangelho espiritual"; c:f, Clemente Ale-
xandrino, fragm. 8 (Hypot",1poseis).
1s1 Strnmmata I, 11, 3 - é de notar como a verdadeira doutrina, tal como na
gnose, é atribuída a um circulo mais fechado dos apóstolos.
182 O conceito "Nôvo Testamento" cerno designação canônica se encontra pela
primeira vez em Clemente Alexandrino.
183 A particular posição dos presbíteros no processo da tradição é sublinhada
por atributos como "os presbíteros de antanho" (Clem. Alex. fragm. li); "os an-
tigos presbíteros" (fragm. 25; de pascha). A expressão "discípulos dos apóstolos"
não aparece em Clem. Alex. por mais que pretenda estar próximo da tradição
apostólica (cf. Eusébio, Hist. Eccl. VI, 13, 8).
184 Clem. Alex. fragm 22 <Hypot;ypo:;;eis). Pantainos talvez seja subentendido
sempre que se diz simplesmente "o Presbítero". Clemente Alexandrino o. chama
"abelha siciliana" pois que "das flôres dos prad<ls proféticos e apostólicos êle cl:ni-
pou mel e na alrl".a de seus O\!.Vintes gerava um puro tesouro de con..llec!mento"
(Strommata I, 11, 2). ~
Também Justino conhece êss tipo: Em Día!ogus 3 êle :faz sua doutrina
1815
ascender a "um antigo ancião"; de u Nlartyrium (cap. :n sabemos que recebeu
seus conhecimentos em Roma num escola especial.
Presbítero eos
profundamente pelo fato de que em Clemente Alexandrino - embora
61• conh<..>cease a Irineu - nunca se verifica a identificação entre
1uaoaalo de presbíteros e sucessão no cargo episcopal 186, Pelo con-
trArlo, a função magisterial é livre em face dos cargos comunitários,
doa quais se fala estranhamente pouco. Ainda mais: os cargos
ooloal,sUcos valem para Clemente Alexandrino como cópias do mun-
\lo celeste; o verdadeiro presbítero e diácono é para êle o gnóstico ;
late, mesmo sem ter ocupado cargo, será colocado entre a multidão
du1 24 anciãos do Apocalipse (cf. supra, págs. 244ss) 181 • Tanto do
s>ont.o do vista do conteúdo como da forma os doutôres de Clemente
Aletxandrino estão muito próximos dos da gnose, embora sua: fide-
lldado no cânon do Antigo e do Nôvo Testamento torne possível que
Olumunto Alexandrino tome parte intensa na luta antignóstica da
lrroJa ioo.
Uom respeito à posição e função dos "antigos" em Clemente
Aloxuudrino e seus antecessores apontou-se com razão para a su-
coHsi\o doutrinal no rabinado mais ou menos ao mesmo tempo, e que
oferece uma grande analogia; entenderam-se assim as "palavras
dos presbiteros" à maneira das "sentenças dos pais" 189, Com efei-
to, para os escritores cristãos de Alexandria é muito característica
n coexistência da leitura direta da Escritura e o apêlo para a tra-
tliçüo oral, como já o fizera Filão 190,

wo Ct. von Campenhausen 221.


187 Strommata VI, 103ss sobretudo 106, 2. Outros passos em von Campenhau-
1cn 220, nota 7.
188 Cf. von Campenhausen 221-224•
..,,.,_
Pseuão-clementinas mostram que em certas comunidades toram aceitas
181> A;;
n11 instituições judaicas do magistério. Cf. C. Schmidt, Studien zu den Pseu.do-Cte-
mentl!nen em TU 46, 1 (1929) 314-334; H. J. Schoeps, Theol-Ogie imd Geschichte des
Juden.christentums (1949) 289-296. Aparecem aí 70 presbíteros-doutôres como o
colégio dos anciãos instituido por Moisés, inteiramente como o concebiam os ra-
binos. A êsses presbíteros, e somente a êles, é entregue, depois de seis anos de
nprendizado e de prova com uma solene ordenação e um compromisso, a verdadeira
doutrina (Diarr..artyria 1.2.5; Epistola Petrf. 1-3). São ordenados pelo bispo, ao
qual :fica sujeito o estado magisterial Expressamente se caracteriza sua doutrina
como doutrina secreta <Dtamartyna 2.5) para garantir sua continuidade e defen-
dê-la contra falsificações.
190 Vita Mosea l, 4: "Mas eu recordarei o qu diz respeito a êsse homem depois
de o ter aprendido dos livros santos ... e de al da elas.se dos presbíteros; po!iJ
sempre entrelaçava o que :foi dito com o que foi. L "· Sôbre as fórmulas com
que Filão introduz tais tradições, cf. E. Bréhler, Les idées philosopMgu.es et -reli-
gteuses de Philon (1908) 55s. Uma analogia para êste modo de tradição se encontra
também nas escolas tilosótlcas; cf. Jãmblico, De vita Pythagorae 105ss.
lfl4 Guenter Bornkam.1rt

d. .Já em Orígenes não se fala mais de um magistério 11·


vrci 101 tal como aparece em Clemente Alexandrino, isto é, indepen.
cl1,11t~ embora não oposto à função clerical. Também em Origene1
<1Xh1t<', como em Clemente Alexandrino, o apêlo para as explicaçõe1
11x11g(1ticus dos antigos que são designaàos como presbyteroi 192, En·
lrc1tnnto, para Origenes aparece como evidente e importante que 01
do11ll''>n•11 11ertençam ao clero, desaparecendo assim a distinção entre
c•lciro ci magistério; êle próprio não se contentou com sua vocação
1mrn professor não-clerical - posição que ocupava em Alexandria
.. Jula11do para alcançar a ordenação como presbítero~clérico, coisa
111111 finalmente conseguiu em Cesaréia 193. Assim a situação de
Al1~xa11dria.-Ccsaréía se parece com a da Ásia Menor 194 •

fi. J•;irna evolução é encerrada de certo modo pela Didasca.lia,


Sll'úwi e as Ordenações Eclesiásticas de Hipólito. A primeira acen·
tua 1'<>111 11olene energia a precedência do cargo episcopal sôbre todo
o roHto, tal como o fêz Inácio, mas não como êste a partir do ml1·
tMlo da Igreja, mas apontando para os fundamentos jurídicos de
"'lll po:-1içfio e para as funções sacramentais, administrativas e dll•
c•lpllr1nn~H rn5; mas também os presbíteros, ordenados para o bispo
11 1111hordinados a êie, são sucessores dos apóstolos. Com isto nlo
11mi11 H•~ entende uma dignidade que lhes seja imediatamente pr6·
prl11, antes aparecem como "apóstolos do bispo" 196.

1111 IC Q11cnr,cll, Die wahre kirchliche StieHung und Taetigkeit des faallchHch
11111••1111nn.t1·n Bischofs l'ilethodius von Olympus, dissertação em Heidelbers (1053)
11111h!r11 'I"" ainda Metódio de Olimpo pertence a êsse tipo de presbítero.
tu~ l'nr.~,~r.cns em Harnack. Der kirchengeschichtliche Ertrag der e.:z:ea1U1ch111
A d1dl.rn 111~s Origenes !, em TU 42, 3 (1918) 23; II, TU 42, 4 (1919) 14.
1u:i cr. von Campenhausen 274s; id., Griechísche Kirchenvaeter (19511) 1101.
lliilm• 11 concepção origeniana de episcopado e sacerdócio, cf. Mueller (blbllol(1'1fl1)
:111n :wa.
1114 Instrutivas são as alusões de Hipólito aos "anciãos" Cf. A. Hamel, Df.I
l\ln·hr IH"i Hippolitus von Rom (1951) lOlls) como sendo os que estiveram tm
c'<>rttnrto com os apóstolos ou os seus discípulos (tal como pensam Páplas, Irlnau,
1 :l1•1111•11tc Alrxandrino); mas os presbíteros de Esmirna, excomungando D Nooto,
nlr'•m de serem os guardas da verdadeira doutrina possuem poder dlsclplln1r, 1
níw ~,.r quP. a expressão presbyteroi deva ser entendida no sentido da ant111
"l11nnfmia entre presbyteros e episkopos como um colégio judiciário de blspo1 (aulm
11111111'1, loc. cit. 172s).
11111 Ct. A. Achelis e J. Flemmlng, Die syrísche Didaskalia, em TU 2tl, 2 (1000
2'10; von Campenhausen 264-272.
IOR Didaskalia II, 28, 4; nam et ipsi tamquem apostoli et conctli((rlt-h0nor1nl•"
nt roronr1 rcclesiac; sunt enim consíiium et curia ecdesiae. (
As Orderu:içóes Eclesiásticas de Hipólito, originárias de Roma,
mas que logo foram aceitas nos livros de direito orientais 197, mos-
tram, finalmente, a imagem de um clero hierarquizado por ordena-
ções sacramentais, em que os bispos como "sacerdotes supremos" pos-
suem só êles o poder de transmitir cargos 198 e os presbíteros que
lhes são, m0ordinados como "conselheiros" e pal'ticipap.tes no .. es-
pírito da magnitude" (alusão expressa a Nm 11.16s,24sf têm -a-or-
dem sacerdotal (cap. 32 e 33) que os capacita para administrar
o batismo e para cooperar na Eucaristia (segurando o cálice, ofe-
recendo o pão) (cap. 46).

l!iT Edição de F. X. Funk, DtdaskaUa et Constitutiones Aposto?icae f (1905).


198 Na consagração episcopal vale o princípio: et p1111sbyterium adstet~:~
(cap. 68).
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S RVIR

SERVIÇO

DI CONO

por
HERMANN WoLFGANG
f ICE

A. fora do Nôvo 2'78


1. do verbo, 273
2. '-''u"M"""' no judaísmo, 275
B. 278
1. l 277
2. "Estar a serviço", 278
3. prestado à comunidade, 280
4. acs em Paulo~ 2BO
5. Exercício de 281

SERVIÇO
1. Serviço à mesa,
2. Serviço por amor, 21.ll
S. Serviço na comuni.dade,
4. Coleta como serviço, 282

A. 283
1. O que serve à me~a. 28~
2. O que serve a um senhor. 283
3. O que serve a v_rn pod:.::r M..,,.,,.,M,
4. O apóstolo como ministro
t'L Outros ministros de Cristo,
6. As autoridades como ministros de
7. Paulo como ministro da co:m;:in1dade.

B. o um na comunidade 284
1. O ca&o de diácono na Igreja primitiva, 284
2. O cargo de diaconisas, 290

Bibliografia ...... , " ..... . , ....... ~ .... , .. '> • •" • • * •• , • " ilt • • 291
SERVIR

O conceito "servir" é expresso em grego por ;diversos verbo•,


que freqüentemente nào são distinguidos muito estritamente um do
outro, mas que têm sentido bàsicamente diferente. Douleuo ühlnl ·
fica servir como escravo: o tõm está na sujeição do que serve. Tito·
raveuo sublinha a voluntariedade do serviço, o cuidado e u prt!O·
cupação que se exprime no fato de servir; por isto a palavra 6 l~""
pedalmente apta para designar o serviço prestado a Deus. Latni110
significa servir por salário; no NT e no tempo neotestnmentúrio
o têrmo recebeu o significado de cumprir deveres religiosos e r.ul~
tuais. Leitourgeo designa o serviço oficial e público do povo e <lo
estado; na Septuaginta significa serviço do templo; no cristianismo,
o da greja. Hyvereteo significa originalmente "remar"; aplicado no
serviço, exprime principalmente a relação para cem o senhor a qul'm
é prestado o serviço; em Xenofonte hyperetes freqüentemente sig-
nifica "ajudante". Diakoneo tem, em oposição a todos êsses senti-
dos, o significado especial de serviço inteiramente pessoal, prestado
a outrem. Por conseguinte está mais próximo de hypereteo; porém
o conceito de "serviço prestado por amor" aparece mais fortemente
em diakoneo.

A. DIAKONEO FORA DO NT

1. Fundamental para a compreensão do têrmo em todos os seu:i


usos é o fato de que, originalmente, êle tem um sentido concreto
bem determinado, que ecoa igualmente em todos os seus sentido~
tra.nslatos. No grego profano dia.koneo - que pela primeira vez
aparece em Heródoto e, em geral, mui raramente - significa: (a)
servir à mesa; Diodoro Siculo: "os gálatas comem assentados no
chão e são servidos (diakonountai) por meninos bem jovens" (V,
28,4) ; Atenágoras: "quando, ó Carion, serves (diakoneis) nos ban-
quetes" (IX, 21) ; cf. ainda: Aristófanes, Acharnenses (1015ss) ;
Plutarco, Virtuteni Doceri Posse 3 (II,440c). Sentidos especiais:
servir vinho (Pseudo-Luciano, De Asino 53: "assistiam-nos belos
meninos copeiros que nos serviam {àfokonoumenoi) vinho em vasos
274 He1"1nann Wolfgang Beyer

de ouro") ; preparar o banquete nupcial (Atenâgoras, IX,20: ºprc


paremos (diakonoumen) agora as núpcias"; no mesmo sentido: Ate
nágoras VI,46; Dion Crisóstomo, Orationes 7 ,65). (b) 14Jm llln·
tido mais amplo diakoneo significa: cuidar da subsistência ( Sõf0011• 1
Philoctetes, 285ss). Neste sentido também é tarefa do mulh1re1~
(.Platão, Leges VII, 805e: "os trácios e muitos outroa povoa u11m
das mulheres para cuidar do campo e do gado, paru apaRcontar o
prover o sustento ( diakone·in), em nada se diferenciando ola1 dol
servos" (Cf. Plutarco, De Adulatore et Amico 22 (II 63d): a 1n•
clã que provê o sustento). (e) À luz dêsses sentidos fundamental•
se explica o sentido geral de servir; Demóstenes: "servindo no amo"
(9,43) ; Papiros de Oxirinco: ••que serve e faz tudo o que lho 6 Ol'·
denado" (II,275,10); cf. HeródotD, ·rv, 154.
Aos olhos de um grego, servir é algo indigno. Dominar, e nAo
servir, é digno de um homem (Platão, Górgias 492b). A atitu<.lo
fundamental do grego ante o serviço é expressa pela fórmula do
Sofista: "Como poderia um ho:mem ser feliz se precisa servir "
alguém?" (ib., 491e). Platão conserva esta mesma atitude qunnclo
caracteriza o que serve como um adulador desprezível (ib., 52lab).
Negociantes, padeiros e outros, em oposição aos mestres de ginnsticii
e médicos, têm ofícios materiais que são designados como "de c~­
cravos, servos e não de livres" (ib., 518a). Só quando é em favor
do estado o serviço tem algum valor (Demóstenes 50,2; Platão, Le-
ges XII,955cd: "os que servem à pátria devem servir sem recom-
pensas"). Ern certo sentido o negociante, o mercador, o jornaleiro
prestam serviços ao estado (Platão, Respublica II, 371a ss) ,mas, a
rigor só o estadista presta êsses serviços se o fizer com inteiro
idealismo.
, O grego vê a finalidade da vida humana no desenvolvimento
completo da personalidade individual. Dec;te ponto ue vi.;La. não lJUlllJ
conipreender o sentido do serviço em favor de outrem. Em conse-
qüência, o Sofista é de opinião que o homem reto só deve servir
aos próprios desejos, com coragem e prudência (Platão, Górgias,
492a). Platão, na verdade, o contradiz, mas mantém a mesma ati-
tude fundamental com a diferença de que para êle a personalidade
individual harmoniosa deve estar harmoniosamente fotegrada no
universo (ib., 508a: "Os sábios dizem que o céu e a terra, os àeu-
ses e os homen3 mantêm a harmonia, a amizade, a moderação, a
prudência e a justiça, e por tudo isso chamam a êste universo "cos-
mo"). A forma que o "kosmos" toma na vida social é a "politeia",
vida pública, "política". Por isto o estadista, o homem público,
o político é diakonos_, "servidor da cidade", não pelo prazer de do-
minar ou de satisfazer seus desejos, rri.as por causa de um ser-
viço que lhe foi confiado e que consiste na nobre tarefa de educar
SBrvir, Serviço • DUoot10
cidadãos retos. Mas também êste serviço é pre1tado por qola
e não pressupõe renúncia de si mesmo por amor ao outro, 11Dd1'
exija alguns sacrifícios. O serviço não significa 1ntrq1 ou ..
cação, pois que não pertence às fôrças que 1u1t1ntam o •,,a
terra. ,111 "\'
• !'.... ~-

Esta cLdcepção mantém-se ainda em Arist6tel11 1 no Ult'alt


mo; apenas que, aos poucos, o sentido de polis toma uma dl...,,
ainda niais cósmica pela qual o sábio se sente como 1trv!dor d•
Deus ( Cf. Epicteto, Disserta.tiones III,22,69; III,24,615), Como ta
êle é instrumento e testemunha de Deus (ib., III, 26,2R; JV,T,10) 1,
Mas, "enquanto as expressões para "servir" se multfplfcam em li·
lação à divindade, desaparecem em relação ao próximo., li, lfl vir
dade que a consciência do serviço que o homem devo prealar 10
Criador inclui em si certa conexão com a totalidade da criaçlo; maa
os deveres concretos para com o próximo desaparecem qua11 total~
mente 3. Numa palavra: a idéia de que existimos para aervir a
outrem não cabe, em absoluto, na mente grega.
2. O judaísmo teve uma compreensão muito mais profunda do
sentido do serviço. O pensamento oriental não considera 1ndlsrno o
serviço. A relação do servo para com seu senhor é ai vnlorf zada,
sobretudo quando se trata de servir a um grande senhor. Isto valo
antes de mais nada com :respeito à relação entre homem e Deus. lb
bem característico que a Septuaginta nem conhece a palavra diakO·
nein, e traduz os correspondentes hebraicos por douleuein e - quan·
do têm significado litúrgico - por leitourgein e latreuein. O têr-
mo mais rude douleuein é empregado mais freqüentemente para dei·
crever o "serviço" prestado a Deus. ·
Filão conhece diakonein no sentido geral de servir, mas nêle
ainda ecoa claramente o sentido mais restrito e mais original de
servir; à mesa ( Cf. De Vi ta Contemplativi<L 70, 75). Aqui se sente
f àcilmente como o pensamento grego procura atenuar a dureza do
conceito judaico de serviço.

