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Nº 519 | Ano XVIII | 9/4/2018

30 anos da Constituição
A experiência cidadã incompleta
Adriano Pilatti Pablo Holmes
José Luiz Quadros Tarso Genro
Marcello Lavenère Guilherme Delgado
Fábio Comparato Jorge de Oliveira
Lenio Streck Luiz Werneck Vianna
José Geraldo de Sousa Júnior

Leia também
Julie Dorrico ■
Massimo Canevacci ■
Bruno Lima Rocha ■
Reportagem sobre o Rio dos Sinos ■
E-book: Dos meios às midiatizações, de Pedro Gilberto Gomes ■
EDITORIAL

30 anos da Constituição
A experiência cidadã incompleta

E
m 5 de outubro de 1988, foi promulgada a atual Guilherme Delgado, doutor em Economia, analisa
Constituição do Brasil. Denominada de Consti- que os mercados financeiro, de terras e o de trabalho
tuição Cidadã, nasceu de um longo processo de desregulado são agentes que subvertem a lógica da Car-
debates e discussões com participação popular depois ta Magna, transformando-a no oposto.
da longa e cruel ditadura militar. Professor da Universidade Federal de Pelotas - UFPel,
30 anos depois, a Constituição de 1988 nunca foi tão Jorge Eremites de Oliveira observa como, apesar
evocada. No Brasil de hoje, sufocado por crises, há ferre- das garantias constitucionais aos povos tradicionais, o
nhos defensores da Carta Magna e quem ainda lute pela Brasil ainda produz sistematicamente a suspensão da lei
sua plena efetivação – já que muitas das medidas não em benefício das elites políticas e econômicas.
foram regulamentadas. Outros preferem o discurso da
Para o sociólogo Luiz Werneck Vianna, a principal
austeridade, considerando que a Constituição foi longe
evidência da consistência da Constituição brasileira de-
demais, estabelecendo direitos difíceis de serem viabili-
pois de três décadas da sua promulgação é sua resistên-
zados no orçamento. Some-se a isso certa confusão ins-
cia à crise política.
titucional em nosso tempo, em que Executivo, Legislati-
vo e Judiciário ora se omitem de seus papéis, ora agem Por fim, o jurista e professor José Geraldo de Sou-
em sobreposição. sa Júnior sintetiza: “a Constituição é ainda projeto de
construção”. Por isso, propõe que a Carta Magna não
A revista IHU On-Line desta semana debate a Cons-
seja vista como processo acabado, mas algo que está em
tituição de 1988 em seu trigésimo aniversário.
movimento e que busca adequação.
Para o advogado e doutor em Ciência Política Adria-
Nesse número da IHU On-Line, podem ser lidas as
no Pilatti, a Constituição de 1988 foi capaz de segurar
entrevistas com Julie Dorrico, doutoranda no Progra-
2 o Liberalismo no Brasil. Mas, desde 1995 e depois do
ma de Pós-Graduação em Letras na PUCRS, que analisa
impeachment, o freio tem sido cada vez mais ineficiente.
o livro A queda do céu. Palavras de um xamã yanoma-
José Luiz Quadros de Magalhães, professor mi, de Davi Kopenawa; Massimo Canevacci, doutor
na PUC-Minas, desafia a pensar noutra perspectiva em Letras e Filosofia pela Universidade La Sapienza, de
constitucional a partir da experiência de países da Roma, que reflete a forma como as tecnologias digitais
América Latina. reconfiguram o cenário social.
O jurista Marcello Lavenère Machado analisa A edição ainda é composta por uma reportagem espe-
que o texto aprovado em 1988 tinha a cara do Brasil, cial sobre a realidade do Rio dos Sinos e pelo artigo de
com a pluralidade de opiniões. Porém, hoje, está velha, Anselmo Otavio, professor de Relações Internacio-
descaracterizada, mutilada e comprometida com uma nais da Unisinos, intitulado O século XXI como o século
visão retrógrada. africano: o African Renaissance. Publicamos, também,
Já o também jurista Fábio Konder Comparato su- detalhes do lançamento do e-book Dos Meios à Midia-
gere que, na verdade, sempre houve uma Constituição tização. Um Conceito em Evolução (São Leopoldo: Uni-
de fato e outra de direito. Assim, a democracia acaba sinos, 2017), de Pedro Gilberto Gomes.
não atingindo sua plenitude. A todas e a todos uma boa leitura e uma excelente
Embora tenha sido fruto de um intenso movimento de semana!
participação popular, Lenio Streck, jurista e professor
da Unisinos, considera integrar a legislação à sociedade
como desafio. Para ele, é preciso compreender e aplicar
plenamente a Carta de 1988.
Pablo Holmes, professor da Universidade de Bra-
sília, considera que, mesmo com limites, a atual Cons-
tituição permitiu que a sociedade refletisse sobre seus
problemas. O problema, segundo ele, é que o Brasil tem
um processo de democratização cheio de sobressaltos.
Jurista e ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso
Genro é defensor da ideia de uma nova constituinte.
Para ele, reconstitucionalizar o país é fundamental para Foto: William Prescott
aproximar Estado e cidadão comum. Arquivo Senado Federal

9 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Massimo Canevacci: A necessária reconstrução da política de nova era
12 ■ Lara Ely: A vida pulsante, da nascente à foz, em um dos rios mais poluídos do Brasil
16 ■ Tema de capa | Adriano Pilatti: Depois da “pedalada constitucional”, contenção do
avanço liberal é cada vez mais difícil
22 ■ Tema de capa | José Luiz Quadros de Magalhães: A emergência de um novo
constitucionalismo para além do Estado Moderno
28 ■ Tema de capa | Marcello Lavenère Machado: Constituição está velha, descaracterizada,
mutilada e comprometida com visão retrógrada
33 ■ Tema de capa | Fábio Konder Comparato: Num Brasil de duas Constituições concomitantes,
a democracia é incompleta
36 ■ Tema de capa | Lenio Streck: Desafio é integrar a Constituição à sociedade
41 ■ Tema de capa | Pablo Holmes: Mesmo com limites, atual Constituição permitiu que a
sociedade refletisse sobre seus problemas
50 ■ Tema de capa | Tarso Genro: Reconstitucionalizar o país é fundamental para aproximar
Estado e cidadão comum
53 ■ Tema de capa | Guilherme Delgado: Os sujeitos ocultos que desfiguram pretensões
igualitárias da ordem constitucional
57 ■ Tema de capa | Jorge Eremites de Oliveira: A Constituição contra o Estado e a permanente
luta pelos direitos indígenas 3
62 ■ Tema de capa | Luiz Werneck Vianna: O aperfeiçoamento da democracia política
67 ■ Tema de capa | José Geraldo de Sousa Júnior: “A Constituição é ainda projeto de construção”
72 ■ Julie Dorrico: O catálogo de tragédias aos Yanomami na voz de Davi Kopenawa
78 ■ Especial: A transformação do mundo em película pensante
80 ■ Crítica internacional | Anselmo Otávio: O século XXI como o século africano:
o African Renaissance
83 ■ Publicações | Ivone Gebara: Deus e o Diabo na política: compaixão e vocação profética
84 ■ Publicações | Claudio de Oliveira Ribeiro: O Princípio Pluralista
85 ■ Publicações | Alana Moraes de Souza: Contato e improvisação: O que pode querer
dizer autonomia?
87 ■ Outras edições

Diretor de Redação Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch,


Inácio Neutzling Anielle Silva, Victor Thiesen, William
(inacio@unisinos.br) Gonçalves, Stefany de Jesus Rocha,
Wagner Fernandes de Azevedo e Éric
Coordenador de Comunicação - IHU Machado.
Ricardo Machado – MTB 15.598/RS
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Jornalistas
João Vitor Santos – MTB 13.051/RS
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A IHU On-Line é a revista do Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Revisão Instituto Humanitas Unisinos - IHU
publicação pode ser acessada às segun- Carla Bigliardi
das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS
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A versão impressa circula às terças-fei- Gustavo Guedes Weber
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conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Atualização diária do sítio Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia (jacintos@unisinos.br)

EDIÇÃO 519
TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

O assassinato de Marielle e o fracasso das


políticas de segurança
“Nenhuma pessoa que vive em favela desconhece o fenômeno da violên-
cia de maneira acrítica. O que ocorre é que as pessoas precisam lidar com
uma série de forças que estão presentes nos seus espaços de vida, e isso tem
impactos sobre o alcance da sua crítica”.
Rachel Barros, doutora em Sociologia. Integrante do Grupo de Estudos CIDADES/UERJ e militante
do Fórum Social de Manguinhos. Educadora popular na ONG Fase-Rio.

Maio de 68 e a retomada da velha e nova


utopia socialista
“A questão que se põe não é a negação histórica de 1968, nem do Maio
Francês.”
Diorge Konrad, doutor em História Social do Trabalho pela Unicamp, professor da UFSM.

4 Para quais juventudes a Igreja oferece a sua


escuta e seu olhar?
Pela primeira vez na história, a Igreja faz um processo de convocação de
uma assembleia mundial com a juventude.
Davi Rodrigues da Silva, secretário nacional da Pastoral da Juventude; Leon Patrick de Souza,
assessor da Cáritas do Brasil para infância, adolescência e juventude.

Reforma tributária é fundamental para


Estado recuperar protagonismo
“[Com a Reforma Tributária] se poderá abrir os caminhos para o cresci-
mento econômico, a inclusão social e o fortalecimento da federação.”
Fabrício Augusto de Oliveira, doutor em Economia pela Unicamp e membro da Plataforma de
Política Social.

Tensão e sombras após o julgamento do STF


e a apressadíssima ordem de prisão de Lula
Um dia depois do julgamento do habeas corpus do presidente Lula, IHU
On-Line ouviu especialistas para tentar compreender o que significou esse
julgamento e quais devem ser as consequências.
Entrevistas com Adriano Pilatti, Roberto Romano, Rudá Ricci, Ivo Lesbaupin, Bruno Lima Rocha,
Moysés Pinto Neto e Robson Sávio.

9 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

A desabalada carreira Dados públicos da maioria Nem ruralista


de Sérgio Moro em busca dos 2,13 bi de usuários esperava megaperdão
de seu troféu da do Facebook já foram no Funrural
Lava Jato coletados por terceiros

A prisão do ex-presidente Os dados compartilhados de A derrubada de todos os


Luiz Inácio Lula da Silva (PT), forma pública, como nome, vetos presidenciais à lei que
decretada pelo juiz federal foto de perfil, telefone e e-mail, criou o programa de parce-
Sérgio Moro na tarde desta pela maioria dos 2,13 bilhões lamento de dívidas de produ-
quinta-feira, é um clímax da de usuários da rede social Fa- tores com o Funrural pegou
Lava Jato e espécie de princi- cebook já foram coletados por de surpresa até a bancada
pal troféu para o magistrado terceiros, segundo revelou o ruralista.
de Curitiba que se tornou um próprio Facebook. Reportagem de Idiana Tomazelli,
dos símbolos da operação. Reportagem de Claudia Tozetto, publicada por O Estado de S. Paulo
publicada por O Estado de S. Paulo em 5-4-2018, disponível em https://bit.
Reportagem de Felipe Betim, publica-
em 5-4-2018, disponível em https://bit. ly/2Jo2NPo.
da por El País em 6-4-2018, disponível
em https://bit.ly/2Iv1X2g. ly/2HiwQHO.

Febre amarela, uma Do general Villas Bôas Alunos repetem de ano


ameaça à saúde à reserva, a ofensiva dos mais de uma vez na
pública e uma militares que querem maioria dos
tragédia ambiental voz na política municípios do país

“Certamente estamos dian- Os militares brasileiros es- Em mais de 70% das cida-
te de um novo fenômeno epi- tão de volta à arena política. des brasileiras, no mínimo
demiológico que precisa ser Um movimento se iniciou um em cada quatro alunos
mais bem estudado e com- entre aqueles que estão na cursa o 1º ano do ensino mé-
preendido. Uma doença que reserva, os quais vêm ga- dio com muito atraso.
até recentemente era trata- nhando voz junto a grupos Reportagem de Renata Cafardo,
da como coisa do passado, de direita e lançando candi- publicada por O Estado de S. Paulo
isolada nos rincões do Bra- daturas, e teve o auge com em 1-4-2018, disponível em https://bit.
ly/2JpIbGH.
sil, hoje invade as metrópo- dois tuítes do general Eduar-
les do Sudeste.” do Villas Bôas, comandante-
Artigo do biólogo Sérgio Lucena, pu- geral do Exército.
blicado por EcoDebate em 2-4-2018, Reportagem de Felipe Betim, publica-
disponível em https://bit.ly/2uQpiJB. da por El País em 4-4-2018, disponível
em https://bit.ly/2GGP0BV.

EDIÇÃO 519
AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Novos Smart cities, cultura Entre a política e o


desenvolvimentismos digital e renovação movimento. Concepções
no Brasil. Tendências política. Contradições e práticas políticas de
e desafios para a e possibilidades da mulheres negras no Morro
economia brasileira revolução 4.0 da Polícia (Porto Alegre)

9/abr 10/abr 12/abr


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 19h30min às 22h 17h30min às 19h
Conferencista Conferencista Conferencista
Prof. Dr. Ricardo de Medei- Prof. Dr. Massimo MS Thais da Rosa Alves –
ros Carneiro – Unicamp Canevacci – USP Doutoranda do PPG em
Ciências Sociais da Unisinos
Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Local
Companheiros – IHU Companheiros – IHU Sala Ignacio Ellacuría e
Campus Unisinos Campus Unisinos Companheiros – IHU
São Leopoldo São Leopoldo Campus Unisinos
São Leopoldo

6
Violências, Apresentação da Trabalho e as
resistências e obra “A Queda do Céu. desigualdades no Vale
enfrentamento no Palavras de um Xamã do Sinos
mundo urbano Yanomami”

12/abr 18/abr 24/abr


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 19h30min às 22h 14h30min às 17h
Conferencista Conferencista Conferencista
Prof. Dr. David Léo Levisky Profa. MS Julie Stefane Profa. MS Vanessa de
– SBPdePA Dorrico Peres – UNIR Souza Batisti – Unisinos
Local Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Campus Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

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EDIÇÃO 519
ENTREVISTA

A necessária reconstrução
da política de nova era
Massimo Canevacci analisa como as tecnologias
digitais reconfiguram o cenário social, mas em
um sentido totalitário, não libertador
João Vitor Santos | Edição: Ricardo Machado

N
em mesmo as três décadas de Além disso, destaca Canevacci, “a clás-
Web e seus avanços tecno- sica dicotomia moderna (e burguesa) não
lógicos exponenciais foram funciona mais desta maneira e o que era
capazes de superar uma visão ainda dividido agora se mistura. É impossível
muito binária e, porque não, indus- ficar fora deste processo. É fundamental
trial das sociedades humanas. “Os aceitar o desafio, explicá-lo politicamen-
profissionais devem cruzar os territó- te, envolver cada pessoa, e em particular
rios materiais difundidos nas metró- trabalhadores e empreendedores, em
poles e também alcançar os contextos um pacto estrutural de fase”. “Estou pro-
rurais ou indígenas com os territó- fundamente convicto de que o papel da
rios imateriais difundidos nos espa- universidade e da comunicação neste mo-
ços criados pela tecnocultura digital. mento será decisivo. Precisamos de mui-
O cruzamento sincrético e conflitual tas imaginações exatas”, complementa.
8 entre comunicação metropolitana e
Massimo Canevacci é doutor em
comunicação digital é o desafio que
Letras e Filosofia pela Universidade La
multiplica os contextos, os códigos e
Sapienza, em Roma. Desde 2010 é re-
os usuários”, pontua Massimo Cane-
gularmente convidado como professor
vacci, em entrevista por e-mail à IHU
visitante por inúmeras universidades
On-Line.
brasileiras, como a Universidade Fe-
Esses impactos reverberam na de- deral de Santa Catarina - UFSC, a Uni-
mocracia, onde a representatividade versidade Estadual do Rio de Janeiro
muito centrada em partidos e sindica- - UERJ e a Universidade de São Paulo
tos reproduz uma lógica equivalente - USP. Atualmente leciona no Instituto
ao mundo do trabalho ford-tayloris- de Estudos Avançados da Universidade
ta. “A democracia no trabalho é mais de São Paulo - IEA-USP.
flexível, temporária, múltipla, glocal:
precisa mudar muito e o tempo curto O professor Canevacci apresenta a
favorece fechamentos endogâmicos. conferência Smart cities, cultu-
Como tudo isso modifica as relações ra digital e renovação política.
complexas entre gênero, sexo, eroti- Contradições e possibilidades da
cidade, amor, identidade, prazer, vio- revolução 4.0, atividade integran-
lência, homofobia etc., se apresenta te do 2º Ciclo de Estudos Revolução
como um multiverso a se investigar 4.0. Impactos aos modos de produzir
profundamente, cruzando interdisci- e de viver, na terça-feira, 10-4-2018, às
plinarmente psicologia, comunicação, 19h30, na Sala Ignacio Ellacuría e Com-
etnografia, informática”, analisa o en- panheiros - IHU.
trevistado. Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma Massimo Canevacci – A tecno- network em particular: assim, os
a cultura digital de nosso tem- cultura digital começou a impactar valores difundidos e praticados nos
po pode impactar o campo da antes o sistema produtivo, depois comportamentos transformaram as
política? a comunicação em geral e a social pessoas de simples consumidores

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“Está bem claro que a cultura


digital transforma a política
numa maneira tendencialmente
mais autoritária que libertadora”

