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FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO do Ministério Piblieo Federal, Professor da Faculdade de Direito do Distrito Federal (CEU. O ERRO NO DIREITO PENAL “Scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac po- testatem.” (Celsus, Digesto, T, 3, 17) Bibtotece mA—PucsP | 100041835 FICHA CATALOGRAFICA (Preparada pelo Centro de Catalogacio-na-Fonte, ‘Camara Brasileira do Livro, SP) Toledo, Francisco de Assis, 1928- Ts8I0 0 erto no direto penal Sto Paulo, Saraiva, 1977. Bibliografia. 1. Eno (Direito penal) 1. Titulo. ‘77-0481 cDu313.299 Po Indice para catélogo sistemifticn: 1, Eno : Direito penal 943.229 SARAIVA S.A. — Livreiros Editores ‘Sao Paulo — SP Av. do Erissri, 1857 “Tels. 66-1195 0 67-5742 ~ PABX : 66-2106 € 66-2128 Belo Horizonte ~ MG RR, Chia de Souza, 571 — Bato Sagrada Faria Rio de Janeiro — RJ ‘Av. Marechal london, 2231 201-7149 Prefacio Esta pequena monografia pretende ser menos uma teoria do erro do que um trabalho de interpretacao juridica, voltado para problemas do direito brasileiro. E assim deve ser vista. Como, entretanto, esses problemas nfo sio exclusiva- mente nossos, incursionamos pela doutrina estrangeira. E que pensamos nao ser possivel empreender-se um auténtico esforgo de interpretagao, sem “o abandono do co- mum e corrente” (Heidegger). Ver-se-, contudo, sobretudo a partir do Capitulo 4, esta constante preocupacao que nos anima: procurar obter um novo aleance de sentido para determinados preceitos de nossa legislacdo os quais, segundo a opiniao generalizada dos autores, apresentam-se em oposicao ao prine{pio nullum crimen sine culpa, base de todo o sistema penal vigente. A existéncia dessa antinomia ou contradigao de prin- cipios sempre sensibilizou-nos, no dia-a-dia do exercicio profissional, e parece-nos que o intérprete nao deve dei- xar-se levar ao desalento, ao conformismo, sem antes ter v empreens superécla, lo um esforgo sério no sentido de procurar ., Por outro lado, 0 estigio atual de desenvolvimento da Ciéncia Penal jé oferece novas opgées validas, ainda nao totalmente exploradas entre nés. Daf a evocacao do ensinamento de autores estrangei- 10s como recurso extremo, para que pudéssemos alcancar, através de novas trilhas, um ponto de chegada que aio fosse 0 mesmo daquele tantas vezes visitado ¢ explorado por todos quantos percorreram a velha estrada aberta, ha cerea de dois mil anos, pelos romanos. Sem isso, este trabalho nfo teria valido a pena. Quanto as tradug6es para o verniculo de algumas das citagdes feitas, embora conscientes das dificuldades que isso representa, preferimos enfrentar essa dificil empreitada, com 0 tinico propésito de tornar a exposigao do tema aces. sivel a um maior ntimero de leitores. Valemo-nos, contudo, quando possivel (infelizmente nem sempre o foi), de algu: mas tradugoes realizadas por Lape € penalistas ilus- ties. Em relagao a obra de Welzel, embora dispondo A mio da versao castelhana (v. bibliografia), que por vezes con- sultamos, preferimos a utilizagio do original alemao para explorar alguns efeitos lingiisticos que nao poderiamt ser obtidos, obviamente, a partir de uma traducao (cf., por exemplo, o realce dado aos termos Unterschied e Gegensutz, no Cap. 8, 2). Agora, uma afirmagdo. Relutamos em acejtar a opiniao dos que pretendem transferir exclusivamente para o legis- lador a solugao da antinomia inicialmente apontada. Essa é, a nosso ver, uma tarefa do intérprete. Os grandes temas da Teoria Geral do Direito, antes de qualquer elaboracao legislativa, precisam ser tratados, de- senvolvidos e suficientemente esclarecidos pela doutrina e pela jurisprudéncia dos tribunais, dentro de um sadio em- Bate de iSdias. Quando a lei se antecipa, casuisticamente, VI a este processo dialético, mais prejudica do a beneficia: provoca o estiolamento do que reputamos fundamental para © desenvolvimento da Ciéncia Penal — a criatividade. Na prépria Alemanha jé se levantaram vozes contra a regulamentacio legislativa do erro de proibigao, sob funda- mento de que “a polémica cientifica” entre as teorias do dolo e da culpabilidade “néo devia ser interrompida por meio legislativo” (Arm. Kaufmann, citado por Walter Stree, in Tinfidre in das neue Strafrecht, Roxin-Stree-Zipf-Jung, 2. Aulf., Beck, 1975, pigs. 49/50). Estaremos contribuindo para suscitar, entre nés, algu- ma polémica sobre os temas a seguir examinados? Se esti- vermos, embora as idéias apresentadas possam nio ser acei- tas, 0 esforco de pesquisa empreendido, nas raras horas de folga ensejadas pelo grande acimulo de trabalho existente no Ministério Publico Federal, nao teré sido em vio. Se no, resta-nos 0 consolo: valeu a intencao. Registre-se finalmente que, na resenha bibliogrétfica, incluimos apenas as obras expressamente citadas no texto, mais duas tradug6es facilmente encontraveis da obra de Welzel, embora muitos outros autores, igualmente dignos de figurar entre 0s citados, tenham sido consultados. Afi- surou-se-nos, porém, que a necessidade de sintese, dentro los limites que nos impusemos, nao permitiria, neste ter- reno, irmos além do estritamente necessério, sob pena de transformarmos um pequeno trabalho em uma grande col- cha de retalhos. Francisco de Assis Toledo Brasilia, janeiro de 1977. VIL Indice PREFACIO porecrcocco Capitulo 1 — CONCEITO DE ERRO . Capitulo 2 — LOCALIZAGAO SISTEMATICA DO ERRO 1. Colocagéo do problema ..... 5 A teoria do dolo .... 6 @) Primeira fase da evolusio do conceito de “eal pabilidade” cen 6 ab) 0 dole. 30 3. A teoria da culpabilidade . “ b) Segunda fase da evolugio do conceito de cul pabilidade eee “ ba) Culpabilidade e lberdade .. 16 bb) Teorias da culpabilidade - - 0 4. Algumas consideragies eriticas ...... 8 Capitulo 3— ERRO DE FATO E ERRO DE DIREITO.. 31 1. Error fact, error iris. eee te oll 2. Bro de fato, ero do direto. Erno de dicelto ex- ‘uapenal rn 6) 1x Capitulo 4 — 0 ERRO DE THRO 1 3 Qe de justo. Tipo pemnisivo, Tipo abjetivo, po subjetivo 2. Emo de tipo: conceto e objeto Limites da eseusabilidade do erzo de tipo. O dincto brasileiro a) b) e) Emo essencial ¢ erzo acidental. Residuo culposo. Erro sobre os pressupostos faticos de uma causa de justificagio. Descriminantes putativas Crime putativo ¢ tentativa impossivel. Crime provocalo pela autoridade Ero provocado por terceiro . Erro sobre 0 objeto ou erro sobre a pessoa. Erro na execugéo. Aberratio ictus, Aberratio delict. Erro sobre o processo causal. Aberratio causac. Erg sobre a exténa de cremstincas gual ficadoras, agravantes ¢ atenuantes Eno sobre o dover de eta o resultado Cj "pos sigio de garantidor") ... Capitulo 5 — ERRO DE PROIBICAO. TEORIA E APLI- 1 2 Nota introdutéria .....- Ero de proibigio. A falta de comsinia da shiek. tude. a) >) °) CACAO AO DIREITO BRASILEIRO ia da iicitude ...... da acade « e iguortnca head Falta de conscién da lei... cee ee ee Si doutrina penal brasileira e a an a 4 outing re 8 bide ca) A. J. da Costa e Silva . cb) Galdino Siqueira cc) Basileu Garcia cd) E, Magalhies Noronha . ce) José Salgado Martins ....... er 70 2B 76 cf) Frederico Marques, Paulo José da Costa Jr. Bverardo Cone Luna cg) Anibal Bruno e Heleno Claudio Fragoso. ch) Nélson Hungria . Capitulo 6 ~ LIMITES DA ESCUSABILIDADE DO ERRO DE PROIBICAO 1. Erro de proibigio imescusivel (evitivel). Erro de proibicio escusivel (inevitavel) .... os 2. Classificagio do erro de proibigio 3. Espécies de eo de proibigio .. a) Erro de proibigio direto . b) Emo de mandamento ...... ¢) Erro de proibigio indireto . ca) Legitima defesa e legitima defesa putativa. cb) Legitima defesa da honra . cc) Estado de necessidade cd) Estrito cumprimento de dever legal e exer~ cio regular de direito : ad) Ero de vigéncia : 5 e) Eno de eficécia. Repercussio na area do di reito penal tributirio . f) Ero de punibilidade ) Exro de subsingio . hh) Outeas formas de eo. Obedidncia hierdrquica, Norma penal em branco. © autor por coniepio religiosa bon Capitulo 7 - CONCLUSOES BIBLIOGRAFIA Phe. 80 90 80 % % 100 102 102 105 107 109 uo us us uy 19 122 133, 129 135 XI Capitulo 1 Conceito de Erro Um dos mais difundidos adégios expressa, em lingua latina, verdade que cada um pode constatar em sua propria experiéncia existencial: errare humanum est. Exrar é hu- mano, ou melhor, é um atributo do homem, faz parte da natureza humana. Nao poderia, pois, a Ciéncia do Direito, que se situa entre as que tém por objeto fatos humanos, deixar de ocupar-se seriamente com tal fenémeno. ‘Uma nosao inicial de erro pode ser colhida nos ensi- namentos do civilista italiano Alberto Trabucchi: “quando, na determinagao da sua vontade, o sujeito age por igno- rincia, ou por falso conhecimento do estado dos fatos, 0 ato que disso deriva deve ser valorado de modo diverso do ato evado a cabo com perfeita consciéncia e conhecimen- to” *. O erro resulta, pois, de uma auséncia ou falha da per- cepgio, ou de uma auséncia ou falha do raciocinio. A valorizagio diversa a que se refere 0 autor citado é de fato realizada pelo direito, civil ou penal. Todavia, no Novissimo Digesto Italiano, verbete “Errore (Diritto Civi- le)”, vol. VI, pg, 656. campo do direito penal, ao qual nos restringimos, histori- camente, nem sempre o foi pela mesma forma. Nota-se, na doutrina, uma eee evolugio das rigidas con- cepedes doginiticas do passado para uma atitude de maior tolerancia com o erro, cada vez mais ampliando-se a area de sua aceitagdo e escusabilidade. E nao sé na doutrina. Recentemente, coroando de éxito uma penosa construgio teérica, na qual o génio criador alemao tanto se empenhou, adotou a reforma penal da Alemanha Federal a figura do “erro de proibicao” (Verbotsirrtum, StGB, § 17), desig- nagao abreviada para o “erro sobre a ilicitude do fato real” (“.,. Intum uber die Rechtswidrigkeit der wirklichen Tat”)*. Comecemos, entretanto, por esclarecer conceitos, j4 que 0 vocabulo erro nao é univoco. Predomina o entendimento de que 0 erro compreende a ignorincia , sendo aceita pela grande maioria dos autores a equivaléncia entre ambos os termos, “especificando uns (Savigny) que as duas nogées se unificam naquela de ignorancia; outros (Manzini, Mag- giore) que se unificam na do erro”*, Eis a conclusio de Manzini; “em substancia, ignordncia e erro exprimem um Ymico conceito, a primeira reduzindo-se sempre (quando se refere a uma ago ou omisséo) ao erro, e todo erro deri- vando necessariamente da ignorancia do verdadeiro; por isso as mesmas regras que valem para uma valem para 0 outro” 5, 2. Hans Welzel, Das Deutsche Strafrecht, 11 Auflage, pag. 167. 3. Giuseppe Maggiore, Diritto Penale, 5 ed., pig. 391: “Ex. rore @ la deficente o insulfciente conoscenza della vert, cio® uno sviamento del giudizio. Esso comprende quindi anche lignoranza: questa @ un errore totale, come Yerrore @ un'ignoranza parziale” 4, Raoul Alberto Frosali, in Novissimo Digesto Italiano, ver- bete “Errore (Diritto Penale)”, vol. VI, pig. 673. 5. Vieenzo Manzini, Trattato di Diritto Penale Haliano, 4 ed., vol. II, pag. 18. 2 A influéncia dessa orientagéo muito antiga, tradicio- nal, se faz sentir nos cédigos que, de um modo geral, nao distinguem 0 erro da ignorincia, O Cédigo Civil, entre nés, equipara-os, como se vé pela Seco I, Cap. I, Tit. I (arts. 86 a 91). O mesmo se diga em relagio ao Cédigo Penal de 1940 e ao de 1969 (ainda nao em vigor), mais adiante examinados. Nao obstante, forgoso é dizer que ignorincia e erro nao exprimem o mesmo e tnico fenémeno. Costuma-se apon- tar a primeira como um estado negativo, isto é, a auséncia de qualquer nogio sobre 0 objeto do conhecimento. O agente desconhece simplesmente a existéncia do objeto. O segundo, diferentemente, & a falsa nogao; é um estado po- sitive. Se na ignorancia o conhecimento de algo falta, no erro ele chega a formar-se mas de maneira falsa *. Frosali esforgou-se meritoriamente por extrair conse- qiigncias dessa distingio. Constatou que o erro implica sempre e pressupde um estado de ignorincia, enquanto que a reciproca nao ¢ verdadeira, pois a ignordncia nem sempre & acompanhada de erro”, Verificou, mais, que 0 erro é sempre inconsciente. Se o sujeito conhece certamente que erra ou sabe da possibilidade de errar, 0 erro desaparece, visto como juridicamente “nao se pode estar ou permanecer voluntariamente em erro”. A ignordncia, por outro lado, tanto pode ser inconsciente (ignorncia acompanhada de erro), como consciente (ignordncia pura ou estado de di- vida), nos seguintes exemplos: “vejo uma sombra: se ndo sei a que coisa compard-la, estou em ignorincia plena, consciente, isto é, desacompanhada de erro; se me parece, porém, um homem, mas disso néo estou certo, esta minha suposig&o especifica me pée em estado de divida” *. 6. Luis Jimenez de Asia, Tratado de Derecho Penal, t. VI, pag. 313. 7. Op. cit, pig. 673. 8. Op. cit, pig. 674. ‘A grande maioria dos autores, bem como 0 dircito positivo, acolhem, conforme ficou dito, a tese unificadora dos conceitos, inicialmente exposta. Parece-nos, entretan- to, que as agudas observagées de Frosali nio devem ser desprezadas simplesmente, pois nao se pode negar o seguin- te: a ignordncia consciente ou a duvida dos exemglos cita- dos nao caracterizam, na pratica, o erro juridico-penal mas, antes, apresentam-se, conforme as circunstncias, como con- figuradoras da culpa ou do dolo eventual. Se de um lado no existe incompatibilidade entre culpa e erro, 0 mesmo no se pode dizer entre dolo e erro de tipo, conforme ve- remos mais adiante. Capitulo 2 Localizagao Sistematica do Erro 1. Colocagao do problema. HA polémica muito séria em tomo do lugar em que deva ser localizado 0 erro na estrutura do crime, agrupan- do-se os autores em duas correntes inconcilidveis, denomi- nadas, na Alemanha, teoria do dolo (Vorsatztheorie) ¢ teo- ria da culpabilidade (Schuldtheorie) Segundo a primeira, 0 erro, seja de que natureza for, exclui sempre o dolo. Ao ver da segunda, ha que se distin- guir “entre erzo de tipo excludente do dolo e erro de proi- bicdo excludente da culpabilidade” (... “zwischen dem vorsatzausschliessenden Tatbestandsirrtum und dem schuld- ausschliessenden Verbotsirrtum”. . . ‘A teoria do dolo procura dar ao problema do erro uma solucdo unitaria, situando-o sempre como causa de exclusio do dolo; ja a teoria da culpabilidade oferece solugao dua- lista, situando-o ora como causa de exclusio do dolo, ora como causa de exclusao da culpabilidade. 9 Welzel, op. cit., pag. 166. Esta divergéncia 6, todavia, resultado de outra mais profunda entre os partidatios das referidas teorias, pois no esto de acordo sequer a respeito do conceito de “culpabi- lidade”, ou a respeito do contesdo e da localizagao, na es- trutura do delito, do préprio dolo (v. infra). Nunca foram, alids, tio atuais estas palavras de Mez- ger: “O problema da culpabilidade o problema do pré- prio destino do direito de castigar. Nao deve, portanto, estranhar-nos que, em uma época em que tao vivamente se discute sobre o destino do Direito Penal, as opinides sobre 0 conteido e a esséncia prépria da culpabilidade juridico. peal se choquem e divirjam sem esperangas de conseguir armonia” '°, 2. A teoria do dolo. a) Primeira fase da evolugdo do conceito de “culpa- bilidade”™, A dogmatica penal mais antiga via no dolo e na culpa “a” culpabilidade. Para ela o dole e a culpa stricto sensu eram as duas espécies possiveis de culpabilidade. Com isso elaborava-se uma concepgio naturalistica, psicoldgica, da culpabilidade, como ressalta Eduardo Correia: “... a culpa configura-se, para esta construg&o, como nexo pura- mente subjetivo que se esgota nas duas relacdes psicolé- gicas que podem interceder entre o agente e 0 seu fato: 0 dolo e a negligéncia, que assim assumem o valor de espécies de culpa” ®, 10. Tratado de Derecho Penal, trad. José Arturo Rodriguez Mnioz, vol. Il, pig. 45. 2. Diente dos objeivos a que nes promos, julainos desne cessirio remontar a pesquisa a épocas primitivas’ da responsabili- dade sem culpa, da pur responssbildade pelo results. 12 Mezger, op. cit, pag. 98. 13. Eduardo Correia, com a colaboracio de Figueiredo Dias, Direito Criminal, Coimbra, 1968, vol. 1, pag. 319. 6 Entre nés, Heleno Fragoso registra essa fase como “a rimeira formulagao técnica da culpabilidade” que, por co- locar em realce 0 nexo psicolégico que liga 0 agente ao evento, recehe 0 nome de “teoria psicolégica da culpabili- dade” "*, Tal concepgao revelou-se, porém, insuficiente diante da verificagao da impossibilidade de se estabelecer qualquer ligagdo psicoldgica entre o agente e o fato, no caso da cha- mada culpa inconsciente. Impunha-se, pois, ou renunciar a um conceito unitario de culpabilidade, ou encontrar o elemento que fosse comum ao dolo e a culpa em sentido estrito". Preponderou a ultima solugéo, com a construgo da denominada “teoria normativa da culpabilidade”, fundada por Frank (Uber den Aufbau des Schuldbegriffs, 1907). No desenvolvimento desta teoria, a culpabilidade jurfdico- penal deixa de ser uma situagdo puramente naturalistica, psicoldgica, para erigir-se “em uma situagio fatica valori- zada normaticamente”. Esta iltima afirmacéo é de Mezger € resulta da sintese de duas proposigies antitéticas: 1*) aculpabilidade é antes de tudo uma determinada situagio de fato, de ordindrio psicolégica (situagdo fatica da culpabilidade); 2.2) a culpabilidade, ao contrério, é um juizo valo- rativo. Sintese: a culpabilidade é, ao mesmo tempo e sempre, um juizo valorativo sobre a situagao fatica da culpabilidade (a denominada concepgao normatica da culpabilidade)"*, 14, Heleno Fragoso, Ligées de Direito Penal, Parte Geral, Bushatsky, 1976, pég. 211. 15, Welzel, op. cit, pags. 199/1 pig. 320, 16. Mezger, op. cit, pig. 3 ‘duardo Correia, op. cit, Fecha-se, aqui, com 0 advento da concepgao normati- va, uma fase da evolucao do conceito de culpabilidade que ja nao tem um caréter puramente psicolégico, mas apresen- ta-se mesclada dos anteriores elementos an{micos com 0 juizo de censura que se faz ao agente pelo seu comporta~ mento. Com isso 0 dolo e a culpa stricto sensu deixam de ser “espécies” de culpabilidade para se transformarem em “elementos” componentes do mencionado “juizo de cen- Dentro desta concep¢io normativa, a culpabilidade é, pots, essencialmente, um juizo de reprovacdo a0 autor do fato, composto dos seguintes elementos: imputabilidade; dolo ou culpa stricto sensu (negligéncia, imprudéncia, im- pericia); exigibilidade, nas circunstancias, de um compor- tamento conforme ao direito. Assim, a censura de culpabilidade pode ser feita ao agente de um injusto tipico penal se ele, ao praticar a aco punivel, no agiu de outro modo, conformando-se as exigén- cias do direito, quando, nas cixcunstancias, podia té-lo feito, isto é: estava dotado de certa dose de autodeterminagao e de compreenséo (imputabilidade) que 0 tomava apto a frear, reprimir, ou a desviar sua vontade, ou o impulso que 6 impelia para o fim ilicito (possibilidade de outra con- duta) e que, apesar disso, consciente e voluntariamente (dolo}, ou com negligéncia, imprudéncia ou impericia (culpa stricto sensu), desencadeou o fato punivel. Sem razdo Antolisei quando, supondo estabelecer cri- tica definitiva a certos seguidores da concepgio normativa, afirma que 0 contetido psiquico da vontade culpivel & de- masiado importante para ser relegado a um segundo plano e que a acentuagao do juizo de valor (censurabilidade ou reprovabilidade) conduz a entender que o elemento alu- dido “no reside na psique do réu, mas na cabega de quem 17, Eduardo Correia, op. cit, pags. 320/321. pronuncia aquele juizo, isto ¢, do juiz, o que seria verda- deiramente absurdo” *. Rosenfeld, citado por Maurach, também havia dito que a sede da culpabilidade, como juizo de valoragao, passou “da cabeca do autor para a cabeca de outros” ”. E Mezger nio via nisso obstéculo intransponivel, in verbis: “Puede parecer extrafio a simple vista la idea de que ‘a culpabili- lad’ de un hombre no deba radicar en su propia cabeza, sino ‘en las cabezas de otros’. Pero fijémonos en esto: el juicio por el que se afirma que el autor de una accién antijuridica y tipica la ha cometido también ‘culpablemen- te’ se enlaza, en verdad, en una determinada situacién fac- tica de la culpabilidad que yace en el sujeto, pero caloriza ala vez esta situacién considerindola como un proceso re- prochable al agente. Sélo mediante este juicio valorativo del que juzga, se eleva Ja realidad de hecho psicolégica al concepto de culpabilidad” ®. Nao obstante a evolugao do conceito de culpabilidade, de uma concepgio inicialmente naturalistica, psicoldgica, para outra mais ampla e enriquecida — a normativa — 0 dolo, tanto em uma como em outra, seja como “espécie de”, seja como “elemento da’, continua situando-se, dentro da estrutura do delito, na culpabilidade. Ainda nao se fizera © “giro copernicano” de Welzel segundo o qual 0 dolo, como elemento intencional da acao finalistica, iria trans- ferir sua sede para o tipo. Esta ulterior evolugéo do con- ceito de culpebilidade serd tratada quando cuidarmos da “teoria da culpabilidade” (Schuldtheorie). Por ora im- porta determomos na concepcao normativa A qual acaba- mos de aportar, pois é nela que se insere a chamada “teoria 18. Manual de Derecho Penal, Parte General, trad. Juan del Rosal e Angel Torio, Buenos Aires, pig. 241 19. Reinhart Maurach, Tratado de Derecho Penal, trad, Juan Cbrdoba Roda, Barcelona, vol. II, pig. 20. 20. Op. cit, pags. 3/4. do dolo” (Vorsatztheorie), que nos propusemos de infcio 4 expor para 0 estudo da Toeaizagto do ero na estrutura felito. Vejamos, entao, 0 que seja 0 dolo dentro da concepgio normativa, pois, se de um lado situamo-lo como um dos elementos da culpabilidade, de outro ainda nao 0 exami- namos de frente. ab) O dolo. Os latinos tomaram do grego 0 vocdbulo dolus para exprimir substancialmente o conceito de “asticia’, de “en- gano”®. Distinguiam, porém, o dolus bonus do dolus malus: © primeiro era usado para indicar a asticia, o ultimo seja para 0 engano a que se seg um proveito ilicito, seja para a intengdo perversa que dirige um ato delituoso *. Essa nog3o romana de dolo predominou ou teve gran- de influéncia por largo periodo histérico. Entre os glosa- dores e pés-glosadores vamos encontrar, no conceito de dolo, esta caracteristica apontada por Florian: “& nogio de dolo associava-se a idéia de malvadez, de propésito cruel, de intencao perversa e criminosa”®. Jimenez de Asta sa- lienta que “no direito romano, no candnico, no medieval e até em textos do século passado, se adjetivara 0 dolo de mau em contraposigéo ao bom, segundo o artificio fosse dirigido a fins bons ou perversos” Em nosso direito, tal concepgéo dominou até ha bem pouco, conforme noticia Galdino Siqueira, ao comentar 0 Cédigo de 1890: “Conceituando o dolo, 0 nosso anterior 21. Carlo Gioffredi, 1 Principi del Diritto Penale Romano, To- ino, 1970, pag. 67 22, Thidem, pag. 68. No mesmo sentido Manzini, Trattato dé Diritto Penale Ta¥iano, vol. 1, pag. 706, nota 4. 23. Eugenio Florian, Trattato di Diritto Penale, 1906, vol. 1, pags. 188/189. 4. Op. cit, vol. V, pag. 306, 10 cddigo de 1830, fazia consisti-lo na ‘mA £é, isto 6, no conhe- cimento do mal e intencao de o praticar (art. 8°), conceito mantido pelo vigente cédigo (arts. 24 ¢ 42, § 1.°)"*5, E nessa tradicao milenar que deitam rafzes as atuais concepgdes normativas do dolo, segundo as quais, para a configuracao do dolo, nao basta a mera vontade (o elemento volitivo), ou esta acrescida da previsio ou representagao do resultado (elemento intelectual), mas é necessiria também, além daqueles elementos, a consciéncia do carater proibido da acdo ou omissio (elemento normativo): “A considera- gio do dolo como elemento da culpa juridico-penal logo conduz, para muitos, 4 conclusio de que aquele se nao esgota no ‘conhecimento e vontade de realizacéo de um fato tipico’ (nfo é portanto mero ‘dolo natural’, ‘dolo do fato’ ou ‘dolo do tipo’). A este ha de acrescer um elemento juridico-normativo especifico que seja expresso da valo- ragao em que o dolo se integra e o tore em auténtico ‘dolo juridico’, ‘dolo normativo’ ou dolus malus, sé ele capaz de fundamentar a aplicagao ao agente da moldura penal mais grave prevista para o fato. Ora, o tnico elemento que res- ponde total e justamente a estes requisitos 6 a consciéncia atual da ilicitude.. .”*, 25. Galdino Siqueira, Direito Penal Brasileiro, 2* ed,, 1932, pig. 299. 