1 Deve-se notar que também Epicteto conhece o sentido original de dialecmetn


servir à mesa (Dissert.ationes IV, 7, 37). Em sentido translato diz que as
virtudes inferiores da alma devem atender (díakonetn) e servir (hyperetetnl aa
superiores (Ib., II, 27, 7.8.11).
2 Brandt, 37.
a Cf. K. Deissner, Das ldeaZbild des stoischen. Weisen (1930) lOss.
'276 Hennam:n Bêyer

Flávio Josefo aparece com três sentidos 4: (a.


à mesa (Antiquitates 11,163; 11,166; 6,52; 11,188; ºuma mu·
serve durante a : 18,74); (b) servir, no sentido de obo·
(AnUquitates 9,25; "obedecendo (diakonôn) à ordem r11l 11 1
cf. 17,140); (e) prestar sacerdotais (Antiquita.t11 7,8811
que cada família servisse (diakonft.ttlw&O A
oito dias de a ; 10,72: "servindo (na pAI• ·~
""' 1~ru\1'.A.<1 ao povo").

vv'"'"''""" como o mandamento: 11 Ama•


"""'''"'''""''"' como a ti 19.18). Isto lnclula a
do verdadeiro do próximo. No jud6'll•
mo ~-.,~r·~ De um lado, a ül1tln•
ção sempre - sobretudo no
:farisaísmo - oposições que o mandamento incon"
dicional do amor e serviço; assim a atitude condenada por
Jesus na parábola bom samaritano. outro lado, a idélo. do
"'"',.'"li''" foi perdendo a de entrega si em favor de ou-
meritória Deus. Final·
""''#A>J.•UV nonc"',,.."'" a idéia, cara ao homem Hll·
que o sob a bem dcterminndn
à mesa - não era digno do homem. Quando Rahh1rn
'"'"ª''"ª';" II, o filho de certa vez oferecia bebida a outrem
que estavam à sua mesa, o suscita admirn-
; mas Rabbi ,Jehoshua "encontramos alguém maior do quo
também serviu à mesa; era maior do que füüP., o
serviu . E um : "Se Deus põe as cohms
Rabban Gamaliel nos ser-
vir de

B. DIAKONEO

O conceito ensinado por tem suas raizcA no


mandamento vétero-testamentãrio do amor ao próximo, que junta-,
com o do amor a constitui para J esuR o
núcleo central da atitude ética do homem que se faz seu disdpulo.
isto Jesus purifica o conceito de servíço das distorções que
anf'1"<>1•<> no judaísmo. o mundo grego a posição de .Je1ms

4 A. Schlatter, Wie spra.ch Josephus von Gott? (1910), 13, pensa que em Flávio
.Tose:fo a passagem do sentido restrito de "servir à mesa" para o mais amplo
de "trabalhar segundo a vontade de Deus" - que é desconhecido da Septuaginta
- deu-se sob o influxo do verbo hebraico shim1n~m também de duplo sentido.
Mas isto não corresponde ao fato de que o sentido mais geral de "servir" já existia
há séculos no grego profano.
Servir, Serviço-e Diácono -2'!-'/ . .

para com o serviço significa algo inteiramente nôvo. O ponto de-


cisivo é que Jesus vê precisamente no serviço a atitude que faz dos
homens seus discípulos.
1. No NT diakoneo significa primeiramente, conforme seu sen-
tido próprio, "servir à mesa .. <Lc 17.8: "prepara o que vou comer
e. cingindo-te, serve-me ati,, que tenha comido e bebido"; Jo 12.2:
"fizeram-lhe aí uma ceia e Marta servia, sendo Lázaro um dos que
cHta vam com êle à mesa"). E à mesa que se evidencia o contraste
entre o homem reclinado no divã e o servidor com veste cingida -
ou a mulher que esperava para comer depois. Daí ser uma honra
excepcional para os servos vigilantes quando o senhor, de volta, os
recompensa cingindo-se e dando-lhes lugar à mesa para ê1e mesmo
nervi-los (Lc 12.37). A revolução provocada por Jesus na aprecia-
ção do serviço consiste em que êle inverte a relação entre servir e
1-1cr servido no tocante ao seu valor ético : entre os discípulos o
lu:r1oumenos, que dirige, deve ser como o díakonôn, que serve: "pois
quem é maior; o que está reclinado à mesa ou o que serve? '.Por-
ventura não é p que está deitado à mesa? Eu porém estou entre
v6s como o qu~ serve" (Lc 22.26s). ~
O homem/natural - e de modo especial o grego - responde a
pergunta "Quem é o maior, o senhor que está reclinado à mesa, ou
o servidor atento?" dando preferência àquele que é servido. A isto
.J eims opõe enfàticamente (ego de ... , eu porém) não um pensa-
mento de ordem geral como "servir é melhor que ser servido", mas
11ma realidade: "eu estou entre vós como servidor". A afirmação
í~ do líder inconteste do círculo dos discípulos, o Filho do Homem
que se sabe o senhor do Reino de Deus (Lc 22.29) e que convoca
oH <liscípulos para com êle julgarem a Israel no juízo final (vers.
20). Fica assim claro que Jesus não somente determina uma mu-
dança radical na apreciação do ser e do agir humanos, mas apre-
Henta um nôvo critério para apreciar as relações entre os homens.
Nu. atitude bem determinada do servir à mesa claramente explica o
que fêz realmente no lava-pés.
O Codex D contém uma variante de Lc 22.27s, segundo a qual
o sentido das palavras de Jesus é: "O que dirige seja como o que
serve e não como o que está reclinado à mesa; pois eu vim para o
vosso meio não corno o que está reclinado à mesa, mas como o que
serve; e vós crescestes através de meu serviço". Blass e J. Weiss 5
opinam que êste é o texto original. Porém, tal texto destrói o con-
traste agudo mitre a concepção corrente e a de Jesus, e reduz o exem-
plo impressivo da atitude de Jesus a mera sentença doutrinária. Tra·
ta-se de um nivelamento posterior.

3 Schriften des NT (1917), ad iocum.


~78 Hermann Wolfgang Beyer

sentido mais amplo diakoneo significa: cuidar da ceia. É


êste o sentido em At 6.2: "cuidar das mesas". Trata-se aí não só
de servir os alimentos mas também da provi.são e da preparação
diária das comidas. Por J. Holtzmann denomina os homens
que recebem êste encargo "ordenadores, distribuidores, provedores
de alimentos, trapezopoioi" ª· "Servir às é expressamente
oposto ao "serviço da palavra'', e inclui a direção da obra
caritativa, em oposição à pregação da palavra na comunidade.
Discute-se o como êste "serviço -· em que as
u"'"'Â)'~"'"''" eram "preteridas•• - se processava: se pela dis-
aos que tinham necessidades especiais 7, ou
refeições comuns s. O segundo parece ser o
Neste caso a das viúvas helenistas não
uma atitude em favor das mas
de opinião : se as mulheres helenistas podem par~
ticipar mesa comum, e assim pertencer à comunidade, ou não.
É bem possível que questões outras, como a atítude a lei e
o conceito de pureza, igualmente
a..,•~~ui. a entrega do das mesas a sete u,,, •...,,,.,.,,,,.,•.,
mais do que mera separação exterior
11r1o't'c•a da comunidade.

Também a atividade Marta para bem servir seu hós-


pede, é designada em Lc 10.40 - ao lado do mais restrito
Jo 12.2 - como diakonein. A sogra de também cuida
dos hóspedes sua casa (Me un e . Do mesmo
modo, a assistência que os anjos prestam a depois de sua ten-
tação (Me 1.13 e Mt 4.11) - descrita como diakonein -· signífica
que depois de jejum êles alimento a Jesus 9,
2. Assim como o sentido de "servir à mesa" sofreu no
dança na sua apreciação, também o sentido mais amplo
a serviço;, transformação Algumas vêzes aparece
a conexão com a idéia de serviço à mesa, como quando se diz
mulheres que acompanhavam a Jesus: "as quais lhe serviam com.

6 H. J. Holtzmann, Apostetgeschlchte (1901) 51.


7 Assim J. Felten, Apost'f.1lgeschichte (1892) 138.
s Assim H. H. Wendt, Kommentar zur Apostelgeschichte, 131.
\\ Assim E. Klostermann, Markus, a propósito de Me 1.13; igualmente Schniewind
(NT Detttsch. I (1933) 47) admite o sentido mais geral de "servir" e reporta-se
à história do Paraíso: "Adão é expulso do Paraiso por anjos; aos '.Messias 01
anjos se submetem", como em Jo 1.51.
os seus (Lc 8.3) 10. também em Mt 27.55; Me 15.41.
Todavia, no conceito de diakonein Jesus abrange tôda uma ampla
série de ações como: dar de comer e beber, oferecer hospitalidade,
vestir, visitar enfermos ou encarcerados (Mt 25.42-44). Assim, o
têrmo designa a totalidade da ação caritativa cristã para com o
próximo e o verdadeiro discipulado de Jesus,, poiE;_g_qu~ e cLstão
faz ao menor de seus faz ao próprio SenhorH. Por aí :fi·
ca evidente que dialconein é uma daquelas palavras que pressupõem
um "tu", perante o eu sou um diakoriôn 12. Dêste significado
fundamental à sua própria como a exprime
Lc 22.26s, e à registrada em e Mt 20.26-28:
"quem quiser tornar-se grande entre
e quem quiser ser o primeiro entre vós o servo de todos; pois
o Filho do não veio para ser servido mas para e dar
sua vida como resgate por muitos". mandamento Jesus cons-
cientemente à ordem natural, segundo a qual os chefes dos po-
como senhores e os grandes exercem o seu poder
e 20.25). O olhar e de seus discípulos não se
para o estabelecimento de ordenações humanas neste
.~ ......~~.mas para o Reino de Deus, para o tempo da Ora, o
vU.•UAAUi.v para este fim passa através de sofrimentos e Isto
determina a atitude de todos aquêles a quem Deus chama para o
seu O sentido do sofrimento consiste no serviço que através
se pode prestar. Só assim o sofrimento se torna sacrifício.
o cristão, portanto, existe só um caminho para a grandeza:
tornar-se servidor ("vosso servidor") e até mesmo escravo de todos;
Cf. Me 9.35; 10.44.
Essa transformação radical dos conceitos humanos ,de grande-
za e posição tornou-se realidade porque o próprio Filho do Homem
não veio para ser (Lc <::2.26) mas para servir. A novidade
que encontramos em l\:Ic 10.45 e Mt 20.28 é que, em oposição a Lc
22.26, se detém na serviço · à mesa, e ex-
pande o de diakonein para exprimir tôda a__ ação de ajuda
ao próximo, em têrmos de sacrifício total, de dâdiva da vida, como
um todo, numa palavra, viver e morrer pelo outro. O conceito .de
diakonein alcança, com isso, sua maior profundidade teológica. O
amor é fato na pessoa de Cristo e torna-se mandamento básico para
todos os discípulos: "se alguém me serve, siga-me, e onde eu es-.
tiver ali estarâ também o meu servidor; e se alguém me serve, meu

10 Preuschen-Bauer traduz diakanetn aqui por "ajudar alguém com suas posse»".
u A propósito de Mt 2.5.42ss, cf. Platão, G6Tgias 517d.
f
u Brandt, 'll.
180 Jlermann Wolfgang Be1Jd1'

Pai o honrará .. (Jo 12.26). O versfoulo anterior (vers. 21S) mo1tra


irrefutàvelmente que a imitação de Cristo consiste no aervlço, ao
ponto da entrega da própria vida. Servir ao próximo, a Crl1to 1
a Deus, é uma só e a mesma eoisa. A recompensa dêsae servlgo
sacrificial é a comunhão com o Pai que daí resulta.
8. Esclarece-se, destarte, o sentido que diakonein tem quando
comunidade. Segundo 1Pe 4.10 cada carisma. 6 um bem
ao homem com a finalidade de que os que o receberam
"'"'n'"W\ como graça multiforme de Deus. Vit'to
que, no da passagem , se exorta à oração e ao profundo
amor fraternal, que a gratidão para com Deus e o interêsse
próximo o gracioso que qual recebe para
servir ao próximo. Em lPe 4.11, tal como em 6, os carismas são
divididos em e serviço sendo que o úl~
timo é designado especial por diakonein. Deve provir da
fôrça que Deus concede e ser exercido unicamente para a glória de
Deus. O reto cristão não deve estar ligado a nenhuma jus-
tiça de ou a qualquer ; êle vem de Deus e

para o
e são
gação do Evangelho (At
go a Onésimo na prisão
e da causa (Fm
forme 2Tm 1.18 -
amor e não o
do têrmo -'-""'""'"
e as profecias profetas antigos
comunidade. é também o cargo comu-
nidade de é descrita por como
zida por nosso ministério" ( diakonetheisa)
4. serviço necu1iar na vida de um
grande : a coletâ para os de Jerusalém (2Co 8.19:
"nest~, graça ministrada ( diakonoumene) por -nós"; também em
8.20). Quando Paulo se a Jerusalém para a entrega das ofer-
tas, exprime o seu escopo com as palavras: "agora, porém, viajarei
Jerusalém a serviçt:' (diakonôn) dos santos" (Rm 15.25). Em
6.10 se diz, de modo semelhante, dos destinatários da carta:
"'tendo servido e servindo aos santos"; aí não se afirma que também
os destinatários tenham feito coletas para Jerusalém ou auxiliado

1a Vários manuscrito!l acrescentam ao díekonesen, serviu, a palavra moi, a


:mim, e assim referem o serviço a Paulo, como é o caso de At 19.22 e Fm 13.
de modo particular alguns ·cristãos eminentes, como sejam pregado-
res do Evangelho 14, mas se alude ao serviço fraternal comum que
os cristãos se prestam mutuamente como "os santos". ·
5. Nas pastorais diakonein significa : exercer o cargo ·de diA·
cono (cf. "diácono", a seg11ir).
1

SERVIÇO MINISTÉRIO .

Diakonia significa em tôda parte a atividade exercida em


diakonein, servir. Neste sentido aparece no grego profano e, duas
vêzes, também na Septuaginta: 1 Macabeus 11.58 ("e enviou-lhe
um serviço de mesa de ouro, chrysomata koi diakonian") 15, e Ester
6.3,5: hoi ek tês diakonias, os do serviço (Codex A); hoi diakonoi,
os servidores (Codex B). ·
No NT diakonia significa:
1. Serviço à me::;a, ou, num sentido mais amplo, prov1sao do
alimento: Marta porém agitava-se num grande serviço (Lc 10.40).
A superintendência das refeições diárias em comum na comunidade
primitiva é designada em At 6.116 como "serviço diário".
2. Qualquer prestação de serviço resultante de uma atitude
de amor. Dêste modo a casa de Estéfanas se colocou a serviço dos
santos (1Co 16.15). Segundo Ap 2.19, o amor serviçal está na mes-
ma linha de obras, amor, fé, constância. Importante para o signi-
ficado do conceito é que o cristianismo nascente aprendeu a consi-
derar e a designar como diakonia, serviço, tôdas as ocupações que
tinham alguma importância para a edificação da comunida,de (Ef
4.llss), as quais, por sua vez, eram distinguidas segundo o serviço
prestado. :Uavia diereseis diakoniôn, diversidade de serviços, que
correspondfam às diver&idades de dons e operações (lCo 12.4ss).
l!;sses diferentes serviços, contudo, são feitos para um só Senhor.
Com êles o crente serve não só ao irmão, mas a Cristo. O serviço
por êle recebido como graça traz-lhe urna responsabilidade. As
antilempseis, socorros, de que se fala em 1Co 12.28, são a designa-

H R. Asting, Die Heitigkeit im Urchristent'Um (1930) 252, s6 considera essas


duas possibilidades.
15 Kautzsch, Apokryphen 1.md Pseudegraphen I, 68.
l!l O Cod.ex D repete mais uma· vez o têrmo diakonia numa sentença que
acrescenta, para dar a entender que o serviço estava cargo sõmente de hebretis.
181 Herma:nn Wolfgang Beyer

ção, mertiante um têrmo geral, dos diferentes serviços, isto é. ações


assistenciàis ao encargo da comunidade. Em Rm 12.7. diakonio
aparece entre profecia e ensino. Mesmo o encargo mais elevado
no cristianismo, a pregação do Evangelho, é chamado diakonia (At
6.4) 11. Talvez se faça ecoar ainda aí o sentido original de dialcoma:
oferecer a palavra de Deus como o pão da vida. O serviço correto
do pregador contribui para a salvação de seus irmãos, aos quais de·
ve prestar o ministério (diakonia) da reconciliação, anunciando R
reconciliadora 5.18s). disso são os anjos:
"porventura não são espíritos enviados para o
em favor daqueles que herdarão a salvação?" (Hb 1.14).
serviço recebe todo o seu conteúdo do próprio Evan-
esfôrço para a Lei é diakonía-, ministério,
da ministério do juízo. Ao contrário, a fé na Boa Nova ó
diakonia, ministério, do Espírito, e diakonia, ministério, da justiça
(2Co 3.7-9). Nessas afirmações aparece de nôvo a tensão
dialética em que se situa também o de serviço no cristia-
nismo.
3. Em diakonia significa o exercício de deter-
minadas obrigações da comunidade. O apostclado é serviço
(Rm 11.13; 2Co 4.1; 6.3s; 11.8; At 1.17,25; 20.24: "o serviço que
do Senhor Jesus, é, testemunhar o da graça
; 21.19; 1Tm 1.12), Designa ainda o cargo evangelista
(2Tm 4.5) e a atividade de que inclui trabalho pessoal e
ajuda na obra missionária 4.11). Paulo pensa, evidente-
mente, numa determinada função quando fala a Arquipo: "cuida
do serviço que recebeste no Senhor para o cumprires" 4.17),
más não afirmar que se da função de diácono.
4. o uso que 'Paulo faz de diakonein, servirt para
signar _,a promoção de coletas, diakonia ainda as
em favor de Jerusalém. O apóstolo insiste em qne elas não são um
ato meramente exterior, mas um verdadeiro de amor (Rm
15.SOs 18; 2Co 8.1~6; 9.1,12s). De modo semelhante também em
At 11.29s; 12.25.