(apêndices no sistema reprodutivo) possibilidade de enviar notícias em teligência russo e a equipe de Steve
a ativos coprodutores e cocriadores parte verdadeiras e na maior parte Bannon5, a mente oculta que cinica-
de valores (no sentido antropológico: falsas (fake news) a um público-al- mente usou, pelo que se sabe, hacke-
estilo de vida, crenças, códigos etc.) e vo eleitoral selecionado mais “inteli- rs russos administrados por Putin6
de valor (no sentido econômico espe- gentemente” através do perfil profis- e a obscura, agora bem conhecida,
cificamente no sistema financeiro). A sional e ainda mais cultural. Assim Cambridge Analytica (onde o mes-
revolução impressa pelo digital – que uma propaganda dirigida e, por as- mo Bannon trabalhou). Embora esta
engloba tecnologia, economia, práti- sim dizer, individualizada invadiu a seja uma história ainda a se escrever
cas cotidianas etc. – não foi entendi- “alma digital” de uma parte insegura completamente, está bem claro que
da na sua profundidade pela política do eleitorado, favorecendo clara- a cultura digital transforma a políti-
tradicional, em particular pelos par- mente a vitória pela saída da União ca numa maneira tendencialmente
tidos de esquerda. Este atraso é mais Europeia, por meio de informações mais autoritária que libertadora. Na
evidente no Brasil, onde a esquerda é negativas. Itália é exemplificativo o Movimen-
baseada na tradição da produção in- to 5S (cinco estrelas), cuja página 9
A vitória de Trump3 sobre Hillary
dustrial. Fábricas tayloristas, sindica- on-line é controlada por uma única
Clinton4 foi ainda mais crua. A can-
tos, trabalho fixo, território material, pessoa e os candidatos são eleitos
didata foi abertamente atacada pelas
conflitos clássicos, teorias dialéticas, por “democracia direta”, isto é, via
pessoas, principalmente por meio
epistemologia pré-complexidade e... digital. Um novo autoritarismo digi-
dos big data entre o sistema de in-
passividade lamentosa nos meios de tal que ganhou 35% de votos na últi-
comunicação. Mas se poderia dizer ma eleição.
lidada de Brexit, palavra-valise originada na língua inglesa
tranquilamente que envolve todos os resultante da fusão das palavras Britain (Grã-Bretanha) e
partidos clássicos e também a filoso- exit (saída). A saída do Reino Unido da União Europeia tem
sido um objetivo político perseguido por vários indivídu- IHU On-Line – Quais os desa-
fia política que se pratica no mundo os, grupos de interesse e partidos políticos, desde 1973,
quando o Reino Unido ingressou na Comunidade Econô- fios para se conceber uma re-
não somente “ocidental”. mica Europeia, a precursora da UE. A saída da União é um
direito dos estados-membros segundo o Tratado da União
novação da política através da
O impacto sobre a política foi apli- Europeia. A saída foi aprovada por referendo realizado em cultura digital?
junho de 2016, no qual 52% dos votos foram a favor de
cado com sucesso em diferentes deixar a UE. O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na se-
Massimo Canevacci – Focalizar
modalidades. Já Obama1 durante a ção Notícias do Dia de seu site, vem publicando uma série
de análises sobre o tema. Entre elas, A alma da Europa na comunicação tendencialmente
segunda campanha eleitoral usou depois do Brexit, artigo de Roberto Esposito, publicado no
jornal La Repubblica e reproduzido nas Notícias do Dia de horizontal como modelo de renovar
os “big data” para enviar mensa- 1-7-2016, disponível em http://bit.ly/2gazMuF; e O Brexit
a política. Isso significa que os pro-
gens aos potenciais eleitores. Foi e a globalização, artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo, publi-
cado por Carta Capital e reproduzido nas Notícias do Dia fissionais devem cruzar os territórios
uma prática transparente que em de 12-7-2016, disponível em http://bit.ly/2eY4F68. Confira
mais textos em ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line) materiais difundidos nas metrópoles
parte determinou o seu sucesso. A 3 Donald Trump (1946): é um empresário, ex-apresenta- e também alcançar os contextos ru-
sua equipe tinha uma formação nas dor de reality show e atual presidente dos Estados Uni-
dos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito o 45º presidente
ciências humanas e na informática. norte-americano pelo Partido Republicano, ao derrotar a
candidata democrata Hillary Clinton no número de dele-
Aconteceu que esta prática foi ela- gados do colégio eleitoral; no entanto, perdeu no voto 5 Steve Bannon (1953): é um assessor político estaduni-
borada mais ou menos simultanea- popular. Entre suas bandeiras estão o protecionismo nor- dense que serviu como assistente do presidente e estrate-
te-americano, por onde passam questões econômicas e gista-chefe da Casa Branca no governo Trump. Como tal,
mente em outros países com outras sociais, como a relação com imigrantes nos Estados Uni- participou regularmente do Comitê de Diretores do Con-
formações, isto é, privilegiando a dos. Trump é presidente do conglomerado The Trump selho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, entre 28
Organization e fundador da Trump Entertainment Resorts. de janeiro e 5 de abril de 2017, quando foi demitido. Antes
formação técnica. A campanha elei- Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal, riqueza e de assumir tal posição da Casa Branca, Bannon foi diretor
modo de se pronunciar contribuíram para torná-lo famo- executivo da campanha presidencial de Donald Trump, em
toral do Brexit2 foi determinada pela so. (Nota da IHU On-Line) 2016. (Nota da IHU On-Line)
4 Hilary Clinton [Hillary Diane Rodham Clinton] (1947): 6 Vladimir Putin (1952): presidente da Rússia. Também é
Secretária de estado dos Estados Unidos entre 2009 e ex-agente do KGB no departamento exterior e chefe dos
1 Barack Obama [Barack Hussein Obama II] (1961): ad- 2013. Esposa do ex-presidente norte-americano Bill Clin- serviços secretos soviético e russo, KGB e FSB, respecti-
vogado e político estadunidense. Foi o 44º presidente ton, foi senadora de New York entre 2001 e 2009 e uma vamente. Putin exerceu a presidência entre 2000 e 2008,
dos Estados Unidos, tendo governado o país entre 2009 das principais candidatas à presidência durante as prévias além de ter sido primeiro-ministro em duas oportunida-
e 2017. (Nota da IHU On-Line) do partido democrata na eleição de 2008. (Nota da IHU des, a primeira entre 1999 e 2000, e a segunda entre 2008
2 Brexit: a saída do Reino Unido da União Europeia é ape- On-Line) e 2012. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 519
ENTREVISTA

rais ou indígenas, embora devesse tica etc. Centro/periferia; velhos e Massimo Canevacci – Agora as
ser claro para todo mundo que faz crianças, trabalho/sexo: no meio a fake news estão inflacionadas. Que-
tempo que as conexões são pratica- democracia possível via internet me ria sublinhar que “fake” não significa
das na maioria das aldeias, com os parece ainda mais complexa. falso, mas um conceito falso/verda-
territórios imateriais difundidos nos deiro que é esperado e acreditado
espaços criados pela tecnocultura pelo usuário. No Brasil, a comunica-
IHU On-Line – Como o se-
digital. O cruzamento sincrético e ção política falsa é mais antiga que
nhor analisa o uso indevido de
conflitual entre comunicação metro- as fake news. A comunicação políti-
dados do Facebook nesse con-
politana e comunicação digital é o ca está se tornando (na verdade faz
texto de cultura digital? Esse
desafio que multiplica os contextos, tempo! Desde o final do outro sé-
episódio revela que, na reali-
os códigos e os usuários da política culo…) central na formação de uma
dade, vivemos numa sociedade
que não são mais um núcleo restrito, opinião que é pública e privada. Isto
do controle?
mas abrangem sempre mais pessoas. é, a clássica dicotomia moderna (e
Massimo Canevacci – O contro- burguesa) não funciona mais desta
le é sempre presente, só que agora é maneira e o que era dividido agora
IHU On-Line – A Internet
também invisível. Na era dos mass se mistura. Tudo é público/privado
pode ser encarada como uma
media hegemônicos (e analógicos), assim como falso/verdadeiro. Parece
democracia?
tudo isso era mais claro e a crítica que Zuckerberg7 entendeu só agora o
Massimo Canevacci – Hum… foi praticada instantaneamente. problema e está tentando solucioná
acho difícil assim como está evo- Agora, com a social network, tecno- -lo, mas o problema de fundo é claro:
luindo. Estou convencido de que a digital, big data etc., tudo se torna os social network criam muito mais
Internet é um bem primário a que mais complexo: cada pessoa pode- uma reprodução vertical e autoritá-
todo mundo deve ter acesso, assim ria entender a manipulação de uma ria do que horizontal e progressiva.
como água, comida, saúde, casa etc. publicidade, de uma música ou de
Por isso, precisamos de uma urgente uma telenovela. Mas big data en-
IHU On-Line – Que reconfi-
pedagogia descentrada, em particu- volve uma formação informática
gurações políticas deveremos
lar nos centros e nas periferias de que eu não tenho. Tudo isso cresce
10 presenciar no Brasil a partir
cada país, envolvendo dois eixos: enormemente e aparece quando as
dos usos das redes sociais na
o processo de “aging” (aumento da informações sobre o meu perfil di-
campanha eleitoral deste ano?
idade média da população) e as es- gital entram nas mãos ávidas e sem
colas primárias. Isso significa inves- controle de políticos, publicitários, Massimo Canevacci – Ideal
timento cultural para o futuro, onde do mercado on-line, turismo cósmi- seria imaginar um laboratório na-
as pessoas morrem mais tarde e a co e anúncios sexuais. cional, gestão de pessoas sobre as
criança se torna ativa mais cedo. partes, que elabora um código ético-
O desmascaramento da Cambrid-
comunicacional. O partido ou o can-
Tenho certeza de que a universida- ge Analytica, já citada, é a gota que
didato que erra seria imediatamente
de deveria enfrentar isso com meto- inunda o mundo inteiro com cifras
publicizado como politicamente ir-
dologias e perspectivas diferentes, fora da inteligência. Bilhões de dados
regular e, se continuasse, seria im-
mais abertas e experimentais. que os novos instrumentos decodi-
possível se apresentar nas eleições.
ficam instantaneamente e oferecem
Enfim, o problema talvez maior
aquilo que a pessoa gosta: se o perfil é
fica no trabalho. O modelo da demo-
racista, apresenta racismo, “invasões” IHU On-Line – O que os de-
cracia baseada em partidos e sindi-
de imigrantes etc. Vocês lembram a bates de hoje nas redes sociais,
catos é industrialista, equivalente à
história de Dédalo, que inventou o la- sobre os mais variados temas,
produção ford-taylorista. E agora?
birinto e fechou o Minotauro dentro? revelam?
A democracia no trabalho é mais
O mesmo aconteceu com Steve Ban-
flexível, temporária, múltipla, glo- Massimo Canevacci – Na Itália,
non desmentido pelo Trump.
cal: precisa mudar muito e o tempo percebo uma forte discussão política
curto favorece fechamentos endogâ- sobre o que aconteceu nas últimas elei-
micos. E no sexo: a difusão do pornô IHU On-Line – As eleições ções, além de temas mais gerais. Mas
envolve de uma maneira totalmente norte-americanas e a enxurra- no mesmo espaço/tempo, o Facebook
diferente da que foi na minha ju- da de informações comparti- continua a funcionar da mesma ma-
ventude. Como tudo isso modifica lhadas nas redes sociais inau-
as relações complexas entre gênero, guraram o debate sobre as fake
7 Mark Zuckerberg (1984): é um programador e empre-
sexo, eroticidade, amor, identidade, news. Mas qual deve ser o im- sário norte-americano, que ficou conhecido internacional-
prazer, violência, homofobia etc. se mente por ser um dos fundadores do Facebook, a rede
pacto dessas informações fal- social mais acessada do mundo. Em março de 2011, a
apresenta como um multiverso a se sas e do uso de dados gerados revista Forbes colocou Zuckerberg na 36ª posição da lista
das pessoas mais ricas do mundo, com uma fortuna esti-
investigar profundamente, cruzan- por usuários de redes sociais mada em 17.5 bilhões de dólares. Em junho de 2015, sua
do interdisciplinarmente psicologia, na realidade da campanha elei- fortuna já estava avaliada em 38.4 bilhões de dólares, em
2016 seu patrimônio líquido foi estimado em 51,8 bilhões
comunicação, etnografia, informá- toral brasileira de 2018? de dólares. (Nota da IHU On-Line)

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neira, com coisas mais triviais como cientista que adoro e é sempre parte envolver cada pessoa, e em particular
brincadeiras, fotos, amizades. O que constitutiva da minha formação políti- trabalhadores e empreendedores, em
me parece minoritário mas significati- co-digital, recentemente falou de novo um pacto estrutural de fase. É verda-
vo são encontros, seminários, livros so- sobre este argumento e gostaria muito de que o trabalho que existiu a partir
bre Human Ecosystem e o desafio da que os leitores acompanhassem seu da revolução industrial (há apenas
complexidade. No Brasil, tenho menos pensamento que afirma sempre que a 200 anos mais ou menos) é histórico
indicadores, mas parece que a raiva po- ideia horizontal e libertária foi e ainda e precisa acabar. Quero sublinhar que
lítica (o terrível assassinato de Mariel- deveria ser constitutiva da Internet10. esta fase industrialista representou
le8) se acalma com o cotidiano. dramas enormes em relação às popu-
lações e à natureza. Entendo bem que
IHU On-Line – Quais os desa- não será fácil, porque se percebe que
IHU On-Line – Em que medi- fios para assegurar que a cha- este trabalho histórico é “natural”,
da a cultura digital pode ser ge- mada Revolução 4.0 não im- que precisamos superá-lo. Como?
radora de desigualdades? ponha uma espécie de seleção Aqui seria fundamental um projeto
nas sociedades, eliminando do global: em primeiro lugar nacional,
Massimo Canevacci – Infeliz-
mundo do trabalho e da polí- depois continental latino-americano
mente a desigualdade é imanente nos
tica aqueles que não assimila- e pan-americano, enfim global. Se
domínios das estruturas de poder. Tim
ram a cultura digital? E como cada país se isola, como Trump está
Berners-Lee9, o inventor da WWW,
conceber uma inclusão digital fazendo, seja com o comércio inter-
8 Marielle Francisco da Silva ou Marielle Franco (1979- no Brasil de hoje? nacional, seja com o muro contra o
2018): foi uma socióloga, feminista, militante dos direitos
México, será uma catástrofe.
humanos e política brasileira. Filiada ao Partido Socialismo Massimo Canevacci – Como já
e Liberdade (PSOL), elegeu-se vereadora do Rio de Janeiro
na eleição municipal de 2016, com a quinta maior votação. afirmei, a inclusão digital no Brasil
Crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro e da Polí-
cia Militar, denunciava constantemente abusos de autori-
é conectada com um processo ine- IHU On-Line – Deseja acres-
dade por parte de policiais contra moradores de comuni- vitável de transitar da centralidade centar algo?
dades carentes. Em 14 de março de 2018, foi assassinada
a tiros. (Nota da IHU On-Line) industrialista para a chamada Revo-
9 Timothy John Berners-Lee ou Tim Berners-Lee Massimo Canevacci – Estou
(1955): é um físico britânico, cientista da computação e lução 4.0. É impossível ficar fora des-
profundamente convicto de que o
professor do MIT. É o criador da World Wide Web, tendo
feito a primeira proposta para sua criação a 25 de março
te processo. É fundamental aceitar
papel da universidade e da comu- 11
de 1989. Em 25 de dezembro de 1990, com a ajuda de o desafio, explicá-lo politicamente,
Robert Cailliau e um jovem estudante do CERN, imple- nicação neste momento será deci-
mentou a primeira comunicação bem-sucedida entre um
cliente HTTP e o servidor através da internet. (Nota da 10 O texto especificamente citado pode ser acessado no
sivo. Precisamos de muitas imagi-
IHU On-Line) link http://bit.ly/2IFxsGR. (Nota do entrevistado) nações exatas. ■

Leia mais
- A revolução digital-horizontal se inverteu no contrário. O conteúdo é nada e a comunica-
ção, tudo. Entrevista especial com Massimo Canevacci, publicada nas Notícias do Dia do IHU,
de 5-9-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2HdEHq3;
- A palavra e o olhar. Uma relação que está na base da democracia ocidental. Entrevista
especial com Massimo Canevacci, publicada nas Notícias do Dia do IHU, de 18-5-2013, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2q9FO1O;
- Comunicação horizontal e cidadania transitiva: a construção de um novo modelo de-
mocrático. Entrevista especial com Massimo Canevacci, publicada nas Notícias do Dia do
IHU, de 29-8-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2uYe4D9;
- A cidadania transitiva no contexto da comunicação digital. Entrevista especial com
Massimo Canevacci, publicada nas Notícias do Dia do IHU, 20-7-2011, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2H1R5M8;
- Love Parade: corpos conectados pelo amor erótico. Entrevista especial com Massimo
Canevacci, publicada nas Notícias do Dia do IHU, de 10-8-2010, no sítio do Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2GG5k5Y;
- Comunicação digital. Poros, pesquisa e desafios. Entrevista especial com Massimo Ca-
nevacci, publicada nas Notícias do Dia do IHU, de 14-5-2007, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2JnuojS.