26. Figueiredo Dias, O Problema da Consciéncia da Micitude em Diteito Penal, Coimbra, 1969, pég. 148, Sebastian Soler, com magnifico exemplo ressalta: “Sea que se haga consistir el dolo en la representacidn del resultado, sea en la voluntad de producirlo, debe tenerse bien presente que dolo es una ibn técnico-furl- dia, que no se ideatifiea af con voluntad nl com representa, ni con itencién, en el valor natural 0 psicolégico de estos términos. Es manifiesta Ta inoorrecién que se cometeria diciendo que el far- macéutico vendib dolosamente bicarbonato, porque efectivamente guiso despacharlo, lo hizo con intencién. Intencién, voluntad, re- Presentacién, son’ conceptos psicolégicos, valorativamente neutros. El dolo supone siempre eso y algo més: Ia relacién a un orden nor- mativo, frente al cual el hecho ha sido con anteriorided Iégica ca- ll Neste ponto, podemos afirmar que, caminhando no interior de uma concepgo normatica da culpabilidade, atingimos uma concepgao também normativa do dolo, conceitos esses que, entretanto, nio se confundem. Ora, é precisamente dentro desta concepgdo normativa do dolo que vamos encontrar a “teoria do dolo” (Vorsatz- theorie) ou melhor as “teorias do dolo” (Vorsatztheorien), que inserem a consciéncia da ilicitude (= consciéncia do injusto) no dolo como um de seus elementos constitutivos. Estas teorias consideram que o atuar doloso sé se verifica quando © agente atua com a consciéncia do injusto. Fal- tando esta consciéncia, exclui-se a punigao a titulo de dolo. Todavia, o erro de proibicao negligente, culpavel, conduz a penalizacao por culpa, se para esta bipétese se comina pena” Para estas teorias, 0 erro deve ser tratado, pois, no juadro do dolo*, ou melhor, deve ser visto como a teoria lo dolo “considerada de um ponto de vista negativo”, no dizer de Mezger, com apoio em Frank e outros: “... no es recomendable en modo alguno, designar el error como una especial ‘causa de exculpacién’ o de ‘exclusién de Ja culpa- bilidad’. Mas acertadamente se ha expuesto, con frecuen- cia, la teoria del error como la ‘teoria del dolus considerada desde el punto de vista negative’ como ‘la cara inversa de la teoria del dolo’, expresindose al hacerlo que Ja teoria del error sélo representa um cambio del punto de vista del que en cada caso considera el problema”®. Tificado como licito © ilicito. Asi, en el ejemplo citado, basta su- poner que en vez de bicarbonato se trata de una droga peligrosa y de venta prohibida y delictiva, para que la incorreccién del término desaparezca; en tal caso, Ia accién de vender la droga es una accién dolosa” (Derecho Penal Argentino, 4% ed., 1970, vol. 1, pég. 87). /. Mezger-Blei, Strafrecht I, Allgemeiner Teil, 16 Auflage, C. Hi. Beck, 1975, pag. 175. 28, Eduardo Correia, op. cit, pags. 410/411. 29.. Op. cit, pag. 95. 12 Compreende-se facilmente esta posi¢ao dogmitica se, retomando a jé vista concepgao normativa do dolo, lembrar- mos que, para esta corrente, o dolo é dolo do fato mais consciéncia da ilicitude (0 elemento normativo). Ora, o erro, seja como ignordncia, seja como falso co- nhecimento, anula precisamente ou o elemento intelectual (previsto ou representacéo do resultado) ou 0 elemento normativo (consciéncia do cardter proibido da ago ou omis- so). Se ambos esses elementos sao, dentro desta concepeéo, integrantes do dolo, basta a auséncia de um deles para a descaracterizagao do dolo. Assim, para os adeptos da teoria do dolo, 0 cagador que mata um homem atras do arbusto, pensando sinceramente atirar em uma caca (erro sobre elemento fatico do tipo), age sem dolo (auséncia de pre- visio ou representagio do resultado — elemento intelectual), tanto quanto age sem dolo a pessoa rude que subtrai coisa alheia do devedor, acreditando estar autotizada a exercer um direito de auto-ajuda para a solugao da divida (ausén- cia da consciéncia da ilicitude — elemento normativo). Na citagio de Mezger-Blei, fala-se em “teorias do dolo”, no plural. £ que na Alemanha costuma-se distinguir a de- nominada “teoria estrita do dolo” (strenge Vorsatstheorie) da chamada “teoria limitada do dolo” (eingeschriinkte Vor- satztheorie). A primeira conduz ao principio ilimitado de que a falta de consciéncia do injusto deve excluir sempre o dolo. A segunda, sem afastar ou negar a primeira, con- sidera as necessidades praticas da vida juridica, para admitir também um atuar doloso, quando, em casos isolados, falta ao autor aquela consciéncia devido a sua posigao censurdvel de auténtica “inimizade do direito” (Rechtsfeindschaft)”. 30. Mezger-Blei, op. cit, pag. 176. Figueiredo Dias expoe mi- racinut teres en tg dba jbtitala (O Problema da Consciéncia da Ilicitude...) e salienta: “b) Exactamente uma dé- cada depois desta tomada de posigao de Beleza dos Santos vem Mezger a propor, na Alemanha, uma construgio absolutamente pa- 13 Em que condigées e dentro de que limites serd acei- tavel a escusabilidade desta falta de consciéncia do injusto é matéria que veremos, oportunamente, quando do exame do “erro de proibigao”. 8. A teoria da culpabilidade. oe Segunda fase da evolugao do conceito de culpa- Conforme acenamos linhas atrés, a concepgio norma- tiva da culpabilidade representa momento ante de requintada elaboragéo dogmatica — um grande passo adian- te, sem romper totalmente com 0 passado. Esse rompimento comegaria paralelamente a ter inicio com a descoberta dos elementos subjetivos do injusto, que acarretou como con- seqiiéncia a necessidade de se reelaborar 0 conteddo dos elementos estruturais do delito da primitiva construgio de Beling. Para Roxin, “a distingao entre injusto e culpabili dade € considerada com razao uma das perspectivas materiais mais importantes que nossa ciéncia do direito penal logrou elaborar nos iiltimos cem anos. Ademais — continua 0 mesmo autor — a discussio sobre a delimitagio talela © que encontrou larga aceitaglo. De acordo com ela o ver~ Gadeiro dalo resulta da eopeato do'dolo do fae eon'y cocectnce atual da ilicitude. Quando, porém, a falta desta derive de uma especial configuragio da personalidade do agente — a sua cegueira, ou melhor, a sua inimizade ao direito, traduzida nas suas ‘concep: ges ovignariamente falsas sobre 0 que & Wit ilcito’— ela nao pode relevar juridicamente, nem, por conseguinte, iz apli- Pe ae aa ann tem ecm, ped ph 0 fato. "Nao se trata aqui de unia “ogio de doldy nar apenat de Punir 0 agente como um agente doloso — 0 que se justifies pela conexio do principio de que uma posigio censurivel do. agente perante as exigéncias fundamentais do dieito nunca The pode epro- Veitar com a idéia de que, nestas hipéteses, ao dolo do fato acresce uma particular ‘culpa na condusio da vida’ que justamente estd na base daquela posigio censuravel” (pag. 152). 14 e 0 conteido de ambas as categorias do delito ocasionou alguns resultados que hoje podem ser considerados seguros, a saber: no se pode dividir limpidamente injusto e culpa- bilidade em 0 externo e 0 interno, em elementos objetivos e subjetivos, como se fazia no sistema ‘clissico’ de Be- ling”... ®. Operou-se, pois, uma fissura na rigida dico- tomia, que até entdo servia de apoio a estrutura classica do crime: “todo elemento externo-objetivo, na antijuridicidade, e todo elemento interno-subjetivo, na culpabilidade”. Dai por diante, porém, ninguém poderia estar seguro de que, sob influxo de novas idéias, permanecesse intacto qualquer sistema, por mais tradicional ou engenhoso que fosse. E, com efeito, mantida apenas a forma da estrutura do delito como “aco tipica, antijuridica e culpavel”, no interior dessa estrutura introduz-se verdadeiro intercambio de elementos: a tipicidade se transforma em um “tipo de iicito” (Unrechtstypus); a antijuridicidade é concebida nao mais como violacao formal da norma, mas “materialmente” como violagao do bem juridico ou como expresso da dano- sidade social do fato *; séo ressaltados os elementos subje- tivos do injusto e os objetivos da culpabilidade; enfim — diz Wiirtenberger — sob a pressio do neokantismo e da filosofia dos valores, a concepgao “classica” do crime, “im- jonente na sua simplicidade e linearidade”, sofreu pro- Rindas modificagées, depois, sob influx de novas correntes, filoséficas como a fenomenologia, a ontologia e ética dos valores, renovam-se ataques, muito mais violentos, contra © tradicional sistema da construgao do delito®. Surge a doutrina “finalistica” da agdo, com Welzel e seus seguido- 31. Claus Roxin, Problemas Bdsicos del Derecho. Penal, trad. Diego-Manuel Luzén’ Petia, Madrid, 1976, pag. 200. 32, ‘Thomas Wiirtenberger, La Situasione Spirituale della Sciencia Penalistica in Germania, Giuffré, 1965, pag. 7, trad. Mario Losano e Franco G, Répaci. 33. Op. et loc, cit 15 res: 0 conceito de agao, até entéo de pequena importancia, relegado a segundo plano, recebe novo tratamento (“a agao é um acontecer final, niio meramente causal”) e vem a i constituir 0 nticleo do novo sistema; o tipo passa a ser a sede do dolo ¢ este o elemento intencional, finalistico, da agio; a culpabilidade retém apenas 0 momento normativo da reprovabilidade da resolugio da vontade. Se, enfim, passarmos em revista o desenvolvimento dogmatico da doutrina do crime nestes tiltimos anos — es- creve Wiirtenberger em fins da década de 1950 — 0 olhar dirige-se criticamente sobre a rapidez amide surpreendente ciara oes pose aac pela lee ata posigdes dogmaticas”... *, E essa sera, com efeito, uma caracteristica a marcar a doutrina penal até os nossos dias. Nao é facil, pois, dentro desse panorama, fazer-se uma segura sintese da evolugio do conceito de culpabilidade entre os autores que, de uma forma ou de outra, evoluiram da inicial concepgio nor- mativa. Néo obstante, tentaremos expor, pela importancia que assume na Alemanha e fora dela, a chamada “teoria da culpabilidade” (Schuldtheorie), tanto quanto seja necessé- rio para a solucdo do tema do erro, Vejamos, entretanto, antes disso, embora superficialmente, questio prévia de suma importancia, ba) Culpabilidade e liberdade. Vimos que a culpabilidade, deixando de ser uma si- tuagio puramente naturalists, pscolgia, adquira fisio- nomia de um jufzo de reprovagao, ou de censura, ao autor do fato. Este juizo baseia-se na constatagao de que o autor teria podido adotar, nas circunstincias, em Iugar da reso- Jugio da vontade antijuridica, uma resolugao de vontade | de acordo com a norma (Wezel). 34. Op. cit, pig. 8. 16 Quem nio estiver em situagao de poder optar por uma entre pelo menos duas formas possiveis de comportamento, uem fez irremediavelmente a tmica coisa que poderia ser feita, sem ensejo de escolha, sem qualquer possibilidade de no minimo opor inibigao ao estimulo motivador do ato praticado, este evidentemente nao pode ser censurado pelo fato a que deu causa. Nao agiu culpavelmente. Na base deste raciocinio, segundo 0 qual culpabilidade & “poder agir de outro modo”, esté sem davida o grave problema da liberdade, pois aqui se poe necessariamente ‘a questao de saber se ao homem € dado realmente “poder agir de outro modo”. A complexidade da matéria ndo com- porta desenvolvimento em um trabalho limitado como o Presente. Pode-se, entretanto, adiantar que a liberdade j4 nao € aqui entendida como puro e fantasioso “indeterm! hhismo” dentro da aporia “livre arbitrio ou determinismo”, mas é enfocada em um quadro antropologico, ilustrado por Welzel com a seguinte citagdo de Schiller: “Com 0 animal e com a planta indica a natureza nio apenas o destino mas também 0 realiza ela propria. Para o homem, porém, dé ela (a natureza) apenas o destino e deixa-lhe o encargo de sua realizagao... $6 0 homem tem, como pessoa, entre todos os seres viventes, a prerrogativa de com sua vontade por as maos no circulo da necessidade, inviolivel para os seres somente naturais, e de dar inicio em si proprio auma completamente nova ordem de fenémenos” *. Esta genial visio do homem coincide com a que foi enunciada'de outra forma por Ortega Y Gasset: “Vida é, a um s6 tempo, fatalidade e liberdade, é ser livre dentro do vazio de uma fatalidade dada” *, Na mesma directo Recasens Siches: “E] hombre es, en definitiva, ciudadano 35. Das neue Bild des Strafrechtssystems, 4. Aufl, 1961, pig. 47. 36. Citado por Recasens Siches, Vida Humana, Sociedad y Derecho, 32 ed., 1952, pig, 66. 17 de dos mundos, por asf decitlo, del mundo de Ja naturaleza y del mundo de fos valores y fines: y tend un puente entre ambos. Al tomar decisiones, obra como ciudadano del mundo de los valores y de los fines; e irrumpe, como nueva causa, en el mundo de la naturaleza” ” Causalidade liberdade sio assim conceitos que nao se excluem, ao coutrério do que supunham os antigos se- guidores das correntes do determinismo ou do livre arbitrio. Segundo Max Scheler, “Diga yo entonces: el yo puede decidir ‘libremente’ ante estos motivos; o: esta determinado por el llamado motivo ‘mas fuerte’ — siempre caeré en error. En el primer caso, en el puro indeterminismo (que es re. chazado por Bergson). Porque un acontecer sin causa no existe. En el segundo caso siempre calificaré — a posteriori — como ‘més fuerte’ a aquel motivo que corresponde a la accién realizada. Mas esto no es sino una calificacién ar- Ditraria, que nada explica. Porque no me es posible medir previamente los Hamados motivos de acuerdo con su fuerza, y predecir, independentemente del yo total, lo que habré de ocurrir® *, Assim, no se tendo logrado comprovar ou demonstrat 0s postulados do determinismo clissico, com o fracasso das teorias que tentaram em vo explicar 0 crime como sim- pls efeito de eausas cogas, nem sendo possvel, por outro lado, admitir-se uma liberdade absoluta da vontade, resta a0 direito penal contentar-se com o prinefpio da responsa- bilidade do homem, dentro de certos limites ®, Consolidam-se, nessa linha de idéias, as bases de um direito penal construido sobre o principio da culpabilidade 37. Op. cit, pig. 87. 38. Metafisica de la Libertad, trad. Walter Liebling e 0 Buenos Aires, pig. 34. Sl 89__Nesse sentido, Johannes Wessels, Direito Penal, Porto Ale- gre, 1976, trad. Juarez Tavares, pig, 83 7 Pore 18 que pressupse o “poder agir de outro modo". Reconhece-se foment a Kherdade de atuar dentro do espago existir no de uma “fatalidade dada”, isto um poder relativo de escolha, de rejeicio e, em derradeira instancia, de desvio, inibigo, ou de sublimagio de impulsos, fato admitido pela psicologia moderna. E claro que esta liberdade relativa sé pode ser presu- mida no individuo que tenha alcancado um certo nivel de desenvolvimento bio-psiquico e “que nao apareca vergado ao peso da tara ou da doenga”*, Todavia, verificados estes antecedentes necessirios & configuracao da imputabilidade, age culpavelmente aquele que, numa situagio dada, submete-se a estimulos e impulsos orientados para o crime, deixando de opor-lhes suficiente- mente os meios de resistencia de que dispunha“!, adquiridos no aprendizado da existéncia comunitéria. Para o estudo do erro, essa colocagao do problema & fundamental, visto como sé dentro de um direito penal da culpabilidade se pode compreender em toda a sua extensfio © porqué da escusabilidade do erro: sendo a culpabilidade essencialmente uma censura, calora-se juridicamente de mo- do diverso 0 ato que deriva de um estado de ignorancia ou de um falso conhecimento, porque, nese caso, escapa & percepeao do agente o estar agindo ilicitamente, nao The sendo logicamente censurdvel o ndo inibir ou 0 nao reori- entar, em nome de uma exigéncia juisies 0. comporta- mento que precisamente supe juridico ou cuja ilicitude desconhece. ‘Aos que, por ato de fé a um determinismo cientifica- mente néo demonstrado, insistem em construir, mais por injustificado apego ao longo uso do vocabulo, a “culpabi dade” sobre uma “responsabilidade pelo resultado”, que 40. Giuseppe Bettiol, Instituigdes de Direito e de Processo Penal, trad. Manuel da Costa Andrade, Coimbra, 1974, pag. 152. 41, Maurach, op. cit, vol. I, pag. 101, 19 nada tenha a ver com a “liberdade de poder agir de outro modo”, a esses, além do triste papel que assumem de higie- nistas sociais, pouco restaré no equacionamento de um tema que, conforme se ressaltou de inicio, mescla as ages humanas @ ponto de se definir como um dos atributos do proprio homem. b.b) Teorias da culpabilidade, As denominadas “teorias da culpabilidade” (Schuld- theorien) tém como pano de fundo a doutrina finalistica de Welzel. Decompiem o dolo da j4 examinada concepgio normativa (v., supra, Cap. 2, 2, a.b) e dele extraem a “consciéncia da ilicitude” que é inserida na culpabilidade. que resta, isto é, 0 “dolo do fato”, composto de um “mo- mento intelectual” (“a consciéncia atual daquilo que se quer”) e de um “momento volitivo” (“a vontade incondicio- nada de realizagio do tipo”)*, é transferido para o interior do injusto como elemento direcional, finalistico, da acao. Esta operagao é realizada, segundo entendemos, com o se- guinte raciocinio: se a “aco humana é exercicio de ativi- lade finalistica” *; se a finalidade da acao é o dolo que a orienta a partir do “fim” visado; se esta “finalidade” (Fina- litat) pertence a0 conceito “ontoldgico” da acéo, nao po- dendo, portanto, dela ser destacada nem mesmo pelo legis- lador“; e se, por fim, 0 “tipo é a concreta descrigao da 42. Welzel, Das Deutsche Strafrecht, 11. Aufl, pigs. 64, 65, 68. Segundo Eduardo Correia, “para o finalismo o dolo se des- prende da culpa para se tornar em elemento da agio, de tal modo que ele se esgota no conhecimento e vontade do fato criminoso, independentemente do seu significado antijuridico que, esse sim, se- 14 elemento da culpa”. Op. cit, vol. I, pag. 410. 43, “Menschliche Handhung ist Ausiibung der Zwecktitigkeit.” Welzel, Das neue Bild..., cit, pag. 1. 44. Welzel, in Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, citado 3 Claus Roxin: “El legislador no sélo est vinculado a las leyes je la naturaleza fisica, sino que también tiene que respetar deter- 20 conduta proibida”****, se as coisas so assim, conclui-se que o dolo (= finalidade), por estar contido na acao, nao pode deixar de estar também contido no tipo, como elemento estrutural da acdo descrita. ‘A culpabilidade ganha um elemento — “a consciéncia da ilicitude” (= consciéncia do injusto) — mas pete 08 anteriores elementos “animico-subjetivos” — 0 dolo e a culpa stricto sensu — reduzindo-se, essencialmente, a um juizo de censura. Note-se que, na concepgio em foco, 0 que se pede uma potencial e nfo a atual consciéncia da ilicitude. A propésito, Welzel é bastante claro ao exigir do agente do cxime que ele esteja em situagio de motivar-se de acordo a norma através de uma possivel compreensio da ilicitude de sua intengéo concreta. A esta exigéncia, ou “especial pressuposto da censurabilidade”, denomina Welzel “a possibilidade de compreensio do injusto” (“die Méglich- keit der Unrechtseinsicht”)”. Dai a distingao apontada por Schmidhiuser, neste aspecto, entre a teoria do dolo e as teorias da culpabilidade: “Segundo a teoria do dolo... a agio dolosa pressupée a (atual) consciéncia do injusto por parte do autor; segundo as teorias da culpabilidade, 0 autor que age sem consciéncia do injusto pode também ser punido por fato doloso, se ele minadas estructuras légico-reales en el objeto de su regulacién, sues, de lo contrario, su regulacién resulta necesariamente falsa. si, la estructura ontolégica de la accién, sobre todo, tiene exis- tencia previa a cualquier valoracién y regulacién... El legislador tampoco puede cambiar Ia estructura’ de Ja actividad final del hom- bre ni Ja funcién del dolo en ella, sino ave si las quiere someter ‘a normas, tiene que vincular su regulacién a aquéllas, pues, de Jo contrario, malogra el objeto de la regulacién” (Problemas Bési- c0s..., cit, pag. 87) 45. Welzel, Das neue Bild..., pig. 17. 46. No mesmo sentido, Maurach, op. cit, vol. I, pag. 267. 47. Das Deutsche Strafrecht cit. pag. 141. 21 a0 menos tinha a possibilidade de conhecer o injusto de sua agao” (... “wenn er nur die Méglichkeit hatte, das Unrecht seiner Tat zu erkennen”)* Vimos, porém, que a propria teoria do dolo, diante de certas necessidades priticas da vida juridica, abriu exce- gio & conscléacia atual do injusto, quando ao autor faltar essa consciéncia, devido a sua “cegueira”, a sua “inimizade ao direito”, isto é, a “especial configuragio de sua perso- nalidade”, No interior das chamadas teorias da culpabilidade, distinguem-se jgualmente a teoria estrita da culpabilidade seguida por Welzel, Maurach e outros, e a teoria Jimitada da culpabilidade, preferida pela jurisprudéncia alema. A primeira considera todo erro sobre a ilicitude como erro de proibigao. A segunda distingue 0 erro de proibigao direto do indireto, verificando-se este ultimo quando o erro incide em certo Angulo sobre uma causa de justificagaio. Com isso, a teoria limitada da culpabilidade diversifica o tratamento para o erro que recai sobre uma causa de justificacao: 0 que incide sobre os pressupostos faticos da causa de justi- ficagao (ex.: 0 agente diante do estranho que Ihe aponta uma arma descarregada, supondo estar sendo injustamente ameagado de morte, defende-se matando o pretenso agres- sor) classifica-se como erro de tipo; exclui a dolosidade do fato, mas admite a punigio por fato culposo®; ja 0 erro que versa sobre a propria existéncia ou os limites da causa de justificagao classifica-se como erro de proibicdo indireto, Para o direito brasileiro, tal distingao é Eindamnental, ‘con- forme veremos, pois os dispositivos do art. 17 e § 1.2 do Cédigo Penal de 1940, bem como do art. 21 e § 1.° do Cédigo Penal de 1969, nao permitem adotarem-se os cri- 48, Eberhard Schmidhéuser, Einfiihrung in dos. Strafrecht, rororo studium, 1972, pig. 178 49. E. Schmidbtuser, op. t loo. it. 22 térios da teoria estrita e sim os da teoria limitada da cul- pabilidade, Dentro destas teorias, a localizagio sistematica do erro recebe tratamento inteiramente diverso do que Ihe deu a teoria do dolo (v., supra, Cap. 2,2, a.b). E assim 6, como decorréncia necessiria da concepcao do dolo como “dolo do fato”, nao mais dolus malus, da sua inclusio no tipo, € da insergao da “consciéncia da ilicitude” na culpabilidade. Ora, 0 erro como ignorancia ou falso conhecimento por parte do agente pode recair, basicamente: @) sobre circunstincias f4ticas ou normativas, per- tencentes ao tipo legal; b) sobre a ilicitude do fato. Na primeira hipétese, o autor age sem 0 “dolo do fato” por desconhecer, ou conhecer falsamente, uma circunstin- cia objetiva do tipo legal, seja de cardter fatico (descritivo) ou normativo, (Exemplo: Ticio desfere um tiro no que supée ser uma caga atras do arbusto e atinge a Caio. Feriu erroneamente um ser humano — elemento fético do tipo — quando pretendeu licitamente matar um animal de caca. Outro exemplo: Ticio retira da mesa de Caio uma caneta de ouro que supie sinceramente ser a sua. Subtraiu erro- neamente coisa alheia mével, por desconhecer 0 cardter alheio da coisa — elemento normative do tipo.) Em ambos os exemplos, ocorre um erro de tipo que exclui 0 dolo, visto como 0 autor do fato nao tinha o conhe- cimento (aspecto intelectual do dolo) de todas as circuns- tincias objetivas, descritivas ou normativas do tipo. No primeizo exemplo perceben um animal, nfo um ser, hur nano; no segundo, uma coisa prépria, nfo a alheia. Poderd, contudo, ser punido por delito culposo, sempre que a mo- dalidade culposa estiver expressamente prevista. 23 Na segunda hipétese — erro sobre a ilicitude do fato — 0 autor age com pleno dolo do fato. Sabe 0 que faz, quer 0 que faz, apenas supde erroneamente que o que faz, a seu ver, nao é algo proibido Desconhece a norma, nao a co- nhece hem. Neste caso, existe 0 dolo do tipo, completa-se a realizacio do injusto tipico, faltando apenas a “consciéncia, da ilicitude do fato”. Se esta falta de “consciéncia da ilicitude” for inevitd- vel, estard excluida a censurabilidade, e, portanto, a culpa- bilidade; se nao o for, poderé atenuar a pena ®, Como se vé, para a “teoria da culpabilidade”, 0 erro situa-se, ora como causa de excluséo do dolo, anulando o elemento intelectual deste, ora como causa de exclusio da culpabilidade, anulando a censurabilidade da resolugao de vontade do agente, finalmente, ora como fator de atenuacao da pena. Dito isso, poderiamos encerrar a resenha explanativa sobre a localizacao sistemética do erro. Nao desejamos, porém, fazé-lo sem antes registrar que, na Alemanha, onde 0 tema tem recebido forca e produzido os melhores frutos, acaba de lavrar um tento a “teoria da culpabilidade”, com a recente reforma penal de que resultou a seguinte redagdo para os §§ 16 e 17 do StGB™: “§ 16. Erro sobre circunsténcias faticas. 1) Quem, a0 praticar o fato, desconhece uma circunstancia que pertence ao tipo legal no age dolosamente. A punibilidade pela pratica culposa permanece intacta. 2) Quem, ao praticar o fato, supde errcneamente circunsténcias que realizariam o tipo de uma lei mais suave, pode ser punido por pratica dolosa somente segundo a lei mais suave. 50. Welzel, op. cit, pag. 168. 