1'f A dillkO'flia tou logou corresponde, do ponto de vista formal, o "serviço


da Torá" (shimmum4 shet Tord): com esta expres;;ão, todavia, não se deve entender
a pregação mas o estudo da Ha:laká (Strack-Billerbeck, a propósito de At 6.4).
18 Oa :manwicritos BDG substituem diakcmia, l!erviço, por dorophorla, entrega
de dádivas.
Servir, Serviço e Diácono t88

DIACONO - SERVIDOR - MINISTRO

A. USO GERAL

Silo os seguintes os usos gerais de diakonos:


1. O que serve à mesa (Jo 2.5,9).
2. O que serve a um senhor: "o rei disse aos servidores" (Mt
22.13). Neste sentido o cristão é servidor de Cristo ( J o 12.26). À
natureza dêsse servidor pertence a prontidão de servir também a
seus irmãos (Me 9.35; 10.43; Mt 20.26; 23.11).
3. Em sentido translato, o homem pode ser o servidor de um
poder espiritual bom ou mau: de satanás, da justiça (2Co 11.14s) ;
do Evangelho (Ef 3.6s e Cl 1.23) 19 ; do pecado ( Gl 2.17) ; da cir-
cuncisão (Rm 15.8) ; do nôvo testamento (2Co 3.6). O trabalho do
servidor é em favor da pessoa ou da causa a cujo serviço está.
Quando em Rm 15.8 Cristo é chamado "ministro da circunci-
são", isto evidentemente só pode significar que sua. obra foi :reali-
zada, em primeiro lugar, em favor do povo de Israel. Mais difícil
de explicar, porém, é Gl 2.17: "Mas se nós mesmos que buscamos
ser justificados em Cristo somos achados como pecadores, será então
Cristo ministro do pecado? Absolutamente não!" Aqui se pode
traduzir dfakonos no sentido mais atenuado de "ocasionador".
Então a seqüência do pensamento seria: segundo a opinião judaica
todo aquêle que não observa a Lei é "pecador", como o são todos os
gentios, com os quais, conseqüentemente, o judeu não pode comer
à mesa; se portanto Cristo é para os judeus que o querem seguir a
Hh,,rtadío <la Lei. então Crfato faz com que Re amplie ainda mais
o circulo dos pecadores, isto é, dos que não observam a Lei. Entre-
tanto, pode-se também manter aí o sentido mais restrito de "servi-
dor (ou ministro) do pecado'', e neste caso a frase deve ser enten-
dida partindo de G1 2.20: no homem que se entrega a Cristo,
vive e age o próprio Cristo; se tal homem é encontrado como pe-
cador então" o pecado é daquele que vive nêle, o qual assim aparece
como escravo do pecado. Nesta seqüência de idéias fica- evidente que
para Paulo o conceito judaico de pecado é falso 20.
líl Não é inteiramente certo se a frase subordinada "de quem eu, Paulo,
me tornei ministro", se refere ao Evangelho ou ao Filho de Deus que, a partir
do versículo 13, domina tôda a evolução do pensamento. É de notar que os códices
S e P substituem diakonos por keryx kaí apostoios, arauto e apóstolo, enquanto
que outros manuscritos trazem os três conceitos.
!l'O Cf. H. W. Beyer, em NT Deutsch II (1933) 453s.
184 llermann Wolfgang Beyer

4. Num sentido muito especial o apóstolo, como di.ak<nws to~t


cuaggelíou, ministro do Evangelho, é dialwnos tou Christou, ministro
de Cristo, e diakonos theou, ministro de Deus (2Co 11.23), com todos
os trabalhos e sofrimentos, mas também com tôda a dignidade ine-
rente a êsse serviço (2Co 6.3ss). Para se designar, Paulo usa em
geral o têrmo doulos, escravo (Rm 1.1, etc.; 1.1), têrmo que com
maior fôrça exprime que o apóstolo é propriedade total e exclusiva
de Cristo e de Deus.
5. Timóteo é um servidor de enquanto pela pregação do
Evangelho fortalece e orienta a dos tessalonicenses (lTs 3.1-3) 21;
Timóteo é bom ministro de Cristo 4.6); Epafras é con-
servo apóstolos e ministro de Cristo 1.7). Tíquico é mi-
nistro no Senhor (Ef 6.21; Cl 4.7).
6. No exercícío seu cargo também as autoridades pagãs são
servidores Deus, já que foram instituídas por Deus e têm a ta-
refa de conservar a ordem de Deus no mundo (Rm 13.1-4).
7. O apóstolo como da comunidade (ek-
klesias) em Cl do encargo que lhe foi confiado por
Deus. Apolo e nada são que servidores de Deus e da
comunidade, ajudando-a, cada qual conforme o seu dom, para que
chegue à fé (1Co 3.5).
B. O DIÃCONO, POSSUIDOR UM ENCARGO NA
COMUNIDADE
1. Diferenh} de todos usos de diakonos é a apli-
cação do têrmo ao possuidor determinado encargo na comuni-
dade. uso encontra-se em passagens vemos o lento apa-
recimento uma eclesiástica, é, nas passagens
onde a adotou o têrmo grego cU.aconus (Fp 1.1; lTm 3.8,12),
enquanto que, modo ela traduz diakonos por 1ninfater.
Em Fp Ll encontramos pela primeira vez membros da comu-
nidade que, em de sua atividade, designados "diáconos";
aí Paulo saúda a todos os santos de Filipos syn episkopois kai diako~
nois, juntamente com os "epíscopos" e os diáconos. Transparece
aqui o caráter distintivo do encargo de diácono, o que é capital para
o seu entendimento: os diáconos são mencionados em estreita co-
nexão com os "epíscopos", e em seguida a êles. Portanto, ao tem-
21 A expressão diakonon tmi theon, ministro de Deus (1 Ts 3.2) tem diveri;as
varíantes: D d e Ambrosiastro trazem synergon tou theou, cooperador de Deus; B
só tem syn;ergon, existem ainda va:risntes onde synergos e diakQ1U}I
aparecem jun~os. a relação entre os dois, e!. Dibellus, Thessalonicherbrief,
nd ?oc-uni,
Servir, Serviço e Diácono 116

po da aos Filipenses, dois cargos na comunidade, que


estão em relação um com o outro.
atividade própria dêsses diáconos não pode ser determinada
com certeza recorrendo-se a Filipenses. É muito improvável que se
dois aspectos atividade dos mesmos homens 22; o con·
não :favorece esta das coisas e 1Tm 3.1ss, 8ss a exclui. Di-
ficilmente se pode que a descrição do encargo já se tenha
tornado nome de ofício 23. Não se diz em que consistia sua ativida·
e tentativas são para deduzi-lo do conteúdo da carta. Rel·
teradas para o fato que o agradecimento de
Paulo pelos caridosos recebidos na prisão se dirige espe-
cialmente aos e diáconos, os quais se teriam empenha-
do na sua parece realmente a explicação mais pro~
vável da nesta carta aos "epíscopos" e diáconos. E.
Lohmeyer esta ênfase à luz do escopo principal da carta,
os filipenses durante uma perseguição na qual os
aprisionados; daí a saudação especial a êles 25,
Não se demonstrar essa conjetura. Por conse~uinte é preciso
deduzir a tarefa dos diáconos do nome de seu cargo e de sua ati-
posterior.
de 1Tm 3.lss mostra que o cargo de diácono estava em
com o "epíscopos". Aí, primeiramente (vers.
se descrevem as qualidades do "epíscopo"; seguem (vers.
as exigências feitas a um diácono. Da mesma forma como os
UUh"~'"'"", ,,,,,,.a'!'Y> ser homens dignos que têm uma só
à sua casa, que são moderados no uso
de exigências que aquêle deve satisfazer
-- entre êles e da pregação da doutrina - não
impostas aos diáconos; ao contrário, os diáconos devem ser de
uma só palavra e devem ser avarentos, qualidades normalmen-
te exigidas de que visitam casas e a quem se confia a admi-
nistração terrenos. Dos bons exige-se, além disto,
algo de interior: devem o mistério da em
uma consciência
Que o dos diáconos era sobretudo administrativo e
tativo : (a) do significado original do nome que se
refere que serve à mesa, e em seguida é aplicado para todos
os que servem a outros; (b) das qualidades que deve possuir, con-

:12 Haupt, Kommentar zu den Gefangenschaftsbriefen, a.d !ocum.


23 Contra Loofs, em TH. St. und Kr. 63 (1890) 62Ss.

24 Assim :recentemente Brandt, 167s.


21> Lohmeyer, Phíliperbríef, 12.
!e86 Hermann Wolfgang Beyer

forme acima descritas; (e) de sua subordinação ao "epíscopos"; (d)


daquilo que de outros textos do NT se pode deduzir a respeito do dom
e da função da diakonia, serviço.
Mais freqüente do que a êsses pontos é o recurso a At 6 para
explicar a origem e a tarefa do encargo de diácono, embora ai fal•
te o têrmo diakonos. Partindo dessa passagem, afirma-se quo a tA·
:refa dos diáconos era a atividade assistencial, distinta do encario dt
pregar a palavra. Mas, "os Sete" aparecem como representantc1 dol
helenistas ao lado "dos Doze", e também como evangelistas que do·
batem, pregam e batizam paralelamente aos apóstolos. 1tsto fato
mostra que a origem do diaconato não se acha em At 6. Mas, pode
ser muito bem que representações oriundas do diaconato já exiHt.cn-
te tenham influenciado o autor dos Atos a dar a forma atual à nar-
rativa de sua fonte que falava da relação entre "os Sete" e "os Doze",
coisa, aliás, que êle parece já não entender bem. Portanto, At 6 s6
pode ser usado como fonte relativa para a compreensão do diaconnto.
Para a questão da origem do diaconato, deve-se tomar como
ponto de partida o fato de que êle está em conexão com o episcopa-
do, com o qual sempre é nomeado lado a lado desde as mais antigas
narrativas e do qual nunca se separou. O diakonos não só é servidor
da comunidade, mas também àe seus "epíscopos". É preciso pergun-
tar-se agora: {a) como se chegou à constituição de dois encargos
comunitários, relacionados um ao outro? (b) como os têrmos gre-
gos episkopos e diakonos se tornaram títulos que designam êsses en-
cargos?
(a) Na constituição sinagogal dos judeus havia dois cargos:
a direção do serviço divino estava a cargo do rosh hak-knesset (em
grego: archfaynagogos), chefe da sinagoga, ao lado do qua1 se acha-
va o hazzan hak-knesset, intendente da sinagoga, têrmo que em gre-
go sempre foi traduzido por h11pwretê::;, e nunca por diakonos. Se é
que existe algum "modêlo" para os "episcopos" e diáconos crisfüo::;,
êste deve ser procurado aí. É verdade que no judaísmo a atividade
do a.rchisynagogos e do hyperetês se restringem ao serviço divino. A
direção da comunidade sinagoga! é encargo dos anciãos. Existem,
além disto, coletores de esmolas (gabba'êy çedaqâ) que nada têm a
ver com o serviço divino 26. O que temos, portanto, são simples pro-
tótipos judaicos para cargos semelhantes na comunidade cristã, isto
é, os "epíscopos" e os diáconos ; mas tais cargos não têm dependên-
cia, no sentido de serem cópia pura e simples, quer de modelos ju-
daicos quer gentílicos. A fôrça criadora do jovem cristianismo era
suficientemente poderosa para criar com originalidade encargos
adaptados à sua vida comunitária e cultua!.

26 Schuerer, II (1901) 513s; Strack-Billerbeck IV 145ss; II, 643.


Servir, Serviço e Diácono 287

( h) Isto é também válido quanto aos nomes dêsses cargos.


11:11•1-1 Ho originaram no cristianismo gentílico, enquanto que o con-
1·1•i to de vresbyteros, presbítero, foi introduzido na Igreja pelo ju-
dt'lH'l'iHtianismo 27 • Mas os conceitos de episkopos e diakonos não
aparnccm no grego pré-cristão em sentido que de algum modo cor-
r1•1-1p01ala ao seu uso no grego nem são lá relacionados entre
MI, cohm tão característica do uso cristão. O
111111:011 mão de conceitos existentes, até então
mmitP t•m sentido ainda não estavam inteiramente
aír1talizados em seu que se consti-
t.u11u11 nn comunidade; lhes deu sentido que se identi-
1'11•ou d<! tal maneira com a atividade encargo que tôdas
11:1 l111i;uas do os tomaram para determinadas pes-
110:1H rm;ponsáveis por certas funções Igreja cristã 28.
O :-;ignificado profano de diakonos aos sentidos de
1/i11koueo e diakonia. Designa: "aquêle
1'11111.t•, Hiero 4,ls; Demóstenes 59,33) ao do oinochoos, copeiro,
11111t1dro8., cozinheiro (Heródoto ; Atenágoras X.17) agora.s~
t/:r, mercador (Xenofonte, Memorabilia I,5,2); "anunciador", ao
l11dn dP a!Jgelos, mensageiro, arauto, e spondophoros, anuncia-
clol' d(' trégua (Julio Po11ux, Onomastikon 8,137; Sófocles, Phílocte-
f ,·11 1!1'1); "o servidor"
1 Ethica ad Nicorru:whu1n VII, 7
p. l 1'1!l a 27; Luciano, Alexander Pseudomantis 5) ; "servidor
d1· 11m tirano" Prometheus 944); "o a,dminis-
t 1·ado1· da casa" 59,42; Aves 70ss); "o
:111hrnrnandante'' Oeconomicits 8,10,14); "padeiro,
t•nzi11lwiro, copeiro" como sornatôn therapeutai, cuidadores dos cor~
pfl:I (Platão, Górgias ; "o estadista ou político" (ib.). Co-
mo ::tili~tantivo feminino: "a servidora" (Demóstenes 24,197;
·1'1/>:2).
Na Scptuaginta a palavra
cio profano. Em Ester 1.10; 2.2; são assim
t·orlt>~:fws e os eunucos do rei mesharêth). Segundo Pv
1tl..l:t, o estulto. deve ser dia!conos do sábio 29. Em 4 Macabeus 9.17

~1 e~. o trabalho ainda atual de H. Lietzmann em Zeitschrift fuer wissens-


t'/111ftliche Theo!ogíe 55 (1914) 97ss.
~H J•'icn duvidoro até que ponto o próprio Paulo contribuiu para o surgimento
.i,.,: '" de~ignaçõcs de encargos. Em todo o caso encontram-se nêle tanto a desig-
n111;fí11 <lc obrigi.çõcs de encargos (kyb.erneseis, governos, e anti!empseis, socorros:
1 t ·,. 12.28), como a das pessoas· delas revestidas (Fp 1.1). Mas a diversidade de
1·xpr.. :1::i>cs mestra que a designação ainda era fluida, Vejam-se ainda os têrmos
•«•1 n·:.prmdcntC's proistamenoi/episkopoi, "presidentes" j"epíscopos", e kapiantes!
dl11/.011oi, "os que tr<Jbalham"/diãconos (1 'fs 5.12).
:!li Pv 10.1a só se encontra na Septuaginta.
288 Jíenna.nn Wolfnang Jlc11cr

um prisioneiro ffe diri;ro àqucloM tjUU u tlnJCt11nm clamando: "6 1441r,


vidores crimlnosoa ...
Somente um I•'lâ v io J m1afo o cunct,ltu da ditt ftmw• ó •VI h:"d"
à relação com Deuff; uAMlm tnmb6m am Kplat1to, Jl'IAvlu Jo111fn
usa ainda o têrmo nos sentido11 comum• (/&nUQu,tatt11, ft,fti 1'1Y01,1141
11.188.255). O têrmo correi~poudo uo 11no-habre&foo Nhnnr 11:Jm 1 JOll•
seu era .. discípulo e servidor do l'~lhtl* .. (A t1.ttt1u.Uat111 8 1Bft4), ..1ht1
corno os discípulos dos rabinos t1i10 t101·vkloro11 de) MOUM m11tl'H.
Ivias a si mesmo Flávio Josefo denomina Bcrvldor do J)tlUI ( /Jtt /l•lfo
rua,aiH:o 3,354), ou da vez de Deus (ib., 4,G26), om ru1.Ao dn r'1Vtt·
que recebeu a respeito de Vespasiano como futuro lmpor11·
dor 30, Em Epicteto é comum representar o cinico como 11•rvldor
de Assim, Diógenes é diakonos de Zeus (Vümertalio111·1~
III,24,65; cf. III,22,65; III,26,28; IV, 7 ,20}.
O aparece ainda nas inscrições como designação de fun-
ções ou de determinadas atividades em conexão com têrmos de ca-
ráter (IG IV,774; IG IX IX 1,487; CIG II, Add
l 793b p 982; Inscrição de Magnésia 109). Não há dúvida que em
todos êsses casos se trata de ações cultuais, oíerecimento de sacri-
fícios, dedicações, Mas a atividade diakonoi sempre per-
manece a mesma, é, a provisão e a apresentação de alimentos,
como transparece do fato de que sempre são nomeados depois dos
cozinheiros. Desta H. Lietzmann pode traduzir to koinon
diakonôn como "associação dos servidores de me-
31, Também aí não se trata de uma associação profissional pu-
ramente profana mas uma fraternidade de caráter sacral, co-
mo mostra o fato de que no comêço se fala de um sacerdote. Assim
também na Inscrição de Metrópolis, na Lídia (CIG 3037), jun-
tamente com um sacerdote e uma sacerdotisa mencionam-se diáco-
nos masculinos e femininos. as Inscrições de
sia (217), na consagração de uma estátua de Hermes tomam par-
te kerikes kai diakonoi, arautos e servidores 82 •
Dêsses segue-se que existia uma atividade cultual oca-
sional para o Mas, o caminho é ainda,Jongo para se che-
gar dêsse conceito pagão de diakonos ao conceito cristão. O que
se pode aproveitar algo das inscrições é que o sentido original da
palavra (servir à mesa) nunca se perdeu completamente. O cris 4

tianismo, nos seus inícios, adotou êsse têrmo em seu sentido bási-

ao A. Schlatter, Wie sprach Josephus von Gott? (1910) 14.