EDIÇÃO 519
REPORTAGEM

Ivan de Paula, dono das terras onde está a cascata da nascente do Rio dos Sinos, é uma espécie de guardião desse patrimônio natural

12 A vida pulsante, da nascente à foz, em


um dos rios mais poluídos do Brasil
Sociedade civil se aproxima do Rio dos Sinos, no Rio Grande
do Sul, para resgatar a potência de sua força vital
Lara Ely* | Edição: Ricardo Machado

No momento em que os olhos do Brasil percorrer o rio de ponta a ponta, a equipe


e do mundo se voltaram para debater o da pesquisa encontrou realidades bastante
uso público dos recursos hídricos em Bra- distintas. Se na nascente, perto de Caraá,
sília, dentro do Fórum Mundial da Água, na Serra Geral, a duas horas de Porto Ale-
o manancial do Vale do Sinos desperta a gre, ele corre com suavidade e mansidão
atenção de uma série de televisão chamada por lugares onde a vida também tem um
Cidades Azuis. Trata-se de uma produção ritmo menos apressado, no desenrolar
documental que retrata a realidade dos de seu curso a paisagem muda de forma
rios do Sul e Sudeste do país, com foco em abrupta. Conforme se aproxima da região
mostrar os arranjos produtivos locais. Per- metropolitana, mais urbanizada e com
sonagens das regiões de nascente, curso e maior concentração populacional, o Sinos
foz do Sinos foram mapeadas para retra- sofre com a carga de esgotos domiciliares
tar problemas e soluções relacionados a e dejetos industriais, culminando em uma
sua gestão, qualidade e sustentabilidade. zona de podridão que abrigou, em 2006, a
O intuito é mostrar que, se na superfície maior mortandade de peixes devido à po-
as cidades são cinzas, em seu subterrâneo luição já vista no Estado.
elas pulsam azuis.
A origem de todo o mau trato vem do des-
Ouvir as histórias que estabelecem cone- pejo de esgoto doméstico não tratado e de
xões entre os atores que ligam essas par- resíduos industriais. Entre esses dejetos
tes faz parte do propósito do trabalho. Ao das fábricas, estão as sobras do curtimento

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“A origem de todo o mau trato vem


do despejo de esgoto doméstico não
tratado e de resíduos industriais”

do couro, um dos pontos fortes da econo- Há duas horas dali, em altitudes supe-
mia do Vale, importante polo coureiro-cal- riores a 800 metros, está a cidade de São
13
çadista do Brasil. A soma de tanto descaso Francisco de Paula, uma das 32 cidades
faz do Sinos o quarto rio mais poluído do que compõem a Bacia do Rio dos Sinos
Brasil, segundo Indicadores de Desenvol- e possui em seu território rios que são
vimento Sustentável - IDS publicados pelo afluentes. Nesta região já é possível obser-
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís- var suas curvas, característica que levou à
tica - IBGE, em 2012. origem do nome, como escreveu em seu
blog o agrônomo, jornalista e ecologista
Nascente Arno Kayser. Uma das histórias diz que no
rio foram encontrados vários sinos. Ou-
Nascido no platô de uma cascata de 116 tra conta que estes sinos seriam parte de
metros de altura, cujo acesso se dá após imensas riquezas lançadas ao rio pelos Je-
uma caminhada de duas horas pela mata suítas fugidos das missões guaranis – que
fechada, o ponto onde nasce o rio desper- até hoje tocam para lembrar o crime come-
ta a curiosidade de viajantes, ecoturistas e tido por portugueses e espanhóis.
amantes de trilhas. O difícil acesso, dado a
partir da comunidade de Fraga, a 15 quilô- Comitê da Bacia dos Sinos
metros de Osório, é um ingrediente a mais
para quem procura aventura. Por ali, com- Na região dos Campos de Cima da Ser-
põem o cenário a paisagem agrícola, ateliês ra vive a professora do Curso de Gestão
de montagem de sapatos e uma vida paca- Ambiental e Coordenadora do Curso de
ta do interior. Dono das terras onde está a Mestrado Ambiente e Sustentabilidade na
cascata da nascente, o fotógrafo Ivan José Universidade Estadual do Rio Grande do
de Paula é uma espécie de guardião desta Sul - Uergs Márcia Berreta. Geógrafa com
riqueza. Para ele, que mora em Santo Antô- mestrado e doutorado em Análise Am-
nio da Patrulha e visita o local somente nos biental, ela fez um estágio na Université du
finais de semana, a região serve como esca- Maine, em Le Mans, na França, onde apri-
pe, refúgio de paz onde ele busca tranqui- morou conhecimentos sobre a legislação
lidade em meio à natureza. Ele simboliza de recursos hídricos. Márcia gosta de de-
a resistência, já que a maioria dos antigos safiar os alunos a pensar sua relação com
moradores saiu em busca de lugares mais os recursos naturais, por exemplo, quando
produtivos e movimentados para viver. os convida para descer as corredeiras do

EDIÇÃO 519
REPORTAGEM

Rio Paranhana durante um passeio de raf- se ocupado em desempenhar dentro do


ting. Segundo ela, é preciso conhecer para Consórcio Pró-Sinos. Instalada em São
preservar, é preciso estar perto da natureza Leopoldo, a entidade busca mapear cami-
para entender o valor que ela tem. Como na nhos para a gestão sustentável do rio, além
música de Almir Sater, “é preciso amor pra de defender, ampliar e promover a intera-
poder pulsar”. Ela relembra que o Comitê ção, fortalecer e desenvolver a capacidade
de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do administrativa, técnica e financeira dos
Rio dos Sinos foi o primeiro mecanismo des- serviços públicos de saneamento básico
te tipo a ser implementado no Brasil, porém, nos municípios que integram o consórcio.
apesar de ser importante instrumento de Não é tarefa simples, mas John busca su-
gestão, não tem poder executivo, o que torna porte em pesquisas acadêmicas, suporte
limitado o poder de seus articuladores. das prefeituras e apoio de uma estrutura
Segundo Márcia, apesar da qualidade da de educação ambiental.
água ser boa em grande parte das nascen- Sua missão seria ingrata se fosse solitá-
tes e no alto da Serra, existem por todo o ria. Mas a boa notícia é que, além dele, há
seu curso depósitos de lixos e ligações de outras pessoas cujos trabalhos despertam
esgotos irregulares que contribuem para mais esperança do que desilusão. Dois
gerar impacto negativo no rio. A melhoria exemplos rápidos que misturam empreen-
do problema dependeria de uma eficien- dedorismo e conservação ambiental jogam
te gestão do saneamento, mas as ligações luz para analisarmos o futuro do Sinos.
irregulares de esgoto domiciliar (da rede O primeiro deles é o trabalho da Insecta
cloacal na pluvial) atrapalham o processo. Shoes, uma empresa de sapatos veganos,
que reaproveita resíduos da indústria
Alcance calçadista como matéria-prima em sua
Também pudera. Antes de chegar até a fábrica de Sapiranga. Com lixo zero, con-
foz, localizada junto ao delta do Jacuí, no seguem fazer um ciclo fechado de impacto
14 município de Canoas, numa altitude de ambiental, servindo de modelo para aliar
apenas 5 metros, o Sinos deslocou-se por negócios à preservação. Outro exemplo é
uma área de 3.693 km², o equivalente a o movimento Abrace o Rio dos Sinos, que
1,3% do território estadual. Teve contato realiza saraus todos os meses no Museu
com uma população estimada em 1,3 mi- dedicado ao rio em ações que mobilizam
lhão de habitantes, moradores de Araricá, a comunidade. Segundo Julia Rolim, uma
Cachoeirinha, Campo Bom, Canela, Cano- das fundadoras do Interventura Urbana,
as, Capela de Santana, Caraá, Dois Irmãos, grupo de voluntários que realiza a ação, a
Estância Velha, Esteio, Glorinha, Grama- ideia é aliar sociedade civil, poder público
do, Gravataí, Igrejinha, Ivoti, Nova Hartz, e instituições de ensino em torno do cui-
Nova Santa Rita, Novo Hamburgo, Osório, dado com o Rio. A ideia de resgatar a pai-
Parobé, Portão, Riozinho, Rolante, Santa sagem urbana e ocupar a cidade por seus
Maria do Herval, São Francisco de Paula, cidadãos, construindo uma cidade para as
São Leopoldo, São Sebastião do Caí, Sapi- pessoas faz eco pelo Vale localizado junto
ranga, Sapucaia do Sul, Santo Antônio da à região metropolitana de Porto Alegre. O
Patrulha, Taquara e Três Coroas. Sinos grita por socorro, mas tem gente que
ouviu o seu chamado e arregaçou as man-
Articular a gestão do saneamento, abas-
gas para fazer a diferença. ■
tecimento e decisões políticas que im-
pactam toda essa rede é o trabalho que o * Lara Ely é jornalista, mestre em Comuni-
engenheiro ambiental John Wurdig tem cação e criadora do projeto @ecohistorias.

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15

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

Depois da “pedalada constitucional”,


contenção do avanço liberal
é cada vez mais difícil
Para Adriano Pilatti, a Constituição de 1988 foi capaz de segurar
o Liberalismo no Brasil. Mas, desde 1995 e depois do impeachment,
o freio tem sido cada vez mais ineficiente
João Vitor Santos

O
jurista e professor Adriano queda de Dilma Rousseff, que também
Pilatti ainda era um jovem as- tem relação com as Jornadas de Junho.
sessor quando acompanhou de “O golpe parlamentar do impeachment
perto o processo constituinte que cul- foi a verdadeira e maior ‘pedalada’,
minou na Carta Magna de 88. Passados uma pedalada constitucional”, dispa-
30 anos da promulgação, e num país ra. E acrescenta: “e o que faz a corte
mergulhado em crises, ele é enfático: “a incumbida de ser a guardiã da Consti-
Constituição de 1988 está muito longe tuição? Pedala também”, sem esquecer
de ser o principal fator dessa crise en- que “os caídos com o impeachment e a
tre nós”. Na entrevista concedida por Lava Jato foram os primeiros a pedalar,
e-mail à IHU On-Line, avalia que foi na tentativa de repressão a Junho”.
16 o processo constituinte que conseguiu Adriano Pilatti é graduado pela Facul-
frear o avanço da matriz liberalista no dade de Direito da Universidade Fede-
Brasil por cerca de dez anos. Afinal, ral do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre
esse modelo só foi realmente se incrus- em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e
tando a partir dos governos de Fernan- doutor em Ciência Política pelo Insti-
do Collor e Fernando Henrique Cardo- tuto Universitário de Pesquisas do Rio
so. “Desde então, e sobretudo a partir de Janeiro - Iuperj, com pós-doutorado
de 1995, temos vivido uma espécie de em Direito Público Romano pela Uni-
‘terceiro turno permanente’, com as re- versidade de Roma I – La Sapienza. É
formas constitucionais conservadoras. autor do livro A Constituinte de 1987-
Nesse sentido, não há dúvida de que 1988 – Progressistas, conservadores,
hoje vivemos um quadro diametral- ordem econômica e regras do jogo (Rio
mente oposto ao de 30 anos atrás, com de Janeiro: Lumen Juris, 2008). Pilatti
a ascensão do neoconservadorismo e do também traduziu o livro Poder Consti-
regressismo, coisas impensáveis duran- tuinte. Ensaio sobre as alternativas da
te o período constituinte”, completa. Modernidade, de Antonio Negri (Rio
O professor ainda avalia que esse qua- de Janeiro: Editora Lamparina, 2015).
dro tem piorado rapidamente desde a Confira a entrevista

IHU On-Line – Como pode- tonio Negri1, por exemplo, não está referida a processos constituintes
mos compreender o conceito formais, mas a uma relação sujeito
de “poder constituinte” a partir -estrutura a partir da qual uma co-
1 Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano.
da experiência da construção Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana letividade insurgente e organizada é
de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectu- capaz de produzir uma transforma-
da Carta Magna de 1988? ais italianos. Em 2000, publicou o livro-manifesto Império
(Rio de Janeiro: Record), com Michael Hardt. Em seguida, ção radical na ordem política e social
publicou Multidão. Guerra e democracia na era do império
Adriano Pilatti – Depende do (Rio de Janeiro/São Paulo: Record), também com Michael estabelecida, fundando-a em novas
sentido que se der ao conceito. A Hardt – sobre esta obra, a edição 125 da IHU On-Line, de bases materiais e traduzindo-a em
29-11-2004, publicou um artigo de Marco Bascetta, dis-
perspectiva desenvolvida por An- ponível em https://goo.gl/9rjlQw. (Nota da IHU On-Line) novas instituições formais.

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“Viver o que vivemos nos permite


a todas e todos percebermos
com clareza o quanto as
classes dominantes e dirigentes
odeiam o projeto de 1988”

Já do ponto de vista jurídico, temos pelas forças que apoiaram o regime em 1982, a maioria conservadora da
no poder constituinte chamado de autoritário; e um projeto progressis- ANC revelou-se inicialmente esma-
“originário” uma força capaz de des- ta, impulsionado pelos movimentos gadora, e parecia que o projeto con-
constituir o ordenamento político-ju- pró-democráticos e reformistas vin- servador seria plenamente vitorio-
rídico até então existente, e constituir culados aos “de baixo”, que preco- so. Mas não foi o que se deu, e isso
um novo ordenamento fundamental. nizava uma ampla democratização, por uma série de “surpresas”, que
E se, no campo jurídico, a perspectiva a abertura das instituições à partici- analiso em meu livro A Assembleia
for especificamente aquela do cons- pação popular e o compromisso com Constituinte de 1987-1988 – pro-
titucionalismo democrático, teremos reformas sociais, que se traduziu ini- gressistas, conservadores, Ordem
a aproximação do conceito de poder cialmente na proposta de uma cons- Econômica e regras do jogo.
constituinte ao conceito de poder tituinte exclusiva.
popular – como faz, por exemplo, o Estratégias e surpresas
Na deliberação do Congresso Na-
grande constitucionalista progres-
cional, em 1985, sobre a convocação
17
sista José Afonso da Silva2 (que teve As primeiras surpresas aconteceram
da Constituinte, venceu a proposta já durante a elaboração do Regimento
muita influência no processo consti-
de constituinte congressual, defen- Interno que regeria as deliberações da
tuinte de 1987-1988) na obra que tem
dida pelo então presidente Sarney4 ANC até o golpe do primeiro Centrão6.
por título esses dois termos, Poder
e pela coalizão governista e majori- De um lado, por pressão do elevado
Constituinte e Poder Popular3.
tária PMDB-PFL. Com a eleição dos número de congressistas de primeiro
deputados e senadores constituintes mandato, desejosos de obter visibi-
Processo Constituinte e seu
de 1986, acontecida sob a égide do lidade nos trabalhos constituintes,
histórico
estelionato eleitoral do “Plano Cru- decidiu-se pela descentralização dos
A Assembleia Nacional Consti- zado”5 e das regras representativo trabalhos de elaboração constitucio-
tuinte - ANC de 1987-1988 foi cria- -eleitorais do antigo regime, e com a nal. Essa descentralização permitiria a
da, instalou-se e desenvolveu seus incorporação dos senadores eleitos participação efetiva de todos os cons-
trabalhos sob o signo da tensão en- tituintes por meio de sua distribuição
tre dois projetos: um projeto con- 4 José Sarney [José Sarney de Araújo Costa] (1930): polí-
tico nascido no Maranhão, 31º presidente do Brasil (1985-
pelas 24 subcomissões temáticas res-
servador, de mera liberalização do 1990). Foi governador do Maranhão e presidente do Se- ponsáveis pela elaboração, na primei-
nado Federal por quatro vezes. No dia 15 de janeiro de
regime, sem perda de controle do 1985, o Colégio Eleitoral elegeu a chapa Tancredo Neves/ ra fase do processo, dos anteprojetos
processo político pelo condomínio José Sarney para a presidência da República, encerrando o de capítulos constitucionais.
ciclo militar instaurado com o golpe de 1964. Na semana
oligárquico de então, que se tradu- da posse, Tancredo apresentou quadro inflamatório com
dores abdominais, diagnosticado como apendicite. Ele Numa segunda fase, os 24 ante-
ziu inicialmente na proposta de uma descartou qualquer internação ou intervenção cirúrgica projetos das subcomissões seriam
constituinte congressual, controlada antes da posse. Na noite de 14 de março de 1985, o agra-
vamento do quadro clínico exigiu uma cirurgia de urgên- reunidos, três a três, em oito ante-
cia. Sarney tomou posse como vice-presidente, assumindo
a presidência da República interinamente em 15 de março projetos elaborados pelas comissões
2 José Afonso da Silva (1925): é um jurista brasileiro, de 1985. Tancredo morreu em 21 de abril, e Sarney assu- temáticas, que reuniriam, cada uma
mineiro, especialista em Direito Constitucional. Graduado miu oficialmente o cargo. (Nota da IHU On-Line)
pela Universidade de São Paulo (1957), é também livre do- 5 Plano Cruzado: conjunto de medidas econômicas, lan- delas, os constituintes das três sub-
cente (1969) pela mesma universidade, da qual é professor çado pelo governo brasileiro em 28 de fevereiro de 1986,
titular aposentado e onde também foi responsável pelo com base no decreto-lei nº 2.283, de 27 de fevereiro de
comissões pertinentes.
Curso de Direito Urbanístico, em nível de pós-graduação. 1986, sendo José Sarney o presidente da República e Dil-
É Procurador do Estado de São Paulo aposentado, além son Funaro o ministro da Fazenda. O plano foi aprovado
de ter sido livre docente de direito financeiro, de processo na Câmara dos Deputados com 344 votos a favor e 13
civil e de direito constitucional da Faculdade de Direito da contra, enquanto no Senado Federal só um dos 49 par- 6 Centrão: grupo suprapartidário com perfil de centro
UFMG. É membro de diversos institutos, dentre os quais o lamentares votou contra. A principal marca foi o conge- e direita criado no final do primeiro ano da Assembléia
Instituto dos Advogados do Brasil e a Associação Brasileira lamento de preços. Alimentos, combustíveis, produtos de Nacional Constituinte de 1987-1988 para dar apoio ao
de Constitucionalistas Democráticos, da qual foi presiden- limpeza, serviços e até o dólar tiveram os preços tabelados presidente da República José Sarney. Foi responsável pela
te e fundador. Foi secretário da Segurança Pública do Es- pelo governo. Essas medidas do Plano Cruzado contraria- reviravolta no processo de elaboração constitucional ao
tado de São Paulo de 1995 a 1999. (Nota da IHU On-Line) ram a recomendação internacional do Fundo Monetário conseguir alterar, por meio de um projeto de resolução, as
3 Rio de Janeiro: Malheiros; Edição, 2002. (Nota da IHU Internacional, a quem o governo culpava pela inflação por normas regimentais que organizavam os trabalhos consti-
On-Line) ser “especuladores”. (Nota da IHU On-Line) tuintes. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