51. Cédigo Penal Alemio, 24 “$17. Erro de proibigao, Faltando ao autor, ao exe- cutar o fato, a compreensio de praticar ilicito, age ele sem culpabilidade se nao pode evitar este erro. Se podia evita-lo, pode a pena ser atenuada segundo o § 49, I”? Eis 0 que nos diz a respeito Walter Stree, em recente obra publicada pela Beck: “A regulamentagao do erro de proibigéo no § 17 poe fim & velha discussio sobre se o fato cometido sem a consciéncia do injusto deva ser examinado segundo a teoria da culpabilidade ou segundo a teoria do dolo. Apesar da adverténcia de que a polémica cientifica entre ambas as teorias nao devia ser interrompida por meio legislative (consulte-se Arm. Kaufmann, ZStW, 80, 43), teve o legislador um tal passo por incontornavel. Uma completa reforma dos preceitos gerais penalisticos, assim pensou o legislador, precisaria abranger 0 erro de proibicao; uma renincia poderia conduzir a insustentavel opiniao de jue seja ainda livre o retorno a concepgées de hé muito aandenadas, talvez ao axioma error iuris nocet *. A Ultima edigio atualizada (1976) do Comentario ao Cédigo, de Schénke-Schroder, registra igualmente a vitéria legislativa da teoria da culpabilidade, in verbis: “Através do preceito esclareceu-se que a falta de consciéncia da an- tijuridicidade (Widerrechilichkeit) nfo atinge o dolo como componente do injusto (v. § 15, nota 100); com isso ganhou forca legislativa a denominada teoria da culpabilidade (Schuldtheoric pela qual certamente fica em aberto como hha de ser juridicamente valorado 0 erro sobre os pressu- postos de uma causa de justificagao” *, 52. SIGB, Verlag C. H. Beck, 45. Aufl, Miinchen, 1975. Cé- digo Penal Alemao, trad. Lauro de Almeida, Bushatsky, 1974. 53, Roxin-Stree-Zipf-Jung, Einfidhrung in das neue Strafrecht, 2. Aufl, Munchen, 1975, he 4/00. 54, Strafgesetzbuch Kommentar, C. H. Beck, 18, Aufl., Miin- chen, 1976, pag. 249. 25 4, Algumas consideracées critica: Da resumida exposigao que fizemos das teorias do dolo e da culpabilidade, extrai-se que ambas nao negam antes postulam a relevancia e a escusabilidade do erro, de modo amplo, inclusive do “erro de proibicio”. As diver- gfncis sistemstieas profandas que apresentam nfo chegem, com efeito, a comprometer 0 tratamento do erro na medida em que ambas — e isto é 0 essencial — exigem a consciéncia da ilicitude para o aperfeigoamento do delito. Nao obstante, forgoso & concluir, a nosso ver, que a teoria da culpabilidade esti mais ajustada 4 natureza das coisas, prescindindo de esquemas mais ou menos forcados e de dificil utilizagao pratica, como a escapatéria da “ini mizade ao direito” (Rechtsfeindschaft), para abranger si- tuagées incontornaveis da vida juridica. Por outro lado, o dolo, sem cair em um psicologismo puro, assume o lugar que melhor Ihe condiz na estrutura do crime, ao despir-se do caréter de malus, isto é, da idéia de malvagita, de proposito pravo, pertencente a vecchia dout- trina **, A culpabilidade, despojada dos anteriores elementos animicos, que todavia nao se perdem, visto como so trans- feridos para o tipo, transforma-se em eficiente instrumento de concregao juridica, permitindo que a dogmética penal alimente a esperanga de poder descer da estratosfera para ‘58, Florian, op. cit, pag. 188. 56. Recorde-se o exemplo de Hans Kelsen, in Teoria General del Derecho y del Estado, trad, Eduardo Garcia Maynez, México, 1969, pig. 76 “Un resultado que el legislador considere perjudicial puede ser realizado intencionalmente por un individuo, pero sin el opésito de causar dafio a otro. Asi, por ejemplo, un hijo puede Ear'imuerte a su padre incurablemente’ enfermoy eon el. Geseo de ioner fin a Jos suftimfentos de éste. La intencién del hijo, provocar muerte de su padre, no es en tal hipétesis maliciosa”. 26 oferecer solugdes cada vez mais ajustadas a este e aquele individuo, banindo-se dos tratados e sobretudo das sen- tengas criminais a irreal imagem do homo medius, com 0 qval realmente no se conseguiré jamais tomar um café, ou cruzar em alguma esquina. Os que trabalham quotidia namente com a aplicagao do direito penal sabem ser, muita vez, extremamente dificil, diante do caso particular, ter que aplicar a um ser humano, real, conereto, modelos recortados com base em medidas abstratas, itreais. O aplicador do direito penal, que objetiva condutas humanas isoladas, de- pata-se, a cada passo, com esta inquietante verdade, afir- mada por Radbruch: “a vida e 0 homem nao sio formados por atos ou ages isoladas, como o mar nao é formado pelas vagas que o percorrem””, Eis uma expressio lapidar de Welzel que, se insculpida nas salas de audiéneia dos juizes, certamente contribuiria para lancar “uma bela ponte” entre as exigéncias de abstragéo da Ciéncia do Direito e a reali- dade conereta, impar, de cada individuo: “A censura de culpabilidade pressupde tenha podido 0 autor formar sua resolug&o de agdo antijuridica mais cor- retamente, ou seja, de acordo com a norma, E isto nao em um sentido abstrato de algum homem no lugar do autor, mas no mais concreto sentido de que este homem, nesta situagao, tenha podido formar sua resolugio de vontade de acordo com a norma” *, Af est um mérito da teoria finalista que seus adver- sdrios ndo ousariam talvez contestar ®. .. Gustav Radbruch, Filosofia do Direito, trad. Cabral de Moneada, 5# ed., Coimbra, 1974, pag. 211. 58. Das neue Bild..., pag. 45. 59, Roxin, um dos eriticos do finalismo, afirma textualmente: “La teorfa finalista, al colocar al hombre que actia de ese modo en el centro de la teoria del tipo y del injusto, se acomoda a las realidades juridico-penales, dado que, en efecto, los meros procesos ‘eausales en los que se hace abstraccién de la persona del autor y 27 Por outro lado, admitindo-se a “consciéncia potencial do injusto”, a “evitabilidade” do erro, como causas aptas a afastar a escusabilidade do erro, constréi-se uma teoria ju- ridica, normativa, do erro, suficientemente dotada de meios gue the permitam, de modo objetivo ¢ ficients, faster 0 fantasma das escusas faceis, das absolviges injustificadas. Adota, assim, o direito penal, principio largamente utilizado pelo direito canénico segundo o qual o erro, para escusar, precisa ser invencivel. “Somente o erro de proibigio des- culpdvel isenta de pena”, proclama Welzel ®. Ora, 0 que faltava na teoria do erro, para viabilizar a sua aceitagao de forma ampla, era precisamente uma solu- io satisfatéria para os problemas resultantes da indagagio sobre a extensio e limites de sua escusabilidade, Acredita- mos mesmo que o denominado erro de direito (v. infra) tem tropecado, para ser aceito, em imimeras dificuldades menos pelos comumente invocados obstaculos legislativos do que pelo temor de se conduzir, com ele, a justica penal aum beco sem saida. Estabelecida, porém, a premissa de que a escusabili- dade do erro no direito penal é um tema bastante sério e que, como tudo sobre a terra finita, tem extensio e limites, aiceeroes de todo infundado o temor de que a aceitagao las conseqiiéncias logicas e naturais da teoria da culpabili- dade possa desencadear o surgimento de “um verdadeiro Dill de idenidade contra a justiga penal” *, de su especifico modo de conducta son productos analiticos artfi- jales, que no se dan en Ia vida y que, por ello, s6lo poseen un valor cognoscitivo mui limitado para la ‘mputacién jurfdico-penal. Y ciertas partes de la teorfa del delito, como Ja problemética de la tentative @ ln delimitacién de autora y participation no ce pueden comprender correctamente partiendo del plano causal-cbjetivo. En ello consisten los méritos esenciales del finalismo” (Problemas Bé- sicos..., cit, pég, 92). 60. Op. cit. pig. 68, 61. Nelson Hungria, sobre 0 erro de direito, in Comentérios a0 Cédigo Penal, 32 ed., Forense, 1955, vol. I, t. 2°, pag. 217. 28 | Finalmente, em boa companhia, relutamos em aceitar a tese tida como pacifica, por um bom numero de penalis- tas, de que a matéria esteja circunscrita ao direito legislado. principio ignorantia legis neminen excusat, incorporado A maioria das codificagdes, s6 pide identificar-se completa- mente com o problema da “irrelevancia do erro de direito”, segundo ressalta Figueiredo Dias, “... em épocas nas quais © pensamento juridico se deixou copar Por aquilo que hoje se chama o dogma do positivismo legalista, uma vez que tal identificago sé é pensdvel no pressuposto de uma pré- via identificagao do direito com a lei, ou melhor, de uma anterior redugao do direito a lei” @. Os tempos, todavia, sio outros ®. E, conforme veremos no momento azado, dentro de um direito penal da culpa- pilidade (nullum crimen sine culpa), 0 problema da cons- ciéncia da ilicitude, conseqiientemente do erro de proibicao qe exclui, coloca-se na base da propria existéncia do lelito, nao podendo assim encerrar-se no estreito ambito de uma disposigao legislativa, ainda que fundamental *. Por mais esta razio, Heito se nos afigura procurar compa- tibilizar as disposigGes legislativas existentes com o principio da culpabilidade, declaradamente a pedra fundamental do sistema penal adotado pela maioria dos povos de cultura ocidental. Falamos em extensao ¢ limites da escusabilidade do erro. Quais sejam os desdobramentos légicos dessa extensao ¢ desses limites 6 matéria para os capitulos seguintes, 62. Op. cit, pag. 50. 63. Miguel Reale leciona: “...deve ser considerada definiti vamente superada a antiga doutrina que reduzia o Direito a0 “sis- tema das leis". LigGes Preliminares de Direito, 33 ed., Saraiva, 1976, pig, 192. 64. Biagio Petrocell, La Colpevolezca, 3* Cedam, 1962, pag, 120. 29 Capitulo 3 Erro de Fato e Erro de Direito 1, “Error facti, error iuris.” O direito penal dos paises de origem latina esta de certa forma preso no anel de ferro da dicotomia error fact — error iuris, que tem raizes no direito romano. Dai a importancia de se dirigir um pouco de nossa atengio para as suas origens. E freqtientemente citada a seguinte maxi- rma atribuida @ Paulo (Dig. 22, 6, 9 pr.): “Regula est iuris quidem ignorantiam cuique nocere, facti vero ignorantiam non nocere” ®. ‘Afirma-se ai a “regra” — regula est — de que a igno- xancia do direito prejudica, a do fato nao. Todavia, conforme tém demonstrado intimeros estu- diosos das fontes histéricas, nao é correto tomar-se tal enun- ciado ao pé da letra. Aponta-se a diversidade de tendéncias entre 0 direito classico ¢ 0 pés-cléssico: no primeiro, admi- 6. Manzini, op. cit, vol. II, pég. 19: Carlo Gioffredi, op. cit, pig. 8%, Francesco Carl) Palasaa, LErrore sulle Legge, Exrape nale, Giuifré, 1974, pag. 49; Figueiredo Dias, op. cit., pag. 26. 31 -se a ignorantia iuris em certos casos particulares; no direito pés-cléssico e justinianeu, havia concessées em favor dos menores e das mulheres . Segundo Manzini, é verdade que, no direito romano, a ignorancia e o erro de direito penal nio constitufam escusa vilida. Mas, se esta era a Tegra — actescenta 0 mestre italiano — nao faltavam exce- ges relacionadas com aquelas leis penais cujo fundamento ético mostrava-se pouco evidente. Além disso admitia-se a escusabilidade da ignorincia e do erro concernentes a re- laces de direito extrapenal, bem como a qualquer erro de fato, “conexo ou nao a nogées juridicas” 7. $6 por isso 0 direito romano jé estaria, no particular, alguns pontos adiante do nosso atual. Note-se, entretanto, a adverténcia do romanista Gua- ino, citado por Figueiredo Dias: “No que toca ao proble- ma geral da ignorantia iuris em direito penal romano, bem pode dizer-se que todas as opinides possiveis, ou quase todas, foram até agora formuladas ja". E se, de um lado, hé os que sustentaram a prevaléncia da irelevancia do erro de direito, de outro, nao estao ausentes vozes autorizadas afirmando coisa diferente ao emprestar 4 regra pauliana um significado meramente processual, probatério, ou até de afirmagio da relagdo entre o erro e a culpa do agente, visto que “o erro de direito é em principio (regula est, diz a sen- @8, Carlo Gioffredi, op. cit, pig. §8 e segs. TheoJor Momm- sen di como prevalecente a regra da inescusabiidade mas sponta, igualmente, virias excegSes, em favor das pessoas met e des i. Iheres. Le’Droit Pénal Romain, tradugao francesa de J. Duquesne, Paris, 1907, t. 19, pags. 106/109. Pasquale Voci aponta as seguin. tes classes ‘de pessoas que, em certos easos, podem invocan, para répria escusa, 0 error turs: menores, militares, istics e 28 mite eres. Enciclopedia del Dirito, Cine, “Eore™. “Disitto Ro. 61. Op. cit, vol. IL, pigs. 19/20. 68. Op. cit, pag. 28, nota 3. 32 —— tenga de Paulo) irrelevante porque, também em principio, ele é indesculpével” ®. Na verdade, entretanto, esta conexio entre erro e culpa sé aflorou de forma nitida no Direito Candnico, de tio larga aplicaggo na Idade Média. Nele vamos encontrar norma geral semelhante a do Digesto: ignorantia facti, non iuris, excusat. Mas, apesar do desacordo existente entre alguns autores no tocante a certos detalhes, parece nao haver dit- vidas quanto ao essencial, ou seja, de que a melhor tradigio canénica caminhou no sentido de uma progressiva identi- ficago “quanto as conseqiiéncias juridicas dos dois tipos de erro”®, aceitando a escusabilidade de ambos desde que 9 exro fosse invencivel (invincibilis). ‘Oucamos um precioso trecho da exposicao de Welzel a respeito da doutrina do erro de Sto. Tomas de Aquino: “Na passagem dos principios supremos ao caso particular 0s eros sao, a0 contrario, possiveis, e 0 sao tanto mais facilmente quanto mais especial é 0 caso e mais longa a cadeia do raciocinio. Sto. Tomas funda este ensinamento na teoria aristotélica da imputacao, qe ele acolhe e ulte- riormente desenvolve. Pressuposto da imputacao é, para ele, como para Aristételes, o cardter da voluntariedade (0 voluntarium). Toda vez que o erro eliminar a voluntarie- dade, exclui ele também a culpa. O erro insuperdvel (error invincibilis) escusa totalmente; o erro evitavel (error vin- cibilis) escusa na medida de sua involuntariedade. Evi tével & sobretudo a ignordncia provocada intencional- mente (ignorantia affectata) bem como a ignorancia devida & negligéncia grosseira (ignorantia crassa)” ”. Segundo o autor da exposigao supracitada, a teologia moral dos ultimos escolasticos, trabalhando sobre estes en- 69, Figueiredo Dias, op. cit, pag. 32 70. Palazzo, op. et loc. cit. TA. Welzel, Diritto Naturale © Giustisia Materiale, trad. ita- Viana, Ginffre, 1965, pags. 99/94. 33 sinamentos de Sto. Tomés, desenvolveu principios para 0 tratamento do erro, ainda hoje considerados exemplares, dotados de validade a priori, como, por exemplo, 0 de que © erro invencivel de proibigao tem a forca de excluir a cul- pabilidade, Essa tendéncia unificadora do erro, com sua vincula- ¢40 a culpabilidade do agente, foi integralmente acolhida pelo direito candnico modemo, in verbis: “A violacao de uma lei jgnorada de nenhum modo é imputdvel, se a igno- rancia for inculpavel; diferentemente, a imputabilidade é mais ou menos atenuada segundo a imputabilidade da pré- pria ignordncia, A ignordncia sé da pena nao suprime a imputabilidade do delito, mas a diminui em certa medida. O que se estabeleceu a respeito da ignordncia aplica-se do mesmo modo em relacdo & inadverténcia e ao erro”. Desenvolveu, pois, a sabedoria da Igreja, uma teoria do erzo radicalmente apoiada no principio da culpabilidade, e bastante avancada ainda hoje como salienta Welzel; e soube harmonizé-la com as exigéncias de validade do di- reito que nao pode realmente ficar exposto a simples ale- gages de sua ignorancia. Comentando 0 canon acima trans- crito, esclarece o professor de Teologia e de direito canéni P. Pellé: “Au for externe, ‘on ne présume pas, en général, Vignorance ou Terreur, quand il sagit de la loi ou de la peine’ (c. 16, § 2). D'ou Padage: ‘Nul n'est censé ignorer la lof. Mais Ja présomption céde devant la preuve con- traire” ™. 2, Ibidem, pig. 94. 73. Codex, cin. 2202: “Violatio legis ignoratae nullatenus imputatur, si ignorantia fuerit inculpabilis; secus imputabilitas mi- nultur phis minusve pro gnorantiae ipsius culpabilitate. Ignoran- tia solius poenae imputabilitatem delicti non tollit, sed aliquantam minuit. Quae de ignorantia statuuntur, valent quoque de inadver- tentia et de errore”, 74. P. Pellé, Le Droit Pénal de TEglise, Paris, 1999, pig. 16, 34 A méxima ignorantia legis neminem excusat é, pois, vista sob Angulo processual: deixa-se em aberto a escusa- bilidade do erro invencivel, “inculpavel”, em toda a sua extensio, mas com o énus da prova transferido para aquele que pretender alegé-lo. direito canénico, como se sabe, interpée-se histori- camente entre o direito romano e 0 moderno. Todavia, com os glosadores (sécs. XII e XIII) e pés-glosadores (a parte do sé, XIII), 0 direito romano foi de novo revivido e difun- dido por toda a Europa. Nao o foi, entretanto, em sua pureza origindria mas reconstituido, interpretado, com métodos escolésticos, segundo as exigéncias da praxis e ‘ciéncias italianas da época. Com efeito, o intuito que pre- sidia a elaboraco das glosas nfo era o de pesquisar o verda- deizo sentido de normas antigas ¢ jé mortas, mas antes o de “considerar aquelas normas como guia seguro e insubsti- tuivel, que presidisse o movimento renovador da vida juri- dica contemporinea” *, E, se atentarmos para 0 fato de que um dos métodos dos glosadores consistia precisamente na elaboragao das regulae, generalia ou brocarda, isto &, de principios sinté- ticos, para facilitar a retengao mneménica, nao é de cau- sar surpresa que, nesse caldo de cultura, tenham comecado a frutificar distingdes e subdistingdes em relacdo as normas objeto do erro (ignorantia iuris naturalis, iuris civilis, iuris gentium, quasi naturalis etc.), sempre “reduzindo-se pro- ‘essivamente o Ambito de escusabilidade da ignorancia do ireito” ”. Dai por diante, caminhou-se no sentido de uma sim- plista e superficial identificago entre o erro de direito e a ignordncia da lei ® 0 que viria, mais tarde, sacramentar-se 75, Guido Rossi, in Novissimo Digesto Italiano, “Glossatori”, VM, pag. 1.141. 76.” Guido Rossi, op. et loc. cit. TT. Palazzo, com apoio em Cortese, op. cit, pag. 55: 78. Figueiredo Dias, op. cit,, pég. 36. 35 com 0 advento das codificagdes nascidas das idéias do Século das Luzes, numa época em que ainda no cessara de soar a voz de Montesquieu, com todo o seu prestigio, pregando a idolatria do primado absoluto da lei: ... “les juges de Ja nation ne sont, comme nous avons dit, que la bouche qui prononce les paroles de la loi; des étres inanimés qui n’en peuvent modérer ni la force ni la rigueur” ®. Assim, apés manipulagao histérica de cerca de dois mil anos, a dicotomia “erro de fato — erro de direito” chega até nds com o sentido de rigida oposigao entre dois tipos de erro, um deles — 0 de fato — relevante para o direito, © outro — 0 de direito — irrelevante. A nitidez da distingao entre os dois tipos de exo & contudo bastante iluséria, pois, como ressalta Graf zu Dohna, a verdadeira dificuldade comega agora, isto é, tratar de separar 0 “erro de fato” do “erro de direito” ®. 2. Erro de fato, erro de direito. Erro de direito extrapenal. A fragilidade légico-sistematica da tradicional distin- ao do erro em error facti-error iuris pode ser melhor perce- Bida quando se comega a pesquisar o que se entende, se- gundo a maioria dos autores, por erro de fato e por erro de direito. De uma classificagao cujo mérito apregoado é © de afastar os perigos da ignorantia iuris, ou lets, seria Kcito esperar servisse ao menos para delimitar com alguma clareza 0 campo de escusabilidade dos dois tipos de erro, de sorte que a um se pudesse predicar a escusabilidade, a 79. De PEsprit des Lois, Gamier, ed. de G. Truc, 1961, t: I, pag. 171. 80. La Estructura de la Teoria del Delito, trad. Fontin Ba- Testra, pag, 80, 36 outro a inescusabilidade. De outra parte, se 0 critério basico da classificagaio € 0 objeto sobre que recai o erro (0 fato de um Iado, a lei e 0 direito de outro) razo4vel seria de se esperar, por amor a um pingo de coeréncia, que o erro dito de fato incidisse sempre sobre fatos ou circunstincias fati- cas; ao revés, que o erro dito de direito incidisse sempre sobre a existéncia ou sobre a compreensio de normas ou relagies juridicas. Nada disso, porém, acontece. Mesmo para os que ainda admitem como irremedidvel a classificagao tradicional em exame: a) nem todo erro de fato escusa; b) nem todo erro de direito é inescusdvel; c) ha erros ditos de fato que, na verdade, recaem sobre conceitos puramente juridicos ¢ até sobre normas de direito legislado, auténtica ignorantia legis; d) por fim, 0 esto de direito nao pode ser dissociado, enquanto tal, de uma situagio fatica. ‘A afirmagao da letra @ nao precisa ser demonstrada. Basta consultar as conhecidas subespécies limitadoras da escusabilidade do erro de fato, encontraveis em qualquer tratado: erro de fato essencial, acidental, escusdvel inescu- sdvel etc. Lembremos apenas a adverténcia de Manzini: “La massima usuale, che Yignoranza o Yerrore di fatto scusa, & troppo assoluta, e perd fallace” ®. ‘A da letra b facilmente se comprova. E ver-se, em qualquer tratado, a aceitacio pela doutrina dominante do denominado “erro sobre a lei extrapenal”, do direito italia- no, que se irradiou para outros paises, inclusive para 0 nosso, apesar da expressa negativa da exposicao de motivos a0 cddigo de 1940 (item 14, in fine), como demonstram SL. Op. cit, pag. 49. 37 Basileu Garcia, Magalhaes Noronha", Anibal Brano™ € outros autores. © mesmo se pode dizer em relagéo a afirmagio con- tida na letra ¢, com as observacdes seguintes. E certo que os que intentam suavizar os efeitos draco- nianos do prine{pio error iuris non excusat pregam, sob influéncia italiana, a equiparagio ao erro de fato do de- nominado “erro sobre o direito extrapenal”. Isso nao suficiente, entretanto, obviamente, para transformar em erro de fato 0 que sempre foi e continuaré sendo, essencialmente, manifesta ignorantia iuris, Assim, a nosso ver, quem, sendo desquitado, casa pela segunda vez, no Brasil, supondo erroneamente ser-Ihe isso permitido, por desconhecimento dos arts. 175, § 1.°, do Cédigo Civil, e 183, VI, da Constituicéo, no se encontra em erro de fato, pot efeito da mencionada equiparagao do “erro sobre a lei extrapenal”, mas, induvidosamente, incorre em evi- dente error iuris. Se, pois, de um lado, é de todo louvavel o intuito de se mitigar 0 desajuste, as exigéncias da época atual, de uma doutrina que teve seu papel histérico mas agora se entre- mostra insustentdvel, de outro, nfo se pode deixar de con- signar que, a ser possivel considerar-se “erro de fato” 0 “errdneo entendimento de uma relagio jurfdica” extrapenal, nada esté a impedir que, nos paises onde inexista norma expressa equivalente a do art. 47, ultima parte, do Cédigo Penal italiano® (caso do Brasil), se considere também 82, Instituigdes de Direito Penal, 2 ed., Max Limonad, 1952, tI, vol. 1, pa 83. Direito Penal, 7 ed., Saraiva, 1971, vol. 19, pag. 156. 84, Direito Penal, Forense, 1967, t. 2°, pig. 116. 85. “L'errore su una legge diversa dalla legge penale eschude Ja punibilita, quando ha cagionato un errore sul fatto che costituisce Al reato (5, 48, 49).” 38 “erro de fato” algumas ou muitas formas de exréneo enten- dimento a respeito de uma relagdo juridico-penal. Com isso retornamos ao inicio, em dramético cfrculo vieioso que nada. deixa a desejar ao labirinto em que se debate a ciéncia penalistica italiana, a propésito do tema do erro sobre os elementos normativos do tipo penal Finalmente, vejamos a afirmagao da letra d de que 0 erro de direito nao pode ser dissociado, enquanto tal, de uma situacao fatica. Maggiore, um dos penalistas italianos de maior acuidade, apés sélientar que o dispositivo do art. 41, iltima parte, retro-referido, do Cédigo Italiano, cons- titui “un vero rompicapo per glinterpreti’, afirma: “A verdade & que nao ¢ concebivel um erro de direito que nao se resolva, em ultima andlise, em um erro de fato, isto é, em um comportamento que nao se teria verificado, se 0 agente tivesse ido uma precisa nocao da lei e de seu al- cance, Um erro juridico que cai no vazio da pura abstracao, sem produzir uma correspondente falsa representacao da realidade, ndo existe” *. [Grifamos.] Finger, com 0 mesmo intuito de demonstrar a impos- sibilidade de separar-se 0 fato do direito, inverte o racioci- nio e reduz 0 fatico ao juridico, in verbis: “... & imposstvel uma distincZo suficiente entre erro de direito e erro de fato, visto como o direito, em suas disposigées, se refere a fatos € com isso transforma as questoes de fato em questaes de direito” *, ‘Atente-se para o detalhe: ambos esto de acordo quan- to ao essencial — a incind{vel unidade entre 0 fatico ¢ 0 juri- dico, Mas se um pée a tdnica no fatico, outro acentua 0 juridico. A aparente antinomia existente entre ambas as concep- goes em exame é, com efeito, mera questéo de angulo 86. Consulte-se a propésito Francesco Carlo Palazzo, op. cit, pigs. 18 ¢ segs 87. Op. cit, pag, 408. 88, Citado por Soler, op. cit, pag. 70. 