111 Zef.sdtr. f. wissenschl. Theol. 55 (1914) 107.
&2 Cf. ainda IG II 5, 768c; III 10; XII, 7, 515; Ch. Mitlwl, Recueit des Ina-
criptions 4 (1901) 1226.
Servir, Serviço e Diácono Z8fJ

co como protótipo atividade caridosa em favor dos outros,


nisso o exemplo de Jesus. É aí que tem suas raízes a vi-
va conexão entre o caráter ético do serviço na comunidade e o en-
cargo do servidor. Por outro lado, o significado fundamental do
diácono como "servidor da mesa" mostra que sua função cristã tem
na refeição em comum, isto na ceia, dentro da comuni-
dade primfüva. Só assim se a história ulterior t.ia-
cona.to, que em todos os só foi uma exterior
na comunidade, mas também participante do serviço divino.
A diáconos, em com a dos "epíscopos", só
tomou sua definitiva depois que tinham morrido os repre-
sentantes da camada carismática, isto é, os apóstolos, os
profetas e os do tempo apostólico. Segundo 1Co 12.28 a
prestação de auxílios e socorros ( antilempseis) era um dom da
graça. É interessante notar que no versículo seguinte os carismas
enumerados no são de nôvo citados como não comuns a
todos os membros comunidade, com exceção das antile1npseis, so-
corros, e kyberneseis, governos. É que para exercer êsses en-
cargos, o cristão não diretamente uma graça de Deus, mas
indiretamente da eleição e do chamamento. A passagem
primeira camada de da Igreja para a segunda - e per-
"""'"'~"''~ -- é descrita em !Clemente 42.lss, onde ocorre a seqüên-
Deus, Cristo, apóstolos e os bispos e diáconos instituídos por
Clemente vê com clareza a ruptura que se deu entre os após-
e os que os sucederam· isto tenta fundamentar em um
texto VT a instituição dos e dos diáconos, citando Is 60.17
numa versão que se afasta texto da Septuaginta: "Es-
tabelecerei seus "epíscopos" em justiça e seus "diáconos., em fide-
Hdade". não está clarificada a origem e a significação dessa
versão de 60.17 para a história das origens do diaconato cristão.
Característico é que Clemente deduz o episcopado e o diaconato da
mesma raiz. Didaquê ( 15.1) se diz com tôda a naturalidade:
"escolhei para vós bispos e diáconos", a seguir se diz que
êstes prestam o serviço de profetas e mestres ( Cf. também O Pas·
tor de Herrnas v 3,5,1 e s 9,26,2). A posição do diaconato modifi-
ca-se naturalmente com o advento do episcopado monárquico; a
tendência é ficarem vez mais subordinados ao bispo. Ao mes-
mo tempo produz-se uma clara distinção entre presbíteros e diáco-
nos. Enquanto que em lClemente 44 "presbítero" ainda é um con-
coletivo bastante indefinido para designar os líderes da co-
munidade em conjunto, agora começam a aparecer "bispos, presbí-
teros e diáconos" como três cargos, e nesta ordem (Inácio Mártir,
Magnesianos 2,1; 6,1). Os diáconos devem ser honrados na comu-
nidade como Cristo, e o bispo como Deus (ld., Tralenses 8,1). Já
;mo llcnnann Wolfgang Beycr

se vê constituída a base da hierarquia eclesiástica, que aoa pouao1


vai sendo elaborada. Os diáconos aparecem como ajudanto1 o ro•
presentantes ao lado do bispo, como Eleutero ao lado de Aniceto,
cujo sucessor é, mais tarde, o próprio Eleutero aa. Pouco antH do
ano 250, o bispo Fabiano dividiu a cidade de Roma cm 11t1 olr•
cunscrições, diante das quais colocou diáconos 34 • PreRcrlQÕll mil•
detalhadas sôbre as atividades e a consagração dos df,' co.iOI 11tlo
contidas nos Canones Hyppolyti, na Didaskalia siríaca o nn.1 Conl•
tituições Apostólicas, nas quais a evolução do diaconato da I1r1J1
antiga chega a seu fim.
2. Ao lado dos diáconos existia também a função fomlnln&&
das diaconisas. Sua história começa com Rm 16.1 onde Paulo eh"·
ma Febe "nossa irmã que é "diácono" da igreja que está nm r.on·
créia". Não consta se a designação pressupõe um cargo exercido e
bem determinado, ou se é simplesmente uma alusão de seus trnbn·
lhos na comunidade. Discute-se também se em 1Tm 3.11 se fala dali!
espôsas dos diáconos ou das diaconisas; poder-se-ia aqui ver, pois,
um segundo texto onde se falaria de sua atividade na comuni-
dade. Certo é que desde cedo se constituiu na comunidade uma
condição para servidoras femininas 35. Sobretudo as viúvas que cons-
tituíam um grupo à parte ocuparam uma posição peculiar que so
caracterizava por uma vida casta e por atividades caritativas ( 1Tm
5.3ss).
A relação entre o estado de viúva e de virgem não era unifor-
me no mundo antigo. Os dois grupos também exerciam tarefas
eclesiásticas a serviço dos membros femininos da comunidade. No
Oriente foram primeiramente as "viúvas" que exerciam essa ati-
vidade. Desde o tempo da Didaskalia siríaca existe o cargo de dia-
conisas, distinto do das viúvas. Mas no comêço da Idade Média
novamente se confundiram os dois cargos. No Ocidente nunca se
conseguiu impor dentro da Igreja Romana o cargo das diaconisas.

• • •

33 Eusébío, Hi.stórú.t Eclesiástica IV 22, 3.


:H Liber Pontificcr!is 1, 148 (Duchesne).
:i:; Cf. H. Kalsbach, Díe Kirchliche Einrichtung der Diakonissen (1926),
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H. LIETZMANN, Zur Altchristiichen Verfassti:ngsgeschichte, em Z. zur wissenschl.
Th. 55 (1914), 97ss.
L. ZSCHARNACK, D.er Dienst der Frau in den ersten Jahrhunderten der christlichen
Kirche (1902).
e. GOLTZ, Der Dienst cler Frau in der christlichen Kirche (1914).
A. KALSBACH, Die Altldrchliche Einrichtung der Diakonissen bis zu ihrem Erloes-
chen, em Roem. Qua:rtalschrift, Supl. 22 (1926) .

.
-
PEDRO

por

ÜSCAR CULLMANN
fNDICE
PEDRO
A. Questões filológicas
B. A pessoa do discípulo e sua posição entre os Doze . . ...
1. Traços biográficos, 293
2. A posição peculiar de Pedro, 299
3. A mudança do nome, 301

C. Pedro, a rocha sôbre a qual é edifica.da a Igreja ..... .


1. A questão da função apostólica, 302
2. O logion de Mt 16.17-19, 304

D. A direção da comunidade primitiva e a primeira ativi-


dade missionária de Pedro ..... ...... . . . ........... .
E. Atividade missionária ampliada e fim de Pedro
Bibliografia
PEDRO
A. QUESTõES FILOLóGICAS

A palavra petros só aparece no NT como apeiido de Simão, um


dos discípulos de Cristo, com exceção de J o 1.42 onde é usada co-
mo tradução da palavra aramaica kephas.
Além do apelido petros, o discípulo ainda é chamado Sy-meon.
Simon e Kephas. A opinião de que o Cefas (Kephas) de Gl 2.11 é
um discípulo e um apóstolo outro que não Pedro e pertencente ao
círculo dos Setenta, é sem fundamento; trata-se, além disto, de uma
tese com interªsses polêmicos e que desde o tempo de Clemente de
Alexandria encontra renovados defensores 1.
O nome de nascimento do discípulo é Simeão (shim:on), nome
hebraico muito usado entre os judeus. Transcrito em grego (Sy-
meon) só aparece em At 15.14 e em alguns manuscritos de 2Pe 1.1 2 •
Os Evangelhos trazem o nome Simão (Simon), nome próprio grego
já atestado em Aristófanes (Nubes, 351) 3 , O discipulo terá sido
assim chamado porque o nome grego soava semelhante ao hebraico
e assim se oferecia como substituto óbvio do semítico Simeão. É
possível que desde o início Pedro tenha usado ao lado do nome he-
braico o nome grego, sobretudo se é originário, como Filipe, de Bet-
saida, cidade de marcada influência helenista (Jo 1.44) 4.
O discípulo Simeão (Simão) tem além disto nas fontes neotes-
tamentárias um segundo nome: Kephas. Trata-se da palavra ara-
maica keyphâ transcrita para o grego.

1 Eusébio, História Eclesiástica I, 12,2: sôbre as listas dos nomes dos apóstolos,
cf. Th. Schermsrin, Propheten-und Apostel!egenden nebst Juengeskatalogen (1907)
302. Em tempos recentes, mais uma vez D. W. Riddle, The Cepllas-Peter Problem,
and a Possible Solution, em JBL 59 (1940) 169.

:i A identidade entre o Simeão de At 15.14 e Pedro é contestada cá e lá.


3 Blass-Debrunner § 53,2; A. Fick-F. Bechtel, Die grich. Personennamem
(1894) 30, 251; A. Dcissnrnnn, Bibelstudien (1895) , 184, nota 1.
~ G . Dalman, Orte und Wege Jesu. (1924) 177; "Quem cresceu em Betsaida
não só entendia grego, mas também, pelo contacto cem estranhos, devia estar
familiarizado com a cultura grega".
:t!JR Oscar Cullmann

Esta palavra não aparece no aramaico como nome próprio, co-


mo alguns já conjeturaram s, mas é um substantivo comum que sig-
nifica "rocha'', "pedra". Esta designação aramaica, transcrita em
grego, é encontrada sobretudo em Paulo - com exceção de Gl 2.7s,
onde está Petros 6 - Gl 1.18: 2.9,11,14; lCo 1.12; 3.22 : 9.5 ; 15.5.
A palavra aramaica recebe a terminação grega -s. Transcrito para
o grego o nome se torna Kephas (e em latim Cephas): "Cefas, que
se traduz Pedro" (Jo 1.42) 7. Petros, por ser masculino, se adapta-
va melhor ao discípulo do que a forma feminina petra, mais lite-
ral, e que na Sept uaginta aparece como tradução do equivalente he-
braico keph (Jr 4.29 e Jó 30.6). Contudo, a diferença de sentidos
dos dois têrmos gregos não é constante, embora no uso grego co-
mum petros designe de preferência "rocha", no sentido de bloco ro-
choso separado e petra o "rochedo" como tal (cf. págs. 323s) .
O têrmc grego Petros se impôs no NT 8 • Os Evangelhos ora
dizem Simon, ora Pet,-os, e ora Sinwn-Petros. O fato da tradução
confirma a opinião de que kephas não era nome próprio, mas a de-
signação de uma realidade, já que um nome próprio não se traduz.
Isto, aliás, deveria ser imitado nas traduções para as línguas ver-
náculas a fim de fazei· sentir a fôrça do apelido t al como ainda a
sentiam os autores e leitores antigos do NT: "Simão Rocha".

B. A PESSOA DO DISCfPULO E SUA POSIÇÃO ENTRE


OS DOZI~
l. Traços biográficos. Simão é filho de Jonas 9 e provàvelmen-
te originário de Betsaida, "cidade dos pescadores" (Jo 1.44), pe-

" _·1.s~im Znhn, Matthaeus, a propósíto de ~'1'.t 16.18, sem contudo fornecer prova.
TRmbém M. J . Lagrange, Évangilc se!on Saint Matthieu (1923) ad !ornm, sustenta
o mesma coisa sem contudo prová-la.
G Aqui escreve Petros porque talvez cita um documento oficial. Contra todos
os textos, A . Merx sustenta que originalmente aí estava a palavra Kephas (Die
v ier kanonisch.en Evange!ien II, 1 (1902) ad locum).
7 Petrus como nome próprio (abreviação de Petronius) dificilme nte se encontra
cm tempos pré-cristãos. Merx, op. cit., 160, tentou provar sua existência, recorrendo
a Flávio Josefo (Antiq11itates 18, 6), onde o exemplo não passa de um êrro
de cópia, em lugar de protos. Cf. também A. Meyer, Jesu Muttersprache (1896) 51.
Contra essa tese: A. De!!, op. cit., 14-47.
8 A t·xistência em arnmaico do nome próprio petr6s (cf. Strack-Billerbeck l,
530) que talvez significasse "primogênito" (cf. Levy, Woerterb., sub voce peter;
Dalman, Woert., sub voce), pode também ter influenciado na preferência pela forma
petros; mus nada há de certo sôbre essa hipótese.
11 O aramáico bar-yonâ - que geralmente é explicado cm têrmos de yonâ =
Joannes (Jo 1.42; 21.15) - é interpre tado como significando "extremista" por
R. Eisler, !~sous basi!eus ou basi!cusas II (1930) 68.
Ped1·0 2!J!J

quena localidade judaica de influência grega, na margem ori'11il 111 tio


.Jordão 10 • Era um homem "inculto", que não estudara, m 111 H1•g11111lo
os critérios rabínicos, nem gregos (At 4.13), mas trabalhava l'111110
simples pescador (Mt 1.16 e paralelos; Lc 5.2; Jo 21.3) cm .. coni•
panhia" (Lc 5.10) dos dois filhos de Zebedeu. Posteriormentt~ 11111e
rou em Cafarnaum (Me 1.29 e paralelos). Aí Jesus se hospeda 4-'111
sua casa e talvez tenha até morado por algum tempo com êle ( Mt
8.14). Segundo Me 1.29-31, e paralelos, e lCo 9.5, Pedro era cuHa·
elo. As narrativas posteriores sôbre seus filhos e o martírio de sutL
mulher são, porém, legendárias. Parece que Pedro, como seu irmão
André, antes de se ligar a Jesus pertencia ao circulo dos discípuloH
de João Batista, como se pode inferir de Jo 1.35-42.
2. A posição peculiar de Pedro. Conforme os sinóticos, den-
tro do grupo {}Ue cercava a Jesus. Pedro ocupava importante posi-
ção. Juntamente com os dois filhos de Zebedeu e seu irmão André,
pertence ao círculo mais restrito e íntimo daqueles que seguiram a
Jesus. Até mesmo dentro dêsse círculo já tão restrito (Me 9.2 e pa-
ralelos), Pedro chega a ocupar significativa posição de preeminên-
cia, de modo que os Evangelhos sinóticos sempre o mostram no pri-
meiro plano do grupo (Me 9.5). Só a êle e aos filhos de Zebedeu
permite Jesus entrada na casa do chefe da sinagoga (Me 5.37); tam-
bém na história ela pesca miraculosa Pedro aparece como o persona-
gem principal (Lc 5.lss), e conforme Mt 14.28 procura imitar o seu
Senhor que caminha sôbre o mar. Distingue-se pelo seu excesso de
zêlo e prontidão, mas também pelas fraquezts. Faz-se porta-voz dos
Doze 11 e deve escutar as duras palavras: ••Afasta-te de mim sata-
nás, não pensas o que é divino, mas o que é humano" (Me 8.29-33 e
par.), sendo-lhe, assim, dirigido o que é válido para todos os discí-
pulos (" ... e olhou os seus discípulos ... " Me 8.33). Em nome de
seus condiscípulos formula a questão casuística: "Senhor, quantas
vêzes perdoarei a meu irmão? até sete vêzes?" (Mt 18.21). Recebe
ordem de, juntamente com João, preparar a ceia pascal (Lc 22.8).
No Getsêmane, como os outros, não é capaz de seguir o conselho de
J'esus de vigi~r uma hora pelo seu Senhor, o que faz com que Jesus
dirija a êle e aos filhos de Zebedeu urna pergunta de censura (Me
14.37; Mt 26.40). Pessoas de fora, como os coletores de impostos
(Mt 17.24), dirigem-se para êste personagem mais representativo
do círculo de Jesus. Esta posição especial é atestada também pelas
listas dos discípulos (Me 3.16; Mt 10.2; Lc 6.14; At 1.13), que em

10 Cf. nota 4.
11 Sucede também que num evangelho só Pedro fala, enquanto que no texto
paralelo falam todo:; os discípulos: Me 7,17; Mt 15.15; Mt 21.20 e Me 11.21.
300 Oscar Cullmann

alguns pontos divergem entre si, mas unânimemente colocam Pedro


no primeiro lugar (Mateus o designa protos, o primeiro), confir-
mando assim as narrativas evangélicas sôbre o papel de Pedro. É
sobretudo significativa a expressão "Pedro e os seus" em Me 1.36
e Lc 9.32 (8.45, segundo alguns manuscritos), bem como a palavra
do anjo em Me 16.7: "Dizei a seus discípulos e a Pedro".
Não existe diferença no tratamento da pessoa de Pedro entre
os Evangelhos sín6ticos. É verdade que os traços acima mencionados
não foram conservados da mesma forma pelos três Evangelhos; po-
rém, encontram-se mais ou menos na mesma proporção em todoR
êles. Assim, Marcos não registra a palavra sôbre a Igreja (Mt
16.17-19), nem tenta ocultar as fraquezas de Pedro, não obstante,
o conjunto de suas exposições não deixa dúvidas sôbre a posição es-
pecial que se atribui a Pedro 12. Também não tem sentido afirmar
que lVfateus tinha interêsse especial pela pessoa de Pedro 13 , já que
só êle :registra o episódio da rocha sôbre a qual será edificada a Igre-
ja, enquanto que Lucas nada diz a respeito do significado de Pe-
dro como fundamento da ekklesia. Com efeito, a palavra de Lc
22.31s ("Simão, Simão, eis que satanás pediu para vos peneirar co-
mo trigo. Mas eu orei por ti para que tua fé não vacile; e tu quan-
do te tiveres convertido, confirma teus irmãos") 14 oferece um pa-
ralelo para :Mt 16.17-19 15 enquanto confia a Pedro, no futuro, uma
tarefa com respeito aos irmãos, embora êle seja visto em conjunto
com os outros discípulos e participe de suas fraquezas.
Uma imagem diferente nos oferece o Evangelho de João, onde
a preeminência de Pedro, não duvidosa nos sinóiicos, torna-se um
problema. O misterioF<o e anônimo "discípulo amado" de Jesus entra
em certo sentido em concorrênci~om Pedro, o que pode ser expli-
cado por um interêsse particular do autor. A posição especial de
Pedro não é contestada ( J o 1.42; 6.68) , mas subordinada dentro do
interêsse do autor à intimidade do discípulo amado com Jesus. Jus-
tamente isto é uma prova da firmeza da tradição sôbre o lugar
-!'