Numa terceira fase, os oito ante- cargo de líder do PMDB, o partido sista na Comissão de Sistematização,
projetos das comissões temáticas que reunia 307 dos 559 constituintes pois os relatores (majoritariamente
seriam reunidos num único antepro- e tinha então um caráter heterogê- progressistas) a integrariam, mas os
jeto pela chamada Comissão de Sis- neo de frente pró-redemocratização. presidentes (majoritariamente con-
tematização, integrada por membros A eleição de Covas potencializou a servadores) das comissões e subco-
natos e pelos 32 relatores das subco- força do setor progressista minori- missões não. Tudo isso somado, no
missões e comissões temáticas. tário na bancada, atraiu muitos dos final de 1987, quando a Comissão de
peemedebistas moderados e viabi- Sistematização estava concluindo
Numa quarta e última fase, o an-
lizou uma coalizão com os partidos a elaboração do Projeto de Consti-
teprojeto da Sistematização seria
à esquerda do PMDB, ao mesmo tuição a ser votado pelo Plenário da
discutido e votado pelo Plenário da
tempo em que contribuiu para im- ANC, o texto que nascia era muito
ANC em dois turnos. A existência
plodir a coalizão PMDB-PFL e difi- mais progressista e avançado do que
desses 32 relatores, somada a uma
cultar a interferência do presidente a maioria conservadora poderia su-
estratégia do líder da maioria, como
Sarney no processo. A partir daí, se portar. Só restava aos conservadores
explicarei a seguir, permitiu ampliar
sensivelmente a influência da mino- configurou um quadro interno que virar a mesa, e o fizeram por meio
ria progressista. opunha, na maioria das questões, os da criação do primeiro Centrão e da
peemedebistas liderados por Covas e alteração do Regimento Interno, que
De outro lado, por força das reivin- as bancadas dos partidos à esquerda permitiu aos conservadores apre-
dicações dos movimentos sociais, do PMDB, de um lado, e o PFL do sentar substitutivos integrais a cada
que viviam a maré montante de líder José Lourenço8, os peemede- um dos capítulos e títulos do Projeto
mobilizações que caracterizou toda bistas conservadores e as bancadas de Sistematização.
a transição, o Regimento Interno dos partidos à direita do PMDB,
abriu espaços à participação popular de outro. Covas e Lourenço, líderes Derrota do Centrão
no processo, por meio da obrigato- dos partidos que, até a instalação da
riedade de realização de audiências Mas, apesar do golpe regimental, o
ANC, sustentavam o governo Sarney
públicas com representantes dos dis- Centrão não conseguiu manter a coe-
em coalizão, tornam-se, durante os
tintos setores da sociedade civil e da são em todas as questões, perdeu vá-
18 trabalhos constituintes, os líderes
apresentação de emendas populares rias votações no início das delibera-
das novas coalizões em conflito.
ao Projeto de Constituição. Não obs- ções de plenário, inclusive no tocante
tante, além de ter direito a voz nas Na condição de líder do partido à definição do direito de propriedade,
audiências públicas e nas sessões de avassaladoramente majoritário, ca- e assim abriu-se o caminho para um
apresentação das emendas popula- bia a Covas definir os termos das ne- processo de negociação permanente
res, os movimentos marcaram inten- gociações com os líderes dos demais entre conservadores e progressistas.
samente sua presença e pressão nas partidos para a designação dos pre- Essa busca de acordos para a supera-
primeiras fases do processo, e os sin- sidentes e dos relatores das comis- ção de impasses permitiu que, ao fi-
dicatos procuravam dar ampla visi- sões e subcomissões. Em síntese, fi- nal, uma ANC ultramajoritariamente
bilidade aos votos dos constituintes cou acertado que, em regra, o PMDB conservadora entregasse ao país uma
nas questões relativas aos direitos, indicaria os relatores, e os demais Constituição bem mais progressista
especialmente dos direitos sociais e partidos, os presidentes. Ocorre que do que pretendia. Assim, um pro-
econômicos. Toda essa pressão vin- Covas indicou majoritariamente re- cesso constituinte que se iniciou sob
da “de baixo” fortaleceu a posição latores progressistas, o que não só a égide do conservadorismo teve de
das bancadas progressistas durante transferiu aos progressistas o poder abrir-se, nos seus procedimentos e
as discussões e deliberações. de iniciativa e agenda, relativo à de- nos seus resultados, às demandas
finição dos conteúdos dos antepro- progressistas, e a Constituição de
Mas talvez a maior dessas surpre-
jetos que seriam objeto das decisões 1988 permanece sendo, ainda hoje,
sas foi a eleição do senador, então
das comissões e subcomissões, como uma espinha na garganta do conser-
progressista, Mário Covas7 para o
também ampliou a presença progres- vadorismo, ao passo que foi ganhan-
7 Mário Covas Júnior (1930-2001): engenheiro e político
do, cada vez mais, legitimidade junto
brasileiro, foi o 30º governador do estado de São Paulo, en- 8 José Lourenço: deputado federal de 1983 a 2003, aos segmentos populares.
tre 1º de janeiro de 1995 e 22 de janeiro de 2001, quando se tendo participado da Assembleia Constituinte de 1988.
afastou do cargo em decorrência de um câncer que o aco- Nasceu em Portugal no dia 5 de março de 1933, filho de
meteu. Como Mario Covas não renunciou ao seu mandato, brasileiros e aos 16 anos de idade, em 1949, mudou-se
ele manteve a sua condição de governador afastado até o
seu falecimento, em 6 de março de 2001. Nesse ínterim,
para o Brasil, passando a viver em Salvador, na Bahia. Dis-
putou seu primeiro mandato como deputado estadual
IHU On-Line – O senhor atuou
Geraldo Alckmin governou o estado na condição de gover- na Bahia no pleito de novembro de 1970, elegendo-se como assessor parlamentar
nador interino, sendo inclusive citado pela imprensa como pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de
tal. Em 1986, Covas foi eleito senador com 7,7 milhões de sustentação ao regime militar instalado no país em abril durante o processo da consti-
votos, a maior votação de um candidato a cargo eletivo na
história do Brasil até então, beneficiado também pela re-
de 1964. Reeleito pela mesma legenda nas duas legisla-
turas seguintes (1975-1979 e 1979-1983), nesta última
tuinte, período em que acom-
putação conquistada como prefeito. Foi líder da bancada foi presidente da mesa e líder do governo Antônio Carlos panhou de perto as disputas.
do PMDB no Senado durante a Assembleia que elaborou a Magalhães na Assembleia Legislativa da Bahia. Após o
Constituição de 1988. Durante os trabalhos da Assembleia fim do bipartidarismo em novembro de 1979 e a con- O que essas disputas, dentro
Nacional Constituinte, alinhou-se muitas vezes às bancadas
de esquerda e fez oposição ao chamado Centrão, bloco
sequente reorganização partidária, ingressou no Partido
Democrático Social (PDS), agremiação que deu continui-
e fora do Congresso Nacional,
suprapartidário liberal de direita. (Nota da IHU On-Line) dade à Arena. (Nota da IHU On-Line) revelaram? E hoje, é possível

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afirmar que há supremacia de as reformas constitucionais conser- esboça um modelo de democracia


um dos grupos que travavam vadoras. Nesse sentido, não há dúvi- participativa, por outro lado, res-
aqueles confrontos? da de que hoje vivemos um quadro tringe os meios de participação e os
diametralmente oposto ao de 30 subordina à decisão da própria re-
Adriano Pilatti – Em primeiro
anos atrás, com a ascensão do neo- presentação. No entanto, deixa es-
lugar, a enorme complexidade da
conservadorismo e do regressismo, paço para novos experimentos par-
sociedade brasileira. A diversida-
coisas impensáveis durante o perío- ticipativos, como os delineados pelo
de de movimentos, reivindicações,
do constituinte. Decreto nº 8.243/2014, dos meca-
perspectivas que, se por um lado, se
nismos de participação popular,
aglutinavam em dois campos funda-
que reconhecia até mesmo o direi-
“O texto que
mentais, então chamados de conser-
to de participação de “movimentos
vador e progressista, por outro lado
não institucionalizados”. Mas que
já antecipavam a multiplicidade de
questões transversais que então per- nascia era lamentavelmente não foi editado
“pra valer”, e sim como mera tenta-
mitiram que as maiorias se deslocas-
sem e reconfigurassem pontualmen- muito mais tiva de dissuasão dos movimentos
contra a Copa em que ainda se des-
te em torno dessas questões.
progressista e dobrava o levante de Junho, uma
espécie de “cala-boca”, uma criação
avançado do
Em segundo lugar, no processo
constituinte e no resultado constitu- que foi abandonada pela criadora, a

que a maioria
cional, a intensidade das mobiliza- presidente Dilma11, assim que se le-
ções daquela época em favor de uma vantaram as primeiras resistências,
ampla democratização do Estado e
das relações sociais e econômicas. conservadora conservadoras obviamente, contra a
implantação daqueles experimentos.
Uma singular e positiva diacronia
entre o que se passava entre nós e no
poderia Retomar aquela proposta seria um
bom começo, mas só um começo.
exterior resultou daí, da intensidade
das mobilizações pró-democráticas
suportar”
IHU On-Line – Numa entrevis- 19
e progressistas iniciadas no Brasil
no final da década de 1970 e que se ta à IHU On-Line, em setembro
IHU On-Line – A partir das
desdobraram até o processo cons- de 201312, o senhor disse que
Jornadas de Junho de 2013,
tituinte, adiando em uma década o “a Constituição de 1988 ainda
a ideia que tínhamos de re-
avanço do neoliberalismo no Brasil, não esgotou seu potencial de li-
presentatividade foi posta em
pois aqui nas reformas neoliberais beração da vida e de promoção
xeque, escancarando o que
só encontraram espaço no período da igualdade”. Agora, em 2018,
chamamos de crise da repre-
pós-constituinte com os dois Fer- temos visto inúmeros ataques
sentatividade democrática. A
nandos, Collor9 e Cardoso10. a direitos que, por serem pre-
Constituição de 1988 é capaz de
vistos na Carta Magna, imagi-
Desde então, e sobretudo a partir responder a essa crise? Como?
návamos cristalizados. O que
de 1995, temos vivido uma espécie Adriano Pilatti – A crise da mudou nesses cinco anos?
de “terceiro turno permanente”, com representação é hoje um fenôme-
Adriano Pilatti – Junho expres-
no globalizado, e o anseio pela
9 Fernando Collor de Mello (1949): político, jornalista, sou reivindicações que, em grande
criação de novas formas demo-
economista, empresário e escritor brasileiro, prefeito de parte, poderiam ser traduzidas em
Maceió de 1979 a 1982, governador de Alagoas de 1987 cráticas, com mais participação
a 1989, deputado federal de 1982 a 1986, 32º presidente lutas pela efetivação dos direitos já
do Brasil, de 1990 a 1992 e senador por Alagoas de 2007 popular direta, também se afirma
até a atualidade. Foi o presidente mais jovem da história formalmente consagrados em 1988.
planetariamente. O terrível é que
do Brasil e o presidente eleito por voto direto do povo, Numa aula pública que então mi-
após o regime militar (1964/1985). Seu governo foi mar- essas novas formas ainda não fo-
cado pela implementação do Plano Collor e a abertura nistrei durante o levante, após ouvir
do mercado nacional às importações e pelo início de um ram encontradas, temos apenas
programa nacional de desestatização. Seu Plano, que no
início teve uma boa aceitação, acabou por aprofundar a
esboços do que podem ser as no- 11 Dilma Rousseff (1947): economista e política brasileira,
recessão econômica, corroborada pela extinção, em 1990, vas vias participativas. Junho foi, filiada ao Partido dos Trabalhadores – PT, eleita duas vezes
de mais de 920 mil postos de trabalho e uma inflação na presidente do Brasil. Seu primeiro mandato iniciou-se em
casa dos 1200% ao ano; junto a isso, denúncias de corrup- entre outras coisas, um potente 2011 e o segundo foi interrompido em 31 de agosto de
ção política envolvendo o tesoureiro de Collor, Paulo César 2016. Em 12 de maio de 2016, foi afastada de seu cargo
Farias, feitas por Pedro Collor de Mello, irmão de Fernando
sintoma dessa crise entre nós, e ao durante o processo de impeachment movido contra ela.
Collor, culminaram com um processo de impugnação de mesmo tempo um esboçar de no- No dia 31 de agosto, o Senado Federal, por 61 votos fa-
mandato (impeachment). Atualmente, está entre os de- voráveis ao impeachment contra 20, afastou Dilma defini-
nunciados da Operação Lava Jato, que investiga esquema vas formas de organização e ação tivamente do cargo. O episódio foi amplamente debatido
de corrupção envolvendo agentes políticos e empresários. nas Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por exemplo, a
(Nota da IHU On-Line)
durante o próprio levante. Entrevista do Dia com Rudá Ricci intitulada Os pacotes do
10 Fernando Henrique Cardoso (1931): sociólogo, cien- Temer alimentarão a esquerda brasileira e ela voltará ao
tista político, professor universitário e político brasileiro. Entretanto, a Constituição de poder, disponível em http://bit.ly/2bLPiHK. Durante o go-
Foi o 34º presidente do Brasil, por dois mandatos con- verno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a
secutivos, entre 1995 e 2003. Conhecido como FHC, ga- 1988 está muito longe de ser o prin- chefia do Ministério de Minas e Energia e posteriormente
nhou notoriedade como ministro da Fazenda (1993-1994) cipal fator dessa crise entre nós. É da Casa Civil. (Nota da IHU On-Line)
com a instauração do Plano Real para combate à inflação. 12 A entrevista está disponível em http://bit.ly/2GY6vRi.
(Nota da IHU On-Line) verdade que, se por um lado, ela (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

minhas colocações, um jovem ma- uma pedalada constitucional. As- institutos participativos, devem ter
nifestante me interpelou dizendo: sim como os abusos de poder e as isso como referência.
“então se nos perguntarem o que denegações de garantias individu-
estamos fazendo, podemos dizer ais, perpetrados pelos torquemadas
que estamos lutando pelo art. 3º
com as armas do art. 5º da Consti-
de Curitiba e além, são pedaladas
constitucionais que abalam nosso
“A partir de
tuição?” Ora, o art. 3º consagra os
chamados “objetivos fundamentais
sistema de direitos fundamentais.
E o que faz a corte incumbida de ser
1995, temos
da República”, entre os quais “cons-
truir uma sociedade livre, justa e so-
a guardiã da Constituição? Pedala
também, e reescreve a Lei Maior,
vivido uma
lidária”, “erradicar a pobreza e re- usurpando o poder constituinte. espécie de
duzir as desigualdades”, “promover
o bem de todos sem discriminação”
Porém, a rigor, os caídos com o
impeachment e a Lava Jato foram
“terceiro turno
permanente”,
de qualquer natureza etc. E o art.
os primeiros a pedalar, na tentativa
5º consagra os direitos e garantias
de repressão a Junho: pedalaram na
individuais e coletivos, para o que
ali interessava os relativos às liber-
criação da lei das organizações cri-
minosas, que permitiu as delações
com as
dades de ação, expressão, reunião,
manifestação etc.
premiadas (mas, apesar do terror de
Estado, nenhum manifestante de-
reformas
A denúncia do extermínio e da latou ninguém, registre-se!); peda- constitucionais
violência policial, da liquidação laram com as buscas e apreensões,
dos bens públicos, das discrimi- conduções coercitivas e prisões, to- conservadoras”
nações, da denegação de direitos das arbitrárias, de manifestantes; e
individuais e sociais aos pobres, a última pedalada foi a lei “antiter-
o desejo de maior participação e rorismo”, proposta pela presidente
IHU On-Line – Que balanço e
autonomia, tudo aquilo que emer- caída, e por ela mesma sancionada
projeções o senhor faz da Cons-
20 giu nas ruas e foi sintetizado na dois meses antes de ser deposta.
tituição de 88, 30 anos depois,
belíssima expressão “por uma vida Para quê? A Constituição não vai lá
tendo em perspectiva o ano
sem catracas”, tudo isso revelava a muito bem das pernas mas, como
eleitoral e os cenários que se
proximidade entre os anseios da- qualquer lei, não é vara de condão,
apresentam até agora?
quela nova geração e um projeto é apenas um marco normativo. O
de democracia e de sociedade em que importa é o que fazemos dela, Adriano Pilatti – Por ter parti-
boa parte traduzido pelo texto de ou seja, sua efetividade. cipado apaixonadamente daquele
1988. Havia também um forte processo, aos vinte e poucos anos
impulso para ir além do paradig- de idade e numa bem modesta
IHU On-Line – Quais os desa-
ma da Constituição Cidadã, com a posição de assessor parlamentar,
fios para fazer o país avançar
luta por novos direitos. Hoje, esta- mas com a liberdade de cidadão e
na perspectiva da construção
mos na defensiva: a repressão e a a atenção de pesquisador, talvez
de uma democracia plena?
desqualificação que esvaziaram as tenha ficado com uma espécie de
ruas em 2013-14 abriram caminho Adriano Pilatti – Em primeirís- sequela cognitiva (risos) que me
para a volta dos mortos-vivos, e o simo lugar, o desafio de fazer ces- faz ser simpático ao perfil geral do
reacionarismo tomou a dianteira. sar o horror da violência “holística” projeto generoso de sociedade deli-
Mas o marco continua sendo o de contra os pobres e negros, e tam- neado pela Constituição, especial-
1988, e o art. 3º continua sendo bém contra as chamadas minorias, mente no que se traduz nos seus
uma boa ideia. que se acirra no país. Dar um fim à chamados Princípios Fundamen-
matança. Em segundo lugar, por fim tais, aí incluídos os acima mencio-
ao esculacho que é a denegação dos nados “objetivos fundamentais da
IHU On-Line – O que os episó-
serviços públicos essenciais à vida República”, e no seu catálogo de
dios do impeachment de Dilma
e ao desenvolvimento pessoal, polí- Direitos Fundamentais, aí incluí-
Rousseff, Operação Lava Jato
tico e profissional dos pobres – das dos os direitos sociais. Ter teste-
e a crise política dos últimos
crianças pobres, dos jovens pobres, munhado o processo constituinte
anos revelam acerca de Consti-
das mulheres pobres, dos LGBTTs me permitiu ter a consciência do
tuição de 1988?
pobres, dos trabalhadores pobres. E quanto custou cada conquista e
Adriano Pilatti – Revelam a di- isso só se faz com mais democracia, avanço, a consciência de quão taca-
mensão dos desafios postos à sua com maior respeito aos direitos e nhos, egoístas, ferozes e obstinados
efetividade, à sua eficácia real. O às mobilizações autônomas dos “de são os “de cima”. E viver o que vi-
golpe parlamentar do impeachment baixo”. As reformas políticas for- vemos nos permite a todas e todos
foi a verdadeira e maior “pedalada”, mais, relativas à representação e aos percebermos com clareza o quanto