39 enfoque do mesmo fendmeno, pois, segundo demonstra a teoria tridimensional do direito, com maior propriedade: “a) onde quer que haja um fendmeno juridico, ha, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato eco- nomico, geografico, demogréfico, de ordem técnica ete.)s um valor, que confere determinada significagio a esse fato, inclinando ou determinando a acao dos homens ro sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, fi- nalmente, uma regra ou norma, que representa a relagio ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, 0 fato ao valor; 1b) tais elementos ou fatores (fato, valor ¢ norma) no existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta; c) mais ainda, esses elementos ou fatores fo s6 se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um pro- cesso (j& vimos que o Direito é uma realidade histérico- cultural) de tal modo que a vida do Direito resulta da interacéo dindmica e dialética dos trés elementos que a integram” ®. Acreditamos nao ser preciso dizer mais para concluir ser realmente impensivel um erro que recaia sobre a norma sem atingir o fato subjacente, e vice-versa, Daf as dificul- dades insuperdveis de que se viu cercada a teoria do exto, enquanto teimou manter-se apegada ao irrealistico antago- nismo interno da dicotomia “erro de fato — erro de direito”, onde o termo direito tem o sentido de “norma”. (Note-se a intercambialidade existente entre error iuris e ignorantia legis.) Quem percebeu, com alguma nitidez, 0 beco sem safda a que levavam tais dificuldades foi Alexander Graf zu Dela, o responsivel, segundo Welzel, pela utilizagio em 89. Miguel Reale, Ligdes Pretiminares..., cit, pig. 65. 40 10” (Verbots- direito penal da expressio “erro de proibi irrtum)®. Fis a aguda observacio de Dohna, na versio castelhana, de Fontan Balestra: “La verdadera dificultad comienza ahora, al intentar separar nitidamente entre si los Ambitos de ambas especies de error. En esto ha causado verdaderos desastres la ilusién de ver aqui un error sobre situaciones reales y allé un error sobre relaciones juridicas; vale decir, tratar de distinguir el ‘error de hecho’ del ‘error de derecho’. Debiera estar por fin claro que el antagonismo decisivo se encuentra en Ja antitesis tipo — antijuricidad. Quien no sabe que la cosa que dispone esté embargada, se encuentra en error sobre circunstancias de hecho; quien sabe de tal embargo, pero cree estar facultado para disponer de la cosa se encuentra en error sobre el ‘estar prohibido’, que puede ser de significacion”.. Welzel, anos depois, percorrendo a mesma trilha aberta por Dohna, percebeu que néo se trata propriamente de esta- belecer um “antagonismo” (Gegensatz) — ser e nao ser escusavel — entre os dois tipos “basicos de erro, mas uma “distingdio” (Unterschied) entre ambos: o recair um sobre 08 elementos do tipo, o outro sobre a ilicitude do fato, in verbis: “A decisiva diferenca entre ambas as espécies de erro no reside no antagonismo fato-conceito juridico mas na distingdo tipo-ilicitude®. [Grifamos.] © primeiro, 0 erro de tipo, sera escusivel, em certa medida (v. infra), porque a ignorincia ou o falso conheci- mento de circunsténcias objetivas do tipo legal, faticas ou normativas, exclui o dolo do agente. O segundo, o erro de proibicéo, sera igualmente escusdvel, também em cerla me- 90, Welzel, Das Deutsche Strafrecht, cit, pag. 167. 91. La Estructura de la Teoria del Delito, cit., pig. 80. 92. Welzel, op. cit,, pags. 166/167: “Der massgebende Unter- schied der beiden Irrtumsarien bezieht sich nicht auf den Gegen- satz: Tatsache-Rechtsbegriff, sondem auf den Unterschied: Tatbe- stand-Rechtswidrigkeit”. 41 dida (v. infra), porque a ignorancia ou 0 falso conhecimento (desculpavel) da ilicitude do fato exclui a culpabilidade do agente. Reorientando-se a diregio do foco de incidéncia do erro, tudo se esclarece, de maneira simples e clara, como por encanto. Mas, dentro desse novo quadro, compreen- de-se que, para uma perfeita construcéo Aogmaticn da nova teoria, a terminologia do Digesto (erro. te fato, erro de direito) deva ser abandonada pela nova (erro de tipo, exo de proibi¢ao), menos equivoca, menos comprometida com os fracassos das solugées manipuladas durante séculos. Estudaremos, pois, logo mais, as varias espécies de erro no direito penal, seus efeitos e escusabilidade, segundo esta iiltima classificagao, ndo sem antes salientar que, presente- mente, é cla aceita, por bom numero de autores, mesmo fora da Alemanha, impondo-se “com tal clareza que hoje quase se vai sentindo como heresia o pé-la em causa”, Alids, entre nés, Heleno Fragoso adotou-a, em suas re- centes Ligoes de Direito Penal, salientando — 0 que é de todo exato — que o Cédigo Penal brasileiro “permaneceu fiel & antiga distingao entre erro de fato e erro de direito” *, Nao vemos, porém, obstdculos intransponiveis de lege lata para a aceitaggo e desenvolvimento da moderna teoria do erro, em nossa dogmatica penal. Cuidaremos do pro- blema ao examinarmos a aplicagio desta teoria ao direito brasileiro. Por enquanto, 0 que o tratamento da matéria enseja é irmos antecipando, em poucas palavras, alguns t6- pcos fundamentais, como jé 0 fizemos, para justificar e jeixarjentrever os objetivos a serem perseguidos. 93. Figueiredo Dias, op. cit, pig. 65. Ver ainda Juan Cér- doba Roda, El Conocimiento de la Antijuricidad en la Teoria del Delito, Barcelona, 1962, pigs. 36/37. 94. Edigao Bushatsky, 1976, pags. 193 a 223. 95. Os autores, em geral, extraem as conseqiiéncias desta dis- tinglo para decidir sobre a escusabilidade, ou nao, do erro, 0 que no nos parece necessirio, conforme se vers. 42 Ei-los. Ha em nosso ordenamento jurfdico penal o que certos autores denominam uma “contradigéo de prinefpios”™. Consiste ela no seguinte: adota o legislador — e proclama a doutrina — como base irredutivel do sistema, penal vigente, © principio da culpabilidade (nullum crimen sine culpa)” apesar disso, esbarra-se, na regulamentagio legal do erro, com preceitos inspirados em outro principio, o da responsa- Dilidade objetiva, incompativel com o primero. Saber como conciliar 0 entrechoque de umas poucas normas, de alcance algo indefinido, com o principio basico de todo 0 sistema, é esta uma indeclinvel tarefa do intér- prete, nao do legislador. Circunstancias histéricas, o estagio de desenvolvimento da Ciéncia Penal, a falta de harmonia completa entre os juristas, tudo isso pode ser identificado como relevantes fatores impeditivos de que se empreendesse, entre nés, no passado, um esforco sério de superacio da apontada “con- tradigao de princfpios”, auténtica aporia. A isso acrescente-se que nos paises de origem latina existe ainda um certo vezo positivista que pretende atribuir solugses de magnas questoes juridicas exclusivamente ao Tegisladon; dat talver a timidex do imtérprete que muita ver se acomoda a uma desarmonia do sistema, no aguardo de solugies legisladas. Nao se deve, porém, olvidar que & Jurisprudéncia, como Ciéncia de Direito e também, em outra acepcao, como prazis, sempre esteve reservado importante papel na criacao do Direito. 96. Karl Engisch, Introdugdo ao Pensamento Juridico, trad. J. Baptista Machado, 3 ed., Lisboa, pags. 260 segs. 97. Ver supra “Culpabilidade e liberdade”, Consulte-se ainda Paulo José da Costa Jr., “Direito penal da culpa", in Ciéncia Penal, ano II, n2 I, 1975, pigs. 71 e segs. 43 Capitulo 4 O Erro de Tipo 1. 0 tipo de injusto. Tipo permissivo. Tipo objetivo, tipo subjetivo. Um estudo aprofundado da teoria do tipo importaria em desvio da rota principal sem previsio de breve retorno, pois a determinagio do contetido do tipo depende, hoje, da posicdo doutrindria que se adote, nio havendo a respeito acordo de opinides. Limitar-nos-emos, pois, a expor 0 que julgamos acei- tavel e estritamente essencial para o estudo do erro. O legislador, por meio da elaboragao do tipo, seleciona valorativamente, entre a imensa variedade de formas pos- siveis de comportamento humano, aquelas condutas que reputa relevantes para 0 direito penal, ou porque se apre- sentam aptas a causar lesio a bens juridieos, ou porque se revelam ética e socialmente reprovaveis. Com isso trans- forma espécies ou classes de conduta, assim selecionadas, em tipos de delito, segundo as exigéncias do principio nullum crimen sine lege. 45 Na construcio origindria de Beling (1908), 0 tipo tinha uma significagdo puramente formal, meramente seletiva, nfo implicando, ainda, um jufzo de valor sobre o comportamento que apresentasse suas caracteristicas. Modernamente, po- rém, procura-se atribuir ao tipo, além desse sentido formal, um sentido material. Assim, a conduta, para ser crime, precise ser tipioa, precisa ajustarse formalmente a um tipo legal de delito (nullum crimen sine lege). Nao obstante, ndo se pode falar ainda em tipicidade, sem que a conduta seja, a um sé tempo, materialmente lesiva a bens juridicos, ou ética e socialmente reprovavel *. “O tipo — afirma Sauer ~€ um sintoma da crimmalidade objetiva, de danosidade social e da periculosidade social de um atuar””. Para se ter idéia da importineia desta construgao, basta lembrar o exemplo referido Por Gals das intervengoes cinirgicas comumente realizadas por médicos. Numa con- cepeao material do tipo, exclui-se desde logo a tipicidade , de tais intervengdes cirargicas realizadas “conforme as regras da arte médica”, pois ndo so lesivas a bens juridicos nem ética e socialmente reprovaveis, embora apresentem todas as caracteristicas externas do tipo de lesio corporal. Aqueles que justificam estas intervengées cirtirgicas socor- rendo-se de uma causa de justificagio (“exercicio regular de direito”, ou “consentimento do ofendido”) nao i fe por que os médicos néo séo submetidos a inquérito ou a Processo toda vez que realizam uma operagio, pois néo ‘4 motivo para distinguir 0 procedimento para a afericao destas causas de justificagao com o existente para qualquer das outras estabelecidas no Cédigo (estado de necessidade, legitiina defesa etc.). Facil é de ver que a concepcao ma- 98. A respeito, Wilhelm Gallas, La Teor‘a del Delito en ou Momento Actual, trad. espanhola de Juan Cérdoba Roda, Barce- Jona, pags. 25 ¢ segs. 99. Wilhelm Sauer, Derecho Penal, trad. Juan del Rosal e José Cerezo, Barcelona, pig. 111. 46 terial do tipo mais se ajusta aos usos e costumes, ao id quod plerumgue accidit. O mesmo se diga em relagio as pri- ticas esportivas, algumas bastante violentas, como & 0 caso do boxe, causadoras de inimeras vitimas. Na mesma linha situa-se a tendéncia doutrindria, a nosso ver de grande significagio, que postula pela introdu- io. no direito penal do chamado “prinefpio da insignificdn- Gia” segundo 0 qual devem ser excluidas do tipo as agées {que causam danos despreziveis ao bem juridico protegido © tipo nio pode, pois, no momento atual, ser conce- ido apenas como um Leitbild, uma deséricéo desprovida de qualquer valoragio; é algo mais, ou seja, um “tipo de injusto”, todos ds elementos da disposicao penal gue fundamentam, agravam ou atenuam 0 injusto juridico — penalmente rele- tante” (op. cit., pag. 81). Nao abrange, entretanto, as causas de justificagao que, ao ver de alguns autores, deveriamn igualmente ser incluidas em um “tipo total de injusto” como elementos negativos do tipo ™. ” Estas, as causas de justificagao, constituem verda- deiros “tpos perinisivos’, modelos de conduta lieita, que, por terem precisamente a fungio de excluir a ilicitude da conduta lesiva, nao se confundem com 0 tipo de injusto nem podem estar nele incluidas. Veremos, com mais detalhes, ao estudar o erro de proi- igo, que as normas juridicas podem ser proibitivas, pre- cepticas ou permissicas. No 4mbito do direito penal, a © tipo de injusto — afirma Wessels — “compreende 100, Melhor exposicio e critica, respeito da doutrina dos lementos negativor Ho tipo, pode ser encontrada em: Callas, 0p ait; igus Dias, op. cit.; Welzel, op. cit.; Wessels, op. cit; Al- cides Munhoz Neto, “Descriminantes putativas féticas", in Revista de Direito Penal, ns. 17/18, 1915; Bettiol, Diritto Penale, 74 ed., pag. 280. — 7 cada uma destas categorias normativas correspondem, res- pectivamente, tipos de delitos de aco, tipos de delitos de omissio e tipos de conduta licita. Com as nogdes expostas, serd possivel estudar-se 0 erro sobre as causas de justificagao, segundo as diretrizes da teoria limitada da culpabilidade (erro de tipo excludente do dolo, erro de proibicéo excludente da culpabilidade), sem necessidade de recorrer-se & doutrina dos elementos nega- tivos do tipo, para um tratamento diferenciado das duas formas de erro No direito brasileiro néo ha outra opcao, aliés, para uma compatibilizacio da moderna teoria do erro com os preceitos legislados (art. 17 e § 1.° do Cédigo Penal de 1940 ¢ art. 21 e §.1.° do Cédigo Penal de 1969), a ndo ser dentro daquelas diretrizes. injusto, segundo a doutrina finalista, compée-se de uma parte subjetiva e de outra objetiva: 4 primeira corres- ponde 0 tipo subjetivo; a segunda, o tipo objetivo. Nos crimes dolosos, o tipo subjetivo abrange os elemen- tos animicos (dolo, especiais miotivos, tendéncias e inten- gdes-do-agente); o tipo objetivo abrange as circunstancias objetivas, 0 micleo real-concreto de todo delito (Welzel). Note-se, porém, que o termo objetivo nao se refere aqui apenas aos objetos perceptiveis pelos sentidos. O tipo objetivo é antes o conjunto daqueles elementos que devem ser alcangados pelo dolo, sob pena de ser este excluido™. Tais elementos so geralmente clasificados em: a) descritivos, os que exprimem juizos de realidade, apreensiveis diretamente pelo intérprete (ex.: filho, mulher, incéndio etc.); 101. Wessels, op. cit, pig, 93. 48 b) normativos, aqueles que exprimem conceitos valo- rativos para cuja compreensao necessita o intérprete de rea~ lizar algum juizo de valor (ex.: dignidade, decoro ete.) ou de socorrer-se de valoracées jé existentes em outras normas juridicas (ex: coisa alheia, funciondrio piblico, proprie- dade etc.). E certo que nao se pode tragar com precisio os limites entre 0 normativo eo descritivo, pois o tipo em si, como salientamos de inicio, j4 é uma valoragao. Nesse sentido tém razo os que afirmam que todos os elementos do Spo sao normativos, enquanto “concorrem para a expressio do integral juizo de valor que ele traduz’ Nao obstante, a classificagio supra é aceita e, além disso, apresenta significagio especial para a teoria do erro. 2: Exro de tipo: conceito e objeto. Vimos que 0 dolo deve abranger todos os elementos objetivos do tipo, descritivos e normativos. E qualquer falha neste aspecto exclui o dolo do tipo, desfigurando-se o modelo do delito doloso. © que importa, pois, para que se dé um erro sobre os elementos dotipo (= erro de tipo, Tatbestandsirrtum) nao é a natureza do elemento sobre que recai o erro (elemento fatico, descritivo, ou juridico-normativo) mas que este efe- tivamente recaia sobre um dos elementos essenciais do tipo, seja qual for. K.agut comecamos a percer que o ero de tipo nao coincide perfeitamente com 0 erro de fato da antiga dou- trina, Com efeito, um_erro_que recaia sobre elementos tonmativos do tipo ser m ex de Upo exch 102. Eduardo Correia, op. cit, pag. 283. No mesmo sentido Cérdoba Roda, op. cit, pag. 32. 49 mas nem sempre um erzo de fato. Exemplo; no cri compte pasta do art 885, quem slur vantage @ empregado de empresa paraestatal, sabendo-o tal, mas su- pondo erroneamente gue essa espéce de emprego no equi- para seu ocupante a “funciondrio piblico (art. 827 do Cid Penal), pode erfeitamente, em face. das cirounsténcis, estar incorrendo em um erro de tipo, excludente do dolo. A mesma hipétese nio seré jamais reputada exro de fato, nem mesmo 0 denominado erro sobre lei extrapenal, equi- parivel a erro de fato, visto que, no exemplo Tido, 0 cro incide diretamente sobre um elemento normativo do tipo (a qualidade de funcionirio péblico do agente passive) cuja definicio juridico-normativa consta expressamente da lei penal, nao da extrapenal. a io nos parece, pois, haver completa ‘cf pois, justaposigio entre 9 que.se entende por ero de fato eo denominado err de ipo 8. Limites da escusabilidade do erro de tipo. O direito brasileiro. a) Erro essencial e erro acidental. Residuo culposo. Enzo essenefal é 0 que recai sobre umm el . ; lemento do ti objetivo, sem 0 qual o erine dea. de exist "Exemplo: alguém apanha, por equ{voco, coisa alheia mével, supondo set um objeto de sus propriedade, A hipétese & de erro ncial, pois se eliminarmos do f i colse, nada vest desse crime, n° Cater shhsio da Acidental é 0 erro que recai __ Acidental é 0 err xi sobre circunstincias aces- aisle estranhas a0 tipo objetivo, sem as quais 0 crime lo deta de existir. Exemplo: alguém desejando vingar-se jefo mata Caio, por engano. A hipétese é de erro aci- 103. Ver infra, com mais detalhes, item 3, letra b. 50 dental j& que, para a realizacio do tipo do homicidio, basta matar um ser humano, seja Ticio seja Caio. ~"" © ser Caio, e ndo Ticio, a vitima do crime é uma nota individualizante estranha ao tipo. Pode-se dizer, como regra, que o erro de tipo essencial cexclui sempre o dolo, independentemente de ser evitavel, ou nao, vencivel ou invencivel™, Esta é uma concluséo que se impie pois s6 se pode pensar em erzo evitdvel, que em conereto no se evitou, se ligarmos o fato a uma conduta culposa do agente, Tal, porém, de qualquer forma, faz cair f tpificag’o do delito doloso, exsurgindo a modalidade culposa. Lembremo-nos contudo do ensinamento de Frosali de que, se 0 sujeito covhece certamente que erra ou sabe da Hossibilidade de errar, o erro desaparece, visto como, ‘80 fe pode estar ou permanecer voluntariamente em ert0" Do que foi exposto, pode-se extrair mais esta concli- so: dolore erro de tipo sao dois fenémenos que reciproca~ mente se excluem. Q mesmo nao se diga com relacio a erro de tipo culpa stricto sensu (negligencia, impradéncia ¢ impericia), dois fenémenos que andam de mios dadas ‘Assim, aceita-se unanimemente em doutrina o enten- dimento de que.o erro de tipo, mesmo essencial, s6,escusa fotalnente quando é ineulpavel se, ao contrario, puder ser atribuido 2 culpa do agente, fica excluido o dolo, nas o fato configurard crime _culposo, se como_tal.estiver_previsto em lei. ‘© que foi dito se aplica por inteiro A legislagio penal prasileira, com a tinica e irrelevante diferenga que esta deno- mina ero de fato 0 que classificamos como erro de tipo. © enzo de tipo essencial e o residuo culposo estdo regulados Joh Wessels, op. cit, pig. 56. 105. Ver Cap. 1, “eonceito de erro”. 51 respectivamente na primeira parte do art. 17 e no § 1.° desse mesmo artigo do Codigo de 1940 (art. 21, primeira parte & § 1.° do Cédigo de 1969). Manzini afirma, em certa passagem, ser evidente que somente o erro determinado por caso fortuito ou forca maior exclui sempre a imputabilidade . Tal assertiva deve ser examinada com cautela, visto que, em face dos preceitos legais supra-referidos e da regra legislada nullum crimen sine dolo (Cédigo vigente, art. 15, pardgrafo wnico, Céd. Penal de 1969, art. 17, pardgrafo tnico) nao s6 0 erro deri- vado de caso fortuito ou de forca maior exclui sempre a punibilidade, mas também o derivado de culpa, se a moda- Iidade culposa nio estiver expressamente prevista em lei. b) Erro sobre os pressupostos fdticos de uma causa de tificagdo. Descriminantes putativas, = 55 4s O Cédigo Penal vigente declara no art. ¥7, segunda parte, ser isento de pena “...quem, por erro plenamente Justifcado pelas circunstincias, supée situagio de fato que, se existisse, tornaria a ago legitima”. O preceito é comple- tado pelo § 1.° do mesmo artigo: “Nao hi isengdo de pena quando o ero deriva de culpa e o fato € punivel somo crime culposo” ™”, —— Essa orientagio coincide em boa parte com a da cha- mada teoria limitada da culpabilidade (supra, Cap. 2, 8, b.b) que classifica como erro de tipo, excludente do dolo, o que recai sobre os pressupostos objetivos de uma causa de justificacao, in verbis: “Designa-se por erro de tipo permis- sivo o erro sobre os pressupostos tipicos de uma causa de justificagdo reconhecida, Ele ocorre quando o autor tem 106. Op. cit. vol. II, pag. 50. 107. Cédigo de 1969, embora com redagio algo modificada, diz a mesma coisa no art. 21, segunda parte, e no § 1° desse ar- tigo 52 exroneamente por existentes circunstincias que, no caso de sua existéncia real, justificariam o fato” ™. Note-se que esta modalidade de erro nao incide dire- tamente sobre um elemento do “tipo de injusto”, como supdem os seguidores da dontrina dos elementos negativos do tipo, mas sim sobre os pressupostos faticos de uma causa de justificagio e, por via reflexa, exclui o dola do tipo, “equi- parando-se, assim, sé em suas conseqiiéncias juridicas ao genuino ‘erro de tipo’” (Wessel, op. cit., pag. 104). Essa a orientagao da teoria limitada da culpabilidade que, segundo o autor acima citado, “conduz a um desfecho semelhante ao da teoria dos elementos negativos do tipo, mas com outro fundamento” ™. ‘Adotando-se as diretrizes da teoria limitada da culpa bilidade, fica em aberto o adequado tratamento do erro de proibiggo (0 erro que recai sobre existéncia ou sobre 0s limites de uma causa de justificagéo). Esta matéria seri, entretanto, objeto de exame no capitulo préprio. Por ora, importa retomar o estudo do erro de tipo. ‘As denominadas descriminantes putativas podem veri- ficar-se em relac3o a qualquer das causas de justificagio 108. Wessels, op. cit, pag. 106. 109. Welzel e Maurach, também contrérios aos elementos ne- gativos do tipo, optaram por outra solugSo, a nosso ver inaceitével, elasfieando esta forma @e eo como “erro de probigio” (teoia estrita da culpebilidade). Esta opgdo s6 & mais légica na aparén- cia, pois conduz ao absurdo de excluir, conforme veremos mais adiante (infra, Cap. 4, 1), toda possibilidade de configuracio do Gelito culposo (0 erro de proibigdo no afeta 0 dolo do tipo e nio Se pode falar em crime culposo na prevenga de dolo). J& tivemos ‘casio de oficiar em processo em que uma caravana de_policiais, to deparar-se com outra também empenhada na peseguigio ds pe- rigosos delingtientes, por lamentével equivoco, mas com evidente imprudéncia e total falta de cautela, supondo-se enfrentada por aqueles que perseguia, atacou a tiros os proprios agentes de policia Seria ir muito longe nfo ver aqui sequer o crime eulposo. 53 legais ou supralegais. Assim, quem se engana sobre os pressupostos fiiticos da legitima defesa, estado de neces- sidade, estrito cumprimento de dever legal, exercicio regular de diteito, incorre em erro de tipo, da mesma forma que aquele que se engana sobre os pressupostos faticos do con- sentimento do ofendido ou de um direito de auto-ajuda, nos casos em que estes possam admitir-se como verdadeiras causas de justificagio. Exemplo clissico do erro de que tratamos é o da legi- tima defesa putativa. Alguém supde-se na iminéncia de ser agredido por um desafeto quando este faz um gesto de sacar aarma, Ataca-o para defender-se, mas depois constata-se que 0 pretenso agressor nao estava sequer armado. Aplica-se & hipétese a distingio entre erro evitivel e inevitavel, diante da expresso contida no Cédigo vigent “erro plenamente justificado pelas circunsténcias”. Se o agente formou em Seu espirito 0 fantasma de uma agressio inexistente por falta de maior cuidado, por nao ter agido com a cautela que se lhe podia exigir nas circunstincias, configura-se o crime culposo a que se refere 0 § 1.° do art. 17 (§ 1° do art. 21 do Céd. Penal de 1969). A respeito da aplicabilidade a legitima defesa putativa do denominado excesso culposo (arts. 21, pardgrafo tmico, do Céd. Penal de 1940 e 80 do Céd. Penal de 1969), enten- demos ser realmente dificil, no plano teérico, medir a ima- gem da agresséo formada pela fantasia do agente, para posterior confronto com o ato de defesa e, em seguida, defi- hir-se 0 excesso acaso existente. Em principio, dever-se-ia restringir a solugao deste problema nos limites do j4 exami- nado erro de tipo evitvel ou inevitivel. Com isso ficaria exclufda a possibilidade de uma valoracao juridico-penal do excesso. Nao obstante, como a legitima defesa putativa é uma fantasia anmica que reproduz situagSes concretas da vida real (ex.: alguém supe, por erro, que vai levar um tapa no 54 sosto e, em defesa, mata o suposto agressor), nfio nos parece desarrazoado considerar as circunstancias objetivas do fato, confronté-las com as subjetivas do agente, para saber se 0 erro incidiu sobre os pressupostos faticos ou sobre os limites de uma causa de justificacai Com isso, também a legitima defesa putativa serd exa- minada ora como erro de tipo (erro sobre os seus pressupos- tos faticos), ora como erro de proibigio (erro sobre os seus limites normativos) Nélson Hungria, ao enfrentar 0 problema em foco, assim resume seu pensamento: “Em torno da legitima de- fesa putativa podem ser formuladas, em resumo, as seguintes regras: a) se o agente, em conseqiiéncia de um erro inven- civel, supde achar-se em face de uma agressdo iminente ou atual e injusta, ficard isento de qualquer pena, posto que se tenha contido dentro dos limites da reagao que seria neces- séria contra a suposta agressio; b) se o agente é induzido A mesma suposigao por erro superdvel (inescusavel), seré punivel a titulo de culpa stricto sensu pelo evento lesivo (homicidio, leses corporais); c) se o agente excede, cons- cientemente, a medida da defesa que seria necessdria contra a imaginéria agressio, responder pelo plus a titulo de dolo; d) se ta] excesso é inconsciente, mas resultante de erro inescusdvel, responder4 o agente pelo plus a titulo de culpa: €) se 0 excesso ¢ inconsciente e resultante de erro escusivel, nenhuma é a punibilidade do fato” "°. Estamos de acordo com as conclusdes das letras a, b e ¢ a elas chegando, porém, por camino diferente; as hipdteses das letras ¢.e d do penalista citado nao se podem enquadrar, totalmente, a nosso ver, como erro de fato, ou de tipo, € assim sero por nds tratadas no capitulo proprio (infra, 6, 3.