12 R. Bultmann, Die Frage nach dem messianischen Bewusstsein Jesu und das
P,eirusbekenntnis, em ZNW 19 (1919/20) 170, fala de uma "animosidade" de Marcos
contra Pedro; pelo contrário, M. Goguel, L'1füise primiti.ve (1947) 191, afirma que
não há nenhum traço de antipetrinismo em Marcos.
1& H. Strathmann (cf. bibliografia) 223s, admite diversidade de atitudes nos
diferentes Evangelhos a respeito de Pedro, conforme a igreja em que o respectivo
Evangelho se originou.
14 Variante: "converte-te". Stauffer (cf. bibliografia) 20, nota 58, apresenta
diversas razões para se preferir esta variante.
15 Cf. infra, pág. 305,
Pedro .'101

ocupado por Pedro entre os outros discípulos. Enquanto êstcR fi-


cam na sombra, a concorrência entre o discípulo amado e Pedro
aparece plenamente na história da Paixão: na última ceia o dis-
cípulo amado reclina-se sôbre o peito de Jesus (13.24ss) e Pedro
precisa dirigir-se a êle para conhec_er um pensamento oculto de
Jesus. Mais tarde "o outro discípulo que conhecia o sumo-sacerdote"
entra com Jesus no palácio e só depois de voltar introduz a Pedro
(18.16), que por esta ocasião nega a Jesus. Debaixo da cruz en-
contra-se somente o misterioso discípulo (19.26). Mas é sobretudo
a significativa cena do sepulcro (20.1-10) que nos abre a porta pa-
ra a compreensão do tratamento dispensado pelo evangelista aos
dois rivais: Pedro, ativo e impulsivo, entra no sepulcro; o discí-
pulo amado de Jesus, que chegou primeiro, só entra depois dêle, mas
crê primeiro, logo que vê 16, Desta passagem também se derrama
luz sôbre Jo 1.41, onde a divergência dos manuscritos (protos, pri-
meiro, proton, primeiramente) mostra que desde cedo se reparou que
o quarto evangelista se interessava na questão da precedência; assim·
também se compreende o capítulo 21 (um verdadeiro post scriptum)
onde o "primado" de 'Pedro é contraposto ao do discípulo amado
que tinha outras características. Por consegu~nte, o Evangelho de
João indiretamente confirma o testemunho sinótico a respeito da
posição especial de Pedro, justamente porque tende a fazer sobres-
sair o discípulo amado. Assim o autor, desde o início, informa-nos
sôbre a mudança de nome: "Tu serás chamado Cefas" (1.42).
3. A mrudança de nome. É sem cabimento atribuir a mudança
de nome de Simão aos seus condiscípulos e relegá-la para o tempo
depois da Páscoa pelo fato de que Pedro teria visto primeiro o Se-
nhor 17, embora seja verdade que o próprio Jesus tenha sempre cha-
mado o discípulo pelo seu nome Simão. Em todo o caso é difícil
precisar em que ocasião Jesus ihe apôs o apelido de "Rocha". Acaso
esta mudança de nome deu-se no momento da confissão que Simão
fêz de Jesus como Messias, em C~aréia de Filipe, onde Jesus tam-
bém explicou a mudança de nome? Ou foi por ocasião do chama-
mento dos discípulos, como narra Me 3.16? Uma ocasião ainda an-
terior deve ser considerada conforme J o 1.42: a mudança se deu
já no primeiro encontro de Jesus com Simão. Sôbre êste ponto não
é possível chegar a uma certeza, visto que a lembrança das circuns-
tâncias do fato parece ter-se perdido cedo. A tradição evangélica

16 Para o quarto evangelista isto constitui o siríal do genufno discípulo. Cf.


O. Cullmann, em Festschr. fuer M. Goguei, Aux sources de la Tradition chrétienne
(1950) 56s.
17 Cf. Goetz (c:I'. bibliografia) 67 e E. Hírsch, Fruehgeschíchtie des Evangelium1
II 0941) 306.
302 Oscar Cullmann

só conservou o fato de que Jesus distinguiu a Simão entre os Doze


pelo apelido "Rocha". Conforme os exemplos do VT (Gn 17.5,15;
32.29; Is 62.2; 65.15) e o uso dos rabinos, os apelidos significam a
promessa de uma nova situação, ou obrigam seu portador a assu-
mir um detexminado encargo 18, que, no caso, não tem explicação
exclusivamente no caráter de Pedro 19. Ê verdade que Jesus conhe-
cia o zêlo, a coragem, a atividade do discípulo, bem como a sua co-
vardia e a tendência ao fracasso - tôda essa gama do seu forte
temperamento - quando lhe deu o apelido; mas, por outro lado,
essas qualidades· e defeitos só aparecem em plena luz na execução
do encargo a êle confiado.
Portanto, se t:>dos os Evangelhos reconhecem em Pedro o pa-
pel de representante dos discípulos, não se deve esquecer que esta
posição é ocupada sõmente enquanto êle está em conexão com Jesus
e nunca separado dêle, como é o caso, por exemplo, na literatura apó-
crifa sôbre Pedro.

C. PEDRO, A ROCHA SôBRE A QUAL É EDIFICADA A


IGREJA

1. A quesr:ao da função apostólica, abstraída de Mt 16.'17-19.


A posição especial de Pedro não significa autoridade sôbre os outros
discípulos durante a vida de Jesus. Mas depois da morte de Jesus
cabe-lhe, por a,lgum tempo, a direção da comunidade nascente ( cf. in-
fra, págs. 311ss). Pergunta,-se: esta posição de Pedro na comunidade
de Jerusalém é fundamentada na distinção a êle conferida por J e-
sus tal como aparece na mudança do nome e em Lc 22.31s, ou num
encargo a êle confiado pelo Ressuscitado, analogicamente à vocação
de Paulo 20 ? É certo que o encargo confiado pelo Senhor Ressusci-
tado (Jo 21.15ss) tem grande importância para fundamentar o apos-
tolado petrino, mas isto enquanto reflexo do chamamento ocorrido
durante a vida de Jesus. E!~ lCo 15.5 e Lc 24.34 são mencionadas
as apl\rições do Senhor a Pedro, dando-se aí a entender que êsse
pressU:posto importante, mas não exclusivo 21 , da. vocação apostólica

18 Cf. "Boanerges" em Me 3.17. Sôbre o uso rabínico, d. P. Fiebig, Die


Gleichnisreden Jesu im Lichte der rabbinischen Gleichnisse des n.eutestamentiichen
Zeitalters (1912) 53.
19 Assim sobretudo Sieffert (cf. bibliografia) 53.
20 Sôbre a questão da necessidade de um chamamento especial para o cargo
de apóstolo pelo Ressuscitado, cf. A. Friedrichsen, The Apostle and His Message,
em Uppsala Universitets Arsskrift 3 (1947) 3-23.
21 Ver sobretudo H. von Campenhausen, Der urch:rist!irhe Aposteibegriff, em
Studia Theologica 1 (1948) 112s.
Pedro 903

de Pedro toca-lhe de modo todo especial. Partindo de lCo 15.5 e


Lc 24.34 não se pode provar que a aparição do Ressuscitado signi-
ficava para Pedro a confirmação expressa de sua função de após-
tolo; mas é Jo 21.15ss que relaciona com ela a tarefa especial de
"pastorear as ovelhas". É em todo o caso particularmente impor-
tante que em 1 Co 15.5 Paulo apresente a Pedro como primeira tes-
temunha do Ressuscitado 22. No breve informe de Lc 24.34, onde
os discípulos que voltam de Emaús a Jerusalém comunicam aos ou-
tros que "o Senhor de fato ressuscitou e apareceu a Simão", isto
é indiretamente confirmado. É, contudo, estranho que os Evange-
lhos não nos informem expressamente sôbre esta aparição.
Segundo Me 14.28 e Me 16.7 é bem possível conjeturar que na
conclusão perdida do Evangelho de IVfarcos estivesse a narração dêsse
fato 23 , o qual, por sua vez, forneceria a base de Jo 21.15-23 24 • Mas
não é possível alcançar certeza sôbre êste ponto 25. Só restam ves-
tígios dêsse acontecimento, do que decorre a pergunta sôbre as cau-
sas do quase total desaparecimento dêsse fato nas narrativas evan-
gélicas. Devem-se buscar essas causas de preferência nos esforços
dos judeu-cristãos em diminuir o valor das aparições como funda-
mento do apostolado. Esta tendência surgiu em contraposição à
atitude de Paulo que fundamentava o apostolado unicamente nas
aparições. Nas pseudo-clementinas (Recognitiones II,62 e Horriiliae
17,19) encontra-se um testemunho explícito sôbre êste ponto 26.

::i2 K. Kattenbusch, Die Vorzugste!lung des Petrus tmd der Ch(nakter der
Urgemeinde zu Jerusalem, em Festgabe fu.er K. Mueller 0922) 328; id., Der Spru.ch
ueber Petrus und die Kirche bei Mt, cm ThStKr 94 (1922) 130, nega-o sem razão
ao tentar interpretar o ,eita, depois, não em sentido cronológico. Para a enumeração
em 1 Co 15.5-8 a seqüência tem valor histórico evidente. Também A. Harnack,
Die Verklaeri.ingsgeschichtc Jesu, em SAB (1922) 63; Goetz (e!. bibliografia} 4s,
e Stauffer (cf. bibliografia) 8-9 deram a devida importância ao fato d!! que Pedro
viu o Ressuscitado em primeiro lugar.,f
23 De Me J4.28 e 16.7 se pode deduzir, com segurança, tal ?Parição. Tanto
Stauffer (e!. bíbliografia) 11-12, como Goetz (cf. bibliografia) 73, contam com
esta possibilidade, K. L. Schmidt, Kanonische und Apokryphe EvangeHen una
Apost,elgeschichten (1944) 27, e N. B. Stonehouse, The Witness of Matthew anã
Mark to Christ (1944) 86, afinnam que as palavras ephobounto gar, pois tinham
mêdo, são a conclusão do Evangelho.
2.1 Assim já A. 1/feye:r, Die Aufstehung Christi (1905) 168.
!lú O. Cullmann (d. bibliografia) 62s.
20 O. CulLvnann, Les problemes littéraire et historique du roman pseudo-clií-
mentin (1930) 248s; C. Holsten, Die Messiasvisíon des Petrus und diie Genesis des
petrinischen Evcmgeliums 0867) 120. Os escritos ext:racanônicos contêm multo
material sôbre a visão de Pedro. Cf. G<>etz, op cit., 89-93.
304 Oscar Cullniann

Tal silêncio, contudo, não diminui o de que Pedro recebeu


seu encargo durante a vida terrena de Jesus e que depois da Res-
surreição do Senhor êste encargo foi confirmado pela primeira apa-
rição de Cristo, tendo sido dêste modo, implicitamente, estabelecido
como o primeiro líder da comunidade cristã.
2. O logion de J.11.t 16.17-19. a. O contexto do logion - A
em que estão contídos os versículos sôbre e a Igreja
em Mateus, aparece também em Marcos e Lucas, mas
contextos dos versículos em Em Mateus o sôbre a
rocha à confissão do messiânico de Jesus por Pedro,
em Filipe, enquanto que os outros dois
ferindo-se ao episódío da desconhecem o logion a
rocha.
A sem dúvida em Marcos na sua for-
ma original. Demonstram~no a descrição curta e muito concreta e
sobretudo a central que Marcos dá à sua perícope no con-
junto de seu Jesus, que até não permitira nenhu-
ma conversa sôbre a sua natureza messiânica, toma agora a inicia-
tiva da questão. Pedro a resposta em nome de todos: *'Tu
o Cristo". que lhes proíbe aos outros a res-
do assunto, explica-lhes a sua concepção de em opo-
à concepção cm·rente entre o povo e às dos pró-
díscípulos. Êstes de se escandalizam Pedro leva
à parte para sêriamente a dessa con-
inteiramente nova ; :êles, os tinham
a Jesus crendo-o como sim, mas de totalmen-
te A brusca repulsa de "longe de mim, satanás",
encerra a cena em Marcos 27.
Mateus, ao contrário, muito o poder de impacto do
acontecimento no decurso de sua pois já colocara nos lá-
bios dos uma confissão anterior (Mt 14.33}.
do ponto de da téenii"a de não tem a mesma precisão
que Matcos 2a. Tufas deve-se ainda perguntar se, pela continuação

27 A revolta de Pedro é o núcleo de tudo o que sucedeu em Cesaréia de Filipe,


e não uma nova narrativa, como pretendem Bultmann {cf. nota 12) 169-173; id.,
Geschichte der syn. Trad. 277; K. L. Schmidt, Der Rahmen der Geschichte Jesu
{1919) 217-220; W. Michaelis, Das Ev. nach Mt (Prophezeí) II (1949) 339. A
relação dêste fato com o que o prec~de aparece precisamente em que se mostra
a grande diferença de concepções a respeito do Messias, mesmo quando êle é
confessado; tarr:bém Pedro, o porta-voz da confissão, partilha da concepção "dia-
bólica".
28 Assim, por ex., Mateus antecipando a resposta, escreve: "Quem dizem
os homens ser o Filho do Homem", enquanto que Marcos diz, certamente com
maiores traços de autenticidade: "Quem dizem os homens que eu sou".
Pedro :w;;

da narrativa, isto é, pela palavra dirigida a Pedro, o autor não in-


terrompeu a seqüência dos acontecimentos. Há razões para se con-
siderar o elogio dirigido a Pedro como um corpo estranho numa nar-
rativa em que a opinião de Pedro sôbre o Messias é considerada
satânica. Em Marcos o ponto central consiste precisamente na va-
lidade, ou não, do conceito messiâni<'o de Pedro. Em Mateus, porém,
a afirmação de Jesus de que o \.,.mteúdo da confissão de Pedro-lhe
foi revelado pelo Pai que está nos céus, dificilmente se harmoniza
com a veemente condenação que se segue.
Assim, é provável que Mateus tenha buscado um lugar apro-
priado para situar uma palavra de Jesus, dirigida a Pedro e trans-
mitida oralmente, pensando tê-la encontrado na, confissão de Pedro,
levado pelo paralelismo formal de "Tu és o Cristo" e "Tu és Pe-
dro".
Agora, quando procuramos o contexto original de Mt 16.17-19,
nosso pensamento volta-se primeiro para Jo 21. 15-23; neste caso
Mateus teria transposto a aparição de Cristo aí narrada para dentro
da vida terrena de Jesus 29. Por mais sedutor que seja êste modo
de ver, é contudo improvável que Jesus nunca tenha explicado o
apelido de Simão durante sua vida. Por isso é mais lógico procurar
o contexto original dessas palavras em Lc 22.31s, onde encontramos
um exato paralelo de Mt 16.17-19.
O diálogo de Lc 22.31-34 encerra o propósito de Pedro de ir
com Jesus para a prisão, a predição das negações de Pedro por par-
te de Jesus e a exortação para fortalecer os irmãos. Jo 21.15-23, que
vem à baila como paralelo direto de Mt 16.17-19, pressupõe na vida
de Jesus uma cena semelhante à descrita em Lc 22.31-34, e, na ver-
dade, a passagem só pode ser entendida a partir da descrição em
Lucas. Em lugar da tríplice negação de f'edro, entra aí uma trí-
plice afirmação: "Sim, Senhor, tu sabes que te amo". Ao propó-
sito de Pedro em Lucas corresponde, em João, a profecia do mar-
tírio. Em lugar da exortação de confirmar os irmãos coloca-se a
incumbência de pastorear as ovelhas de Cristo.
Assim a relação entre os três passos (Mt, Lc, Jo) é. a seguinte:
Jo 21.15-23 pressupõe o conhecimento de uma narrativa da Paixão
na qual, por ocasião da insistência de Pedro de seguir o seu Senho1·
até a morte, Jesus lhe prediz as negações e, ao mesmo tempo, sua
conversão e o estabelecimento do "rebanho" sôbre êle, como rocha.
Ora, a relação entre essas duas predições encontra-se em Lc 22.31-34.
Mateus deve ter usado uma tradição especial, poss'ivelmente conhe-
cida do autor de Jo 21.15-23, que pressupõe o que se diz ai, pois a
imagem das ovelhas que Pedro deve apascentar implica a imagem

w Assim sobretudo Stauffcr (cL bibliografia) 26.