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as classes dominantes e dirigentes Drummond13, estou taciturno, mas ao IHU On-Line – Deseja acres-
odeiam o projeto de 1988. contrário dele não nutro grandes es- centar algo?
peranças. “Está tudo dominado”, e o
A Constituição está em franga- Adriano Pilatti – Um nome, que
momento é de resistir ao regressismo.
lhos, é uma garrucha jurídica na era é também um símbolo, uma dívida,
dos mísseis, mas é uma ferramenta um nó na garganta, um rumo: Ma-
que mais serve às lutas por direitos rielle Franco. E todas e todos que
do que desserve. É, repito, o menor 13 Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): poeta esse nome representa. E repetir:
dos nossos problemas. Quanto ao brasileiro, nascido em Minas Gerais. Além de poesia, nossa primeira e inadiável tarefa é
produziu livros infantis, contos e crônicas. (Nota da
processo eleitoral já em curso, como IHU On-Line) acabar com a matança. ■

Leia mais
- O julgamento e os impactos políticos da condenação do ex-presidente Lula. Algumas
leituras. Conjunto de entrevistas publicado nas Notícias do Dia de 25-1-2018, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2q4SeIZ.
- A tragédia do Brasil hoje: só Lula e o neopentecostalismo falam à grande massa dos
pobres. Entrevista especial com Adriano Pilatti, publicada nas Notícias do Dia de 26-10-
2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2GY7aCg.
- O momento político atual é de desilusão para os iludidos. Entrevista especial com
Adriano Pilatti, publicada nas Notícias do Dia de 26-10-2016, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2qae4dd.
- Expansão do medo e o aumento dos mecanismos de controle e vigilância por parte
do Estado. Entrevista especial com Adriano Pilatti, publicada nas Notícias do Dia de 15-10-
2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2iso4OS.
21

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

A emergência de um novo
constitucionalismo para além
do Estado Moderno
José Luiz Quadros de Magalhães desafia a pensar
noutra perspectiva constitucional a partir da
experiência de países da América Latina
Vitor Necchi | Edição: João Vitor Santos

Q uem pensa que democracia e


igualdade é um binômio que já
nasce de forma indissociável,
pode incorrer num erro conceitual. O
que está aí, essa teoria que está aí, o
direito que está aí, não se sustentam”,
pontua. Mas que novo constituciona-
lismo é esse? Para ele, “é um diálogo
alerta é do jurista e professor José Luiz aberto e fundamental com outras pers-
Quadros de Magalhães. “A Constitui- pectivas e não apenas as perspectivas
ção, o constitucionalismo, não nasceu antropocêntricas”. É “uma perspectiva
democrático. Ele nasceu liberal e o li- que tem um diálogo complexo com te-
beralismo protege as decisões individu- orias ecocêntricas, biocêntricas, anima-
ais”, alerta. Segundo ele, é com o passar locêntricas, como deep ecology”, que,
dos tempos e ascensão de uma nova para o professor, se aproxima muito da
22 concepção das constituições equatoria-
burguesia que vai se tecendo uma ideia
de igualdade. Entretanto, esclarece que na e cubana.
“esse constitucionalismo burguês nasce José Luiz Quadros de Magalhães
para trazer segurança, previsibilidade, é graduado em Direito pela Universida-
estabilidade. A finalidade da Consti- de Federal de Minas Gerais - UFMG e
tuição é dar segurança, nunca foi dar em Língua e Literatura Francesa pela
democracia”. É com essa perspectiva Universidade Nancy II; possui mestra-
que o professor defende que não basta do e doutorado em Direito pela UFMG.
uma Constituição, um arcabouço legal Atualmente é professor na Pontifícia
bem-apanhado para assegurar a demo- Universidade Católica de Minas Gerais
cracia plena. “É necessário que se tenha - PUC Minas, na UFMG e na Universi-
uma cultura constitucional, é neces- dade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro. É
sário que exista uma sociedade que se presidente nacional da Rede pelo Cons-
mobilize”, acrescenta. titucionalismo Democrático Latino-A-
mericano e presidente da Red Inter-
E Magalhães vai além. Na entrevista
nacional para un Constitucionalismo
concedida por telefone à IHU On-Li-
Democrático en Latinoamerica. Entre
ne, destaca que esse modelo está es-
suas publicações mais recentes, desta-
gotado e que só será possível atingir a
camos Teorias da Argumentação Jurí-
democracia plena quando se abando-
dica e Estado Democrático de Direito
nar a velha matriz Moderna. “O novo
(Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017) e
constitucionalismo se apresenta como
Rompimento democrático no Brasil
uma das alternativas democráticas im-
(Belo Horizonte: D’Plácido, 2017).
portantíssimas para a construção de
uma nova teoria. Porque esse mundo Confira a entrevista.

IHU On-Line – A Constituição José Luiz Quadros de Maga- promulgação da Constituição, mui-
Brasileira preconiza que tipo lhães – Essa foi uma discussão tos livros foram publicados e se foi
de Estado e de democracia? muito forte em 1988. Logo depois da construindo uma teoria de que nossa

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“A Constituição, o
constitucionalismo, não nasceu
democrático. Ele nasceu
liberal e o liberalismo protege
as decisões individuais”

Constituição seria um Estado Demo- priedade. Ou seja, um estado que José Luiz Quadros de Maga-
crático de Direito. Essa classificação, seria transitório para se alcançar lhães – Isso é fundamental para
em geral, eu não adotei. Trabalho uma sociedade comunista. compreensão da teoria da consti-
com três conceitos básicos e uma ti- tuição moderna, dentro da lógica
pologia do Estado, ou, como alguns Estado Social Democrático da democracia representativa. É
falam, paradigmas de Estado. de Direito importante que se diga que essa te-
oria é construída para a democracia
Segundo essa tipologia, teríamos o A Constituição brasileira, dentro representativa. Quando a gente fala
Estado Liberal. No Brasil as Consti- dessa perspectiva, é uma constitui- em outras formas – inclusive a que
tuições de 1824 e 1891 são constitui- ção que estabelece um Estado Social não mencionei anteriormente, a de-
ções liberais que são marcadas pela e Democrático de Direito. Embora mocracia consensual, há experiên-
proteção e declaração de direitos a referência expresse em formas de cias fascinantes que acontecem hoje
individuais; um abstencionismo es- funcionamento da nossa democra- na Bolívia e no Equador – essa teo-
tatal e a inexistência de direitos so- cia representativa, a nossa Consti- ria já não se aplica. Mas como ainda 23
ciais, direitos trabalhistas, à saúde e tuição não elimina nenhuma forma temos na esmagadora maioria dos
educação pública etc. Assim, toma- de democracia além da democracia estados experiências que se limitam
se como uma regra básica econômi- representativa. Nossa Constituição em crise da democracia representa-
ca de não intervenção do Estado na respeita e incentiva outras formas tiva, essa relação entre democracia
economia, não existindo capítulos que podem aperfeiçoar a democra- e constituição é muito importante.
na ordem econômica que são mar- cia representativa, como a demo- Por isso é, também, importante res-
cantes nas constituições sociais e au- cracia participativa, a democracia gatar a história.
sentes nas constituições liberais. deliberativa, a democracia semidi-
reta, formas de democracia direta, A Constituição, o constituciona-
Além disso, uma classificação que lismo, não nasceu democrático. Ele
democracias plebiscitárias e outras
normalmente não se adota – e acho nasceu liberal e o liberalismo pro-
formas que podemos encontrar pelo
isso problemático, porque na ciên- tege as decisões individuais. Logo,
mundo afora. Inclusive, experiências
cia política já podemos trabalhar é obviamente incompatível com a
muito interessantes que retomam
isso com maior clareza – são as lógica de uma democracia majori-
experiências do passado, como, por
constituições socialistas. É a consti- tária, onde prevalece a vontade do
exemplo, o sorteio e outras formas
tuição da União Soviética, os esta- coletivo majoritário sobre a vontade
democráticas, como um livro muito
dos socialistas pós-segunda guerra do coletivo minoritário e, logo, sobre
interessante que trata desse tema,
mundial, a constituição cubana, que a vontade do indivíduo. As constitui-
do Yves Sintomer1, que vai trazer
vão marcar um outro paradigma ções liberais representam, e por isso
o sorteio e outras experiências de
que não se confunde com o estado é importante a gente partir do pac-
formas democráticas hoje reexpe-
social e a social-democracia. Tería- to do qual surge o Estado Moderno,
rimentadas na contemporaneidade
mos, então, o estado liberal, o esta- que é o pacto entre o rei, a nobreza e
nesse momento de crise da demo-
do social e democrático de direito, a burguesia contra a insurreição dos
cracia representativa.
que marca um capitalismo social ou servos. Com o surgimento do Esta-
a ideia de social-democracia dentro do Moderno, o absolutismo, esses
da Ciência Política. E, ainda, um es- servos se transformam em súditos e
IHU On-Line – Qual a relação
tado socialista, que marca por uma esse pacto entre nobreza, burguesia
entre democracia e constituição?
ênfase nos direitos sociais e econô- e rei é justamente um pacto de pro-
micos, uma limitação transitória 1 O livro a que o professor se refere é Todo o poder ao teção da propriedade, os burgos, e
aos direitos individuais, um outro povo - júri de cidadãos, sorteio e democracia participativa a propriedade nos campos, que são
(Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010), de Yves Sintomer.
tratamento dado ao direito de pro- (Nota da IHU On-Line) dos nobres.

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

Com a formação do constituciona- violentas, que é justamente a ideia IHU On-Line – A Constituição
lismo liberal esse pacto se rompe ou de que a Constituição deve garantir é determinante para garantir o
então é reformulado em muitos esta- um mínimo de direitos fundamen- respeito aos direitos sociais e
dos, onde os burgueses, agora com o tais. É como um núcleo duro que é humanos?
poder econômico, visam o poder po- inalcançável, que não pode ser mo-
José Luiz Quadros de Maga-
lítico. Ou afastam o rei ou negociam dificado por nenhuma maioria. Esse
lhães – Determinante para garantir
com o rei e com a nobreza. Muitas núcleo duro inicialmente são os di-
o respeito dos direitos sociais e hu-
monarquias parlamentares já foram reitos individuais e, com as cons-
manos é uma sociedade organizada,
monarquias constitucionais, inclusi- tituições sociais, esse núcleo duro
movimentos sociais organizados,
ve, ainda existem na Europa dentro pode e deve ser entendido como to- mobilizados, na luta por esses direi-
desse contexto. Esse constitucio- dos os direitos fundamentais, os di- tos. A nossa Constituição foi afastada
nalismo burguês nasce para trazer reitos individuais, sociais, políticos depois do golpe de 2016, as emendas
segurança, previsibilidade, estabili- e econômicos. O que significa que feitas à Constituição, especialmente
dade. A finalidade da Constituição é nenhuma maioria pode atingir e da reforma trabalhista e a proposta
dar segurança, nunca foi dar demo- retroceder o que diz respeito à pro- da reforma previdenciária, são cla-
cracia. E, no início, as constituições teção desses direitos. Acrescenta-se ramente inconstitucionais, como já
liberais e o estado constitucional aí que, no caso brasileiro, a nossa comentei. Algo grave vem acontecen-
rejeitam a democracia majoritária Constituição diz que a cláusula pé- do, que é o distanciamento de uma
justamente por isso. Ou seja, o ob- trea, o artigo 60, parágrafo IV, a de- parcela importante do Judiciário,
jetivo do constitucionalismo liberal mocracia, a separação de poderes, o dos juízes, da lei e da Constituição,
é a garantia da liberdade individual federalismo e os direitos individu- principalmente. Outro dia, ouvi de
e a democracia majoritária significa ais e suas garantias. um juiz trabalhista, no início de uma
preponderância da vontade da maio- Onde está escrito, obviamente, di- audiência, o aviso de que ele não fa-
ria sobre a vontade do coletivo mi- reitos individuais e suas garantias, zia controle de constitucionalidade,
noritário e, logo, sobre a vontade do entenda-se direitos individuais e as que aplicava integralmente a reforma
indivíduo. garantias socioeconômicas de efeti- trabalhista e que condenava o autor
24 vidade dos direitos individuais, uma em custas numa clara ameaça. Isso
Conquista de direitos de- vez que não há liberdade individual mostra um pequeno exemplo do que
mocráticos sem dignidade. E não há dignidade a gente tem visto espalhado por aí.
sem direitos sociais e econômicos. Juízes despreparados, arrogantes,
Num segundo momento, quando que se acham donos do Direito. Acho
então por causa dos movimentos Portanto, nossa Constituição esta-
belece como cláusula pétrea os di- que esses afastamentos têm várias
sociais, do movimento operário, da causas que podemos buscar, mas, em
formação dos sindicatos na época reitos individuais, sociais, políticos
e econômicos. Logo, acrescentamos, primeiro lugar, uma leitura equivo-
da Revolução Industrial no século cada do que seriam algumas teorias
XIX, ocorrem as insurreições, gre- então, que reforma previdenciária,
trabalhista e todo esse desmonte dos que foram importadas da Europa e
ves e movimentações sociais levam dos Estados Unidos de construção
à conquista de direitos democráti- direitos sociais que acontece no Bra-
sil e em outros Estados é absoluta- da norma aplicável de caso concreto,
cos. O voto que era censitário pas- dando essa força para o juiz.
sa agora a ser um voto igualitário mente inconstitucional.
masculino e, mais adiante, princi- Essa leitura equivocada junto com
palmente após a I Guerra Mundial, a ruptura da ordem constitucional
um voto com sufrágio universal em
alguns países. E aí é que surge o que
“Nossa com o golpe contra a presidenta
Dilma Rousseff e, com isso uma
podemos chamar de núcleo da teo- Constituição desmoralização do Direito, promo-
ve um afastamento da Constituição
ria da constituição moderna dentro
de uma lógica da democracia cons- respeita e e juízes que são conservadores tan-
to pelo processo de seleção, como
incentiva
titucional, onde a Constituição re-
cebe a lógica da democracia, prevê também pelos salários absurdos
que recebem e fazem com que essas
e protege direitos políticos, como o
direito a voto. outras formas pessoas originárias de classe média
se deslumbrem e vivam com outras
Mas é nesse momento também que
estabelece algo que é muito impor-
que podem referências de mundo, frequentem
outros lugares e, portanto, comple-
tante para a lógica da democracia e aperfeiçoar a tamente despreparadas para aplicar
principalmente para o momento em
democracia
a lei ou construir a norma justa apli-
que a gente vive no Brasil, onde so- cável ao caso concreto levando em
fremos um golpe de estado, o estado
de exceção, perseguições e mortes representativa” consideração a realidade e as nuan-
ces do caso.