¢). 110. Comentérios, cit, pig. 236. 55 Essa orientagio pode ser aplicada igualmente ao art. 80 ¢ pardgrafos do Cédigo de 1969, em combinago com as regras do art. 21 e pardgrafos do mesmo estatuto penal ¢c) Crime putativo e tentatica impossivel. Crime provo- cado pela autoridade. © erro sobre um elemento do tipo pode ter aspecto negativo quanto A prépria existéncia do crime. Até aqui, cuidamos de hipéteses em que o agente, por erro, rea um fato previsto como crime. E possivel, entretanto, ocor- rer 0 contrério: alguém, desejando e supondo praticar um crime, realizar, por erro, fato totalmente irrelevante para 0 Gireito penal. | Exemplo: Ticio, pretendendo furtar a caneta de ouro em poder de Caio, subtrai, sem o saber, a caneta gee jé Ihe pertencia, apanhada por Caio, momentaneamente, la escrivaninha de Ticio. Esta hipétese, como bem salienta Basileu Garcia, é a de umn “delito putativo, que, afinal, nao é delito algum e escapa a repressio penal”™, Cogitationis poenam nemo patitur. Cumpre, entretanto, distinguir o delito putativo da ten- tativa impossivel. No primeiro, o agente, com emprego de meios idéneos, consuma o fato que supée criminoso. Na segunda, “por ineficdcia do meio ou por absoluta improprie- dade do objeto” (arts. 14 do Cédigo vigente e 16 do Cédigo de 1969), 0 fato querido néo chega a consumar-se. A distingao tem efeitos prdticos, se considerarmos que a tentativa impossivel pode acarretar conseqiiéncias (arts. 76, pardgrafo tmico e 94, III, do Cédigo vigente). Além disso, casos hd em que dificil se torna distinguir o delito consumado, a tentativa impossivel e o crime putativo, como nos chamados delitos provocados em que se realizam fla- grantes preparados pelas autoridades policiais ", IL. Op. cit, pag. 278. 112, Busilea Garcia, op. cit, pig. 279 56 Quando o crime adquire realidade e existéncia em vir- tude da agao do agente provocador, pode estar inteiramente compreendido no conceito de crime putativo: nem delito, nem flagrante vilido'™. Se, entretanto, a acdo do agente provocador sobrevém a um crime consumado (ex.: na cor- Tupcio passiva, o funciondrio apés solicitar vantagem inde- vida, crime consumado, é envolvido na trama engendrada pela vitima e pelas autoridades, para ser preso quando do efetivo recebimento da vantagem anteriormente solicitada), niio se pode falar em crime putativo, ou em simples tenta- tiva™,” Da mesma forma, “a provocacéo da autoridade pode estar apenas sucedendo a uma tentativa idénea” sendo, no caso, indispensavel a separagao entre 0 ficticio e o resi- duo delituoso ™. d) Ero provocado por terceiro. O art. 17, § 2°, do Cédigo vigente, bem como o § 2.° do art. 21 do novo Cédigo contém a regra em que, na ocor- réneia de erro provocado por terceiro, escusivel para o agente imediato, responde pelo crime 0 terceiro que deu causa ao e170, isto 6, 0 agente mediato. O novo Cédigo explicitou que o terceiro responderé, “a titulo de dolo ow culpa, conforme o caso”. A explicitacdo € util mas nao necessaria, visto como os princ{pios do dolo e da culpa, conjugados com o da equivaléncia das causas, resolvem a questao. Eis, a propésito, a licao de Nélson 113. STF: “Néo bé crime, quando a preparagio do flagrante pela policia toma impossivel a sua consumagio” (Simula .°145) Ld. STF: “Flagrante preparado. Stila n 145 refere-se 0 caso de flagrante que impede a consumagio do crime e, por- tanto, nko se aplica ao caso diverso de o crime ja estar consumado antes da lavratura daquele ato, quando o criminoso pretendia. re- colher os proveitos da_corrupgto passiva que se caracterizou com a solictado de dinheiro a contribuintes”. "Rel. Min. Aliomar Ba- leciro, RT, 70/688. 115. Autor citado, loc. cit 37 Hungria: “A determinagio ao erro pode ser dolosa ou cul- posa. Se o erro foi preordenado ao crime, o terceiro res- ponderd por esse a titulo de dolo, enquanto o agente ime- djato ficar4 isento de pena, salvo se procedeu com leviana credibilidade, caso em que respondera a titulo de culpa (se a este titulo é punivel o fato). Se o terceiro agiu com sim- ples culpa, por esta seré punivel, isoladamente ou em con- curso com 0 agente imediato (se este também procedeu sem a devida circunspeccao). Suponha-se que Ticio, intro- Guzindo insidiosamente balas na pistola pertencente a Mévio, faz com este, convencido de que a arma continua descarregada e de que apenas serve a um gracejo, dé 20 gatilho, visando a Caio, que vem a ser atingido e morto pelo tiro disparado. Ticio respondera por homicidio doloso, enquanto Mévio ficard isento de pena, salvo se tivesse razbes, para desconfiar da sugestao de Ticio e eximir-se ao ero provocado (caso em que responderia a titulo de culpa) Figure-se agora que Ticio fosse 0 proprio dono da arma, e inadvertidamente supondo-a descarregada, assim o infor- masse a Mévio, que, sem maior exame, apertasse o gatilho, seguindo-se 0 disparo do tiro e a morte de Caio; ambos res- onderao, em concurso, por homicidio culposo. O § 2° jo art. 17 nao & mais do que uma aplicagio das regras gers sobre a causalidade (com fundamento na equiva- léncia dos antecedentes causais) e a culpabilidade” "*. e) Esro sobre o objeto ou erro sobre a pessoa. Erro na execugdo. Aberratio ictus, aberratio delicti. Erro acidental irrelevante ocorre em dois casos: error in objecto ou error in persona e aberratio ictus. No erro sobre a pessoa, 0 agente pretende atingir um certo individuo mas atinge outro que esteja no lager do primeiro. O erro consiste em tomar a pessoa atingida pela que se pretendia atingir. Na aberratio ictus nfo se da uma simples troca 116. Op. cit, t 2°, vol. I, pig. 243. 58 substitutiva de vitimas. © agente ataca a pessoa certa, isto 6, a que peretee realmente atingir, mas por aberracao, por desvio do golpe, atinge quem nao visava. Pode ser também que atinja a pessoa visada e, por desvio do golpe, venha a atingir igualmente a quem nao pretendia, Distingue-se das formas retro-referidas a denominada aberratio delicti. Nesta 0 desvio do golpe provoca resul- tado integrativo de um tipo de delito diverso do pretendido. Exemplo: algoém pretende stingir com uma pedra a vitrna de uma lof (crime de dano) mas, por desvio, ou por ma pontaria, fere um transeunte (crime de lesio corporal). ‘Também aqui pode dar-se o duplo resultado: ferir 0 tran- seunte nao visado e quebrar a vitrina como se pretendia. Todas essas hipéteses vém reguladas no Cédigo de 1940 (arts. 17, § 3.°, 58 e art. 54) e no Cédigo de 1969 art. 22, §§ 1.9, 2° e 8°). As solugbes ex vi legis podem ser assim resumidas: a) Error in persona. Inrelevante. Responde o agente por crime como se praticado contra a pessoa realmente visa- la. Exemplo: A pretende matar seu pai B mas, de noite, tomando 0 vulto do caseiro como sendo o pai, mata C._ O crime cometido é parricidio, com a agravante do art. 44, I, f, do Cédigo de 1940, ou do art. 56, Il, g, do Cédigo de 1969. b) Abervatio ictus, Irrelevante. Idéntica solugio, se pessoa visada nao é também atingida. Se o for, aplica-se a regra do concurso formal de delitos. c) Aberratio delicti. Responde o agente por dolo eventual ou por crime culposo, se previsto em lei, conforme tenha ou nao assumido o risco de produzir o resultado, on apenas agido culposamente em relagio ao resultado fruto do svio do golpe; se ocorrer a hipétese jé referida de duplo resultado, aplica-se a regra do concurso formal. Nélson Hungria aborda uma hipétese interessante de aberratio ictus: “Quid juris, se o ictus parti de alguém que 59 se achava em situagao de legitima defesa e foi, por aberratio, atingir pessoa diversa do agressor?O agente — responde ‘0 mesmo autor — é sempre julgado como se tivesse praticado a agio contra a pessoa visada; logo, na hipétese acima, nfo & criminoso” ™”, © agente néo se exime, porém, da responsabilidade, no exemplo citado, pela reparaco do dano resultante da aberratio, como demonstra Basileu Garcia, existindo de- cisdes judiciais nesse sentido", Diga-se, para concluir, que nao s6 em relagéo aos cri- mes contra a pessoa pode ocorrer erro acidental. & igual- mente itrelevante 0 erro que recai sobre a qualidade do objeto do crime ou sobre a identidade do agente passivo. Exemplos: Ticio furta, por equivoco, de Caio, supondo estar praticando um ato de vinganga contra Mévio. Comete furto, sendo irrelevante 0 erro quanto a identidade da viti- ma. O mesmo se diga, na hipétese do larapio que furta um colar de pérolas falsas, supondo-as verdadeiras. Ein se tratando de objetos distintos mas tipicamente cequivalentes “a confusio acerea destes seré irrelevante para a punibilidade do autor, porque entio se trataré de um inconsiderdvel erro de motivo’. No erro de motivo 0 dolo permanece integro, visto que 0 resultado da ago se identifica com 0 querido pelo agente, em seus tragos fun- damentais. f) Erro sobre o processo causal. Aberratio causae. Discute-se em doutrina a denominada aberratio causae, isto é, quando a causalidade fisica se desenvolve de modo LIT. Op. cit, pag. 249, 118. In Rev. dos Tribs, vol. 191, pags. 3 € segs. 119. Consvlte-se, ainda, a respeito do tema, 0 brilhante pa- recer de Mendes Pimentel, in Rev. Forense, 31/38, especialmente ig. 34. 120. Wessels, op. cit, pig. 57. 60 diverso daquele previsto pelo agente, mas, a despeito disso, o resultado querido se verifica. H, pois, um desvio causal, uma aberragao na série de acontecimentos desencadeados pela acao criminosa. Exemplo classico nos & dado por An- tolisei ™ e por Bettiol™; A atira B no rio para que se afo- gue; B ndo morre por afogamento mas por fratura do cranio no choque contra uma pedra. A dificuldade reside em que o dolo do tipo deve abran- ger também o nexo causal entre a ago e o resultado; e sobre isso nao ha divergéncias. O primeiro autor citado entende haver homicfdio, no exemplo dado, por ser indiferente, ao fim perseguido pelo agente, que o resultado morte tenha ocorrido de uma ou de outra forma. O segundo, distingue a hipétese de super- veniéncia de uma nova série causal, no prevista nem que- rida pelo agente (Ticio aponta o fuzil para Caio e este, ao afastar-se, salta para tras e cai no despenhadeiro, mor- rendo em virtude da queda), da hipdtese em exame em que ‘0 nexo causal desencadeado pelo agente nao seja excluido, embora, em virtude da aberratio causae, se apresente uma série causal diversa da prevista e querida. E conclui que a solugio depende, nesta ultima hipétese, da resposta que se der & pergunta sobre como se teria comportado o agente se tivesse previsto 0 desvio da relagio causal. Assim, a mae solteira que quisesse matar o filho por afogamento, talvez se detivesse des te da decisiio de mat-lo através de outros meios mais cruéis. ‘A nosso ver, em que pesem as filigranas de raciocinio do grande penalista Bettiol, a solugdo que mais convence & a preconizada por Antolisei, pois quem, pretendendo matar, atira a vitima a um rio nao pode deixar de prever possiveis desvios do curso causal, dentro da ordem natural 121. Op. cit, pig. 508. 122. Diritto Penale — Parte Generale, 7 ed., Cedam, 1960, pigs. 449/444 61 das coisas (exemplo: ferimentos fatais em escolhos etc.), igualmente aptos A producao do resultado querido. A Variagao no processo causal deve ser considerada no essen- cial pols 0 decisivo no exemplo em exame é que 0 dolo do agente esteja dirigido para o homicidio através do Janga- mento da vitima adulta, ou da crianga, ao rio, esgotando-se nesse ato a ago de matar. O mais fica por conta do rio e de tudo quanto ele possa abrigar sob suas turvas aguas. (Nesse sentido Wessels, op. cit., pag. 59.) Hipétese mais complexa vem referida por Antolisei (op. et loc. cit.), por Magalhaes Noronha ™ e por Heleno Fra- goso™: A desfecha um tiro em B que desfalece e cai; jul- gando a vitima morta, A, para ocultagao do crime, langa-a no rio, sobrevindo a morte por afogamento, Homicidio doloso, ou tentativa dolosa em concurso com homicidio culposo? As duas solugées nao sustentaveis, conforme revela Antolisei. Estamos entretanto com a solu- ¢40 classica que opta por um s6 crime de homicidio doloso, j4 que o resultado foi querido e originariamente previsto pelo agente (dolus generalis). Além disso, aquele que se transforma em “instrumento inconsciente da consumagao de seu fato”, como no exemplo, “nao requer nenhuma outra valoragao juridica a seu favor”, nem se faz necessario que o “dolo do tipo ainda continue a subsistir no momento da ocorréncia do resultado”, como ressalta Wessels (op. cit., pag. 60). Note-se que intervalos, mais ou menos longos, entre a aco dolosa e o evento tipico, sao freqiientes nos crimes de resultado, sem que o dolo permanega até a verificagio deste, como na hipétese do agente que, apés ministrar dose letal de veneno no alimento da vitima, vai dormir. 123, Op. cit, pags. 159/160. 124. Op. cit, pig. 195. 62 g) Evro sobre a existéncia de circunstdncias qualificadoras, ‘agravantes e atenuantes. © exo sobre circunstincias que qualificam crime exclui 0 dolo quanto a forma qualificada, mas nao quanto a0 tipo fundamental (exemplo: alguém que supondo estar auxiliado pelos vigias, com os quais acertara a patticipacao no crime, penetra pela porta aberta de uma casa comercial e pratica furto; depois, verifica-se que os comparsas tinham silo ocasimalmente despedidos, na véspera, e que em nada colaboraram para a abertura da porta, ou para o crime). A hipotese é de furto simples e nao de furto qualificado pelo concurso de duas ou mais pessoas. Em relagio as agravantes genéricas, o principio é o mesmo: as que comportam erro “devem estar acobertadas pelo dolo”. Em relacao as atenuantes, ou as circunstncias que tornam o crime privilegiado: o erro é irrelevante "*. h) Ero sobre o dever de evitar o resultado (“posicado de garantidor”). “Garantidor” diz-se da pessoa a quem incumbe o dever de agir para evitar determinados resultados ™. Nos crimes comissivos por omissio ha sempre alguém colocado nesta “posigao de garantidor”, ao qual a ordem juridica e social atribui o dever de evitar o resultado tipico"”. O Cédigo de 1940 nao define quando existe este especial dever, fican- do a matéria para a construgio doutrinéria™. Ja 0 Cédigo 125, Heleno Fragoso, op. cit, pig, 193. 126, Usa-se também a expresso garante. 127. Maurach, op. cit. pag. 280. . 128. Eis 0 que diz a respeito a Exposigio de Motivos do Cé- digo de 1969: “Manteve-se o Projeto nos limites tradicionais pro- clamados pela doutrina, de longa data. O dever jurfdico de impedir o resultado surge, basicamente, com a lei, com © contato ou com 1a anterior atividade causadora do perigo, mesmo sem culpa. Evi- tou-se a xeferéacia 2 contrato, que constava do texto original do 63 de 1969 foi explicito, in verbis: “A omissio 6 relevante como causa quando o omitente devia e podia agir para evitar 0 resultado, O dever de agir incumbe a quem tenha por lei obrigacao de cuidado, protegao ou vigilancia; a quem, de outta forma, assumiu a responsabilidade de impedir 6 resultado; e a quem, com seu comportamento anterior, criou o isco de sua superveniéncia” (art. 13, § 2.°). Surge, ento, a questio de saber qual o efeito juridico do erro sobre a posigao de garantidor, por parte de quem se encontre nesta situagao de poder e de ter que evitar um resultado tipico penal A matéria nao é simples, oferecendo ensejo para infin- daveis digressdes. Todavia, dentro da orientagio que adotamos, sera pos- sivel, acreditamos, resumir as v4rias hipéteses da seguinte forma: @) © garantidor erra quanto aos pressupostos faticos de tal posicao (exemplo: o pai, ou tutor, ouve gritos de socorro do filho, ou do pupilo, que se afoga; nao sendo o nico presente, supondo tratar-se de pessoa estranha e por nao ser eximio nadador, deixa de arriscar-se para a presta- 10 do socorro devido); b) _aquele que se encontra na posigéo de garantidor era quanto & possivel ocorréncia do resultado (no mesmo exemplo, supondo ser uma brincadeira do filho ou do pupilo — estéria do menino mentiroso — deixa de prestar 0 socorro devido); Projeto, tendo-se em vista que o dever de agir surge também quan- do o agente espontaneamente assume fungio tutelar ou encargo sem mandato, Nao é propriamente do contrato que surge o dever juridico, mas de sua projegio social como espécie de dever de di- reito piblico, exercendo-se no em relagéo a0 outro contratante, ‘mas ao corpo social. Por isso mesmo, as limitagdes impostas pelo contrato, e que se fundam no direito privado, nio tém relevincia, 2 formula adotada pelo Projeto atende a essas consideragbes" 64 cc) aquele que se encontra na posigio de garantidor erra sobre a propria existéncia do dever de evitar o xesultado incorendo em “erro de mandamento”, (no mesmo exemplo, o tutor supondo ja ser um pesado énus ter aceitado os encar- gos da tutela, pensa nao estar abrigado a arriscar sua propria vida para salvar o irriquieto pupilo); d)_aquele que se encontra na posicao de garantidor, por negligéneia, no se informa da real situagio de perigo, no exemplo dado. Nas hipéteses sob @ e b, temos um erro de tipo, exchi- dente do dolo; se 0 erro resultar de culpa (hipstese sob d), subsistiré 0 delito culposo quando previsto em lei (no exem- plo dado, sim); na hipétese sob ¢, estamos diante de um Inequivoco erro de proibigéo, que ser examinado no capi- tulo proprio. 65 Erro de Proibicao. Capitulo ) Teoria e Aplicagao ao Direito ~ Brasileiro 1. Nota introdutéria. Se fosse necessério procurar algum apoio em idéias aceitas em nosso préprio meio, para dar inicio a este capi- tulo, nao precisariamos ir além da Exposicao de Motivos do Min. Francisco Campos ao Cédigo vigente: “18. No tocante a culpabilidade (ou elemento subje- tivo do crime), 0 projeto nao conhece outras formas além do dolo e da culpa stricto sensu. Sem o pressuposto do dolo e da culpa stricto sensu, nenhuma pena seré irrogada. Nulla poena sine culpa, Em nenhum caso havers presun- ao de culpa. Assim, na defini¢io da culpa stricto sensu, 6 inteiramente abolido 0 dogmatismo da ‘inobservancia de alguma disposicao regulamentar’, pois nem sempre & cul- oso 0 evento subseqiiente”. Também na Exposigao de Motivos do Min. Gama e Silva ao Cédigo de 1969, vamos reencontrar um compro- misso formal com 0 Direito Penal da culpabilidade a ponto de se fazer esta solene recomendaco ao intérprete: 67 “O principio nullum crimen sine culpa é wma das cons- tantes do Projeto, e sua significacio exegética nao deve ser esquecida” (Item 11). E significativo que voz tio autorizada — a do préprio representante do Governo — recomende ao intérprete nao exquecer, na exegese do texto legal, o principio da culpa- bilidade. Acataremos, nas linhas que se seguem, tal recomenda- gio, esforcando-nos por entrever, sem ciolentar os limites extremos da lei, as conseqiiéncias légicas daquele princfpio, em cada norma ou dispositivo legal a ser interpretado. Chegaremos a algumas conclusdes algo inusitadas para ‘© que se pode denominar a tradigdo do direito brasileiro. Mas esse é precisamente um dos motivos que nos animou a escrever este pequeno livro, depois de muitos anos inteira- mente dedicados & experiencia do direito penal. Se estiver- mos errados, certamente nao faltarao eriticos para apontar e corrigir-nos os equivocos. Afastar-nos-emos, muitas vezes, de interpretagies tidas como pacificas de normas legais que ainda permanecem as mesmas. Com isso, entretanto, nao pretendemos corigir insignes penalistas que tio grande contribuigao tim presta- do & Ciéncia Penal brasileira. Objetivamos, entretanto, contribuir para que se reco- nhega a possibilidade de mutagio interna no sentido das normas examinadas, pois indiscutivel que 0 Direito se refere A vida e esta flui constantemente. Um grande jusfi- Iésofo de nossos tempos, que além disso foi magistrado, assim se expressa a propésito do fluir da vida e do Direito: “A. propria lei e 0 seu contetido interno nao sio uma coisa estitica como qualquer fato histérico passado (‘eterna- mente quieto permanece o pasado’), mas sto algo de vivo e de mutavel e so, por isso, susceptiveis de adaptacao, O sentido da lei logo se modifica pelo fato de ela constituir 68 parte integrante da ordem juridica global e de, por isso, parts ar na sua constante transformacio, por forca da uni- lade da ordem juridica. As novas disposigdes legais refle- tem sobre as antigas o seu sentido e modificam-nas. Mas nao é s6 uma mudanga no todo do Direito que arrasta atras de si, como por simpatia, o Direito preexistente: também 0 fluir da vida o leva atras de si. Novos fenémenos técnicos, econdmicos, sociais, politicos, culturais e morais tém de ser juridicamente apreciados com base nas normas juridicas preexistentes. Ao ser 0 Direito obrigado a assumir posigio em face de fenémenos e situagdes que 0 Jegislador histérico de maneira nenhuma poderia ter conhecido ou pensado, ele cresce para além de si mesmo. ‘A lef, logo que surge na existéncia, insere-se num campo de forcas social do qual, de agora em diante,... ela vai retirar a nova configuracio do seu contetido’ (Mezger). Por isso mesmo nos encontramos nds em situacao de ‘compreender melhor’ a lei do que a compreendeu o préprio legislador histérico. Nao pode ser nossa tarefa deixarmos 0 presente com os seus problemas retrocedermos anos ou décadas para entrar no espirito de um legislador que propriamente nos nao interessa ja” ™. Veja-se, aqui e agora, o tratamento sistematico que, com apoio em penalistas ilustres, procuramos imprimir a0 erro no direito penal, unificando na classe do erro de proibi- ¢do certos fendmenos juridicos a que o legislador patrio ora denomina “erro de fato” (Céd, Penal de 1940, art. 17; Céd. Penal de 1969, art. 21), ora “erro de direito” (Céd. Penal de 1940, art. 16; Céd. Penal de 1969, art. 20), Acreditamos poder fazé-lo, dentro de uma construgao logico-sistemética, sem ferir a lei, pois apenas afirmamos que tal ou qual erro de fato da lei brasileira, dentro do que reputamos a mais adequada classificago dogmatica, se integra, se reclassifica dogmaticamente, no chamado “erro 129, Karl Engisch, op. cit, pigs. 142/143. 0° de proibigéo”. © mesmo se dard com certas formas deno- minadas pelo legislador “erro de direito”. Dentro de um processo idéntico, fizemos no capitulo anterior a reclassifi- cago no “erro de tipo” de certas formas qualificadas pelo legislador como erro de fato ou de direito. intérprete ndo revoga a lei e disto estamos conscien- tes. Mas 0 Direito nao se reduz a lei como salientamos paginas atras™, pelo que é perfeitamente licito, no plano doutrindrio, construirem-se, a partir da lei, novas classifica- es sistematicas de institutos juridicos. E — note-se a importincia desta afirmagao — se depois, a partir dessas novas classificagies sistematicas, for pos- sivel — num processo de retorno & lei — iluminar, em segun- da etapa, a norma legislada e dela extrair novo alcance de sentido, nao se deve titubear em fazé-lo, ainda que mais ‘cdmodo fosse “deixarmos o presente com os seus problemas” ¢, numa passiva atitude positivista, aguardar a solugao deles pelo legislador. 2, Exro de proibicio, A falta de consciéncia da ilicitude ™. Vimos na exposig&o sobre as teorias da culpabilidade (supra, Cap. 2,2, b.b) que a “consciéncia da ilicitude” 130. Ver supra, Cap. 2, 4. 131. Preferimos empregar “ilicitude” ao invés do termo anti- juridicidade, “Ilicitude” traduz melhor a expressio alemi. Rechts- widrigkeit (“contrariedade a0 ordenamento juridico”, Beck-Rechts- Jexika, Strafrecht und Strafprozess. 2. Aufl.). ‘Camelutti jf hhavia notado e acerbamente criticado a impropriedade do termo antijuridicidade (in Teoria General del Delito, trad. espanhola, Madrid, pags. 18 segs,). E no se trata de mero formalismo lin- stico: 0 “antijuridico” se opbe a0 “juridico” e no é este 0 caso lo crime que, na Teoria Geral do Direito, faz parte dos “fatos ju- 70 (= “consciéncia do injusto”), atual ou potencial, & um especial pressuposto da censurabilidade, isto é da culpabi- lidade como juizo de censura feito ao agente que podia atuar conforme ao direito mas, nas circunstancias, nao atuou. Nao é possivel, entretanto, censurar-se de culpabilidade © autor de um fato tipico penal quando, ele préprio, por nao ter tido sequer a possibilidade de conhecer o injusto de sua acao, cometeu o fato sem se dar conta de estar infrin- gindo alguma proibicao. Quem assim age erra sobre o estar proibido, erra sobre a ilicitude do fato real. (Welzel). “Dafo chamado “erro de proibicao” (Verbotsirrtum). Antes, entretanto, de examinarmos o erro de proil impoe-se o deslinde de duas questoes prévias de suma importéncia e nada faceis, até aqui apenas afloradas: L#) que coisa ¢ isto, a consciéncia da 2.8) exigir-se do agente esta consciéncia da ilicitude, para a caracterizagao do crime (sem culpabilidade nao hi crime), nao implica admitir-se a escussbilidade da igno- rantia legis e, por via de conseqiiéncia, o total desmoro- namento do direito positive? Vejamos como se tem procurado resolver estes proble- mas tao fundamentais. ridices", como ato ilicto, gerador de efeitos juridicos, tanto quanto © ato juridico. (O antijuridico seria, entio, a0 mesmo tempo jurf- dico?) Ja a dicotomia “licito-ilicito” nfo padece de igual contra- digo, pois permite situar 0 crime, corretamente, na classificagio dos fatos juridicos, localizado na ramificagio dos “atos iliitos", isto & um fenémeno juridico mas com a caracteristica de ser contrdrio 45 normas objetivas do Direito. Como, entretanto, 0 uso jé consagrou a expresso antijuridici- dade, deve-se entendé-la neste sentido: qualidade do que é “i-lici- to’, “contrério 20 Direito”, e no como caracteristica de um fato rio juridico, que, se assim fosse, seria matéria para a sociologia no para a Ciéncia do Direito Penal. Nesse sentido, pior ainda é, a nosso ver, a expressio injuricidade, ou injuridicidade. 