.fJ06 Oscar Cullmann

do rebanho, e êste conceito, por sua vez, é afim ao da Igreja em


Mt 16.18 (cf. infra,, pág. 308).
Assim, a palavra de Mt 16.17-19 possivelmente pertence à his-
tória da Paixão, e está ligada à predição da negação de Pedro depois
da última Ceia, na véspera da crucificação. Se êste é o contexto
provável e original, surge, a seguir, a questão da autenticidade e
do significado do logion.
b. A questão da autenticidade - A discussão sôbre a auten-
ticidade dessa passagem sôbre Pedro arrasta-se desde o século XIX,
e conquanto ocupe um largo espaço na exegese, os estudiosos nunca
chegaram a um acôrdo sôbre ela 30 •
A única coisa que quase unânimemente se admite é o caráter
semítico da perícope 31. Êle demonstra que êsses versículos não po-
dem ter surgido originàriamente na diáspora grega, pois o jôgo de
palavras aí existente só aparece em plena luz na forma aramaica
onde, diferentemente do texto grego que recorre a dois têrmos,
petra e petros, nas duas vêzes se emprega keyphâ 32 • Também a
designação do pai de Pedro por meio da expressão Bar-J ona; a ex-
pressão "carne e sangue" em lugar de "homem" 33; o ritmo estrófico;
a imagem da rocha como fundamento, para a qual na literatura
rabínica se encontra um paralelo exato (Abraão como rocha do
mundo; d. pág. 329) 3 4, testemunham o caráter semítico do
logion, o que prova sua antigüidade 35 •
::o Sôbre a história da exegese recente cf.: J. R. GeiseLmann, Der petrinisch.e
Primat (Mt 16.17), .o,eine neueste Bekaempfung und Rechtfertigung, em Bibl. Zeitfr.
12, 7 '1927); K. L. Schmidt, artigo ekk!esi<i, (supra, págs. 38-50); R. Bultrnann, Die
F'rage nach der Echtheit von Mt 16.17-19, em Th. B!. 20 (1941) 265-267; A. Oepke,
Der Herrenspruch ueb.er die Kirche lVIt 16.17-19 in der deutschen Forschung, em
Studia Thieologica 2 W.l50) 110-165; O. Cullmann (cf. bibliografia) 181-190.
:n A. Harnack, Der Spruch 11eber Petrus als den Fe!sen der Kirche (Mt 16.17s)
em SAB (1918) 637.
;12 M. Goguel, L'Églíse 1w..fasante (1947) 189, nota 4, pensa que ê·ste argumento
não é absolutamente decisivo, visto que num jôgo de palavras a correspondência
não precisa sêr perfeita.
;n No NT: 1 Co 15.50; Gi 1.16; Ef 6.12; Hb 2.14; no VT ainda não existe a
0xpress5o, mas sim na literatura judaica; Sir 14, 18 e muitas vêzes ainda como
te1miPus technicus na literatura rabínica (Strack-Billerbeck I. 730 e K. G. Kuhn,
peirasmos - hamartia - sarx, im. NT, em ZThK 49 (1952) 209.
:t·! J . Jeremias, Golgotha (1926) 73; com razão aponta ainda Dn 2.34s e 44s.
sr. O fato de só Mateus registrar o iogíon implica também na origem palestinense
da tradição (W. Michaelis, cf. nota 27, ad !ocum). Em favor da grande antigüidade
da tradição fala iguahnente a consideração de que ela dificilmente teria sido
transmitida num tempo em que Pedro já não estava à testa da comunidade de
Jerusalém e cm que Tiago já era chefe. Admite-se que origem palestinense
e alta antigüidade não são provas de autenticidade, mas pressupostos.
Pedro .•wr
Mas, Jesus falar de uma Igreja a ser estabelecida segun~
do o seu ? Esta é a objeção principal que desde muito se faz
contra a autenticidade. Mas antes de responder à pergunta, em si
justificada, seria bom desfazer-se de todos os conceitos posteriores
de "igreja" e entender ekklesia no seu sentido judaico de "povo de
Deus" 36. Antes de mais nada deve-se ter presente que a palavra
ekklesia é usada mais cem vêzes na Septuaginta ( cf. também
At 7.38). A constituição de um nôvo povo de Deus faz parte das
messiânicas. É certo ·que a concepção sôbre o povo
de é bastante das idéias comuns dos judeus a res-
peito, e centralizada na noção do Remanescente de Israel, das "ove-
lhas perdidas" (Mt 10.6; 15.24) e do do Messias. Tam-
bém a "nova aliança" que Jesus anuncia e estabelece nas vésperas
de sua morte, na última Ceia, fala da reconstituição messiânica do
povo de Deus. sentido é importante que a seita de Qumran,
ao lado de outros casos, também tenha empregado para a sua comu-
nidade a idéia de "aliança". Se a promessa de Jesus em :M::t 16.17-19
realmente ao contexto da última, Ceia (cf. supra,
então a da edificação recebe um
todo especial. Os vocábulos e "edificar" mostram que
Jesus considerou o povo de Deus como "casa de Israel" e em
harmonia como o modo de pensar judaico.
como podia Jesus ter pensado em construir edifício
no eon? A questão para Jesus não reside na alternativa
entre comunidade ou comunidade futura. contrário,
em sua pregação o Reino de Deus, de um lado, está no futuro
e, outro, já irrompeu no presente (Ivit 12.28; 11.5) 37. O conceito
povo de Deus tanto à sua realização presente como fu-
tura. Jesus vê realizados em si mesmo dois aspectos do povo
Deus. Liga a edificação da comunidade à sua própria pessoa.
A co11stitUição do verdadeiro povo de se realiza com êle
meiramente n9 grupo dos Doze que dêle a tarefa

sa Cf. artigo ekkltesia, supra, págs. 11-65; L. Rost, Die Vorstufen von Kirch.e
und Synagoge im AT, em BWANT IV, 24 (1938). Nfio me parece necessário
preferir o equivalente kenishtâ como têrmo original. Seria em todo o caso
melhor deixar aberta a escolha da palavra original. Cf. M. J. Lagrange (cf. nota 5)
a:d. loC'U.m. A questão não é de importância tão fundamental porque todos os
equivalentes (qahal, kenistti, çi'b'burO., 'edUD pertencem nos conceitos que expri-
mem a idéia do povo de Deus. À luz dos textos de Qumran recentemente desco-
bertos, todo o material deve ser novamente revisto. A designação mais :!'reqüente
dessa comunidade é yahad; aparecem ainda: sod, 'edd, berith, 'eça. ~ notável quG
qa:h.ai só apareça duas vêzes nos textos encontrados até agora.
:31 W. G. Kuemrncl, Verlieissung u.nd Erfuellu.ng (1953).
SOH Oscar Cullmann

de se dirigir "às ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mt 10.6) 38.


Na atividade dêsse grupo êle vê - anàlogamcnte à sua própria
o início da irrupção do tempo da salvação 39 •
A nocão de ekklesia encontra-se em vocábulos neotestamentá-
rios tais como "ovelhas'', "pastor", "rebanho" 40 • Na seita judaica
que agora nos é melhor conhecida e cujas idéias encontramos no::i
assim chamados E,-;critos de Daniasco e nos textos das grutas de
Qumran 41, o conceito de pastor era corrente, bem como a idéia de
comunidade. A isto também se refere a palavra sôbre a edificação
do tempo (Me 14.57s e paralelos; cf. Me 13.2; Jo 2.19). Temos aí
um paralelo exato de Mt 16.18. Segundo a tradição dos Evangelhos
sinóticos deve-se admitir que Jesus anunciou a edificação de um
templo não feito por mãos de homens, com o que só se pode entender
o nôvo povo de Deus que será constituído por Jesus. Tal como em
Mt 16.17, temos aí a imagem da edificação, o que torna ainda mais
claro o paralelismo objetivo do texto.
Mas, como pode Jesus dizer: eu edificarei a minha Igreja? Não
significa a sua morte a irrupção do tempo final da salvação? 42
Não necessàriamente, conforme tôda uma série de palavras de Jesus.
O tempo da preparação messiânica se inicia com a pregação e os
atos de Jesus e alcança em sua morte o clímax decisivo; todavia não
se completa ainda aí. A tensão entre presente e futuro projeta-se
para além de sua morte 43. Isto se mostra tanto pelas suas palavras
sôb:re a missão dos apóstolos, corno pelas palavras àa Ceia.

:l5 Jesus tem a consciência de que tuào se realiza em sua própria pessoa,
enqmmto que a ccmunidade primitiva vê o cumprimento na Igreja. Ora, o cum-
primento na pessoa de Jesus leva diretamente ao cumprimento da comunidade,
e vice-versa, ê'.'ie aponta para aquêle. É preciso que se acentue isto contra W. G.
Kuemmcl, Kirchenbegriff und Gcschichtsbewusstsein in der Urgemeinde und b:ei
Jesus, cm Symbolae Biblicac Uprn!ienses, 1 (1943), o qual vê aqui uma inconciliável
justaposição de duas formas afins de consciência histórica e a partir dai contesta
a genuinidade de Mt 16.17-19.
3~ R. Buitmann (cf. nota 30) 275 opina, seguindo a A. Loisy, Les Évangiles
Synoptiques (1908) 23, que o fato de Jesus ter juntado discípulos ao seu redor
nada tem a ver com "igreja".
10 Bttltmann, op. cit., (nota 30) 268 .:ontesta em tô<la a linha que nas passagens
sinóticas exista a idéia de um grupo permanente; em João;· de resto, as palavras
teriam um sentido inteiramente diferente.
41 L. Rost, Die Damaskusschrift, em Kl. T 167 (1933) K. G. Kuhn, Diie in
Palaestina gefundenen Hebraeishe Texte und das NT, em ZThK 47 (1950} 199.
12 Assim A. Schweitzer. Das L1.bendmaht im Zv..sc.mmenhang miv dem Leben
Jesu. und d,er Geschichte des Urchriste·ntums (1901) 61s.
43 W. Michaelis, Der Herr verzieht nicht di.e Verheissung (1942); Kuemmel
(d. nota 37) 38-40; O. Cullmann, Christ>..ts und die Zeit 0948) 13ls.
Pedro 309

Assim, não há por que negar a genuinidade das palavras, quando


se considera o seu contexto teológico objetivo. Contra o povo de
Deus, a ekklesia, que Jesus edificará, as .. portas do Hades" não pre-
valecerão (Mt 16.18b), isto é, o reino da morte que até agora do-
minava 44 perdeu sua fôrça e suas portas se devem abrir ante o
podPr c1 1 ekklesia. Desta maneira a ekklesia entra no lugar de Jesus,
levaHdo avante a vitória que Jesús alcançou pela sua Morte e Res-
surreição. Portanto, a comunidade da Igreja tem. participação
ativa na Ressurreiç.ão. Na mesma linha imagem do logion afir-
ma-se que Pedro também as chaves do reino dos céus para
abrir as portas ressurreição e da vida.
Pedro, :rocha do edifício e portador das chaves do
reino dos céus, foram entregues por Cristo, o seu verdadeiro
possuidor ; Ap 3.7), é o mediador humano da Ressurreição
e tem por admitir o povo de Deus no reino da ressurreição.
Jesus mesmo lhe deu o poder de a entrada no reino de Deus
futuro, e o contrário do fazem os fariseus "que
fecham a do reino dos céus" 23.13). Dêste o que
Pedro faz terra" terá "no céu", conforme a atribuição
... v,.. v ....... nas palavras "atar" e "desatar". Estas expressões devem
ser entendidas no sentido de que Pedro dispõe do poder de perdoar
embora o outro sentido - estabelecer estatutos - não
com isto excluído 45. Assim, às funções que já durante a vida
tinham sido aos discípulos, e que são as mesmas
que Jesus pessoalmente exerceu (Mt 11.4ss; 10.7s), junta-se agora
a suprema dos pecados, até exercida exclu-
sivamente por Cristo, mas que agora é confiada a Pedro em
da constituição do povo Deus na terra. É certo que Pedro par-
tilha com os outros discípulos o poder de "atar" e "desatar" (Mt
18.18), fato que claramente corresponde à sua situação no grupo
dos Doze.
e. O do logion - O entende J.esus .quando diz :
"Sôb:re esta rocha 46 edificarei a ~~~···~ ? " Que se trata da

44 É que significa Hades, e não, em primeira linha, o reino do pecado


e da condenação. Assim também Klostermann, Mattr.aeu.s, ad locum; Schlatter,
Matthaeus, ad Zocum.
45Ambos os verbos ('sr e shr') permitem as duas explicações: (a) "proibir"
e "permitir", isto é, "estabeleeer regras" (ê:t Dalman, lVorte Jem I, 175s; Klos-
termann, Mattnaeus, ad Zoe.; Zahn, Matthaetts, ad. ?oe.; W. Michaelis, o:P· clt.
ad. toe.), (b) "excomungar" e "absolver" (exemplos rabinicos ein Strack-Blller-
beck I, 738) .
46 S&bre a imagem da rocha, cf. J. Jere1nias, op. cit., 73.
310 Oscar Cullmann

fé de Pedro, como pensam os reformadores 47, é inadmissível já em


vista do provável contexto da narrativa, diferente da que dâ Mateus
( cf. 305). Com efeito, na véspera da paixão a fé de
Pedro era lá muito sólida. Ao contrário, o paralelismo "tu éa
Rocha" e "sôbre esta rocha" mostra que pela segunda rocha não se
pode outra coisa senão o que se entende pe~a primeira. ,
Por aí fica que Jesus tem em mente a pessoa de Pedro, a
quem deu o apelido de "Rocha", e que de fato estabelece a Pedro
- êsse homem caráter tão impulsivo, entusiástico, mas pouco
perseverante - como fundamento de sua
Até êste ponto a exegese católica-romana tem razão em rejeitar
as tentativas de interpretar diferentemente o texto.
Mas ela não procede melhor que aquela quando aí uma alusão a
"sucessores". No texto não se diz palavra sôbre eventuais sucesso-
res de Pedro; antes, todo o significado do logion repousa sôbre as
palavras "Petros" e "ekklesia", e afirma que a. Igreja que serâ
edificada por Cristo, no futuro, se funda sôbre uma única rocha,
isto Pedro que é uma pessoa limitada a determinado tempo. Isto
que a tarefa a Pedro permanece restrita à sua
pessoa, o que torna possível a edificação posterior da Igreja.
A obra edificação pertence, a um futuro não limitado por
Mt 16.17s, contudo a colocação do fundamento está ligada à pessoa
de Pedro, o qual em suas possibilidades de agir está necessària-
mente limitado ao espaço de uma vida ( cf. J o 21.18 !) . E se a
'.Pedro é concedido o poder de atar e êste poder não se esten-
de a um futuro ilimitado, mas à vida de que se segue à morte
de Jesus.
Pelas palavras Jesus sôbre a colocação do fundamento e a
conseqüente edificação da Igreja, a concepção neotestamentária do
arraigamento do permanente no irrepetível recebe uma expressão
clássica na pessoa de Pedro. Por conseguinte, a missão de
s"Õ pode ser entendida no sentido da oraçãQ_ sacerdotal, onde
da geração futura, que ela crerâ "pela palavra dos apóstolos"
(Jo 17.20). Porque o fundamento da Igreja nada mais é que o
da Morte e da Ressurreição e da identidade entre o
prometido e o Cristo exaltado. Os apóstolos são o funda~
mento único e irrepetível no tempo, fundamento sôbre o qual é edi-
ficada a comunidade (Ef 2.20; At 21.14). E entre os apóstolos,
Pedro é o primeiro e o mais importante como testemunha ocular da
Vida, da Morte e da Ressurreição de Jesus.