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Efetivamente, a Constituição, en- ral - STF, tem, às vezes, uns posicio-


quanto texto, não vai garantir coi- namentos que são mais “avançados” “A finalidade da
sa nenhuma. A Constituição vai ser com relação à perspectiva de alguns
garantida dentro de uma constru- direitos de diversidade, mas ainda Constituição é
dar segurança,
ção de uma cultura constitucional, numa perspectiva individual. Mes-
de respeito à Constituição, de luta mo direitos coletivos de diversidade,
por direitos e necessária e urgente
reforma – não sei se poderia ser
como direitos dos povos quilombo-
las, dos povos indígenas, são muitas nunca foi dar
essa palavra – de nosso Poder Ju-
diciário. Além de outras reformas
vezes postos de uma maneira equi-
vocada e de forma individual. democracia”
que se fazem necessárias, como
No passado, podemos ter visto
a extinção da polícia militar, um
que, sem dúvida, a Constituição de
sistema de segurança inteligente IHU On-Line – Cada vez mais
88, dentro de um estado democráti-
como a formação e educação ade- se intensifica a percepção acer-
quada de nossas forças armadas, co e constitucional que estava sen-
ca da fragilidade da democracia
como a reforma da mídia, criação do construído, conseguiu garantir
brasileira. Uma constituição, e
de uma mídia democrática. Muitas mais direitos individuais. Mas isso,
em particular a de 1988, é sufi-
são as pautas para que a gente pos- durante um período, veio justa-
ciente para a consolidação de-
sa ter efetivamente uma sociedade mente do Poder Executivo, con-
mocrática?
livre e um estado constitucional de quista de direitos sociais, conquis-
direito. tas também importantes que foram José Luiz Quadros de Maga-
reconhecidas para alguma parte do lhães – Não. Nenhuma constitui-
Poder Judiciário. Entretanto, isso ção é suficiente para a consolidação
IHU On-Line – Que mecanis- sofre um retrocesso brutal após o democrática. Já que temos essa per-
mos processuais permitem a golpe de 2016, com a participação gunta, que é recorrente, com relação
concretização dos direitos fun- de parcelas do Poder Judiciário, aos direitos sociais e com relação à
damentais? principalmente com a participação democracia, é importante lembrar
determinante do STF, que, talvez que constituição sem constituciona- 25
José Luiz Quadros de Maga- para não entrar mal para a história, lismo não existe. Não basta um texto
lhães – Não sei. Acho que depende começa a trazer algumas decisões constitucional. É necessário que se
de qual juiz, de qual tribunal... Nós que são importantes com relação tenha uma cultura constitucional, é
vimos aí a condenação em primeira e ao direito à diversidade, tanto indi- necessário que exista uma socieda-
segunda instância e a negação do ha- vidual como de interesse coletivo, de que se mobilize, que se preocupe,
beas corpus do presidente Lula, que como o direito à adversidade como que participe, que se organize e isso
mostram que mecanismos processu- direito individual. vamos construindo no nosso país.
ais, o texto legal ou processual, não
vai garantir nada. O que vai garan- Mas isso apaga a triste memória de Nós temos movimentos sociais
tir, nesse momento, a reconquista ou um STF omisso com relação ao golpe importantíssimos, temos uma mo-
reconstrução de um estado de direi- e de parte do Judiciário. Claro, não bilização crescente, mas, ao mesmo
to constitucional e principalmente podemos generalizar, mas talvez seja tempo, a tarefa é difícil, porque te-
democrático vai ser a mobilização uma pequena parte que esteja cala- mos, talvez, uma das piores mídias
social, a luta pela construção de um da, mas uma pequena parte baru- do mundo, que é a mídia brasileira,
outro estado de direito, uma outra lhenta do Judiciário e do Ministério Rede Globo, Band, Record, Folha
constituição, uma outra sociedade Público, que atuou na continuidade de São Paulo, Estado de São Paulo,
urgente e necessária. e aprofundamento desse Golpe de revistas Veja e IstoÉ. É uma grande
Estado e a destituição de nosso país. mídia que mente, que encobre, dis-
Temos aí a entrega do petróleo do torce descaradamente, utilizando
IHU On-Line – Em que áreas a pré-sal para transnacionais e a dis- mecanismos sofisticados de mani-
Constituição conseguiu garan- tribuição da Petrobras, a destruição pulação. E se somam a isso outros
tir direitos a grupos historica- da economia interna, a destruição ingredientes, como, por exemplo,
mente vitimizados? dos direitos sociais e a gente vê pou- o fundamentalismo religioso, que
ca insistência institucional. provoca também uma alienação. É
José Luiz Quadros de Maga-
lhães – Vimos, recentemente, algu- Felizmente, há uma crescente uma luta complexa, difícil. Para que
mas decisões interessantes, como a grande resistência à defesa pessoal as instituições funcionem, precisa-
decisão que reconhece a constitucio- do que resta do Brasil. Vamos re- mos de pessoas que vivam uma cul-
nalidade do decreto sobre quilombo- construir isso e vamos construir um tura constitucional, que vivam uma
las e outras decisões que envolvem outro estado democrático, radical- cultura democrática. Porém, ainda
minorias. Essa corte constitucional mente democrático e constitucional é muito forte no nosso país a pre-
nossa, esse Supremo Tribunal Fede- de direito no nosso país. sença, nessas instituições, de pes-

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TEMA DE CAPA

soas que têm essa perspectiva co- tucionalismo com movimentos ver com isso, mas como construção
lonial, uma mente colonizada, que sociais que têm sido capazes de de consensos provisórios onde to-
são antinacionais, machistas, que resistir e implementar esse cons- dos vão abrir mão de alguma coisa
são homofóbicos, que são racistas, titucionalismo plurinacional são para que todos possam ganhar al-
que não entendem o processo de co- as constituições da Bolívia e do guma coisa. É uma outra cultura,
lonização, que admiram o exterior, Equador. Mas estão sendo ataca- outra perspectiva, é uma outra pos-
que são antinacionais. Enfim, com das e, hoje, o ataque ao constitu- tura mental em relação ao diálogo,
isso tudo não há constituição que cionalismo plurinacional no Equa- à democracia.
resista dentro de uma elite que tem dor é muito sério, grave, e estamos
Além disso, o novo constituciona-
se mostrado oca. torcendo e lutando junto com o
lismo democrático latino-america-
povo equatoriano na resistência e
no vai trazer uma outra perspecti-
na defesa dessa constituição plu-
va não antropocêntrica do Direito,
“Reforma pre- rinacional que foi uma conquista
importantíssima.
uma perspectiva que tem um diá-

videnciária, tra-
logo complexo com teorias ecocên-
tricas, biocêntricas, animalocêntri-

balhista e todo IHU On-Line – O que o senhor


entende por o novo constitucio-
cas, como deep ecology, tudo isso.
Ou seja, a postura do constitucio-

esse desmonte nalismo democrático da América


nalismo latino-americano tem sido
mais ecocêntrica. Mas, compreen-
Latina? E quais são os seus pon-
dos direitos so- tos de ruptura com o constitucio-
der o conceito desse sistema é um
diálogo aberto e fundamental com
nalismo moderno europeu?
ciais que acon- José Luiz Quadros de Ma-
outras perspectivas e não apenas
com as perspectivas antropocêntri-
tece no Brasil galhães – Um novo constitucio-
nalismo democrático na América
cas. Além disso, é uma outra con-
cepção de história não linear, mas
e em outros Latina dialoga diretamente com o a ideia de complementaridade é
26 pensamento decolonial. Nós só va- fundamental para entender o novo
Estados é abso- mos compreender o novo constitu- constitucionalismo.
cionalismo democrático latino-a-
lutamente in- mericano se dialogarmos com esse Resistências preconceituo-
sas
constitucional”
pensamento. E o que o pensamento
decolonial nos traz de crítica em re-
lação à modernidade? Um primeiro No que diz respeito ao novo cons-
aspecto é entender o novo constitu- titucionalismo, infelizmente, a
IHU On-Line – No conjunto de maior parte dos constitucionalistas
cionalismo como um constituciona-
países da América Latina, onde se posicionam com uma postura
lismo não moderno, ou de potencial
a Constituição trata com dig- bastante prepotente e preconcei-
de ruptura com a modernidade. O
nidade e justiça as populações tuosa. É como aquilo: ‘não li, não
constitucionalismo moderno é uni-
indígenas? gostei e tenho raiva de quem leu’.
formizador, é reativo, reacionário,
Tem alguns que leram, mas que
José Luiz Quadros de Maga- reage às mudanças e estabelece
ainda não conseguiram enxergar a
lhães – Diria que a nossa Constitui- limites para as mudanças. O cons-
potencialidade de ruptura e, então,
ção também trata, mas temos hoje titucionalismo democrático vai se
enxergam mais do mesmo. E exis-
constituições importantes como a fundar em outros princípios, são
te mais do mesmo no novo cons-
do Equador de 2008 e da Bolívia de outras perspectivas. É uma consti-
titucionalismo, está ali separação
tuição a favor da democracia, não
2009 que trazem o estado plurinacio- de poderes, questão de direitos,
aquela velha e importante tensão,
nal e que respeitam a diversidade. E tudo aquilo que o constituciona-
que mencionei antes, entre consti-
tanto a diversidade como direito cole- lismo europeu moderno tem. Mas
tuição e democracia, mas se enten-
tivo como também vêm se mostrando o importante é enxergar aqueles
dermos o novo constitucionalismo
importantes no respeito ao direito da elementos presentes que são de
como a constituição processual,
diversidade como direito individual, ruptura e são fundamentais para
uma constituição que atua para a
lembrando que hoje os dois parla- a gente construir uma nova teoria
democracia, para as transforma-
mentos com maiores participações de da constituição, uma outra teoria
ções efetivamente democráticas e
mulheres na América Latina são, em do Estado ou talvez até uma outra
não uma democracia que é apenas
primeiro lugar, a Bolívia e, depois, o teoria sem estado.
majoritária, mas a busca por uma
de Cuba, recém-eleito.
democracia consensual. E não en- E, aí, é importante lembrar nesse
As constituições talvez mais tendendo consenso como a vitória momento que temos uma rede im-
avançadas junto com o consti- do melhor argumento, não tem a portante com grandes pensadores,

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professores, filósofos, constitucio- José Luiz Quadros de Ma- competitiva que vem do capitalis-
nalistas do Brasil inteiro e de toda galhães – Em parte já destaquei mo que se esgota, mas esse pós-ca-
América Latina que vêm pensando isso, mas é uma potencialidade de pitalismo pode ser muito pior, com
no novo constitucionalismo e cons- ruptura, de construir uma outra so- uma massa de pessoas que não ne-
truindo teorias com várias publi- ciedade, construir um outro direito, cessitam nem ser exploradas, não
cações em todo o Brasil e em toda uma ruptura com 500 anos de Mo- precisa nem da mais valia com a
América Latina que integram a rede dernidade. Modernidade que marca tecnologia e inteligência artificial.
para um constitucionalismo demo- a hegemonia antropocêntrica de um Por outro lado, toda a diversidade,
crático latino-americano. homem branco e europeu e de um toda a conquista de direitos per-
direito que se esgotou diante dos mite a gente imaginar e lutar pela
desafios que se apresentam atual- construção de uma outra socie-
“Efetivamente, mente. O novo constitucionalismo
se apresenta como uma das alterna-
dade onde a diversidade não seja

a Constituição, tivas democráticas importantíssi-


fragmentada, mas onde todo esse
colorido dessa imensa diversida-
mas para a construção de uma nova
enquanto texto, teoria. Porque esse mundo que está
de que se revela no final do século
XX e nesse século XXI possam nos
não vai garantir aí, essa teoria que está aí, o direito
que está aí, não se sustentam. Diria,
permitir construir um magnífico
mosaico. E, para isso, precisamos
coisa nenhuma” como muitos outros pensadores,
que não se sustentam nos próximos
lutar, perder o medo de se con-
frontar com o absolutamente novo
dez anos. e com o momento de ruptura, que
IHU On-Line – Ao analisar as Um outro mundo está aí se reve- é um momento de ruptura com a
constituições da Bolívia e do lando e o que ele vai ser depende de Modernidade. Essa Modernidade
Equador, o senhor aponta a nós, de nossa participação. Pode não se sustenta mais, o capitalis-
potencialidade desses textos. ser bem pior se continuarmos com mo não se sustenta mais, assim
Quais são? essa matriz individualista, egoísta, como esse direito moderno.
27

Leia mais
- O mal-estar e o esgotamento de propostas. Entrevista especial com José Luiz Quadros,
publicada nas Notícias do Dia de 13-4-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2ImWPNm.

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TEMA DE CAPA

Constituição está velha,


descaracterizada, mutilada
e comprometida com
visão retrógrada
Para Marcello Lavenère Machado, o texto aprovado
em 1988 tinha a cara do Brasil, com a pluralidade
de opiniões e os conflitos existentes na sociedade
Vitor Necchi

O
advogado Marcello Lavenère conservadoras”. A corroborar essa afir-
Machado, juntamente com o mação está o fato de que “as emendas
jornalista Barbosa Lima Sobri- nela introduzidas ao longo desses 30
nho, teve atuação marcante em um dos anos têm a nítida orientação de retirar-
principais fatos da história brasileira. A lhe os avanços então conquistados”.
dupla, representando respectivamen-
Instigado a pensar sobre a construção
te a Ordem dos Advogados do Brasil e
da democracia e o fortalecimento da ci-
a Associação Brasileira de Imprensa,
dadania, Lavenère acredita que as der-
assinou o pedido de impeachment do
28 então presidente Fernando Collor de
rotas mais marcantes ocorridas durante
a construção do texto constitucional se
Mello, em 1992. Atento ao mundo da
referem à área do direito de propriedade
política e das leis, Lavenère analisa a
– pois “não foi possível subordiná-la de
Carta Magna 30 anos depois de sua pro-
modo claro e direto à sua função social”
mulgação. “A hoje já velha Constituição
–, à proteção das empresas nacionais
está descaracterizada de seu sentido
em concorrências com estrangeiras, ao
original, transformada perversamente
em um texto mutilado e comprometido capítulo da reforma agrária – “não se
com uma visão retrógrada da socieda- conseguiram os avanços necessários es-
de, o que se obteve com uma centena de pecialmente na desapropriação facilita-
emendas que lhe foram impostas, prati- dora da reforma” e ao capítulo da comu-
camente todas contrárias aos interesses nicação social, que suscitou turbulências
populares”, lamenta. graves e “resultou um texto tímido, po-
rém tão visado que até hoje é o único que
Lavenère recorda que “havia um gran-
não foi possível regulamentar”.
de sentimento na cidadania de que o
país necessitava de uma nova Cons- Marcello Lavenère Machado é
tituição, votada, por uma Assembleia formado em Direito pela Faculdade do
Nacional Constituinte originária, livre Recife e em Filosofia pela Universidade
e soberana, com reforço das expressões de Alagoas. Foi presidente do Instituto
ampla, geral e irrestrita”. No seu enten- dos Advogados de Alagoas e secretário
dimento, o texto final foi o “resultado do Conselho Federal da Ordem dos Ad-
do paralelogramo de forças existentes vogados do Brasil - OAB. Foi eleito pre-
no momento”, tendo “a cara do Brasil, sidente da OAB Nacional para o triênio
com a pluralidade de opiniões e os con- 1991-1993. Neste período, em 1992, foi
flitos existentes na sociedade”. autor do pedido de impeachment do
Em entrevista concedida por e-mail à então presidente Fernando Collor de
IHU On-Line, o advogado avalia que Mello, junto com Barbosa Lima Sobri-
os anos seguintes à promulgação “con- nho, então presidente da Associação
firmaram que a Carta de 88 atendia mais Brasileira de Imprensa - ABI.
às reivindicações progressistas do que às Confira a entrevista.

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“A Constituição de 88 era o
resultado do paralelogramo de
forças existentes no momento.
Tinha a cara do Brasil, com a
pluralidade de opiniões e os
conflitos existentes na sociedade”

IHU On-Line – Na campanha IHU On-Line – Em 1988, que locar nela tudo o que lhes interessava.
pela Constituinte, defendia-se análise o senhor fazia sobre o A Constituição de 88 era o resultado
que ela fosse ampla, geral e ir- texto final da primeira Consti- do paralelogramo de forças existentes
restrita. O que isso significava? tuição após o fim da ditadura no momento. Tinha a cara do Brasil,
instaurada em 1964? com a pluralidade de opiniões e os
Marcello Lavenère Machado
– Havia um grande sentimento na Marcello Lavenère Machado – conflitos existentes na sociedade. Os
cidadania de que o país necessitava Dizíamos à época que a nova Consti- anos seguintes à promulgação con-
de uma nova Constituição, votada, tuição não era a constituição da Fiesp firmaram que a Carta de 88 atendia
por uma Assembleia Nacional Cons- [Federação das Indústrias do Estado mais às reivindicações progressistas 29
tituinte originária, livre e soberana, de São Paulo] nem a constituição do do que às conservadoras, evidência a
com reforço das expressões ampla, MST [Movimento dos Trabalhadores que se chega, quando se observa que
geral e irrestrita. Originária, isto Rurais Sem Terra], para significar que as emendas nela introduzidas ao lon-
é, seus membros exerciam o poder ela era o resultado de todas as forças go desses 30 anos têm a nítida orien-
constituinte originário, e não poder sociais que participaram de sua elabo- tação de retirar-lhe os avanços então
constituinte derivado, como é o po- ração. Para Sarney1, então presidente conquistados.
der de emendar uma constituição da República, ela tornaria o país in-
já existente. Como consequência, governável. Para Ulysses Guimarães2,
IHU On-Line – Trinta anos
os constituintes não poderiam ser que presidiu a Assembleia Nacional
depois, sua leitura sobre o re-
oriundos se não de eleições especí- Constituinte, era a Constituição Cida-
dã. Dizíamos que ela continha gran- sultado obtido permanece a
ficas, com candidaturas específicas
des avanços, apesar de não terem sido mesma?
para exercer o mandato constituinte
e somente para isto, não permane- possíveis todos os que as forças popu- Marcello Lavenère Machado –
cendo o constituinte como deputado lares queriam. Mas também as forças A hoje já velha Constituição está
ou senador após a promulgação da conservadoras, representadas pelo
Carta. Também significava que ela Centrão3, não tinham conseguido co- e direita criado no final do primeiro ano da Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988 para dar apoio ao
não estaria limitada aos termos de presidente da República, José Sarney. Foi responsável pela
1 José Sarney [José Sarney de Araújo Costa] (1930): reviravolta no processo de elaboração constitucional ao
eventual convocação. Livre, isto é, político nascido no Maranhão, 31º presidente do Brasil conseguir alterar, por meio de um projeto de resolução, as
com possibilidades de discutir qual- (1985-1990). Foi governador do Maranhão e presidente normas regimentais que organizavam os trabalhos consti-
do Senado Federal por quatro vezes. No dia 15 de janei- tuintes. Era comandado por lideranças conservadoras do
quer assunto. Soberana, isto é, sem ro de 1985, o Colégio Eleitoral elegeu a chapa Tancredo Partido da Frente Liberal (PFL), do Partido do Movimento
Neves/José Sarney para a presidência da República, encer- Democrático Brasileiro (PMDB), do Partido Democráti-
que houvesse nenhum outro poder rando o ciclo militar instaurado com o golpe de 1964. Na co Social (PDS) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
que a censurasse, nem o Supremo semana da posse, Tancredo apresentou quadro inflama- Contava também com parlamentares do Partido Liberal
tório com dores abdominais, diagnosticado como apen- (PL) e do Partido Democrata Cristão (PDC). Ao cindir o
Tribunal Federal, nem o Congresso dicite. Ele descartou qualquer internação ou intervenção majoritário PMDB, sacramentou o fim da Aliança Demo-
Nacional remanescente do antigo re- cirúrgica antes da posse. Na noite de 14 de março de 1985, crática entre o PMDB e o PFL, até então fiadora formal
o agravamento do quadro clínico exigiu uma cirurgia de da transição democrática e núcleo de sustentação da
gime. O que ela aprovasse não seria urgência. Sarney tomou posse como vice-presidente, as- Nova República. Ao se apresentar como base confiável de
sumindo a presidência da República interinamente em 15 apoio ao governo dentro da Constituinte, assegurou ao
submetido a nenhuma revisão, apro- de março de 1985. Tancredo morreu em 21 de abril, e Sar- Palácio do Planalto a vitória nos principais temas de seu
vado estava. Portanto, eram essas ney assumiu oficialmente o cargo. (Nota da IHU On-Line). interesse: sistema de governo presidencialista e manda-
2 Ulysses Guimarães (1916-1992): político e advoga- to de cinco anos. O grupo perdeu força antes mesmo do
as três exigências dos movimentos do nascido em São Paulo. Foi presidente da Assembleia final da Constituinte. Diante do aumento da impopulari-
Constituinte que deu origem à Constituição Federal de dade do governo Sarney, causado pelo acirramento das
populares que se traduziram nas ex- 1988. Um dos grandes apoiadores da redemocratização crises social e econômica e pelo surgimento de denúncias
pressões reforçativas: ampla, geral e do Brasil, cuja campanha ficou conhecida como Diretas Já.
(Nota da IHU On-Line)
de corrupção, os principais líderes do Centrão procuraram
gradativamente dissociar sua imagem pública do Planalto.
irrestrita. 3 Centrão: grupo suprapartidário com perfil de centro (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