71 a) A consciéncia da ilicitude. Muito se tem escrito, nas wltimas décadas, sobre 0 conteiido da conseiéncia da ilicitude pois o tema é de impor- tancia essencial para um direito penal da culpabilidade, qualquer que seja a posigiio doutrinaria do autor. E no faltam juristas de renome que, diante da “inveri- ficabilidade, no agente individual, de uma concreta capaci- dade de conhecimento do dever juridico”, retomam a Mezger para a construcao de uma “culpa da personalidade”, de uma “culpa na condugao da vida”, derivagao da “ce- gueira” ou da “inimizade juridica”, ja anteriormente refe- ridas (supra, 2, 2, a.b)"®. Em que pese o brilho com que tais idéias sio susten- tadas, muitas delas com real apoio em pesquisas crimino- légicas, ou em tipos isolados (rufianismo etc.), 0 certo é que, no estgio atual da ciéncia penal, predomina a tendén- cia a favor da culpabilidade do ato isolado e nao da culpa- bilidade do autor, ou pela conduta de vida. Dentro desta orientacio, Cérdoba Roda aponta trés cxitérios para a determinacio do objeto da consciéncia da ilicitude: o primeiro formal (Binding, Beling e Von Liszt) segundo 0 qual é necessirio que o agente saiba que infringe alguma norma; o segundo material (M. E. Mayer e Kaul- mann), baseado em uma concepcio material do injusto, que exige o conhecimento da anti-socialidade, da imoralidade da conduta ou da lesao de um interesse; 0 terceiro, solugdo intermédia adotada pelo Supremo Tribunal alemao, em famosa decisio de 18 de marco de 1952, segundo a qual o conhecimento da antijuridicidade nao importa em conheci- mento da punibilidade do comportamento, nem no da dispo- si¢do legal que contém a proibigao... O agente, embora 132, Figueiredo Dias, op. cit, pags. 222 ¢ segs. e Wiirtenber- ger, op. cit, pig, 148, adotam esta solugio, entre outros. 133. Maurach, op. cit, vol. I, pég, 83. 72 nio esteja obrigado a realizar uma valoracao de ordem téc- nico-juridica, deve conhecer, ou poder conhecer, com 0 esforgo devido de sua consciéncia, com um juizo geral de sua propria esfera de pensamentos, o cardter injusto de seu atuar ™, A primeira solugao (conhecimento da norma) se objeta que, a ser assim, sé cometeriam delitos os juristas. A se- gonda solugéo (a que se baseia em uma concepgao material jo injusto) é bem mais engenhosa, seja na parte em que se aproveita da teoria das normas de cultura de M. E. Mayer (sendo as normas juridicas coincidentes com as normas de cultura, 0 conhecimento destas implica o daquelas), seja na parte em que se contenta com o conhecimento da simples danosidade social do ato. Nao obstante, tal solugo esbarra na existéncia de deli- tos de pura criagéo legislativa que nao correspondem a qualquer conceito de injusto material (fato percebido jé pelos romanos)"* e, inversamente, em fatos reconhecida- mente danosos, nfo tipificados como delitos ™*. Resta a terceira solugdo que se satisfaz com um juizo geral a respeito do carter injusto da aco e com a possibili- dade de se atingir esse juizo, através de um eclorgo da consciéncia. Pode-se, entretanto, a nosso ver, ainda aqui objetar que, em relagio a certos tipos penais e a certas pessoas, a exigen- cia desse esforco de consciéncia ser4 totalmente inutil. Como exigir-se de um rude camponés que, ao estabelecer-se ‘com emporio de secos e molhados, conheca, através de um esforco de consciéncia, 0 sentido de certos atos que possam configurar o complexo crime de sonegacio fiscal, de pura criagao do legislador? 134. Op. cit, pgs. 89 e segs. 195. Mommsen, op. et loc. cit. 136. Cérdoba Roda, op. cit, pag. 95. 73 Nem 0 esforgo de consciéncia, nem a “cegueira juri- dica” (a hipétese nao cuida de “uma vida conduzida em censurivel oposigao ao direito”, Figueiredo Dias, op. cit., pig. 225) resolvem esta questo. Por outro lado, fécil é de ver que a necessidade de validade de certas normas de direito penal econémico, implicando fundamentais exigén- cias do Estado, nfo pode ficar na dependéncia da maior ou menor capacidade de esforgo de consciéncia de quem se estabelece no comércio. A solugdo, a nosso ver, consiste em adicionar-se a ter- ceira hipdtese em exame “o dever de informar-se” para a pritica de certas atividades, notoriamente fiscalizadas e regulamentadas. A violagdo desse dever, exigivel de todos que se arrojem a esse tipo de atividade, exchui a possibili- dade de erro escusavel. Esta solugéo é, em outras palavras, a de Welzel, com pequena adaptagio, para quem, em resumo: 1°) A grande maioria dos tipos penais — fato facil- mente constatavel — declara ilicita a conduta descrita, por- qne esta realmente representa uma infragao & ordem moral E, aqui havendo coincidéncia entre a lei penal e a norma costumeira de conduta, a censurabilidade pela falta de consciéncia da ilicitude repousa, realmente, em uma falta de “esforco da consciéncia’, pois, o contetido desta cons- ciéncia se forma essencialmente com as conviegdes hauridas da cultura vivida. Basta, pois, para conhecimento da cons- ciéncia da ilicitude, que cada um reflita sobre os valores ético-sociais fundamentais da vida comunitdria de seu pro- prio meio. 2°) Em relagio aos tipos penais nao coincidentes com a ordem moral, com os costumes, a falta de consciéncia da ilicitude s6 pode basear-se em uma auséncia de informagio, ‘ou em uma informagio deficiente, quando as circunstancias coneretas indicarem ao autor um motivo para que se deva informer. 74 Com estes enunciados, fecha-se o circulo que, em nosso entender, abarca até mesmo 0 criminoso habitual, o “crimi- noso por convicgao”, 0 insensivel moral, pois dele nio se exige que possua “uma consciéncia ética formada de acordo com 0s critérios da ordem juridica”™”. A experiéncia ¢ as pesquisas mais atuais revelam que esse tipo criminologico se ajusta a individuos que nao nasceram como tais, mas chegaram ao que Sauer denomina “criminalidade cronica” ** através de verdadeiro e longo “aprendizado” negative no curso do qual, por meio de constantes envolvimentos com a policia, juizado de menores etc., mais que os outros apren- deram também a distinguir 0 proibido do permitido. (Tive- mos contato nas prises com alguns criminosos habituais, que, apesar de semi-alfabetizados, conheciam de cor 0 niimero dos artigos do Céd. Penal referentes aos crimes que praticavam.) Tanto 6 assim que sabem escolher o local € a hora adequados para a pratica momentaneamente “impu- nivel” dos fatos delitivos. E apés poem-se todos em fuga. Se'a astenia moral, a mé formario do cardter e da persona- lidade, unida a circunstancias ainda nao bem determinadas, 0 toma insensiveis aos apelos do contetido intensamente valorativo do ordenamento juridico e da ordem moral e cos- tumeira, isso nao se deve, evidentemente, ao “desconheci- mento do injusto” de seus atos mas a fatores outros que inte- ressam as ciéncias auxiliares do direito penal. Estas, porém, neste particular, nao oferecem ainda resultados seguros ou definitivos. De Maurach, extrafmos a seguinte citagéo “de um importante crimindlogo” (W. Z. Stumpfl): “Tras todo el esfuerzo de ciencias de la naturaleza, psicologia profunda, psiquiatria, ciencia de la herencia, investigacién de la cons- 137. Sem razio, pois, as criticas de Figueiredo Dias, 1 aspecto, adepto de Mezger ¢ de uma culpa da personalidade (op. cit, pags. 219 e segs.) 138. Wilhelm Sauer, Derecho Penal, trad. espanhola de Juan del Rosal e José Cerezo, Barcelona, pig. 94. 75 tituicién, y del medio, el resultado es, en verdad, defrauda- dor. Créiamos, por nuestras investigaciones, poder mostrar al hombre en su limitacién, sujecién a instintos, estado ani- mico, herencia, constituicién fisica y medio ambiente, pre- sentarlo como un producto de predisposicién hereditaria y mundo circundante, de carécter y educacién, de constitui- cién somética y enfermidad, y lo que ante nosotros surge tras los esfuerzos de afios, de entre el polvo y las cenizas de la segunda guerra mundial, es el cuadro de su libertad” ¥*, b) Falta de consciéncia da ilicitude ¢ ignordncia da lei, Biagio Petrocelli, penalista italiano, viu, com bastante nitidez, a confusdo que se tem feito entre “falta de conscién- cia da antijuridicidade” e o principio da inescusabilidade da ignordncia de lei, in verbis: “O art. 5.° do nosso Cédigo Penal estabelece que ‘ninguém pode invocar em sua propria. escusa a ignoréncia da lei penal’... (omissis) ... Esta disposigio e aquelas correspondentes dos outros ordena- mentos juridicos nunca auxiliaram a resolver as divergéncias sobre delicado tema. problema da consciéncia da anti- juridicidade, como fundamento da culpabilidade e como base da propria existéncia do ilicito, era muito grave para que pudesse ser eliminado e encerrado nos termos de uma disposigéo legislativa, ainda que fundamental; e por isso ele retorna sempre, como determinagao da verdadeira razio aleance da propria disposigéo. E necessirio desde logo advertir que, por hébito, na discussio do problema, se tra- tam e em certo sentido se confundem de uma so vez duas questdes que séo consideradas claramente distintas. Uma a que diz respeito & necessidade ou nfo de se estabelecer no ordenamento juridico uma norma como a do art. 5.°, eliminando do juizo penal a indagacao relativa ao conheci- mento da norma por parte do agente; outra consiste em 139. Op. cit,, vol. I, pag. 41. 76 estabelecer se seja ou nfo concebivel uma ago culpével, do ponto de vista jurfdico penal, sem 0 conhecimento da norma transgredida De outra parte, é significative que, em recente obra, um jurista francés venha declarar ser ainda absolutamente necessario procurar determinar a verdadeira funcao da regra sobre a inescusabilidade da ignorancia da lei: “II est done absolument nécessaire d’essayer de déterminer Ja vraie fonction de la régle ‘nul n'est censé ignorer Ja loi” “*. Outro nao é, aqui, 0 nosso objetivo. Comecemos, entretanto, por constatar que, em certos paises latinos, talvez por forca de inércia, predomina ainda a concepgao segundo ‘a qual o denominado erro de direito nada mais é do que a ignorancia ou a mé compreensao da lei. E deparamo-nos com tal concepgo aquém e além-mar. Nossa legislagio desceu ao detalhe de definir como “erro de direito” precisamente a ... “ignordncia ou errada compreensao da Ter Cart. 16 do Cod. Penal de 1940 e art. 20 do Céd. Penal de 1969). Cordoba Roda, referindo-se aos ordenamentos italiano e espanhol, ressalta a conexio existente entre o erro de di- reito e a regra da inescusabilidade da ignorancia da lei: “En los ordenamientos italiano y espafiol la afirmacién de que el error de derecho es irrelevante ha constituido um principio derivado de la aplicacién del articulo 5° del Cé- digo Penal italiano (‘Nadie puede invocar como propia excusa la ignorancia de la ley penal’) y del 2.° del Cédigo Civil espanol (‘La ignorancia de las leyes no excusa de su cumplimiento’)” #*, 140. La Colpevolezsa, Cedam, 1962, pigs. 120/121. 140-2 Elie Daskalakis, Réflexions sur la Responsabilité Péna- Te, Presses Universitaires, Paris, 1975, pag. 63. Ml. Op. cit, pag. 17. 7 Figueiredo Dias aponta esta identificagao entre 0 erro de direito e a maxima ignorantia legis neminen excusat, constante da generalidade dos eddigos, como origem da Inescusabilidade do erro de dieit, conslatando a'mesma confusio apontada por Petrocelli: “Que a irrelevincia do desconhecimento da lei penal foi historicamente identifi- cada, de forma prevalenie, com a irrelevancia do erro de direito penal ¢ da falta da consciéncia da ilicitude, é um fato incontroverso” *?, Entre nés, Nélson Hungria, com a autoridade de quem Batticipou da claboracio de dois cddigos (0 de 1940 e 0 le 1969), no nega, antes o confirma, que o “erro de di- reito” da lei patria é igual a ignorantia legis, in verbis: “85. Ignoréncia ou erro de direito. " No art. 16, o Cédigo declara irrelevantes a ignordncia da lei (desconhecimento da exis- téncia da lei) ou erro de direito (errada compreensio da lei), colocando-os em pé de igualdade. Praticamente, tanto faz a auséncia total de conhecimento (ignoréncia) quanto 9 conhecimento desconforme com a realidade (erro). Nao ha por que distinguir, para diverso tratamento juridico, entre o nenhum e o falso conhecimento da lei, entre a igno- rantia legis e 0 error juris, entre 0 nao-conhecer e o conhecer mal a norma legal”. [Grifos no original.] ote-se que erro de direito, para o penalista pitrio é 0 nenhum ou 0 falso conhecimento da lei e, para ele, “ndo hd por que distinguir ... entre a ‘ignorantia legis’ ¢ o ‘error ‘Ai estd, em vigorosa sintese, o que se pode chamar a culminancia do seguinte silogismo, que no esté em qual- quer lei mas foi construido pelos juristas através da histéria: a ignorincia ou a errada compreensio da lei nao escusa; ora, nao ha por que distinguir 0 Direito da lei, isto é, Direito 142. Op. cit, pags. 50 ¢ 51. 143. Comentérios, cit, pag. 213, 78 ¢ lei sio a mesma coisa; logo, a ignorancia ou a errada com- preensio do direito nao escusa. Jé vimos, paginas atras (supra, Cap. 2, 4) que esta redugao do Direito a lei deve ser considerada definitiva- mente superada. E quanto a isso parece nao haver dividas, nos dias de hoje. “Cumpre”, — afirma Miguel Reale — “desde logo desfazer 0 equivoco da redugio do ordenamen- to juridico a um sistema de leis, e até mesmo a um sistema de normas de direito entendidas como simples “proposigées Jégicas”. Mais certo ser4 dizer que o ordenamento juridico €0 sistema de normas juridicas in acto, compreendendo as fontes de direito e todos os seus contetdos e proje- goes”... Ora, se no atual momento histérico jé no & aceitivel, por via eee a identificagao do Direito com a lei, com a regra legislada, pode-se afirmar, para usar um argu- mento dos Idgicos, que a premissa menor do silogismo a que nos referimos é totalmente falsa. Assim, embora o pri- meiro temo, a premissa maior, possa conter uma verdade, a conclusao nao sera necessariamente valida. Com isso, o que antes parecia uma sélida construcao, de repente, torna-se ruinas. Desfeita a redugo do Direito a lei, pode-se, entao, re- tornar & regra legislada segundo a qual a “ignorancia ou a errada compreensio da lei” nfo escusa e dela procurar ex- trair o seu verdadeiro sentido (ou a sua funcao atual) que, conforme jé vimos paginas atrés, como ocorte com toda nor- ma legal, pode nao ser 0 mesmo que lhe quis emprestar 0 "legislador histérico”. (Engisch, supra, 4, 1. ‘Assim, sem colocar em contestagio a validade formal ea eficacia das regras dos arts. 16 do Cédigo Penal de 1940 ¢ do art. 8.° da Lei de Introdugio ao Cédigo Civil (0 Cédigo Penal de 1969 ainda nao entrou em vigor), acredi- 14d. Op. cit, pgs. 189/190. 79 tamos poder submeté-las a novo processo interpretativo, relembrando este velhissimo brocardo: “Scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem” (Celsus, Dig. I, 3, 17). Dispensamo-nos de reproduzir os imimeros argumentos existentes sobre a necessidade e a natureza juridica do principio ignoranta legis neminen excusat pois parece-nos indiscutivel, conclusivamente, dever-se admitir ¢ sua utili dade, visto como tal prinefpio sempre constituiu e constitui um dogma que repousa sobre imprescindivel exigéncia de ordem pratica para a validade do ordenamento jusidico. Um ordenamento jurfdico nao pode com efeito subsistir @ nfo ser na medida em que as leis sejam obrigatérias quando promulgadas*, E esta obrigatoriedade deve operar-se de modo concomitante, geral, em relagao a todos, nao sendo pensavel que, dentro ees Estado, as leis possam ter validade em relagio a uns ¢ nao em relagao a outros que eventualmente as ignorem ™*, Essa é, porém, uma questo que, como bem o demons- tra Figueiredo Dias, “diz unicamente respeito ao fundamen- to de validade da lei, & sua obrigatoriedade abstrata” “” e ta Dizer-se que as leis, uma vez editadas e publicadas, adquirem validade formal, ov vigéncia, independentemente de serem conhecidas em concreto, é uma afirmacio correta ‘mas que nada tem a ver com o problema da conseféncia da ilicitade, pois — afirma Eduardo Correia — “do que neste 145, Maggiore, op. cit. pig, 403, veaad iy MigEe Reale salons’ “O que, a nosso ver, confer va dade a0 ordenamento, exigindo que seus preceitos sejam obede- ee ee eae ae ale hhistérico-social da experiéncia jurfdica, legitimando-se pelo absurdo da tese contréria: se se admitisse a geral desobediéncia as regras de direito estas deixariam de ser regras juridicas”. Ligdes, it pag. 195, " 147. Op. cit, pag. 61. 80 se cura nao é da ignorancia da lei penal, que pela natureza das coisas sé em abstrato poderia ser considerada, mas de concreta auséncia no agente, e no momento da atuacao, da consciéncia da ilicitude de uma certa conduta. Poder-se-a, na verdade, pretender que a ignorancia da lei nfio tenha eficdcia exeluidora da culpa; mas j4 assim nao sera, como vimos, em relacao a ignorancia da ilicitude do fato” Me E aqui ressurge, a nosso ver, o problema da unidade dos fatores fato, valor e norma, que compoem o fenémeno juridico (Miguel Reale, supra, Cap. 8, 2): 0 agente erra sobre a ilicitude de um fato real, ou melhor, erra sobre uma qualidade ou aspecto do fato real (0 estar proibido) e, com i580, ao mesmo tempo, realiza uma conduta concreta que se ajusta a um modelo tipico penal. Nao se trata, como se vé, de um simples “ignorar a lei” mas de um atuar, na vida real, que implica desconheci- mento da ilicitude do fato, nao da lei. Pratico esta conduta concreta que se ajusta a um tipo penal nfo porque ignoro ou compreendo mal a lei penal (posso até conhecé-la muito bem) mas porque nao me passa pela cabeca que tal condu- ta seja algo errado, seja algo condendvel, seja algo “proibi- do”. E uma valoragio leiga que faco sobre 0 fato e nao tuma ignorancia da lei, Nesse sentido, até mesmo as pessoas mais instrufdas podem, em certas circunstdncias, valorar um fato (Iegitima defesa putativa, por exemplo) de modo a incorrer em erro sobre a ilicitude da conduta concreta que realiza. Mas, ainda que se queira dar a pura ignorancia da lei © sentido tradicional que se Ihe tem dado, ainda assim for- oso & concluir, como se vers, que esta é apenas uma das muitas espécies de erro possiveis. Eas outras que escapam ao ambito da pura ignorantia legis? Sera correto supé-las excluidas de toda e qualquer 148. Op. cit, pig. 439. él consideraco por parte do direito penal, s6 porque niio esto expressamente previstas em lei? Raciocinemos de outro modo: existem A, B, C, D,.. N formas de erros possiveis. Algumas delas se identificam com a ignordncia da lei, Excluidas estas, por expressa von- tade do legislador, que dizer das outras. que, inexistindo previsao legal, se situam na lacuna da lei? Se 0 Direito néo se reduz a lei, parece-nos dbvio que sera facil constatar, entre as varias formas de erro a serem estudadas, que em umas 0 erro incide sobre a lei penal, mas que em outras incide sobre o Direito, em faixa nao coincidente com a da lei penal. Podemos visualizar a ques- tao em exame através de dois circulos concéntricos: 0 me- nor, 0 da lei; 0 maior, o do Direito; 0 erro que recai sobre menor atinge a ambos, mas o que xecai na faixa exclusiva do Direito pode nao atingir a lei. Dissocia-se, assim, 0 problema da ignordncia da lei do da falta de consciéncia da ilicitude, os quais, s6 por uma imperdodvel identificagao do Direito com a lei, estavam metidos no mesmo saco. Se, pois, no erro de proibigio, a representagéo do conteiido valorativo da norma como que se apaga, ou nfo estd presente, na consciéncia do agente, néo menos exato & que isto s6 se torna possivel, em concreto, na vida real, através da errOnea apreciagio da prépria conduta que se realiza, visto como um error iuris (ou uma ignorantia legis) que caia no vacuo de uma pura abstragio, sem correspon- déncia com uma falsa representacao da realidade, néo exis- te (Maggiore, supra, Cap. 8, 2), € mera fantasia que, por Gbvias razbes, deixa de apresentar qualquer interesse para a Ciéncia Penal. Saber, por outro Jado, se quem age com “erro sobre a ilicitude do fato real” “° merece, ou nao, receber uma pena 149, Segundo Welzel, Verbotsirrtum 6 a designagéo abreviada para o “erzo sobre Hiitade do fato real” (x. supra, Cap. 1) 82 criminal, este é um outro problema que s6 pode ser deslin- dado, em concreto, segundo o principio da culpabilidade e dentro de limites que serdo estudados logo adiante. Neste ponto, devemos enfrentar o problema inicial da interpretago das normas legisladas que ai estdo ¢ estabelecem a inescusabilidade da “ignorancia da lei” ™. Tais normas, na linha de pensamento que adotamos, estatuem um prinefpio para que as leis possam ter validade formal, vigéncia plena e geral. E, conforme admitimos, nao hé qualquer defesa possivel do individuo contra elas, através da simples alegacio de néo conhecer ou de conhecer mal a validade formal das leis. No direito penal, segundo entendemos, tais alegacdes equivalem ao erro totalmente irrelevante sobre a punibilidade do fato. E como se o réu dissesse ao juiz: pratiquei o fato porque néo sabia que havia uma lei estabelecendo punigo para esse fato. O erro de oibico nao é igual a desconhecimento da punibilidade A fate (matéria do preceito penal), refere-se ele As “normas situadas atrés do, preceito penal’, mada tem a ver com a cominagio penal". Assim, a “forga” e o “poder” das normas que estabele- ‘cem a inescusabilidade da ignorancia da lei nao se estendem para além do campo de sua incidéncia especifica — a vigén- cia ou a validade formal da lei — a ponto de pretenderem disputar com outro principio, também norma legislada (nullun crimen sine culpa), em ilegitima intromissio, a Seo da censurabilidade da conduta do agente pela pratica de um fato concreto, Para melhor compreensio do que foi dito, poder-se-4 enfocar solucionar a mesma questao de um outro angulo 150. Lei de Introdugio ao Cédigo Civil: “Art, 3°, Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que no a conheee”. | Codigo Penal de 1940: “Art. 16. A ignordncia ou a errada compreensio da lei no eximem de pena’ 151, Maurach, op. cit, v |. I, pag. 151. 83 Tiicitude ou antijuridicidade é uma correlagto de contrarie- dade que se estabelece entre uma conduta conereta, da vida real, e 0 ordenamento juridico no seu todo (supra, nota 132). O conhecimento da ilieitude, ou da antijuridicidade, tem por objeto, pois, esta correlagiio que se situa entre 0 ordenamento jurfdico e o fato concreto, dois extremos da correlacao que se exigem reciprocamente. Falta de cons- ciéneia da ilicitude nao pode, pois, ser apenas a ignordncia, on a errada compreensio, de um destes extremos, qualquer que seja ele (0 fato ou a lei), mas deve ser necessariamente a ignordncia ou a errada compreensio de um “plus”, a cor- relagao de contrariedade entre 0 fato concreto e 0 ordena- mento juridico, Um erro que aponte apenas para circunstncias f4ticas, sem ferir 0 outro extremo da correlacio, sé por via obliqua pode ter algo a ver com a falta da consciéncia da ilicitude. Da mesma forma, um erro que aponte apenas para a norma legal (pura ignorantia legis). Com isso, pensamos ter aingido um novo alcance de sentido para o direito penal (bem mais limitado que 0 tra- dicional) dos dispositivos do art. 8.° da Lei de Introdugio a0 Cédigo Civil e do art. 16 do Cédigo Penal de 1940, ficando assentado que nada dizem eles sobre a ignorancia da ilicitude de um fato real. Restringem-se & pura ignoriin- cia da validade formal de uma Ici. Como estes séo os tmicos preceitos legislados, com repercussio sobre o direito penal, que disputavam a regula- mentagio da inescusabilidade do erro de proibigao (os que mais hi admitem a escusabilidade do erro), e uma vez estabelecido que nao tém o alcance que aparentavam, for- osa é a conchusio de que, em matéria de erro de proibicio, a lei apresenta certas Jacunas que podem e devem ser pre- enchidas pelo intérprete através do recurso a analogia (ana- Jogi in bonam parte, frse-se) © ao principio fundamental do sistema nullum crimen sine culpa. 