47 Strack~Billerbeck (!, 732) tenta dar apoio filológico a esta interpretação pela
retradução para o aramaico.
Pedro 311

D. A DIREÇÃO DA COMUNIDADE PRIMITIVA E A


PRIMEIRA ATIVIDADE MISSIONARIA DE 'PEDRO

1. Os Atos dos Apóstolos narram como Pedro, depois da morte


de Jesus, exerceu o encargo recebido. De representante de um gru-
po de discípulos, que se tinham juntado ao redor de seu Rabi, êie
se torna o seu líder e chefe. É certo que sua posição de líder é
temporária, e, ade1nais, importa que não nos representemos essa
liderança no sentido do episcopado monárquico posterior. Não é
tarefa nossa expor aqui a história do cristianismo primitivo em sua
relação com Pedro 48. Precisamos limitar-nos a alguns pontos de
maior importância para a compreensão do lugar de Pedro na histó-
ria da salvação.
A sua posição de líder evidencia-se na eleição suplementar do
duodécimo apóstolo (At 1.15), na interpretação do milagre de Pen-
tecostes (At 2.14), na cura do paralítico (At 3.1) 49, na defesa do
Evangelho diante das autoridades (At 4.8; 5.29), no exercício da
disciplina eclesiástica (At 5.1-11), na supervisão da missão em
Samaria (At 8.14-17), na atividade missionária em Lida, Jope e
Cesaréia com a conversão do gentio Cornélio (At 9.10) 50.
Como tôdas as cartas paulinas pertencem a um tempo posterior
aos acontecimentos narrados em At 1.12, não encontramos nelas
dados sôbre esta fase da atividade de Pedro, com exceção da curta
notícia de Gl 1.18 a respeito da primeira estada de Paulo em Jeru-
salém, onde se diz que quis "avistar-se com Cefas". É certo que
Paulo empreende a viagem apenas por razões pessoais, mas eviden-
temente êle sabe que aquêle homem estava à frente da comunidade;
em todo o caso Paulo encontra também a Tiago, o qual, como irmão

48 O. Cullmann (cf. bibliografia) 30-169.


4P É notável o modo corno aqui João aparece ao lado de Pedro. A maneira
como êle é." introduzido e o fato de ser pouco mais que uma figura decorativa,
poderia sugerir a conjetura de que o seu nome foi introduzido posteriormente
ao lado do de Pedro. No caso em que o anônimo discípulo amado já por êsse
tempo :fôsse identificado com João, poder-se-ia perguntar se aqui a colocação de
João ao lado de Pedro não corresponde à mesma tendência que jã constatamos
em João (d. supra, pãg 300s).
110 Pedro certamente jã em Jerusalém, tinha tomado uma posição intermediária
entre judaizantes e helenistas (cf. W. Grundmann, Da:s Problem des helknist'.schen
Christentums innerhatb der jerusatemer Urgiemeinde, em ZNW 38 (1939) 54,
também reconhece um núcleo histórico na narrativa· sôbre a conversão de Cornélio
por Pedro. Cf. id., Die Apostei zwischen Jerusa!em und Antiochia, em ZNW 39
(1940) 132-136. Ao contrário, M. Dibelius, Das Apastelkonzil; Dle Bek.chru.ng àes
Corne!ius, em Aufsaetze sur Apostelgeschichte (1951) 85, 96s atribui a :narrativa
sobretudo à tendência do autor),
312 Oscar Cullmann

carna] de Jesus, já desempenhava certamente um importante papel


ao lado de Pedro.
2. Depois de sua prisão por Herodes, seguida de sua liberta-
<,;ão, abandona a Cidade Santa (At 12.17) - onde daí para
diante Tiago exerce a liderança da comunidade - e passa a dedi·
car~se à atividade missionária 51. Nos Atos dos Apóstolos seu nome
aparece uma vez por do assim chamado concílio
dos apóstolos 15). que é certamente a mesma reunião narrada
por Paulo em 2.1-10 52. A reunião é dirigida, segundo Atos, não
por Pedro, mas por Tiago. Também na enumeração das "colunas"
por Paulo , nomeia-se em lugar não a Cefas, mas
a Tiago 53, aí tomada que e seus colaboradores
deviam dirigir-se aos gentios, enquanto que os de Jerusalém aos
circuncisos, colocou, do ponto vista oficial, a atividade
missionária de Pedro sob a dependência de Tiago, enquanto que
Paulo só continuava ligado a Jerusalém pelo vínculo· da coleta co-
mum. Pedro daqui em diante é o líder da judeu-cristã su-
pervisionada diretamente de Jerusalém.
sublinhar o
nr·r>f'.!<!t\ de que '.Pedro estava teologicamente
de Paulo do que os outros membros missão de
como transparece claramente do modo com que Paulo
precisa censurá-lo {Gl 2.14). Paulo sômente lhe
de ter "dissimulado", contra suas convicções íntimas,
mêdo (Gl 2.lls). Isto se adapta à imagem psicológica
Pedro que podemos dos sinóticos. Por outro
lado, para se :fazer justiça a deve-se dizer que sua posição,

t\1 O motivo por que Pedro abandona Jerusalém onde, desde a sua prisão,
Tiago tem a talvez C'steja em conexão com a perseguição que atínge
só a êle e não a Não se teria repetido então o que jã sucedera na
perseguição de Estêvão? Naquela ocasião só os helenistas foram dispersos, enquanto
que os Doze J;iUderam permanecer em Jerusalém (At 8.1). Neste caso êste pormenor
também demonstra que Pedro estava mais próximo de Paulo ~gue dos membros
da comunidade de Jerusalém.
õ2 Sôbre o estado atual dos estudos no que concernem a esta questão, uma boa
orientação é dada por Kuemmel, Das Urchristentum, em ThR 14 (1942) 82; 17
(1948/49) 3s, 103s; 18 (1950) 1s..
53 Num texto como êste a seqüência não pede ser casual. É o que sentiram
os antigos copistas; dai as variantes do texto. O manuscrito D que aqui coloca
Pedro antes de Tiago, apresenta certamente a lectio fa:citior.
54 Com razão é acentuado por E. Hirsch, Petrus und. Paulus, em ZNVI 29 (1930)
64, contra H. Lietzmann, Zwei Notizen zu. Pa.ulu.s, em SAB, (1930) 154, que é
falso ver em Pedro simplesmente um representante do ponto de vista dos de
.Jerusalém.
Pedro 91.1

como chefe da missão e dependente de Jerusalém, era muito ma114


difícil perante a gente de Tiago do que a do independente Paulo, o
que por isso tôda essa questão lhe deve ter sido um dilema parti-
cularmente doloroso. Parece que é ainda a essa posição dificil quo
se faz referência em 1 Clemente 5 onde se fala de numerosos 7Jonoi,
trabalhos, que o autor teve de suportar por causa de invejas. O
fato 55 de que Pedro tinha a temer a gente de Tiago mostra clara-
mente que, por êsse tempo, já não se pode falar mais de um primado
seu; êste primado pertence a Tiago 56.
3. A difícil posição em que se encontrava Pedro depende pre-
cisamente do fato de que do ponto de vista teológico êle se aproxi-
mava de Paulo mais do que de seus superiores em Jerusalém. Sôbre
a teologia de Pedro, evidentemente, sabemos pouca coisa e precisa-
mos restringir-nos a deduções. Mesmo quando se considera a pri-
meira carta de Pedro como autêntica, os elementos de que dispomos
são, ainda, escassos. Em todo o caso, vemos no conflito de Antioquia
o quanto o universalismo de Pedro se aproximava da posição de
Paulo com respeito aos gentios. De seu contacto com Jesus, Pedro
certamente aprendeu que a salvação é para todos aquêles que "se
assentarão com Abraão, Isaac e J acó à mesa no reino de Deus,
vindos do Oriente e do Ocidente" (Mt 8.11). Mas êste universalismo
parece ter bases ainda mais profundas, a saber, na compreensão
que Pedro alcançou da morte de Cristo como expiatória, depois de
ter visto o Ressuscítado. Não teria cabimento considerar a "teolo-
gia da cruz" como obra exclusiva de Paulo; pode muito bem ser
que a cristologia mais antiga que possuímos, isto é, a explicação da
pessoa e da obra de Jesus pela figura do Servo de Deus sofredor,
tenha por autor o apóstolo Pedro. Em At 3 e 4 Jesus é designado
quatro vêzes como pais autou (ou: sou) servo dêle (ou teu, i.é, de
Deus) : em 3.13, com alusão a Is 52.13; 3.26, onde se trata até
mesmo de um título cristológico; em 4.27,30, onde pais, servo, num
texto litúrgico tende a tornar-se nome próprio; dêsses quatro ver-

55 Cf. sobretudo F. Overbeck, Ueber die Auffassung des Streites des Pau!us
mit Petrus in Antiochien bei den Kirchenvaetern (1877); A. M. Voellmecke, Ein
neuer Beitrag, zur alten Kephasfrage, em Jahrb. von. St. Gabriei (1925) 69-104.

!ítl Os teólogos católiros em sua critica ao livro de O. Cullmann (cf. bibliografia)


bem viram que o ponto capital para a questão do primado de Pedro era o papel
histórico que nessa obra se atribuía a Tiago. O seu principal argumento em
contrário, para diminuir a posição de liderança de Tiago, se refere precisamente
à expressão phoboumenos, temendo (Gl 2.12), a qual somente significaria: temor
diante de dificuldades (neste caso com subalternos). Mas isto não corresponde
ao uso do verbo em outras passagens, onde sempre se trata de temor ante um
poder superior. Além disto, o fato de Pedro ter mêdo diante de uma autoridade
superior édapta-se muito bem à descrição que dêle nos fazem os Evangelhos.
314 Oscar Cullmann

sículos - os únicos dos 28 capítulos dos Atos em que Jesus é assim


chamado - dois se encontram em discursos de 'Pedro e dois 11umu
oração que êle profere em comum com a comunidade dos discf pulo111.
Talvez não seja muito ousado atribuir ao autor de Atos a lembrnnç11
de que Pedro designava a Jesus como ebed Yahweh, servo de Javé.
É compreensível (iue o discípulo que durante a vida de Jesus ao
opusera à via cruds de seu Senhor, passasse a anunciar, à luz dn
Ressurreição - que, conforme lCo 15.5 lhe foi atestada em primeiro
lugar - a necessidade do sofrimento e da morte de Cristo.

E. ATIVIDADE MISSIONÁRIA AMPLIADA E FIM DE PEDRO


1. Sôbre a segunda fase da atividade missionária de Pedro
não sabemos quase nada, a não ser que fêz viagens missionária~
(lCo 9.4s). A introdução da primeira carta de Pedro (1.1) parece
pressupor que foi missionário na Ásia 1'11enor. Seu nome está ligado,
antes de tudo, com três centros de missão: Antioquia, Corinto e
Roma.
A tradição, relativamente antiga, sôbre a fundação da igreja
de Antioquia por Pedro, dificilmente pode ser sustentada do ponto
de vista histórico, pois conforme At 11.19 os cristãos dispersos pela
perseguição que se seguiu à morte de Estêvão chegaram até lá en-
quanto que os apóstolos (At 8.1) permaneceram, então, em Jerusa-
lém. Segundo Gl 2.11-14, Pedro só mais tarde está em Antioquia; a
afirmação da tradição de que foi fundador e bispo em Antioquia só
tem importância do ponto de vista da pretensão exclusivista do bispo
de Roma a respeito de Mt 16.17-19 57 •
Também sôbre a estada de Pedro em Corinto nada de certo se
pode· afirmar; quando muito, admite-se como possível. A atestação
posterior de Dionísio de Corinto sôbre a atividade missionária de
Pedro em Corinto 58 não pode ser considerada como prova, simples-
mente porque aí se afirma que Pedro foi co-fundador da comunidade
e isto é excluído por lCo 3.6 e 4.15. Também a existência de um
partido 'de Cefas em Corinto (1Co 1.12) não demonstra que Pedro
tenha estado aí pessoalmente 59.
57 Orígenes, Homiliae in Lc 6 (MG 12, 1815 A); Eusébio, História. Ecclesiastica,
III, 36, 2.22; Crisóstomo, Hom, in lgn. (MG 50, 591); Jerônimo, De Viris íllu.stribus
1 (ML 23. 607B-609A).
õ8 Eusébio, História Eclesiástica, II, 25, 8.
59Entre os defensores da estada de Pedro em Corinto devem-se nomear, entre
outros, Meyer, Ursprung III, 441; Harnack, Mission. 63, nota 2; H. Lietzmann,
Die Riesen des Pietrus, em SAB. (1930) 153; entre os opositores, W. Bauer, Recht-
glaeubigkeit und Ketzerei im ae!testen Christentum (1934) 117; M. Goguel, L' Apô-
tre Pierre a-t-i! joué son rôle personnel dans les crisies de Grece et de Ga!atie?
em Rev. Theol. et Phil. 14 (1934) 461.
Pedro 815

2. Tufais importante, porém, é a debatida afirmação de que


Pedro, no decurso de sua atividade missionária, tenha chegado até
Roma e aí tenha morrido como mártir. Visto que esta questão estú
1ntimamente relacionada com a pretensão romana ao primado, fre-
qüentemente a polêmica confessional influenciou a discussão. A.
resposta a ela só pode ser fruto da pesquisa histórica desinteressa-
da. Como, porém, ao lado das fontes neotestarnentárias; vêm em
consideração principalmente testemunhos liter.ários extra e pós-ca-
nônicos da literatura cristã antiga e, além disto, documentos litúr-
gicos posteriores, e ainda escavações recentes, esta questão não pode
aqui ser discutida em todos os seus pormenores 60. Queremos apenas
lembrar que até a segunda metade do século II nenhum documento
afirma expressamente a estada e o martírio de Pedro em Roma.
No que concerne ao martírio em si, temos uma antiga tradição em
Jo 21.18s. Também em lPe 5.1 e, mais tarde, 2Pe 1.14, parece
tornarem plausível o martírio.
No que concerne à estada de Pedro em Roma, o silêncio de
Atos dos Apóstolos não tem grande importância uma vez que nesse
livro nada se relata sôbre o fim de Paulo, e muito menos de Pedro.
Importante é, ao contrário, o silêncio da carta aos Romanos. Esta
mostra que uma estada de Pedro em Roma está excluída, senão em
princípio, pelo menos até o tempo da carta. Um testemunho indireto
da relação de Pedro com os cristãos de Roma pode ser encontrado
em Rm 15.20s; nesta passagem a fundação da comunidade cristã de
Roma é obra, não de Pedro pessoalmente, mas muito provàvelmente
de judeu-cristãos ( cf. também At 2.10). Em virtude do acôrdo de
Jerusalém - a que Paulo parece aqui aludir - é provável que
Pedro, como responsável pela missão judeu-cristã, tenha ido uma vez
até a capital do império, pois há indícios de que ali surgiram, certa
feita, dificuldades entre o grupo de origem judaica e o de origem
gentílica da comunidade (1 Clemente 5 e, talvez, também Fp 1.15ss),
como parece pressupor o conteúdo de tôda a carta aos Romanos.
A primeira carta de Pedro, quer seja autêntica quer não, alude
em sua saudação final (5.13) à estada de Pedro em Roma ao falar
de "Babilônia", como lugar da comunidade que envia saudações,
pois que a opinião mais provável é que "Babilônia" designa Roma 61.

llí> Sõbre esta questão, levantada por H. Lietzmann, Petrus und Paulus in Rom
0927), e sõbre a controvérsia que ele suscitou afirmando a tese da estada de
Pedro em Roma - na qual se distinguiu sobretudo K. Heussi (War Petrus in Rom?
1936) - e que ainda continua em nossos dias, cf. a bibliografia em Cullmann (cf.
bibliografia) 73-169.
61 Sôbre as diferentes explicações, cf. Cullmann, 88-92.
S16 Oscar C11llmann

Recentemente há uma tendência para ver em Ap 11.3-12 muiM unm


prova do martírio de Pedro em Roma, sendo "as duas testemunha111"
identificadas com Pedro e Paulo 62.
Mas a fonte mais importante para a solução do problcmn é 1
Clemente que, no seu capitulo 5, embora não diga expressamento quo
Pedro tenha sofrido o martírio em Roma, refere-se contudo - nu
seqüência de uma longa exposição que trata d.as conseqüência8 <loM
"ciúmes" - à morte de Pedro e de Paulo, aludindo a circunstânclnM
que só se adaptam a Roma, tornando-se provável a inferênciu
de que Pedro e Paulo caíram vítimas da perseguição de Nero em
conexão com conflitos internos comunidade. Dentre os teste-
munhos temos ainda um apoio -- embora não certo - para
o martírio de Pedro em Roma na carta de Inácio aos Romanos ( 4,3).
Sôbre a atividade de Pedro durante sua - provàvelmente
curta 63 - estada em Roma, faltam-nos dados nas fontes antigas.
Só a partir do século IV começa-se a falar de seu episcopado em
Em todo o caso, a partir da segunda do século II a
sôbre a estada e o martírio de Pedro em Roma começa a
tomar formas mais Dêles sabem Tertuliano, Cle-
de Alexandria, Orígenes e o presbítero romano Gaio. l'l::ste
ültimo fornece para a tradição romana de Pedro um apoio topográ-
fico 64. Suas afirmações sôbre o tropaion, monumento de vitória,
que se encontra no Vaticano, são, segundo alguns, confirmadas pelas
recentes escavações a basílíca de S. Pedro 65 • Contudo, não existe
prova arqueológica conclusiva de que o monumento de colunas aí
encontrado que pode ser reconstruído - seja aquê!e tropaion.
Em todo o caso não se pode dizer que o túmulo de Pedro tenha sido
descoberto nessas escavações.

li:! J. Munck, Petrus wnd Paulus in d.er Offenbanmg Johannes (1950).


63 Uma estada bem curta de Pedro em Roma é atestada por uma informação
contida cm Mocarius Magnes (III, 22). e que se apóia no polemista anticristão
Porfírio.
tl4 Eusébio, História Ec!esiástica, II, 25, 7.
11:; B. M. Apolonj-Ghet.ti, A. Ferrua, E. Kírschbaum, E. Josi, Esplorazionf /lOtto
la Confessione di S. Pietro in Vaticano (1951).
BIBLIOGRAFIA

O. CULLMANN, Petrus: Juenger Apostei - .Maertirer: Das historiach1 und


theologische Petrusprob!em (1952). T-radução portuguêsa: Pedro - Dt1cCpulo,
Apóstolo, Mártir (ASTE), São Paulo (1964).

K. G. GOETZ, Petrus ais Gruender und Oberhau:pt der Kirche und Schcmer von
Gesichten nach den aitchristilichen Berichten und Legend;en (192'7).
F. J. FOAKES-JACKSON, Peter, Prince oj Apostles - A Study in the His!or11
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F. SIEFFERT, artigo Petrus, em RE, 3.'' edição, 15, lfH3-212.