descaracterizada de seu sentido ori- rães exaltando a proximidade das IHU On-Line – Há necessidade
ginal, transformada perversamente disposições da Constituição com os de se reformular a atual Consti-
em um texto mutilado e comprome- interesses populares. Certamente tuição? E uma eventual reforma
tido com uma visão retrógrada da também pela forma aberta e transpa- na Constituição é arriscada?
sociedade, o que se obteve com uma rente dos trabalhos constituintes. Por
Marcello Lavenère Machado – A
centena de emendas que lhe foram outro lado, é cidadã a Carta de 1988
constatação feita sem divergências
impostas, praticamente todas con- na medida em que acolheu os direi-
é que o atual texto é profundamente
trárias aos interesses populares. As tos individuais e coletivos logo no
diferente daquele originariamente
últimas emendas, após o golpe de seu início, no artigo 5º, e os direitos
redigido. Temos hoje uma Constitui-
2016, aprofundaram de forma gra- trabalhistas em seguida, no artigo 7º.
ção que mais se afeiçoa a uma visão
ve seu desmonte e aniquilaram os Estas escolhas são suficientes a mos-
neoliberal, com todos os seus defei-
avanços de 88. Constituíram a pá de trar o viés cidadão da Carta Política.
tos, do que a constituição democrá-
cal, com que se completou o sepulta-
tica de 88 que era muito próxima
mento de uma Constituição Cidadã. IHU On-Line – Quais foram os de uma visão de estado de bem-es-
principais grupos e interesses tar social (welfare state). Há que se
Hoje o que dela resta é uma consti- que agiram nos bastidores da restaurar os princípios e as garantias
tuição retrógrada, representante aca- constituinte? E como impacta- sociais e populares de 88 e aprofun-
bada do pensamento neoliberal, que ram o texto final? dá-los. O caminho é que não se apre-
substitui os interesses da população Marcello Lavenère Machado – Par- senta de forma consensual: reformas
pelos interesses da banca, do merca- ticiparam dos trabalhos constituin- ou constituinte. Ainda prefiro o pri-
do. Como exemplo desta destruição tes uma pluralidade e uma diversi- meiro. Com a presente correlação de
basta citar a Emenda Nº 95, oriun- dade de convicções muito amplas. forças, não considero aconselhável
da da cognominada PEC do Fim do Havia a esquerda e a direita atuan- aos movimentos populares defender
Mundo4, que congelou os gastos com do, progressistas e conservadores a ideia de uma constituinte.
a área social por 20 anos, deixando nos debates, entidades de empre-
sem qualquer limite os gastos com as sários e entidades de trabalhadores IHU On-Line – E a reforma
30 operações financeiras. Tamanhas fo- defendendo seus pontos de vista. O política, tão lembrada e pedida,
ram as emendas à Constituição a lhe texto que resultou reflete bem este como fazê-la de maneira a não
descaracterizar seu próprio sentido amálgama de forças e interesses pre- ficar refém de políticos que, em
que nos últimos tempos se discute a sentes na sociedade brasileira da- seus sucessivos mandatos, le-
conveniência de uma nova constituin- quela época. Não predominaram os gislam para si?
te, que elabore uma carta livre destas extremos, prevalecendo uma visão
mutilações. Penso eu que não é con- centrista, democrática. Marcello Lavenère Machado – A
veniente tal solução pelo risco real de Coalizão pela Reforma Política De-
ainda mais se piorarem os institutos mocrática e Eleições Limpas que
constitucionais. Considero preferível IHU On-Line – Do ponto de atuou nos anos de 2014 e 2015, com-
em momento oportuno no futuro uma vista da construção da demo- posta por mais de cem entidades da
consulta popular em torno da rejei- cracia e do fortalecimento da sociedade civil, entre elas a CNBB
ção de determinadas emendas, espe- cidadania, quais as derrotas [Conferência Nacional dos Bispos
cialmente das últimas propostas pelo mais marcantes ocorridas du- do Brasil], a OAB [Ordem dos Ad-
governo ilegítimo que sucedeu a um rante a construção do texto vogados do Brasil], a Plataforma dos
governo eleito pela soberania popular. constitucional? Movimentos Sociais pela Reforma
Marcello Lavenère Machado – Na Política, o MCCE [Movimento de
área do direito de propriedade, não Combate à Corrupção Eleitoral], a
IHU On-Line – O que sustenta
foi possível subordiná-la de modo CUT [Central Única dos Trabalha-
o adjetivo “cidadã” atribuído à
claro e direto à sua função social. dores], a Contag [Confederação Na-
Constituição?
A proteção às empresas nacionais cional dos Trabalhadores na Agricul-
Marcello Lavenère Machado – Este em concorrências com estrangeiras tura] e a UNE [União Nacional dos
apelido foi dado por Ulysses Guima- também ficou a desejar. No capítu- Estudantes], apresentou à Câmara
lo da reforma agrária, não se con- Federal um projeto de lei de reforma
4 PEC 55: a Proposta de Emenda Constitucional - PEC 55, política. Entre os pontos principais,
de autoria do Executivo, quando o presidente Michel Te-
seguiram os avanços necessários
mer ainda estava na condição de interino, estabelece um especialmente na desapropriação estava a proibição de financiamento
limite para os gastos públicos e prevê o congelamento de
gastos públicos por 20 anos. Conforme especialistas no facilitadora da reforma. E o capítulo eleitoral por empresas, a manuten-
setor de saúde, pode resultar na redução de R$ 12 bilhões
em repasses para a área em dois anos. Para saber mais
da comunicação social suscitou tur- ção do voto proporcional – porém
sobre a PEC 241, acesse a entrevista com Grazielle David, bulências graves do que resultou um com lista pré-ordenada – em dois
intitulada “PEC 241/16: Uma afronta à saúde, aos direitos
sociais e à Constituição”, publicada nas Notícias do Dia texto tímido, porém tão visado que turnos, aumento da participação fe-
de 11-7-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, disponível em http://bit.ly/2aZEQgl. (Nota da IHU
até hoje é o único que não foi possí- minina e ampliação dos mecanismos
On-Line) vel regulamentar. de participação popular previstos no

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artigo 14 da Constituição. contra Fernando Collor de Mello5, se [Instituto Brasileiro de Análises


foi promovido por duas entidades Sociais e Econômicas], seus nomes
O primeiro era o mais importante e
respeitáveis da sociedade civil, a mais conhecidos.
foi conseguido mediante decisão do
OAB e a ABI – Associação Brasileira
Supremo Tribunal Federal aprecian- Neste impeachment, se apurou por
de Imprensa. Esta era presidida pelo
do uma Ação Direta de Inconstitu- meio de uma CPMI [Comissão Par-
jornalista Barbosa Lima Sobrinho6
cionalidade proposta pelo Conselho lamentar Mista de Inquérito] a prá-
e desfrutava de uma credibilidade
Federal da OAB. Hoje o financia- tica, pelo então presidente, de atos
mento empresarial eleitoral, que era extraordinária. Lideravam o Movi-
mento pela Ética na Política, aparti- concretos, e apurados de maneira
uma fonte de corrupção e desequilí- transparente, incompatíveis com o
brio dos pleitos, está banido no Bra- dário, formado por centenas de enti-
dades da sociedade civil, e que tinha decoro do cargo. O segundo, de natu-
sil. O voto proporcional foi mantido, reza partidária oposicionista, engen-
mas não em dois turnos. Porém con- nos saudosos dom Luciano Mendes
de Almeida7, então presidente da drado pelo PSDB, partido que pa-
seguimos evitar a aprovação do voto
CNBB, e no sociólogo Herbert de trocinou a petição de impeachment,
distrital, que seria mais um desastre
Souza8, o popular Betinho do Iba- admitido pelo deputado Eduardo
a prejudicar o país. Votou-se uma
Cunha9, então presidente da Câmara
pequena melhora na participação
feminina e ampliou-se, também de
5 Fernando Collor de Mello (1949): político, jornalista, Federal, num ostensivo e aberto ato
economista, empresário e escritor brasileiro, prefeito de
forma tímida, o que se prevê no ar- Maceió de 1979 a 1982, governador de Alagoas de 1987 de revanchismo político, sem que se
a 1989, deputado federal de 1982 a 1986, 32º presidente
tigo 14. do Brasil, de 1990 a 1992 e senador por Alagoas de 2007
apurasse nenhum ato indecoroso ou
até a atualidade. Foi o presidente mais jovem da história crime de qualquer natureza pratica-
do Brasil e o presidente eleito por voto direto do povo,
No conjunto da obra, pode-se após o regime militar (1964/1985). Seu governo foi mar- do pela presidenta Dilma Rousseff10,
considerar bem-sucedida aquela cado pela implementação do Plano Collor e a abertura
do mercado nacional às importações e pelo início de um
iniciativa das entidades. Todavia, programa nacional de desestatização. Seu Plano, que no cia de Reforma Agrária, além de elaborar estudos sobre a
início teve uma boa aceitação, acabou por aprofundar a estrutura social brasileira para a Comissão Econômica para
não é bastante. Novas conquistas recessão econômica, corroborada pela extinção, em 1990, a América Latina - Cepal, da ONU. Com o golpe militar
no momento não se vislumbram de mais de 920 mil postos de trabalho e uma inflação na de 1964, passou a atuar na resistência contra a ditadura,
casa dos 1200% ao ano; junto a isso, denúncias de corrup- dirigindo organizações de cunho democrático de combate
como possíveis, dada a enorme in- ção política envolvendo o tesoureiro de Collor, Paulo César ao regime. Foi exilado político de 1970 a 1979, ano em
capacidade do Poder Legislativo de Farias, feitas por Pedro Collor de Mello, irmão de Fernando
Collor, culminaram com um processo de impugnação de
que retornou ao país. Envolveu-se inteiramente nas lutas
sociais e políticas, sempre se propondo a ampliar a de-
incorporar reivindicações popula- mandato (impeachment). Atualmente, está entre os de- mocracia e a justiça social. Seu nome foi um dos símbolos 31
nunciados da Operação Lava Jato, que investiga esquema da campanha pela anistia. Em 1986, Betinho descobriu
res ou progressistas. Uma mentali- de corrupção envolvendo agentes políticos e empresários. ter contraído o vírus da aids em uma das transfusões de
dade retrógrada, interesseira e em (Nota da IHU On-Line) sangue a que era obrigado a se submeter periodicamente
6 Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000): devido à hemofilia. Em sua vida pública, esse fato repercu-
grande parte corrupta atualmente advogado, jornalista, ensaísta, historiador, professor e po- tiu na criação de movimentos de defesa dos direitos dos
lítico brasileiro nascido em Recife. Em 1992, quando era portadores do vírus. Junto com outros membros da socie-
domina tanto a Câmara Federal presidente da Associação Brasileira de Imprensa - ABI, foi dade civil, fundou e presidiu até a sua morte a Associação
como o Senado da República, não autor do pedido de impeachment do presidente Fernando Brasileira Interdisciplinar de Aids. Dois dos seus irmãos,
Collor de Mello, junto com Marcello Lavenère Machado, Henfil e Chico Mário, morreram em 1988 por consequ-
se podendo esperar nada que seja então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil - ência da mesma doença. Mesmo assim, não deixou de ser
OAB. (Nota da IHU On-Line) ativo até o final de sua vida, dizendo que a sua condição
um avanço democrático. A concep- 7 Dom Luciano Mendes de Almeida (1930-2006): padre de soropositivo o forçava a “comemorar a vida todas as
ção neoliberal de hegemonia do jesuíta nascido no Rio de Janeiro, arcebispo de Mariana manhãs”. Betinho morreu em 1997, já bastante debilitado
e ex-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do pela aids. Deixou dois filhos: Daniel, filho do seu primeiro
mercado e do rentismo comanda Brasil - CNBB. Na CNBB, foi secretário-geral no período casamento com Irles Carvalho, e Henrique, filho do segun-
de 1979 a 1987 e presidente de 1987 a 1995. Na Cúria do casamento com Maria Nakano, com quem viveu por 27
a maioria dos parlamentares que Romana, foi membro do Pontifício Conselho Justiça e Paz anos. (Nota da IHU On-Line)
assim não representam os eleito- (1992-2006) e membro da Comissão do Secretariado para 9 Eduardo Cunha (1958): economista, radialista e político
o Sínodo (1994-1999). Foi vice-presidente do Conselho brasileiro. É evangélico neopentecostal. Exerceu o cargo
res, porém seus financiadores. É de Episcopal Latino-Americano (1995-1998). Em 1997, foi de deputado federal entre fevereiro de 2003 e setembro
se aguardar que as próximas elei- eleito delegado da CNBB à Assembleia Especial do Sínodo de 2016, quando foi cassado pelo plenário da Câmara dos
dos Bispos para a América por eleição da assembleia da Deputados. Está sendo investigado pela Operação Lava
ções, que serão as primeiras par- CNBB e confirmado pelo papa João Paulo II (1997). Figura Jato e foi denunciado pela Procuradoria-Geral da Repú-
de destaque do episcopado brasileiro, atuou na defesa blica ao Supremo Tribunal Federal. Acusado de mentir na
lamentares sem dinheiro do poder dos direitos humanos e no serviço aos pobres. Dele, a IHU CPI da Petrobras, teve contra si aberto processo de cas-
econômico, possam criar um clima On-Line publicou uma entrevista na 24ª edição (disponí-
vel em http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/24), de
sação por quebra de decoro parlamentar. Em 3 de março
de 2016, o STF acolheu por dez votos a zero, em unani-
menos autoritário e elitista, e quem 1-7-2002, por ocasião de sua participação no Simpósio midade, a denúncia do procurador-geral da República,
Nacional Bem Comum e Solidariedade, promovido pelo Rodrigo Janot, contra Eduardo Cunha por corrupção pas-
sabe assim aprofundamos os pon- IHU em junho de 2002, um artigo na 85ª edição (dispo- siva e lavagem de dinheiro, tornando-o réu neste tribunal.
tos necessários a uma reforma po- nível em http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/85), de Em 5 de maio de 2016, o plenário do STF unanimemente
24-11-2003, e outro artigo na 95ª edição (disponível em manteve a decisão do então ministro Teori Zavascki, que
lítica democrática. http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/95), de 5-4-2004. determinou o afastamento de Cunha de seu mandato de
Por ocasião de seu falecimento, em 27-8-2006, o site do deputado federal e consequentemente do cargo de presi-
IHU (www.unisinos.br/ihu) ofereceu ampla repercussão so- dente da Câmara dos Deputados. (Nota da IHU On-Line)
bre sua vida e trajetória. Em 3-9-2007, o site publicou uma 10 Dilma Rousseff (1947): economista e política brasileira,
IHU On-Line – O impeach- entrevista especial com dom Pedro Luiz Stringhini, intitula- filiada ao Partido dos Trabalhadores - PT, eleita duas vezes
da “O leilão da Vale não foi ético, dizia D. Luciano Mendes presidente do Brasil. Seu primeiro mandato iniciou-se em
ment dos presidentes Fernan- de Almeida”, disponível em https://bit.ly/2q25Nc9. (Nota 2011 e o segundo foi interrompido em 31 de agosto de
do Collor de Mello e Dilma da IHU On-Line) 2016. Em 12 de maio de 2016, foi afastada de seu cargo
8 Herbert de Souza (1935-1997): sociólogo nascido no durante o processo de impeachment movido contra ela.
Rousseff revela solidez ou fra- Rio de Janeiro. Conhecido por Betinho, foi responsável por No dia 31 de agosto, o Senado Federal, por 61 votos fa-
uma das maiores campanhas contra a fome que o Brasil já voráveis ao impeachment contra 20, afastou Dilma defini-
gilidade da Constituição para o teve. Concebeu e dedicou-se ao projeto Ação da Cidada- tivamente do cargo. O episódio foi amplamente debatido
trato de crises políticas? nia contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Acreditava que só nas Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por exemplo, a
a participação cidadã seria capaz de mudar o país. Na dé- Entrevista do Dia com Rudá Ricci intitulada Os pacotes do
cada de 1960, atuou como liderança nacional dos grupos Temer alimentarão a esquerda brasileira e ela voltará ao
Marcello Lavenère Machado – Dois de juventude católica que representavam as aspirações de poder, disponível em http://bit.ly/2bLPiHK. Durante o go-
impeachments, duas realidades pro- transformação social, depois reforçadas com o Concílio
Vaticano II. Exerceu funções de coordenação e assessoria
verno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a
chefia do Ministério de Minas e Energia e posteriormente
fundamente diferentes. O primeiro, no Ministério da Educação e Cultura e na Superintendên- da Casa Civil. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

não passou de um profundo golpe ses da banca são expostos a nu pela passou a adotar uma visão condena-
parlamentar midiático, denunciado emenda constitucional decorrente tória, exacerbada, com negação dos
amplamente pelas entidades mais da PEC do Fim do Mundo, que con- direitos duramente conquistados
respeitáveis da sociedade civil brasi- gelou as verbas orçamentárias com a informadores do devido processo
leira de um lado, e do outro, o apoio educação, a saúde e outros progra- legal. As reiteradas ilegalidades da
da TV Globo e financeiro da Federa- mas sociais, mantendo sem limites Operação Lava Jato13 não tiveram
ção das Indústrias do Estado de São as despesas com encargos financei- do STF nenhum ato de correção, tor-
Paulo - Fiesp. ros. Em bom português: optou por nando a Suprema Corte igualmente
tirar os recursos destinados a escolas responsável pelas violações das ga-
O primeiro impeachment foi ana-
e hospitais para entregá-los aos ban- rantias constitucionais. ■
lisado de maneira positiva pelos
queiros. É um insofismável crime de
anos que se seguiram como sendo
lesa-pátria.
uma manifestação legítima da po-
dalo de corrupção política mediante compra de votos de
pulação contra um presidente que parlamentares no Congresso Nacional do Brasil, que ocor-