84 Resta ver o art. 20 do Cédigo Penal de 1969 que, infe- lizmente, mais prejudica do que favorece, dentro de uma construgio légico-sistemética, 2 solugio do problema. E mais um dos imimeros defeitos existentes nesse Cédigo que até hoje est4 com sua vigéneia suspensa por tempo indeter- minado e ainda se enconta em estudos no Congresso cional. Diz o mencionado preceito: “Art. 20. A pena pode ser atenuada ou substituida por outra menos grave, quando © agente, por escusdvel ignorancia ou errénea compreensio da lei, supoe Kcito 0 fato”. ‘A norma em foco é extremamente mais perniciosa do que a do art. 16 do Cédigo de 1940 pois, se nesta (0 art. 16 do Cédigo Penal de 1940) limitou-se 0 legislador a esta- belecer 0 prinefpio j4 examinado da obrigatoriedade abs- trata da lei (assim se pode entender), naquela (0 art. 20 do Cédigo Penal de 1969) mistura-se imperdoavelmente falta de consciéncia da ilicitude (“supée” licito 0 fato) com ignorincia ou m4 compreensio da lei. Como interpretar tal preceito, & luz dos principios 16- gico-sistematicos que estamos desenvolvendo? Sera possi- vel compatibiliz-lo de maneira harménica com a moderna teoria do erro? Eis o que se pode dizer a respeito. Primeiramente, fagamos a necesséria separagio das duas hipéteses contidas no artigo em exame. Na primeira temos: “... 0 agente, por escusdvel ignorancia... da lei, supoe licito o fato”; na segunda temos: “... 0 agente, por escusivel... errada compreensao da lei, supoe licito 0 fato”. A conseqiiéncia dos dois tipos de erro é a atenuagio da pena, ou a sua substituigio por outra menos grave. Nao escusam totalmente, portanto. Se interpretarmos tais preceitos como estatuidores de uma responsabilidade objetiva, para o crime praticado sine culpa, isto 6, com erro escusdvel (a expresséo escusdvel igual a desculpavel, sem culpa, é do préprio legislador) 8 estaremos pondo por terra a propria recomendagao da Ex- posigao de Motivos que acompanha o projeto, in verbis: “O principio nullum crimen sine culpa é uma das constan- tes do Projeto, e sua significagao exegética nao deve ser esquecida” (item Ll, in fine). Como entdo resolver o impasse? Jé afirmamos, e veremos mais adiante, que nio existe um erro de proibigao, mas vdrias espécies de erro de bicdo. “O erro de proibicao pode apresentar-se em varias diferentes formas” afirma Paul Bockelmann’*, E, dentre elas, aponta o autor citado estas duas: “a) 0 autor nao conhece a norma proibitiva (uma lei penal sé agora posta em vigor néo foi por ele ainda conhe- cida); b) 0 autor conhece a norma proibitiva, mas desco- nhece (nao compreende) a sua aplicabilidade A aco que pratica porque a interpreta falsamente (erro de subsun- a0)” Nao ser preciso muito esforco para ver a perfeita coin- cidéncia entre a primeira hipétese do art. 20 do Cédigo de 1969 (“o agente, por escusdvel ignorancia... da lei, supde Kcito 0 fato”) com a hipétese sob a do exemplo de Bockel- mann (ignorancia escusdvel da lei). O mesmo se diga da segunda hipdtese do art. 20 do Cédigo de 1969 com a hipé- tese sob b do mesmo autor (erro de subsuncao). Interpretando-se restritivamente os preceitos em exame, como convém & “significacdo exegética do principio nullum crimen sine culpa”, conchui-se que o Cédigo de 1969 regula, no preceito examinado, apenas duas entre as varias possi- veis formas do erro de proibigao: 0 erro escusavel sobre a 152. Strafrecht — Allgemeiner Teil, 2. Avsl., C. H. Beck, 1975, pag. 119, 153, Bockelmann, op. et loc. cit. 86 vigéncia de uma lei e 0 denominado “erro de subsuncio” (subsumtionsirrtum), atribuindo-Ihes nao a exclusto da culpabilidade, mas apenas um grau menor de censurabili- dade (esta graduacéo é possivel dentro do principio da culpabilidade), com o efeito de atenuagio da pena ou de sua substituigao por outra menos grave. E as outras formas — aliés as mais importantes — de erro de proibigao? Nao esto previstas no Cédigo, pois, como veremos, ndo tém qualquer semelhanga com os acima referidos “erro de vigéncia” e “erro de subsungao”. Forgosa, portanto, é a conclusao de que o Cédigo Penal de 1969, a0 regular casuisticamente algumas formas do erro de proibicgo nem por isso afastou as demais de toda qualquer consideragao por parte do intérprete. Também aqui ocorre uma enorme lacuna para cuja solugao deve-se recorrer & analogia in bonam partem e, para atender & ex- pressa recomendacao da Exposicio de Motivos, ao principio nullum crimen sine culpa. Os casos especificos serio contudo examinados no ca- pitulo seguinte, quando do estudo das varias espécies de erro de proibigao e dos respectivos limites de escusabilidade. Fica, entretanto, a adverténcia: como o Cédigo Penal de 1969 esté com sua vigéncia suspensa, com algumas su- gestses de modificagio pendentes de exame no Congresso Nacional, parece-nos de todo oportuno reabrir-se 0 debate em torno da regulamentagio do erro pois confunde-se nele erro de vigéncia da lei e erro de subsungio com o erro sobre a ilicitude do fato. ‘Antes de passarmos ao exame das varias modalidades possiveis do erro de proibicio, fagamos um confronto entre Js idéias até aqui desenvolvidas e a de alguns importantes penalistas patios, pois seria imperdodvel wma omissio neste particular. 7 c) A doutrina penal brasileira e a escusabilidade do erro de proibigdo, ou do erro de direito. ca) A. J. da Costa e Silva, em seus comentarios a0 Cédigo de 1890, segue a orientagao resultante da tradicio- nal distingao entre erro de fato e erro de direito. Todavia, o notvel penalista e magistrado deixa entrever as dificul- dades decorrentes do principio error iuris semper nocet preconizando um retorno, por via de interpretagao, a dis tincao romana entre delicta iuris gentium e delicta iuris civilis, ia, pois, na Hermenéutica, nao na lei — ¢ isto é de magna importancia — 0 verdadeiro caminho para a solugao “dos casos ocorrentes” “, Nao ultrapassou, entretanto, sob 0 peso das idéias do- minantes na época, a jé por nés examinada identificagao entre o Direito e a lei, embora reconheca, nos Comentarios ao Cédigo de 1940, ser manifesta a “tendéncia do direito moderno para abrir brechas, cada vez maiores, no velho principio da irrelevancia do error uris” *, cb) Galdino Siqueira, nos comentarios ao Cédigo de 1890 mantém-se fiel A tradigao ™*, todavia parece ter evo- lujdo a ponto de provocar criticas tio acres quanto injustas de Nélson Hungria, por ter afirmado que j& “nao ha dis- tinguir entre erro de direito e erro de fato para a isengao da pena”... 154, “Gilgo Penal dos E. U. do Brasil Comenado, (de 1890), ‘Sio Paulo, 1930, pag. 163: Nao hé negar que a distingio 10- mana tem um notavel fundo de verdade ¢ justica; mas néo pode ser feita convenientemente pela lei, O tinico meio de aplicé-la é deixar a solugio dos casos so pridente arbitrio do juiz". 155. Comentérios ao Codigo Penal Brasileiro, 2* ed., revista ¢ atualizada por Luiz Femando da Costa e Silva, Si Paulo, 1967, pag. 102 156, Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, 2° ed., Rio, 1932, pigs. 333 e segs. 157, In Comentérios... de Nélson Hungria, cit. pag. 25 88 cc) Basileu Garcia conexiona o problema do erro com 0 prinefpio da culpabilidade, mas s6 admite a escusa- bilidade do erro extrapenal, dentro da linha cléssica, nao rompendo a barreira da identificagao do Direito com a Tei. cd) E. Magalhaes Noronha, com bastante acuidade, ercebe a insustentavel contradigéo existente, in verbis: ‘Para os que aceitam a existéncia de um elemento norma- tivo no dolo, para os que acham que este nao é apenas representacao e vontade, mas consciéncia da antij ridicida- de, é dificil justificar a irrelevancia do erro de direito. Se a consciéncia da ilicitude falta, nao hé dolo e sem dolo nao existe crime. A nosso ver a parémia error iuris nocet choca- se com 0 conceito da culpabilidade normativa”". ‘Nao extrai, entretanto, 0 ilustre penalista as conseqiién- cias légicas desse seu brilhante raciocinio, mantendo-se fiel ao entendimento tradicional de que a lei brasileira nao en- seja outra saida. ce) José Salgado Martins tem idéntica posicao, sa- lientando: “Nossa opiniéo se decide pela incindibilidade dos dois conceitos — erro de fato e erro de direito, — mas outra é a inteligéncia da lei e esta é que cumpre revelar” Note-se que o que importa ser unificado no so os conceitos de dois tipos diversos de erro, mas sim os seus efeitos juridicos que podem ser os mesmos, apesar da diver- sidade de conceitos. cf) Frederico Marques segue a mesma linha de Basileu Garcia e de Magalhaes Noronha, s6 admitindo a escusabilidade do erro de direito extrapenal, lamentando a rigider do Cédigo que, a seu ver “nao se coaduna muito bem com o modemo conceito de culpa normativa”. ..‘. 158, Instituigdee,... eit, pag. 277. 159, Direito Penal, op. cit., pag. 155. 160. Direito Penal, Saraiva, 1974, pig. 240. 161. Curso de Direito Penal, Saraiva, 1956, vol. I, pag. 244. 89 Na mesma linha: Paulo José da Costa Jr.’ e Everardo Cunha Luna ™, cg) Anibal Brno" ¢ Heleno Cliudio Fragoso™ colocam-se na linha de frente da batalha pela unificagio dos efeitos juridicos do erro. O ultimo, conforme salienta- mos, chega a adotar a terminologia “erro de tipo”, “erro de proibicio”. Todavia, néo nos parece que tenham pro- curado solueionar, decididamente, ao nivel da Hermenéu- tica Juridica, os dificeis obsticulos existentes de lege lata, ch) Nélson Hungria, segundo salientamos em outras passagens, é, ao contrdrio, um extremado defensor do que cle proprio chama “principio tradicional de que o error iuris nocet", Fixa-se, na sua obra principal, em posigao radical contra a escusabilidade do erro de direito, incorren- do na mais absoluta identificago entre 0 Dieito e a lei (Comentérios, cit, pag. 213. V., supra, letra b). E, nessa sua radicalizacio, chega até a expender argu- mentos, quase inacreditiveis, deste teor: “Em paises, porém, como o Brasil, onde impera o anal- fabetismo e em cuja vastidao a consciéncia juridica do povo escasseia & proporeao que se distancia do litoral, seria erro gravissimo a admisséo da generalizada relevancia do erro de direito. Afora o caso de crimes que atrocitatem facinoris habent, estaria criado para a gente inculta dos “morros” € do remoto sertao, com 0 elastério da escusativa, um verda- deiro bill de indenidade contra a justiga penal. “Certamente, a consciéncia da injuricidade, integrante do dolo, deveria ser exclufda pelo erro de direito, quanto 0 é pelo erro de fato; mas o erro de direito deve ser decla- rado inescusavel, pelo menos em paises com diversidade de 162. Direito Penal da Culpa, cit, pag. 78 (v., supra, nota 97). 163. Estrutura Juridice do Crime) 38 ed, Recife, 1970, pags 263 e segs, 164. Direito Penal, Forense, t. 2°, pags. U2 e se 165. Op. oft, pigs. 222 ¢ seg * 90 graus de adiantamento cultural, por isso que, além de provir da omissio do dever civico de conhecer as proibigdes im- postas pela necessidade da diseiplina social, importaria, se Considerado relevante, a impunidade de extenso miimero de delingiientes, em cuja defesa se invocaria sempre, e com ardua dificuldade de prova em contrario, a ignorincia da Tei”. Parece-nos que tais argumentos sao de todo insubsis- tentes. Primeiro, porque a “consciéncia da ilicitude” que se exige do agente do crime é conforme dissemos anterior mente, “que cada um reflita sobre os valores ético-sociais fundamentais da vida comunitiria de seu proprio meio (supra, item 2, a, 1.°), ou, no dizer de Mezger, “uma valo- racao paralela do agente na esfera do profano.” Nao & pre- ciso ser engenheiro, téenico em mecanica, alfabetizado ou residir no litoral, para saber 0 que & uma embarcacao, ou um automével (adaptando-se exemplo de Astia). Da mes- ma forma, na esfera do profano, nao é preciso ser alfabeti- zado etc., para saber “que nao ¢ certo”; matar um ser humano; tomar uma coisa alheia contra a vontade do dono (Sto. Agostinho diz nas Confissoes que até mesmo o ladrao repele outro ladrao); invadir, sem autorizagao, a casa do vizinho; manter relagées sexuais com a mulher de outrei, ou violentar uma menor etc., etc. Segundo, ainda que assim nao fosse, no serio certa- mento as prisdes a melhor escola, ou o melhor melo, para se educar uma fracio ignorante do povo, O que a experiéncia revela é que os pres{dios tém sido, ao contrério, foco de contaminagio e de difusao de criminalidade. Terceiro, nio conhecemos nenhum jurista de impor- tancia (pelo menos nfo o encontramos nas intensas pesqui- sas que fizemos) que sustente simplistamente deva caber 166. Op. cit, pags. 217/218, 91 & Justica Piblica os énus da prova de que 0 réu conhece a lel, Essa, realmente, seria uma auténtica probatio diabolica. Afigura-se-nos dbvio, pois, que as alegacdes de defesa referentes & existéncia desta especial causa de exchusio da calpabilidade — o erro de proibigéo — é um onus probandi que, em principio, incumbe & defesa, a menos que 0 fato, por resultar tao evidente da prova colhida nos autos, esteja fa bradar pela sua visualizagao por parte do juiz e do pro- prio promotor. Quarto, 0 dispositivo do art. 16 do Cédigo Penal de 1940 (“a ignordncia ou a errada compreensio da lei nao eximem de pena”) é substancialmente muito menos espe- cifico do que os preceitos do art. 29 do Cédigo Penal por- tugués ', a respeito dos quais Eduardo Correia, com toda a sua autoridade, afirmou cuidarem de problema totalmente estranho ao da “consciéncia da ilicitude de uma certa con- duta” (supra, letra b) Quinto — e por iltimo — as dificuldades existentes no direito legislado patric néo sio muito diferentes das que também existiam na Alemanha antes da reforma penal a que nos referimos paginas atris. Nao obstante, a doutrina penalistica e o Supremo Tribunal germénicos nao titubea- Tam ei procurar solugées adequadas para o tema do erro, antecipandose ao legilador (Vi, a le de reforma 6 que copiou a praxis), como da noticia Karl Engisch na seguinte passagem, que reputamos oportuno transcrever por sinteti- zat uma decisio do BGH (Bundesgerichtshof) qualificada como sendo “a mais importante que ele proferiu desde que existe”: “,..0 Supremo Tribunal Federal resolveu 0 pro- blema do erro sobre a proibigao, mais exatamente, 0 pro- 167, “Art, 29, Nao eximem de responsebilidade penal: 1° A sgnorincia da ei pens 2°) A. eds cbre a erimalelade do Jato; -.. 4) A persuasio pessoal da legitimidade do fim ou dos rmotivos que determinaram o'fato; .... §-1° As circunstinchas de- sgradas nog 162 dete ago anes aterm report ade pena 92 blema de saber como deve ser julgada a pessoa acusada de ‘um fato punivel que invoca a circunstincia de que no sabia que praticava um ilfcito (que nao sabia, por exemplo, que as relagdes homossexuais sao proibidas), essencialmente através do recurso ao ‘prinefpio intangivel de toda a punigao, segundo o qual a pena pressupée culpa’”. A partir deste wrincfpio, e por meio duma andlise da “esséncia” da culpa Ceuta 6 censurabilidade”), o dito Tribunal chegou ao se- guinte resultado: o autor de um fato punivel tem de ter a consciéncia de praticar um fato ilicito, ou, pelo menos, de poder, “através duma adequada tensao da sua consciéncia ética”, alcangar essa consciéneia (conhecimento). O Tri bunal Federal, nesta decisio juridico-penal, a mais impor- tante que ele proferiu desde que existe, reconhece que a sna tarefa consiste em “determinar e aplicar, pela via da descoberta judicial do Direito, aqueles principios fee que... sao fiadores da atuagao do principio da culpa e sio ajustados & esséncia da mesma culpa”. Noutra passagem (pag. 209, V) 0 mesmo Tribunal esclarece que, pelo que respeita aos prineipios juridicos utilizados para preencher a lacuna, se trata no caso vertente daqueles que resultam necessariamente “da esséncia da culpa’, “anteriormente a todas as normas legisladas” *, Nao é outra coisa, aliés, 0 que até aqui sustentamos. Se a quase totalidade dos penalistas pitrios (excegao feita a Nélson Hungria cujos argumentos nos parecem insusten- taveis) proclamam a necessidade de se superar a contradi- do existente entre um direito penal da culpabilidade e a rigidez do principio error iuris nocet, pode-se dizer que existe na drvore ja frondosa de nossa Ciéncia Penal um belo fruto maduro, aguardando apenas seja colhido. Essa tarefa, porém, ha de caber, a nosso ver, menos ao legislador do que ao intérprete, sobretudo aos magistrados, pois as leis, como se sabe — e assim deve ser — somente surgem apés a devida clarificagio das idéias. 168. Op. cit, pag. 244, 93 Capitulo 6 Limites da Escusabilidade do Erro de Proibicéo 1. Erro de proibigéio imescusdvel Cevitavel). Erro de proibigdo escusavel (inevitavel). Em varias passagens, temos ja advertido, com 0 prop6- sito de dissipar certos preconceitos infundados contra a teo- tia do erro, que existe uma gama bastante variada de espé- cies de erro de proibicéo e que nem todo erro desta natureza, ‘ou que se classifique como tal, pode ou deve ser relevante para o direito penal. Importa, pois, agora, descer as especificacdes. Antes de mais nada, porém, é preciso frisar que os conceitos juridico-penais se reduzem a pé na medida em ue se desvinculam da vida, dos fenémenos sociais, enfim aa realidade que hes dé substincia. Assim, se ao jurista nao deve faltar uma boa dose de coeréncia légica, nfio me- nos exato é que a realidade concreta, com toda a sua riqueza fluidez, nao se deixa apreender totalmente em uma cons- truco conceitualista, por mais acabada e perfeita que possa parecer. Por isso — e como pretendemos ter os pés no solo € os olhos voltados a cada instante para a realidade brasileira, 95 mesmo quando manipulamos idéias de fora — evitaremos adotar certas posicbes extremadas, abstratas, a respeito da total escusabilidade do erro, seja porque no estamos con- vencidos de seu acerto, seja porque seria pura fantasia pre- tender saltar por sobre 0 abismo que separa o error iuris semper nocet 89 error furs semper excusat, Conscientes, pois, dessa problemética, preferimos dar realce a este capitulo, no qual, através de um corte hori- zontal abrangente de todas as espécies de erro de proibicao, cesforcar-nos-emos por tracar, em grandes linhas, os limites além dos quais nao se deve nem se pode admitir a escusa- bilidade de qualquer exo de proibigéo. A maiéria aqui tratada somente seré, porém, perfeitamente compreendida se considerada, numa visio de conjunto, com os cortes ver- ticais a serem feitos no titulo seguinte. Dito isso, passemos ao exame dos limites gerais para 0 erro de proibicao. Relembremos que, segundo a teoria da culpabilidade, es consciéncia atual do injusto, quanto quem atua ilicitamente com uma consciencia potencial do injusto, Em outras pala- vras, mesmo quando atue sem conhecimento do injusto, deve o agente merecer a censura de culpabilidade pelo seu ato, quando com 0 emprego do esforco que lhe era exigivel, nas circunstncias, pudesse ter tido esta consciéncia. Acres- centamos, além disso (supra, Cap. 5, 2, a), que, para certas profissdes ou atividades regulamentadas, fiscalizadas, impée-se a quem as queira exercer um especial “dever de informar-se”. E que o Estado e a sociedade, omnium consensu, permitem ao individuo o desfrute dos beneficios decorrentes da pratica de certas atividades necessirias, mas que fogem do padro normal de conduta de todos e de cada um, com a condigao de que os que a elas se entreguem pri- meiramente se informem e se esclaregam devidamente sobre © que é justo ou injusto, na pratica de atos inrentes a0 96 exercicio dessas mesmas atividades. (Ex.: comércio, indi tria, profissdes liberais, atividades técnicas, politicas etc. )"® Do conjunto dessas consideragbes decorrem as nogdes de “inevitabilidade” e “evitabilidade” do erro, correspon- dentes respectivamente aos conceitos de “desculpabilidade” ou “indesculpabilidade” do erro. Pode-se, pois, tragar 0 seguinte esquema para a inad- rmissibilidade do erro de proibigéo: 1.°) exclui-se o erro de proibicao relevante quando o agente atue com uma “cons- ciéncia profana” do injusto; 2.°) é ele ainda excluido quan- do o agente: a) atue sem essa consciéneia, apesar de lhe ter sido facil, nas circunstancias (com o proprio esforco de inteligéncia e com os conhecimentos hauridos da vida comu- nitéria de seu proprio meio), atingir tal consciéncia profana; ) atue sem essa consciéncia (ignorantia affectata do reito canénico)"™ por ter, na divida, deixado propositada- mente de informar-se para nio ter que evitar uma posstvel conduta proibida; c) atue sem essa consciéncia (ignorantia vincibilis do direito candnico) por nao ter procurado infor- mar-se convenientemente, mesmo sem m4 intengo, para o exercicio de atividades regulamentadas. Compreendemos que nio seja facil fixar com nitidez € rigor os critérios da evitabilidade, Wessels nos dé alguns exemplos jurisprudenciais, bastante elucidativos, apés afir- mar que as exigencias tém sido severas a respeito, mesmo na Alemanha: 169. Diz 0 provérbio: “quem no tem competéncia nfo se cestabelece”. Melhor dirfamos: quem nio tem competéncia pode estabelecer-se, contanto que assessorado por quem a tenba. 110, Exemplo extraido de P. Pellé, Le Droit Pénal de LEglise, cit, pig, 14 alguém, em estado de divide, recusa instrvirse a respeito de seus deveres, para agir mais livremente, para nio de- frontar-se com a eventual obrigagéo de ter que fazer ou omitir al- gua coisa, ane “Os aaitérios da evitabilidade ainda estio pouco escla- recidos. A jurisprudéncia faz exigéncias bastante severas ho que toca $afirmagio da ‘nevitabilidade’ do erro: o deer sivo é, se 0 autor, em virtude de sua posigio social, segundo sua capacidade individual e na mobilizagao, a ele exigivel, de suas forcas de conhecimento e de sua representagio jurf- dico-social de valor, tivesse podido compreender o injusto do fato (BGHSt 4. 1 e 237; 8, 866). Na duvida sobre a admissibilidade juridica do fato subsiste um dever de reco- nhecimento. Antes de intervir sobre os bens juridicos pro- tegidos, o ignorante do direito deve certificar-se, dentro do possivel, sobre a situagio juridiea, néo podendo se deixar Jevar simplesmente pelo seu préprio jutzo incerto (BCHSt 5. 118 e 289; 21, 18). Com a gravidade do injusto do fato aumentam também as exigéncias dispostas neste sentido” *", Assim, a alegacao de estado de diivida, no erro evitavel, deixa de ser apreciada em beneficio do réu, como uma con- seqiiéncia necessdria da aplicaciio dos princfpios em exame, (Nao confundir “estado de dévida” com o in dubio pro reo, em matéria processual. No primeiro, a duvida esti na cabeca do réu; no segundo, na cabega do juiz.) Outra conseqiiéncia também necesséria & que a ines- cusabilidade ov # declaragao de evitabilidade do ero de proibigao acarreta a culpabilidade por fato doloso, excluida qualquer cogtagio de culpa stricto sensu, diferentemente Jo que ocorre com o erro de tipo, onde essa possibilidade existe. Expliquemos melhor o porqué deste efeito diferenciado do erro de proibicao em relacio ao de tipo. Vimos que o erro de tipo exchui sempre o dolo do agente e que nao ha compatibilidade possivel entre erro de tipo e Che ee ere eae 9 Fre stricto sensu (supra, Cap. 4,3). Assim, o erro de tipo s6 escusa totalmente quando nio derive de culpa (negligén- 171. Op. cit, pag, 101 98 cia, improdéncia, impericia); se derivar, subsiste 0 crime culposo, em havendo previsio legal. Recorde-se o exemplo do cacador que, por impradéncia, ou negligéncia, mata 0 companheiro, supondo ser uma caca escondida atrés do trbusto, Exeluido pelo erro o dolo, responde o agente, nao obstante, por homicidio culposo, No erro de Broibioto — e isto também ja foi visto (supra, Cap. 2, 8, b.b) — 0 dolo do agente nunca é afetado, sempre subsiste integro. O que se anula, por esta forma de erro, é a consciéncia da ilicitude do fato, excluindo-se, por via de conseqiiéncia, a censura de culpabilidade. agente quer 0 que faz, sabe o que faz, age com pleno dolo do fato, apenas desconhece o cariter proibido do seu agir. Assim, quem subtrai coisa alheia mével do devedor, supondo erroneamente que, para satisfazer-se de um crédito dificil de cobrar, poderia assim proceder, sabe que a coisa é alheia, sabe que a subtrai, quer subtrai-la, mas, por erro, supde exercer um direito de auto-ajuda, isto é, pensa praticar um ato nao proibido. Ora, se no erro de proibicao o dolo do tipo nunca é afetado, sempre permanece integro, se o que desaparece a culpabilidade, nao h4 como fugir desta tinica conclusio possivel ou 0 erro & inevitével, portanto apto a excluir 0 jpizo de censura, ou ¢ evitivel, por qualquer das raxies jé examinadas. Na primeira hipétese, nao ha crime algum, pois seria impensdvel um crime culposo como dolo do tipo: na segunda hipdtese a evitabilidade do erro afasta a escusa- bilidade do proprio erro, aperfeicoando a culpabilidade por delito doloso, Fala-se, neste caso, na possibilidade de uma redugao de pena em fungao do grau da culpabilidade, mas, ainda assim, o crime serd sempre doloso. Para concluir, evocamos as seguintes palavras de um importante penalista: “Quem realiza um tipo penal age, em geral, com consciéncia do injusto. Do conhecimento dos elementos do tipo resulta comumente (como regra) a compreensio de que se fez 0 proibido. Por isso a consta- 99 tagao de um atuar doloso fundamenta a suspeita de um agir com conhecimento da proibigéo. Todavia, em casos espe- ciais, pode faltar o conhecimento da proibigao. Entao, toda suspeita é contraditada. Com isso deixa de existir a cen- sura de culpabilidade, a menos que o erro de proibigao por seu turno cause uma censura ao autor. Neste caso, 0 orde- namento juridico ndo admite como causa de exculpacio a auséncia da consciéncia do injusto”. . "7. 