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K STAUFFER, Zur Vor und Fruehgeschichtíe des Primatus Pet'J"i, em ZKG (1943/44)
3-34.
H. STRATHMANN, Díe Stellung des Petrus in der Urkirche. Zur Fruehgeschichte
des Wortes an Petrus Mt 16.17-10, em ZSTll 20 0943) 223-282.
EDRA

por
ÜSCAR CULLMANN
f NDICE
PEDRA

A. O uso de petra no grego profano e no Velho Testamento 323


1. O grego profano, 823
2. · O Velho Testamento, 323
B. Significação simbólica da rocha 825
e. Petra no Nôvo Testamento ........................ . 326
1. Peira no sentido próprio, 326
2. A rocha de Horeb que segue os israelitas (1 Co UJ.4), 326
3. Rm 9.33 e I Pe 2.7s, 327
4. Mt 16.18, 329

D. Os padres apostólicos e os apologetas 880


PEDRA

O USO DE PETRA NO GREGO PROFANO E NO VT

1. O substantivo feminino petra designa no grego profano pre-


ferentemente uma "rocha" grande e firme. É aplicado tanto às sa-
liências rochosas individuais. como a trechos de montanha pedre-
gosa ou rochosa 1. Assim em Homero petra é freqüentes vêzes usa-
do com o adjetivo elibatos, escarpado 2.
Em sentido figurado petra é usado como irnagem de firmeza
e imobilidade (Homero, Odisséia 17,463), ou falta de sentimentos
e de dureza de eoração (Ésquilo, Prometheus Vinctus, 242). A
etimologia de petra é duvidosa 3.
O substantivo masculino petros é aplicado _g-e1~a11ne1ute
rochosos móveis e isolados, bem como a pedras pequenas,
a pederneira e a pedra arremessar 4. diferença os
dois substantivos é digna de nota, ainda que uma distinção clara e
estrita entre petra e petros não seja sempre possível fazer, pois al-
gumas vêzes aparecem como reciprocamente alternáveis 5.
2. O uso de petra na Septuaginta mostra os seguintes sen-
tidos:
a. Rocha grande, rochedo(~x 17.6; SI 80.17).
b. Nomes de lugares, isto é, designações geográficas (Jz 1.36;
1Rs = lSm 23.28; 4Rs = 2Rs 14.7).

l F. Passow, WoeTterb. d. griech. Sprache, sub 'liOClf:!; por ex., Homero, Odiuéia
3, 293; 4, 501.:ê
2 Homero, Iiíada J'i, ..13; Odisséia 9, 243; 10,88; 13, 196; também Xenofonte,
Annates 1, 4, 4.
s Hofmann, sub uoce; e!. também os dados de Boisacq, 776.
r
4 Xenofonte, Anna!es VII, 7, 54; Platão, Leges vm, 843."'; Homero, lt"4dc 7,
270; Píndaro, Olvmpia 296.
!1 Homero, Odisséia 9, 243; Hesfodo, 'l'heogonia 675; Sófocles. OediJ)'!U coloneua
15115, etc.
824 Oscar Cullmann

e. Figuradamente (Is 8.14), para designar um cu.rAtar lntla·


50.7) ou sentimentos duros (Jr 5.3).
d. Ocasionalmente

Petros só é usado raramente pela Septuaginta 6.


Os equivalentes hebraicos são wbretudo çur o Hla.' J
contrário, 'eben é sempre por lithos 1. çur - ao lado
profano de é muito freqüentemente um
Deus a; contudo, no encontra nunca a simpleM
com a rocha 9. aramaica kph' ga.
um pêso, e hebraico sheqel; po2·
traduzem sela.' por O mesmo vale pnrn
cur. De outro o aramaico taur' geralmente ao ho-
braico har, montanha 10. Ademais, é muitas vêzes usado no
de lithos
sentidos fun-
pon-
petra.
dado

!l 2 Macabeus 1, 16; 4, 41; em tx 4.25.


7 As fronteiras entre çu:r e seta' de lado, e 'eben de outro, Lastante
'.fluidas.
8 Dt 32, 4, 15, 18, 30, 37; 1 Sm 2.2; 2 Sm 23.3; Is 26.4; 30.29; 44.8; Hc 1.12;
ainda em muitos salmos, e também cm nomes próprios. Cf. A. Wiegand. Der
GottesnarrH? .r:eine D~ttung in dern Sbtne BHdner oder Schocpfcr in
der altjuedischen Litteratur, em ZAW 10 (1890) 85 - 96; A. Jirku, A.itorientalischer
:lfo:mmentar ztim AT (1923) 244. A respeito de Ç'\VR como elemento teofórico em
r~omes pessoais (por exemplo, Nm 1.5) cf. H. Scb..midt, Der hcilige FeLs in
Jerusalem (1933) 87.

9 A Septuaginta também não traduz em geral çur por petra, mas substitui a
imagem por conceitos que devem reproduzir o sentido da imagem, como por ex.,
theos, Deus (Dt 32.4, 30), antilemptor, aquêle que recebe (Sl 88.27).
10 Cf. Levy, Woertb., sub voce.
ll A. Dell, Mt l~U7-19, em ZNW 15 0914) 19.
lZ Lithos designa mais freqüentemente a pedra separada (rocha sepnrada) de
diferentes tamanhos, trabalhada ou não.
l3 Coz:tra DeU, !oc. cit., 19. Sôbre o problema lingüístico, cf. H. Clavier,
Petros kai petra, em Neutestamentliche Studien juer .R. Buitmann {Beihefte zur
ZNW 21 0954) 101 ~ 107.
Pndra BIIS

B. SIGNIFICAÇÃO SIMBóLICA DA ROCHA

A imagem da rocha pertence à linguagem mitológica do todo o


Oriente Antigo e dela depende a imagem cósmica dos antlroR t1r11•
litas: a terra se eleva do mar original como "montanha õoa 11 H
cercada de água por todos (X b<los. . A mesma representaçlo 11
encontra no mito que diz que do caos original primeiramente 1ur•
os templos dos deuses, que se levantam como ilhas do melo
mar 15,
Idéias semelhantes encontram-se no judaísmo tardio: "O San•
to, que bendito atirou uma pedra no mar; dela foi feito o
mundo, ~stá sôbre o que se os seus (i.é, da
terra) fundamentos e quem colocou sua pedra angular?" (Jó 38.6) 18 •
que f êz o Santo, que bendito Com seu direito afundou
a pedra até o fundo do mar original e fêz dêle a pedra fundamen-
tal do mundo, como um homem que coloca a pedra final de uma
abóbada. Por ela se 'eben shetiyya.,, pedra do alicerce,
pois está o da terra e a partir daí se estendeu todo o
mundo, e sôbre ela a casa templo" 17. Por conseguinte, a
i·ocha que se encontra no Santo dos Santos 18 é a origem da criação
do mundo e ao mesmo tempo é o lugar mais da terra; ela é
a porta do 19 e pertence ao Paraíso futuro 20. Ao mesmo tempo
a - como pedra que o original, é a origem das
terra 21 e a porta 22 para o sheol :rn.
Os capítulos 28 e 8 de mostram que, em mais
amplo, esta já era a imagem do mundo do Segundo o cos·

14 J. Jeremias, Go!gotha (1926) 66s.


l;; H. Gressmann, Der Messias (1923) 110.

R:::bi Yiçhaq, o Ferreiro Zcirc. 300 d. C.), em Jeremias, loc, cit., 54.
17 Genesis 120. a propósito de Gn 28.22 (cf. Jeremias Zoe. cít. 55).
rn Sôbre a rocha e o altar dos sacrifícios, cf. Jeremias 53-65.
rn Jeremias, Zoe. cit. 53.
20 Ib., 53-54.

21 Ib., 56-57.
" 22lb., 57-~8. Co~tra a tentativa de Jeremias de querer encontr
no VT vestígios. . . sobre a linguagem simbólica d ar mesmo
e roe11a sagrada", cf. H. w.
He1:zberg, Der heilige Fels und das AT, em The Journa.t of the Palcstine Oriental
Sor::iety 11 ( 1931) 31-42.

23 Tiramos essas considerações de S. Schulz.


826 Oscar Cullmann

tume época, o profeta atribui à pedra fundamental do templo


uma inscrição: "Quem crer não será envergonhado" (Is 28.16) "·
Trata-se da inscrição da pedra angular do nôvo templo, que Deua
edificará, e não do velho templo 25 • :Êste já não oferece mais prote·
ção contra o iminente dilúvio do exército assírio e deve cair. Segun-
do uma lenda :rabínica, Davi teria esconjurado certa vez o dilúvio
destruição que se levantava 26• A rocha que retém êsse
dilúvio é ao mesmo tempo a porta para o subterrâneo e pa-
ra o reino dos mortos. Não é por acaso que Isaías, ao lado da ima-
gem do dilúvio iminente (dos assírios), usa a idéia de um pacto do
Israel apóstata com o sheol e a morte (Is 8 e 28). São representa-
ções que ecoam em Mt 16.18: "E as portas do hades não
prevalecerão contra ela" (Cf. o artigo petros, pág. 309).

C. PETRA NO NT
1. Petra no sentido próprio. Com exceção de lCo 10.14; Rm
; 1Pe e Mt 16.18, petra é usado no NT no sentido pr6p:rio. Me
15.46 e Mt 27.60 tratam do sepulcro escavado na rocha; Ap 6.15s da
.,....,.,,..,.,,,.,." de proteção nas fendas das rochas e nas montanhas; Mt 27.51
ruptura de uma rocha produzida por um terremoto e do abrir-se
das sepulturas. Na do semeador {Le 8.6) não se fala de
uma rocha única, mas de ehão rochoso 27• Na comparação de Mt
7.24-27 e Lc 6.4749, a casa edificada sôbre rocha é oposta à cons-
truída sôbre areia ; petra serve de base onde lançar o fundamento.
A palavra de Cristo é o único fundamento para a existência da co-
munidade (Mt 7.24). Análoga à parábola da edificação da casa é
a palavra a Pedro (Mt 16.18), sendo que aí petra é usado
no sentido impróprio {cf. irnfra).
2. rocha do Horeb que segue os isra.elitas(1Co 10.4). O
contexto desta representação é o milagre da água~-que sai rocha
(:ex 17 e Nm 20) e que no VT aparece com variantes 28, Segundo
:ex 17.6 o lugar dêsse milagre é a rocha no Horeb ('al haç-çur beho-

24 Gresmnann, lo<:. eit., 110.


2::1 O TM Yisa:d, está fundado", é correção dogmát.lca (cf. :nota 36).
2e Jerem1as, loc. cit., 55.
21 Marcos e Mato..;...; pet'rodes, pedregosa.
28 Cf. Dt 8.15; 32.18; Is 48.21; Ne 9.15; Jó 29.6; Sl 78.15-20; 81.17; 105.41; llU.
Pedra 81':

rd>) 20, Jfl no próprio VT 30 essa rocha maravilhosa, como em ao·


ral n peregrinação pelo deserto, tem significação tipológica. ~ vis·
ta como dom paradisiaco, com traços nitidamente escatológicos. NH
especulações do judaísmo tardio chegou-se, pela combinação de :tx
17 e Nm 20, à lenda da fonte na rocha que no tempo de Moi1é1 li•
guia a Israel e lhe fornecia água. "Assim também sucedeu com 1
fonte que estava com Israel no deserto; assemelhava-se a uma rocha
cheia de buracos, como uma peneira, e a água gotejava e corria CO•
mo quando se abre um odre. Subia com o povo para as r..'lontanh11
e com êle descia para os vales ... "31. Aqui a racionalização predo·
mina claramente, em contraposição com a narrativa do VT.
É a uma lenda dêsse tipo que Paulo alude quando em lCo 10.4
fala da rocha que acompanhava a Israel. ltle a interpreta em rela-
ção a Cristo: "a rocha porém era Cristo". O judaísmo tardio não
conhece qualquer interpretação messiânica da rocha de 11.:x 17 e Nm
20. Paulo depende aqui, talvez, de textos como Jo 7.37s 32. Mas não
identifica simplesmente a pedra que seguia. os israelitas com Cristo,
como se €ste tivesse tomado a forma de rocha (cf. nota 33). Cris-
to permanece uma realidade espiritual (pneurnatikos) ; mas é uma
realidade que não está separada da rocha concreta que então acom-
panhava os israelitas, como agora não se deve separá-lo da Ceia
empírica, mediante uma indevida interpretação alegórica 33 • O mes-
mo Cristo está presente no VT e no NT, e age historicamente tanto
em sua pré-existência como em sua pós-existência; a sua fidelidade
para com o povo eleito, tanto de outrora como de hoje, é expressa
em Paulo pelo akolouthesas, acompanhando (vers. 4).
3. Rm 9.SS e '1Pe 2.7s 34, a. Rm 9.33 - visto que Israel re-
jeita o caminho da fé para a salvação, tudo esperando de si pró-
prio e da própria justiça, Cristo se lhe tornou pedra de tropêço e
rocha de escândalo: "eis que ponho em Sião uma pedra de tro-

29 Es~ localização topográfica entra em choque com a que é dada em ll:x 17.S:
(Refidim), e com a passagem paralela de Nm 20.
8il Cf. as passagens citadas na nota 28, sobretudo Is 48.21; SI 81.17; 114.8.
81 Tratado Su.kka 3, llss, em Strack-Billerbeck III, 406.
32 Jeremias, loc. cit'., 84.
33 É sabido que na história da exegese esta alegoria é muito utilizada. JfJ. no.
judaísmo tardio Filão (Legum Allegoriae II, 86) lnterpreta a petm como logos,.
palavra, e sophia, sabedoria.
84 Sôbre a interpretação messiânica das passagens vétero-~stamentáriaa que
têm !ith::is, cf. TWNT IV, 276, lOss.
-828 Oscar

pêço e uma rocha e todo o que crer nôlo niio /l(ll'Íl f'll·

duas citaç.ões do V'J' (Jl.1 :.!.8.111 11 IM


não corresponde totulnw11t.u 1\ l1·u-
mais do texto hobrn.lt~o ao ;
tem em comum com a Septuagint.n n t'X·
O de Is 28,16 fala da poúl'A nn·
nôvo em Sião 36, As pnhwr""
ee:rtamente tomadnH pilo
costume daquelu 6pu•
ângulo, por <di~·ro.
para se cntcmlor n
colocada sôbre o por-
da gonfo,,,:, cn-
de Javé "pndrn
está contida
pedra ass<:u-

em

- b. lJ?e -2 . 7s - O autor

nados Sl 118.22 e
fala da pedra
reconstruç1fo destruído.

35 Assim t:cmb&m I Pe 2.8.


30 Dcve-s0 ler hinni 1nosad, eis que eu coloco.
37 Cf. a discu.."São sôbre êste ponto quando comentarmo;:; Mt
38 C. Staehlin, Skandalon (1930) 196.
recebe aí, sob o rnrmxo de Is 8.14 - tal como cm Um n.:rn . - o """
pecto de uma rocha de escândalo terrível e invcndv1•l po14tnda no
caminho que conduz à salvação. Esta interpretaçi\o in 111n.lm11. 7u1r-
iem, da palavra triunfante de Sl 118.22 - reforçada 1>olu i11trot111·
ção da idéia de predestinação ( vers. 8b) - é, pelo nutor dn. cnrtn,
contraposta à redenção anunciada em Is 28.16 e rescrvndn RÓ llA•
ra os crentes ( vers. G). Aqui nada mais se ouve da espornnçn dn
Rrn 9.33, expressa r;or Paulo a respeito de Israel segundo n cnrnn,
e que transparecia em meio à combinação de textos aí feita.
lvft '16.18. O de palavras que já aparece com sufklon.
te r;o texto grego, sugere a identidade objetiva entre 1lCt1'a.
e petros, pois uma distinçào clara entre os significados específicos
duas não é µossível. nfas é a forma original aramaica
..___ que se pode rceonstruir com tôda a segurança - que nos mostra
a identidade formal e objetiva entre petra e petros, melhor dito, cn·
tre petra, kcyphcí e rietrns. A identidade de petrci com petros é na
verdade assegurada pela identidade de ambos com keyphú .
.r~-o restante do l\! E nu:nca o cristão individual é charnado petra.,
1

e111bora seja êle lithos 110 edifício espiritual, o corpo de Cristo (lPe
2J)). é sõr:nen.te c:risto. Porta11.to! se 1'1t 16.18
11os ob.rig·2 a forn1al e objetivan1er1te ,pei:ra corí1 JJCtr'os,
mostra qu;c"";to o apostolado -- e dentro clf)le sobretudo a posi-
ç5.o que ocupa Pedro - faz parte da revelação de Cristo e _parte 1

essencíaL Petros ern pe:::~soa é esta ]Jetro.:, e não a sua fé ou a, sua


cor1fissão ( cf. págs. É claro que ~Pedro é a rocha sómen-
te enquanto SLJ.stentado rnão e}(.:; CristoJ tal como quar1do andou
sôbre o rnar. I\las trata-se do l:;et-ros real, corno rc:al era Sin1ão. Se
Cristo quer erguer sôhre esta petra, rocha, um edifício espiritual
- a ckklesia- - então Petros é o fundan1ento desta eklclesía, fun-
damento que se funda na palavra de Cristo "tu és Rocha" 39. Êste
:fux1darncnto é en1inenten~1ente uma realidade 11istórica, a saber, a
unicidade; ta11.to do apostolado como da posjção que n.êle ocupa Pe-
l1ro.
Visto que o aramaico keyphâ inclui o sentido específico de pe-
tra, rocha, é ilógico entender keyphá simplesmente como lithos.
Embora isso fôsse em si possível, esta possibilidade é excluída em
virtude de um texto rabínico paralelo que diz: "Quando Deus olhou
para Abraão, ainda por surgir, disse: eis que encontrei uma rocha
sôbre a qual posso edificar e fundar o mundo. Por isto chamou a
Abraão rocha" 40. A imagem de Abraão como rocha cósmica for-

lln Cf. a pm:óbola de Mt 7.24.27.

~o ~'{alqut 1 § 766; ern Strack-Billerbeck I, 733.


.'J.'lO Oscar Gull111a1w

rn~cc a moldura para a posiçüo que deve ocupar Pe<lro - dcpoi~


que o significado de Abrailo dado iw.Ios rabinos foi totalmente '!-m-
permlo. l'edro entra no de Abraão, mas agora como funda-
mento do Israel segundo a comunidade da nova alirmça
que Cristo edifica sõbre n. Pedro ( cf. o ekklesia, pftgK.
·1'1-'1G).

D. os 1\POSTóLICOS .AFOLOGETAS
Na Ca.rta 11,5,
rece se referir a
to,

geração,
35 que são Corno quar~
ta camada do fundamento aparecem e doutôres,
Nem os Doze Pedro ocupam.

a cir-
Jus-

deus r~íitra de
* * *

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