2, Classificagao do erro de proibicao. Como decorréncia dos principios adotados ao estuda- rem-se a falta da consciéncia da ilicitude e a ignorancia da ei, parece-nos possivel cortar verticalmente 0 erro de proi- bigdo em duas classes fundamentais: a) a ira, contendo maior carga de escusabili- dade quando inevitdvel, abrange todo erro que recaia: a.2) sobre normas proibitivas; a.b) sobre normas preceptivas; ac) sobre normas permissivas ™, b) a segunda, contendo nenbuma ou menor carga de escusabilidade, abrange todo erro que recaia: ba) sobre a vigéncia de uma lei; b.b) sobre a eficdcia de um preceito legal; bic) sobre a punibilidade legal de um fato; bd) sobre a subsungio do fato concreto & hipotese legal. 172, Paul Bockelmann, Strafrecht, cit, pag. 119. 173, Sobre esta classificagao das’ noznas, ver Miguel Reale, Ligdes..., cit, pag. 196; Alessandro Groppali, Introdugdo ao Es- tudo do Direito, trad. Manuel de Alarcio, 2* ed, Coimbra, 1974, pags. 48 a 50. 100 Na primeira classifieacao sob a, situam-se as seguintes espécies de erro: aa) erro de proibigao direto (o agente, por erro ine- vitavel, realiza uma conduta proibida, ou por desconhecer a norma proibitiva, ou por conhecé-la mal, ou por nao com- preender o seu verdadeiro ambito de incidéncia); ab) erro de mandamento (o agente, que se encontre na “posigéo de garantidor” — v., supra, Cap. 4, 8, h — diante da situagao de perigo de cujas circunstancias faticas tem perfeito conhecimento, omite a acdo que lhe é determi- nada pela norma preceptiva — dever juridico de impedir 0 resultado — supondo, por erro inevitavel, nao estar obri- gado a agir para obstar 0 resultado); ac) erro de proibigdo indireto (o agente erra sobre a existéncfa ou sobre os limites de uma causa de justificagio, isto é, sabe que pratica um fato em principio proibido, mas, supée, por erro inevitavel, que, nas circunstdncias, milita a seu favor uma norma permissiva, prevalecente ). Na segunda classificagio sob B, situam-se as seguintes espécies de erro: ba) erro de vigéncia — inescusavel — (0 agente des- conhece a existéncia de um preceito legal — ignorantia legis — ou ainda nao péde conhecer uma lei recentemente editada); bc) erro de eficdcia — inescusdvel, salvo hipoteses raras e especialissimas — (0 agente nao aceita a legitimi- dade de um preceito legal por supor que ele contraria outro preceito de categoria superior, ou norma constitucional); bd) erro de punibilidade — inescustvel — (0 agente sabe que faz algo proibido, ou devia e podia sabé-lo, mas supée inexistir pena criminal para a conduta que realiza — desconhece a punibilidade do fato); bc) erro de subsungdo — inescusivel — (0 agente conhece a previsio legal, o fato tipico, mas, por erro de 101 compreensio, supde que a conduta que realiza nao coincide, no se ajusta ao tipo delitivo, a hipotese legal) Essa, a nosso ver, a classificagéo que reputamos possa ajustar-se a0 direito brasileiro, para as mais importantes formas de erro de proibicdo, isto é, aquelas que realmente apresentam relevancia por surgirem com certa freqiiéncia na vida pratica, Ao claborat as classes subclasses, ou espécies, supra, tivemos presente a interpretagio jé dada aos preceitos dos arts. 16 do vigente Cédigo Penal de 1940 e 3.° da Lei de Introdugao ao Cédigo Civil (desequiparacao do Direito a lei), bem como a referibilidade da norma a uma conduta real, concreta, Vincula-se, além disso, todo e qualquer erro de proibicio ao fator inevitabilidade, nos limites em que o colocamos. Conjugados os principios estabelecidos neste titulo com 0s do titulo anterior, pode-se agora descer ao exame das solugdes para os problemas suscitaveis pelas varias modali- dades de erro de proibigao. 3. Espécies de erro de proibicao. ) Erro de proibigao direto Norma proibitiva é a que impée um dever de omissio, de abstengio de certos atos (ex. ndo matar, nao furtar, nao falsificar documentos ete.). No direito penal, a norma proibitiva nao aflora por esta forma direta e imperativa. Mas encontra-se velada no tipo, através do qual o legislador des- creve a “matéria” da proibigo, isto é, um “modelo de conduta” (Verhaltensmuster) proibida (Welzel, op. cit., ag. 49). E neste sentido que se diz que a conduta criminosa contraria a lei penal, antes concretiza a realizagao de um fato tipico > penal Todavia, a norma proibitiva, que fundamenta a elaboragao do tipo, esta sim € desobedecida pela realizacao da conduta proibida, 102 Se o tipo penal, na sua elaboracao téenico-juridica & de dificil acesso ao comum dos individuos, dele tendo per- feito conhecimento s6 a classe privilegiada dos juristas ¢ advogados, 0 mesmo ndo se pode dizer em relagdo 4 norma proibitiva, subjacente a esse mesmo tipo penal, pois esta, em relagao & grande maioria dos delitos, é, antes de tudo, uma regra comum de conduta necesséria para a vida comunitéria, facilmente apreensivel por todo individuo inserido no apren- dizado empirico de sua propria existéncia em sociedade, no interior da qual nasceu e deveré permanecer até o fim, sem ensejo de opcio. (O Direito, que pressupée “relagdes intersubjetivas’, nao cuida da abstrata possibilidade de um ser humano, total e definitivamente isolado. ) O exro de proibigie direto 6, pois, 0 que incide néo sobre o modelo de conduta proibida, nao sobre o tipo penal, no sobre a lei penal (ignorantia legis), mas sim aquele que conduz, por equivoco, a realizagio de uma conduta concreta, real, que implique reflexamente contrariedade ao dever de omissio imposto pela norma proibitiva. Pode-se argumen- tar que nem toda norma proibitiva, no sentido que The da- mos, dA origem a construgo de um modelo tipico penal. (Isso ressalta, alids, a distingao entre norma e tipo.) Toda- via, precisamente por essa mesma razio, dado. © campo limitado de aplicagao do direito penal, 6 tem interesse, para nossa disciplina, aquelas condutas concretas que impliquem contrariedade a uma norma de proibigio, quando, além disso, se ajustem também a um modelo tipico penal. Dentro deste quadro, facil é compreender a afirmacéo de Bockelmann de que a simples constatagio da realizagao de uma conduta que se ajuste a um tipo de injusto doloso jf seja suficiente para fundamentar a suspeita de um agir com 0 conhecimento da proibigio. Esta é a regra. Nao obstante, como nem todo tipo delitivo tem por fundamento normas proibitivas difundidas na consciéncia de todos e de cada um e como, em circunstancias especiais, © conhecimento da norma pode, inevitavelmente, faltar, apa- 103 gar-se ou falsear-se na consciéncia do agente, a teoria do erro considera alguns casos, também especiais, como aptos a afastar a “suspeita de um agir com 0 conhecimento da proibigio” e disso extrai as conseqiiéncias Idgicas para o juizo de censura de culpabilidade, sem o qual a conduta concreta, embora tipica e antijuridica, nao se aperfeicoa como.um auténtico delito, Quais sio esses casos especiais? ‘Vimos, na classificagao do n.° 2, anterior, que o erro de proibigao direto ocome quando o agente, sem possibili- dade de evitar, de inibir a conduta que realiza, infringe a norma proibitiva, ou por desconhecéla, ou por conhecé-la mal, ou por nfo compreender seu verdadeiro imbito de incidéncia. Alguns exemplos elucidario as hipéteses em foco: se Ticio, errando sobre a natureza de seu matriménio anterior, contrai um segundo matriménio, nio poder ser imputado de bigamia (extrafdo de Bettiol, op. cit, p4g. 451). Rea- liza nessa hipétese um Segunda casamento nulo (ilicito civil), mas, como agiu com falta de consciéncia da ilicitude, © crime de bigamia nao se aperfeigoa diante da exclusio, pelo erro, da culpabilidade pelo ato. (Nao se trata de erro de fato por equiparagio, como supée Bettiol, mas de um auténtico erro de proibigao.) O credor, que emprestou todas as suas economias ao vizinho, percebe que este, sem pagar a divida, esté de mudanga pronta para néo se sabe onde, Jé tendo sido testemunha ocasional da realizacao de uma penhora, e supondo leigamente ser-lhe permitido “pe- nhorar” com as préprias maos bens do devedor, retira do caminhao, contra a vontade do dono, alguns utensilios de valor equivalente ao da divida. Nao incorre tal credor na censura de culpabilidade, seja pelo delito de furto, seja pelo de exercicio arbitrério das proprias razées. Maurach cita © exemplo do estrangeiro que pratica na Alemanha atos homossexuais, previstos como crime, por supor ser este com- 104 portamento permitido também na Alemanba, como o & em seu pais de origem. Nao se pode, entretanto, considerar inevitével, e por- tanto escusavel, o erro relacionado com certas situagdes ou atividades regulamentadas que, evidentemente, exigem um especial dever de informar-se. Assim, quem pretender obter lucros com 0 comércio de mercadorias estrangeiras, precisa informar-se nao s6 como e onde obté-las — e isto todos necessariamente fazem para a obtengio da mercado- ria — mas também a respeito Bas cond igdes legais e regula- mentares para o exercicio dessa atividade lucrativa que no comum, nem faz parte da vida de cada um, nem se impoe 20 individuo como nica solugdo possivel para um estado de coisas preexistente, como nos exemplos dados do casa- mento e do credor. Nesses termos, quem comerciar com mercadorias estrangeiras, sem a documentagao legal exigivel, pratica de- lito de descaminho, nao sendo escusdvel 0 erro quanto A exigéncia dessa documentagio. O mesmo se diga em rela- ao aos crimes que se praticam no exercicio de certas pro- fissies (médicos, enfermeiros, engenheiros, advogados, con- tabilistas etc.), ou_no interior de empresas comerciais, industriais e assemelhadas. Tenha-se sempre em mente que a teoria do erro protege a boa fé; nao é uma brecha no sistema penal por onde pos- sam transitar os espertos, mas o instrumento de que se devem valer juizes, promotores e advogados para a realiza- cdo da idéia de Justica b) Ero de mandamento. Norma preceptiva, diferentemente da proibitiva, é a que impée um dever de aco, de pritica de certos atos (ex.: 05 pais tém o dever de criar, educar e proteger os filhos menores, 0 mesmo ocorre com o tutor em relago a0 pupilo etc.; Céd. Civil, arts. $84, Ie II, 422 ¢ 424, 1). Esse 105 dever resulta nao s6 da lei mas também de situagées con- cretas (ex.: “anterior atividade causadora do perigo” etc.). Ressalte-se que tais normas preceptivas, em geral, situam-se fora da lei penal ou resultam de exigéncias da vida social, ‘@ ponto de Maurach denomind-las’“normas imperativas pré-juridico-penais da vida social” (op. cit, vol. II, pag. 262), Isso bem revela a ilicitude como contrariedade a0 ordenamento juridico no seu todo, nao mera infringéncia da lei penal. J vimos, ao examinar o erro de tipo, que, nos crimes comissivos por omissio, o agente situa-se na “posicao de garantidor”, incumbindo-lhe o dever de evitar o resultado tipico penal, Se omite a agao devida, por erro quanto aos pressupostos faticos desse dever ou quanto a possibilidade de superveniéncia do resultado, incorre em erro de tipo, ja examinado. Se, entretanto, o erro incide sobre a existéncia da propria norma preceptiva, isto é, sobre a existeéncia do dever de impedir 0 resultado, da-se 0 erro de proibigao, denominado “erro de mandamento”. O tratamento do erro de mandamento é basicamente 0 mesmo do erro sobre a norma proibitiva (Wessels, op. cit. pag. 168), estudado na letra b anterior. Sendo inevitavel eeSui a culpabilidade. .Inexiste qualquer motivo para dis- tinguir os efeitos de ambos. Exemplos e maiores detalhes, quanto posigio de ga- rantidor, encontram-se no Cap. 4, 8, h. E oportuno frisar, para concluir, que, pelas mesmas razées jé expostas na letra anterior, 0 especial dever de informar-se exclui a escusabilidade do erro de mandamento relacionado com o exercicio de certas atividades profis- sionais, como, por exemplo, no caso dos médicos e enfer- meiros quando colocados nesta “posigio de garantidor”, O mesmo se pode dizer de engenheiros e de outros profis- sionais se especialmente destacados para setores envolvidos com a seguranca da vida alheia. Beneficiam-se, entretanto, como ja se viu, da escusabi- lidade do erro de tipo, se for 0 caso, sem prejuizo da posstvel 106 responsabilizagio por crime culposo, nesta iltima hipétese, havendo previsio legal. c) Ero de proibigao indircto. Tivemos ensejo de salientar, ao estudar as descriminan- tes putativas excludentes do dolo (Cap. 4, 3 b), que as normas permissivas correspondem “tipos de coaduta ficita”, Karl Engisch, apés advertir contra o abuso dos “tipos”, afir- ma, referindo-se ao direito penal: “Em todo caso, estéo tipificados tanto os motivos de justificago, como as causas de inculpabilidade (legitima defesa, estado de necessidade etc.)"". Mezger também faz alusio A “tipificagdo das especiais causas de justificagio”. .."° e Wessels textual- mente afirma: “Frente aos tipos de injusto situam-se tipos yermissivos, que excepcionalmente autorizam a conduta lesiva a bens juridicos” ™, Com efeito, embora esta tipificagao de conduta licita seja excepcional, em razio da regra geral penmititur quod non prohibetur, toma-se ela de grande utilidade na area penal, visto como, aqui, as normas permissivas de que cuidamos, isto é, as que dao origem a causas de justificagao, abrem yerdadeiros claros dentro do campo de incidéncia das normas proibitivas e preceptivas. Atuam em uma espé- cie de territério contestado, onde o injusto tem pretensoes de dominio. Dai a necessidade de se fixarem com nitidez, tanto quanto postvel na Jel, estes modelos especiais de conduta permitida, E 0 so, na quase totalidade dos casos, com estraturas semelhantes a do tipo de delito, contendo igual- mente elementos objetivos e subjetivos, Assim, quem age em legitima defesa, estado de necessidade etc., deve, para 174. La Idea de Concrecién en el Derecho y en la Ciencia Juridica Actuales, trad. espanbola de Juan José Gil Cremades, pig. 458. 175. Op. cit, vol. 1, pig, 409. 176. Op. cit, pag. 62. 107 ter a sua ago justificada, realizar uma conduta que satis- faca os pressupostos faticos do tipo permissico. Além disso, deve atuar com 0 intuito de defender-se, de salvar-se etc. "”. Note-se, para evitar equivocos, que o elemento subje- tivo de uma causa de justificagao, a que nos referimos, é a orientactio de animo do agente, o “intuito de”, a “intencio de”, na direcao de defender-se, salvar-se etc. Néo se deve confundir esta espécie de elemento animico com 0 daquela corrente que, equivocadamente, exige a consciéncia de agir em estado justificante (cf. Nélson Hungria, op. cit., pag. 285). Magalhaes Noronha, com sélido apoio em Mezger, exclui até mesmo aquela orientagio de animo. Ocorre que Mezger fala em fim objetivo da agdo, verdadeira contraditio in terminis que apenas contorna o problema, mas volta ao ponto de partida. O fim na agao humana nao é objetivo, mas animico, nem é algo que se separe, mesmo por abstracio, da orientagdo de dnimo do agente. Ou existiré agao sem agente? Alguém que, na tocaia da estrada, dispara e mata pelas costas seu maior inimigo com “intuito” (ndo de defen- der-se) puramente homicida, nio age em legitima defesa, mesmo que depois se venha a apurar que a vitima, sem que 0 agente soubesse, também se dirigia, com idéntico propé- sito homicida, a uma outra tocaia préxima. © que ultrapassar, pois, os limites (objetivos e subje- tivos) de uma causa de justificagao pode dar origem a excessos puniveis, ou até descaracterizar o estado justifi cante, segundo alguns autores. E, pois, 0 eo que recai sobre tais pressupostos de uma causa de justificagao deve ser tratado, se escusivel, como erro de tipo excludente do dolo, nao se afastando a hipétese de residuo culposo (culpa stricto sensu). Toda- via, pode dar-se 0 caso de o agente, com pleno conhecimento dos pressupostos faticos e preenchendo 0s requisitos subje- tivos em foco, incorrer em erro sobre a propria existéncia 177, Maurach, op. cit, 1, pag. 838; Anfbal Bruno, ep. cit, 1°, pig. 366, 108 ou sobre os exatos limites da causa de exclusio do injusto. Surge, entdo, o erro de proibicao indireto, que, a nosso ver, deve ter tratamento dentro dos principios gerais j4 enun- ciados. Se o erro era evitavel, portanto inescusdvel, aperfei- goa-se 0 crime doloso. Se o erro era inevitivel exclui-se a culpabilidade (supra, 5, 1). Alguns exemplos completam o esclarecimento do tema em exame. ca) Legitima defesa ¢ legitima defesa putativa. Caio, em um grupo de amigos, para mostrar coragem, resolve, em traje esportivo, visivelmente desarmado, desfe- rir um tapa no desafeto Ticio, que na ocasiao passava pelas proximidades. Este, em defesa, agride Caio a facadas, ou a tiros, Deste exemplo, relativamente simples, podemos extrair virias hipéteses: Ticio, por erro quanto aos limites norma- tivos da legitima defesa (erro de proibicio), supde-se auto- rizado a revidar, desproporcionadamente, uma agressio mais injuriosa do que fisica. Erro perfeitamente evitavel, inescusdvel, portanto crime doloso. Caio é homem forte e truculento enguanto que Ticio é fragil e raquitico. Nao podendo este ultimo prever até onde iria o propésito agres- sivo de Caio, reagiu violentamente pela imnica forma de que dispunha. Neste caso, nao se pode falar em erro de proi- bigéo. Trata-se de legitima defesa, praticada sem a moderagio exigida, talvez por erro quanto aos pressupostos faticos. H4 que se pesquisar a existéncia de residuo culposo (excesso culposo) resultante de erro de tipo. No mesmo exemplo, se a ameaca era irreal, mera fan- farronice de Caio, configura-se a legitima defesa putativa (também erro de tipo), respondendo o agente por crime 109 doloso, se o erro era evitivel; se nfo o era, por eventual crime culposo. ‘Ao estudarmos o erro de tipo, que recai sobre os pres- supostos faticos de uma causa de justificagio (supra, 4, 8, b) remetemos para exame neste capitulo duas hipéteses referidas por Nélson Hungria: “c) se o agente excede, conscientemente, a medida da defesa que seria necesséria contra a imagindria agressio, responder pelo plus a titulo de dolo; d) se tal excesso é inconsciente, mas resultante de erro inescusavel, responderé 0 agente pelo plus a titulo de culpa”. Observe-se a coincidéncia entre a sohugdo que apre- sentamos para o erro de proibigéo da 1.* hipétese com a oferecida pelo penalista citado, na letra o, embora com fun- damentagio divergente, Todavia, no tocante letra d, parece-nos necessirio distinguir: se o erro inescusavel recair sobre os pressupostos faticos da causa de justificagao, 0 agente realmente poderé responder pelo plus a titulo de culpa stricto sensu; mas, se recair sobre os limites da norma permissiva, em se tratando de erro de proibigao, aperfeicoa- se o crime doloso, pois, conforme foi visto, nesta classe de erro, o reconhecimento da evitabilidade acarreta a culpabi- lidade por fato doloso, excluida qualquer eogitagao de culpa “stricto sensu” (supra, 4, 1). cb) Legitima defesa da honra. Caio, regressando inesperadamente de viagem, sur- preende a esposa em companhia do amante em situagio tal que no poderia haver duvidas quanto ao adultério, Apanha a primeira arma que encontra e mata a esposa adultera, ou oamante (Rev. dos Tribs., 486/265). Nao ha exemplo mais nitido para ensejar 0 equaciona- mento de uma série de solugdes possiveis: 110 12) “Nao existe legitima defesa no caso. A honra é tum atributo pessoal, proprio e individual” ™. 28) Legitima defesa da honra, “se a reagao é propor- cionada ao bem que se defende”®. 3.8) Auténtica legftima defesa da honra™. 4.8) Exro de proibieao indireto (= erro sobre os limi- tes de uma causa de justificagao). Tomando-se em conjunto as trés primeiras solugbes, conchtir, de maneira segura, que os juristas e 05 tr s nao formam consenso undnime em torno da matéria. Apanhando, ao acaso, um dos iltimos nimeros da Revista dos Tribunais, nela encontramos decisio do Tribunal de Jus- tica de Sao Paulo, (2.4 Cam. Crim.) reformando sentenca absolutéria do juri, assim ementada: “LEGITIMA DEFESA DA HONRA — Excludente nao configurada. Acusado que mata a esposa ao surpreendé-la abracada com individuo no identificado — Absolvigao pelo Jiri — Decisao refor- mada — Novo julgamento ordenado ~ ete...” "". Concentremo-nos nesta constatagao inicial, ébvia: juris- tas em desacordo entre si, tribunais de apelagio em desa- cordo com tribunais do jari popular. Que pode isto significar para uma impostagdo juridico- penal do problema em exame? Simplesmente que nem a Justica, nem os entendidos conseguiram até agora definir 178, Solugio adotada por Magalhies Noronha, op. cit, pig. 204, Basileu Garcia, op. cit,, pigs. 314 e S15 e Frederico Marques, Curso de Direito Penal, Saraiva, 1956, vol. 11, pag. 122. 179. Salgado Martins, op. cit. pégs. 192/193. Sclugio que rece evar senas aifculdades, visto como serk muito fell esta Pdlecer entérios seguros de avaliagio entre 0 bem honra e 0 bem vida, (Para uns 0 primeiro poderd ser mais valioso, para outros 0 segundo.) 180, Solugio comumente adotada nos julgamentos do Tribu- nal do Juri ISL. Ree, dos Tribs,, 456/260. 111 com precisio, com absoluta certeza, 0 alcance exato da causa de justificagéo — legitima defesa. © que para uns pode parecer a solugo dbvia, para outros nao o é. Abrangerd este tipo permissivo a conduta concreta do marido traido que se sentindo terrivelmente ofendido no que julga de mais precioso — a honra —, num gesto de édio, mata a esposa em flagrante adultério? A diz que nao; B diz que sim; C que nao; D que sim. . Agora, a pergunta fundamental: sendo assim, seré licito exigir-se do homem comum (Pedro, José, Paulo etc.) que tenha mais correta, perfeita e uniforme consciéncia da ilici- tude do fato matar a esposa em flagrante adultério? Fugindo a discussao intermindvel a respeito do tema em foco, parece-nos possivel situd-lo sob o foco da teoria do erro ¢ tentar ver o resultado a que se pode chegar. Eid 2) Preconceitos dominantes, regras éticas e costumei- ras, residuos de patriarcalismo, levam o agente, em tais situagdes dramaticas, a determinar-se, por vezes, no sentido do homicidio da esposa adultera. b) Supondo-se que, dentro desse quadro, impelido por poderosos preconceitos ainda vigorantes, sobretudo em certas regioes do pais, forme o agente em sua consciéncia, segundo um juizo na esfera do profano, a firme conviegéo de que esteja autorizado a assim agir para a “legitima defesa da honra”, nao se pode negar, ‘nessa hipétese, ‘a ocorréncia de um “erro de proibigao indireto”, inevitdvel, pois sabe-se, de antemao, que o Tribunal do Juri tem absolvido e conti- nuard provavelmente a absolver de um modo geral os que sao acusados de tal fato. c) Dizer-se que a honra ferida é a da mulher, e néo a do marido, é ir contra a natureza das coisas. Nao se pode raciocinar fora das contingéncias da sociedade em que vivemos, para deixar de perceber o drama do homem trafdo, do pai dos filhos abandonados, sujeitos a chacotas e a ofen- U2 sas através de certas expressdes que aqui nao reproduzimos por desnecessirio, visto que se constituem na primeira forma de xingamento que a crianga aprende, mal comeca a bal- buciar. d) A propria sociedade impele, pois, o marido trafdo, em geral homem até entio inofensive, a0 desespero 20 gesto tresloucado, através de persistentes mensagens subli- minares, contidas na criagao vulgarizada de um tipo de imagem negativa de homem, para os que se acomodam e até mesmo, num louvavel gesto de superagao, se limitam & separagio do casal. Ao mesmo tempo, paralelamente, “compreende”, “justifica” a figura do “macho” que “reage & altura”. Nao estamos evidentemente de acordo com tudo isso. Constatamos e registramos fatos. e) Nao é sem razio, pois, que o juri popular, refle- indo a média de opiniao dominante na comunidade, absolve, em tais casos, e continuaré a absolver por algum tempo ainda, até que novas formas de cultura sejam cons- cientizadas. Enquanto, porém, isto néo ocorrer, nao se pode atacar o efeito e alimentar a causa. Concluindo, a denominada legitima defesa da honra, em que pese a violéncia de que se reveste, em se tratando de ato passional isolado, admite, a nosso ver, em alguns casos, dassificar-se como erro de proibigio indireto sobre 0s limites de uma causa de justificagio (a legitima defesa). E, sendo escusdvel, exclui o juizo de censura ao autor pelo seu fato. E caso de absolvicao, néo se podendo cogitar sequer de culpa, ou de excesso culposo, pelas razbes expos- tas nos titulos anteriores, e mais: porque néo se dispoe, ainda, para empregar uma imagem ja usada, de balanca que seja capaz de pesar, em um prato, a vida humana; em outro, a honra ferida ™, 182. Para Manzini, sio defensiveis todos os direitos de um odo geral (vida, incolumidade e liberdade pessoal, pudor, honra 13

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