“Participaram
reu entre 2005 e 2006. (Nota da IHU On-Line)
desonrou o cargo. Já o segundo, 13 Operação Lava Jato: conjunto de investigações em
sobre cuja natureza golpista nun- andamento pela Polícia Federal, que cumpriu mais de
mil mandados de busca e apreensão, de prisão tempo-
ca houve dúvida, em pouco tempo
teve sua realidade escancarada, dos trabalhos rária, de prisão preventiva e de condução coercitiva, vi-
sando apurar um esquema de lavagem de dinheiro que
movimentou bilhões de reais em propina. A operação
especialmente pela atuação do go-
verno golpista que assumiu o po- constituintes teve início em 17 de março de 2014 e conta com 50
fases operacionais, autorizadas pelo juiz Sérgio Moro,
durante as quais mais de cem pessoas foram presas e
der. Os escândalos de corrupção
dos integrantes do governo Michel
uma condenadas. Investiga crimes de corrupção ativa e pas-
siva, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, organi-
zação criminosa, obstrução da justiça, operação fraudu-
Temer11, atingindo o próprio pre-
sidente, as medidas neoliberais
pluralidade lenta de câmbio e recebimento de vantagem indevida.
De acordo com investigações e delações premiadas re-
cebidas pela força-tarefa da Operação Lava Jato, estão

e uma
envolvidos membros administrativos da Petrobras, polí-
propostas e em grande parte já ticos dos maiores partidos do Brasil, incluindo presiden-
tes da República, presidentes da Câmara dos Deputados
aprovadas por um Legislativo su-
diversidade
e do Senado Federal e governadores de estados, além
balterno aos interesses das corpo- de empresários. A Polícia Federal considera-a a maior
investigação de corrupção da história do país. O nome
32 rações estrangeiras que assaltam
de convicções
da operação deve-se ao uso de um posto de combus-
tíveis para movimentar valores de origem ilícita, inves-
os ativos brasileiros, a destruição tigada na primeira fase da operação, na qual o doleiro
dos direitos trabalhistas, a tenta- Alberto Youssef foi preso. Através de Youssef, consta-

tiva de acabar com a Previdência muito amplas” tou-se sua ligação com Paulo Roberto Costa, ex-diretor
da Petrobras, preso preventivamente na segunda fase.
Seguindo essa linha de investigação, prendeu-se Nes-
Social, tudo que se seguiu ao golpe tor Cerveró em 2015, que depois delatou outros. Em
de 2016 exibe um país em meio a junho, a operação atingiu grandes empreiteiras, como
Andrade Gutierrez e Odebrecht, cujos respectivos pre-
uma instabilidade profunda, envol- IHU On-Line – O Supremo sidentes, Otávio Azevedo e Marcelo Odebrecht, foram
vendo inclusive o Poder Judiciário. Tribunal Federal, na condição presos; posteriormente, muitas outras empresas de ra-
mos diversos acabaram investigadas. Ao longo de seus
de tribunal constitucional, vem desdobramentos, entre outras pessoas relevantes que
O futuro é incerto, e os danos já acabaram sendo presas graças à operação, incluem-
cumprindo o seu papel de guar- se o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral,
produzidos demandarão longo perí-
dião da Carta Magna? o ex-senador Delcídio do Amaral, o ex-presidente da
odo de recuperação. A opção rentista Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, os ex-minis-
tros da Fazenda Antonio Palocci e Guido Mantega, o
de sujeição ao mercado e aos interes- Marcello Lavenère Macha- publicitário João Santana, o ex-ministro-chefe da Casa
do – O desempenho do STF tem Civil José Dirceu e o empresário Eike Batista. Ao final
de dezembro de 2016, a Operação Lava Jato obteve um
sido profundamente criticado pelos acordo de leniência com a empreiteira Odebrecht, que
proporcionou o maior ressarcimento da história mun-
11 Michel Temer [Michel Miguel Elias Temer Lulia] (1940): advogados e pelos professores de dial. O acordo previu o depoimento de 78 executivos
político e advogado nascido em Tietê (SP), ex-presidente
do Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB.
direito. Abandonando uma atitude da empreiteira, gerando 83 inquéritos no STF, e de que
o ministro do tribunal Edson Fachin retirou o sigilo em
É o atual presidente do Brasil, após a deposição por im- garantista de direitos que tinha até abril de 2017. Novas investigações surgiram no exterior
peachment da presidenta Dilma Rousseff naquilo que a partir destes depoimentos em dezenas de países, den-
inúmeros setores nacionais e internacionais denunciam o julgamento do mensalão12, o STF tre eles, Cuba, El Salvador, Equador e Panamá. Em 2017,
como golpe parlamentar. Foi deputado federal por seis peritos da Polícia Federal levantaram que as operações
legislaturas e presidente da Câmara dos Deputados por financeiras investigadas na Operação Lava Jato soma-
duas vezes. (Nota da IHU On-Line) 12 Ação Penal 470 ou Mensalão: nome dado ao escân- ram R$ 8 trilhões. (Nota da IHU On-Line)

9 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Num Brasil de duas Constituições


concomitantes, a democracia
é incompleta
Fábio Konder Comparato destaca que o país ainda não conseguiu
romper com os traços dominantes da política imperial
João Vitor Santos

D
esde 1824, pouco depois que Na entrevista a seguir, concedida por
se instaura a independência do e-mail à IHU On-Line, Comparato
Brasil, o país passa a ser regido destaca que nem todo processo consti-
por duas Constituições e isso atraves- tuinte que culminou na Carta Magna de
sa toda a monarquia e os períodos de 1988 foi capaz de romper com essa lógi-
regime republicano, chegando aos dias ca. “Tratou-se, pura e simplesmente, de
de hoje. É o que acredita o jurista Fá- mais uma dissimulação política, den-
bio Konder Comparato. Para ele, essa é tre as inúmeras que tivemos em toda a
a razão pela qual até hoje se vive uma nossa História, sempre com acentos de
espécie de arranjo democrático. “Nun- retórica. Em 1988, a Constituição sim-
ca fomos uma autêntica democracia, bólica tinha que enfatizar a soberania
no sentido original da palavra na lín- popular e os direitos humanos, para
gua de Homero, porque entre nós o contrastar com o regime militar”, ana-
poder supremo, ou seja, a soberania lisa. E recomenda: “o que este país pre- 33
jamais pertenceu ao povo (demos)”, cisa não é uma simples reforma cons-
destaca. Ou seja, sempre tivemos uma titucional, mas uma mudança de poder
Constituição, por vezes muito bem-a- soberano, com o abandono da tradição
cabada, enquanto peça legal, e outra, oligárquica e uma profunda reforma de
como um código velado, que de fato costumes”.
funcionava na prática. É o que chama
Fábio Konder Comparato possui
de a Constituição “oficial” e a “sublimi-
graduação em Direito pela Universi-
nar”. A segunda sempre esteve focada
dade de São Paulo - USP e doutorado
na manutenção dos poderes de uma
em Direito pela Université Paris 1. É
elite que até mesmo usava da própria
professor Emérito da Faculdade de Di-
“constituição oficial” para assegurar
sua dominação. “Até mesmo durante reito da USP e Doutor Honoris Causa
os regimes autoritários ou ditatoriais, da Universidade de Coimbra, e especia-
fizemos questão de promulgar uma lista em Filosofia do Direito, Direitos
Constituição. Assim foi em 10 de no- Humanos e Direito Político. É também
vembro de 1937 para justificar a insti- titular da Medalha Rui Barbosa, confe-
tuição do Estado Novo getulista, e em rida pelo Conselho Federal da Ordem
24 de janeiro de 1967 em pleno regime dos Advogados do Brasil.
militar”, acrescenta. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que paradig- ma da de 1946, com aperfeiçoamen- IHU On-Line – Como pode-
ma de democracia foi pensado tos em matéria de direitos humanos mos compreender nossa atual
ao longo do processo de formu- e instituições de democracia direta, construção democrática?
lação da Constituição Federal como o plebiscito, o referendo e a Fábio Konder Comparato – É
de 1988? iniciativa popular legislativa. Mas preciso entender que sempre tive-
Fábio Konder Comparato – A se tais instituições têm sido levadas mos duas Constituições: a oficial e a
Constituição atual seguiu o paradig- a sério é outra história. subliminar. Essa duplicidade come-

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

çou em 1824, logo após a Indepen- chamado Ato Institucional nº 55 um cionais que exigem a promulgação
dência, quando promulgamos nossa regime de terrorismo de Estado. O de lei complementar para terem vi-
primeira Constituição. Como bem que não impediu seus redatores de gência efetiva, lei essa cuja votação
assinalou Sérgio Buarque de Ho- exagerar no cinismo, declarando na continua “esquecida” pelo Congres-
landa1, “dificilmente se podem com- introdução desse ato que a assim so Nacional, quase 30 anos depois
preender os traços dominantes da chamada “Revolução de 31 de março de promulgada a Constituição. A
política imperial, sem ter em conta de 1964” institucionalizou uma “au- primeira é o imposto sobre grandes
a presença de uma Constituição ‘não têntica ordem democrática, baseada fortunas, previsto no art.153, inci-
escrita’ que, com a complacência dos na liberdade e no respeito à dignida- so VII. A segunda é a proibição de
dois partidos, se sobrepõe em geral à de da pessoa humana”. monopólio ou oligopólio, direto ou
Carta de 1824 e ao mesmo tempo vai indireto, dos meios de comunica-
solapá-la”2. ção social (art. 220, § 5º). Por óbvia
Esse sistema de duplicidade cons- “É preciso coincidência, ambas as lacunas di-
zem respeito a interesses diretos da
titucional vigorou desde então, sem
cessar. Até mesmo durante os regi- entender camada oligárquica.
mes autoritários ou ditatoriais, fi-
zemos questão de promulgar uma que sempre IHU On-Line – Como o senhor
avalia o sistema político brasi-
Constituição. Assim foi em 10 de no-
vembro de 1937 para justificar a ins- tivemos duas leiro? Esse sistema solidifica ou
falseia o conceito de república,
tituição do Estado Novo3 getulista, e
em 24 de janeiro de 1967 em pleno Constituições: baseada na representação de-
mocrática?
regime militar, iniciado com o golpe
de 19644. Em ambos os regimes tive-
a oficial e a Fábio Konder Comparato – A

subliminar
Constituição de 1988 abre-se com a
mos “constituições”. Os governan-
proclamação solene de que “a Repú-
tes todo-poderosos fizeram, aliás,
blica Federativa do Brasil, (...) cons-
questão de modificá-las inúmeras
titui-se em Estado Democrático de
34 vezes, até mesmo por Decreto-Lei,
IHU On-Line – Como compre- Direito”. Infelizmente, até hoje não
chegando inclusive a introduzir pelo
ender a cooptação feita pela instituímos uma autêntica Repúbli-
histórica oligarquia nacional ca nem muito menos um verdadeiro
1 Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): historiador,
crítico literário e jornalista nascido em São Paulo - SP. En- ao que foi pensado para ser a Estado Democrático de Direito. Não
tre outros livros, escreveu Raízes do Brasil (1936). Obteve
notoriedade por meio do conceito de “homem cordial”, “Constituição Cidadã”? instituímos uma autêntica república,
examinado nessa obra. A professora Eliane Fleck apresen- no sentido que os romanos davam à
tou, no evento IHU Ideias, de 22-8-2002, o tema O homem Fábio Konder Comparato –
cordial: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, expressão res publica, porque como
e no dia 8-5-2003, a professora apresentou essa mesma Tratou-se, pura e simplesmente,
já dizia frei Vicente do Salvador6, em
obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasil, concedendo, nessa de mais uma dissimulação políti-
oportunidade, uma entrevista à IHU On-Line, publicada seu livro de 1627, “nem um homem
na edição nº 58, de 5-5-2003, disponível em http://bit. ca, dentre as inúmeras que tivemos
ly/152MP1v. Sobre Sérgio Buarque de Holanda, confi- nesta terra é repúblico, nem zela ou
ra, ainda, a edição 205 da IHU On-Line, de 20-11-2006, em toda a nossa História, sempre
trata do bem comum, senão cada um
intitulada Raízes do Brasil, disponível em https://goo.gl/ com acentos de retórica. Em 1988, a
RN3W57, e a edição 498, de 28-11-2016, Raízes do Bra- do bem particular”7. Nunca fomos
sil – 80 anos. Perguntas sobre a nossa sanidade e saúde Constituição simbólica tinha que en-
democráticas, disponível em http://bit.ly/2nDmdFE. (Nota uma autêntica democracia, no senti-
fatizar a soberania popular e os di-
da IHU On-Line). do original da palavra na língua de
2 História Geral da Civilização Brasileira, II – O Brasil Mo- reitos humanos, para contrastar com
nárquico, 5 – Do Império à República (São Paulo: Bertrand, Homero8, porque entre nós o poder
1992), pág. 21. (Nota do entrevistado) o regime militar.
3 Estado Novo: período autoritário da história do Brasil, supremo, ou seja, a soberania jamais
que durou de 1937 a 1945. Foi instaurado por um golpe pertenceu ao povo (demos).
de Estado que garantiu a continuidade de Getúlio Vargas
à frente do governo central, tendo a apoiá-lo importantes IHU On-Line – Quais as maio-
lideranças políticas e militares. (Nota da IHU On-Line) E, para completar o vazio político,
res lacunas da Constituição?
4 Golpe de 1964: movimento deflagrado em 1º de abril
de 1964. Os militares brasileiros, apoiados pela pressão
tampouco chegamos a instituir um
internacional anticomunista liderada e financiada pelos Fábio Konder Comparato –
Estados Unidos, desencadearam a Operação Brother Sam,
que garantiu a execução do golpe, que destituiu do poder Cito duas grandes lacunas da Cons-
o presidente João Goulart, o Jango. Em seu lugar, os mi-
litares assumiram o poder e se mantiveram governando
tituição, ou seja, normas constitu- 6 Frei Vicente do Salvador (1564-1636): foi um religioso
franciscano, conhecido como pai da historiografia brasi-
o país entre os anos de 1964 e 1985. Sobre a ditadura leira. A obra do frei Vicente, “História do Brasil”, de 1627,
de 1964 e o regime militar, o IHU publicou o 4º número dividida em cinco livros, narra o modus vivendi na Colônia,
dos Cadernos IHU em formação, intitulado Ditadura 1964. 5 AI-5 (Ato Institucional Número Cinco): decretado pelo contando episódios conhecidos de seus primeiros gover-
A memória do regime militar, disponível em https://goo. general Arthur da Costa e Silva, que ocupava a cadeira nadores, bem como anedotas, o jeito de falar e de viver
gl/a4e8VX. Confira, também, as edições nº 96 da IHU On de presidente, em 13 de dezembro de 1968, foi um ins- nas terras ainda tão novas. (Nota da IHU On-Line)
-Line, intitulada O regime militar: a economia, a igreja, a trumento de poder que deu ao regime militar poderes 7 História do Brasil. Curitiba: Juruá, 2007. (Nota da IHU
imprensa e o imaginário, de 12 de abril de 2004, disponível políticos absolutos. A primeira consequência do AI-5 foi On-Line)
em https://goo.gl/a2yUBr; nº 95, de 5 de abril de 2005, o fechamento por quase um ano do Congresso Nacional. 8 Homero: primeiro grande poeta grego, que teria vivido
1964 – 2004: hora de passar o Brasil a limpo. 1964, dispo- O ato representou o ápice da radicalização do regime há cerca de 3.500 anos e consagrado o gênero épico com
nível em https://goo.gl/cU7FEV; nº 437, de 13 de março de exceção e inaugurou o período em que as liberda- as suas grandiosas obras: A Ilíada e a Odisseia. Nada se
de 2014, Um golpe civil-militar. Impactos, (des)caminhos, des individuais foram mais restringidas e desrespeitadas, sabe seguramente da sua existência; mas a crítica moderna
processos, disponível em https://goo.gl/gXbCaL; e nº 439, constituindo-se em movimento final de “legalização” da inclina-se a crer que ele terá vivido no século VIII a.C., em-
de 31 de março de 2014, Brasil, a construção interrompida arbitrariedade que pavimentou uma escalada de torturas bora sem poder indicar onde nasceu nem confirmar a sua
– Impactos e consequências do golpe de 1964, disponível e assassinatos contra opositores reais e imaginários ao re- pobreza, cegueira e afã de viajante, caracteres que tradicio-
em https://goo.gl/wENVN6. (Nota da IHU On-Line) gime. (Nota da IHU On-Line) nalmente lhe têm sido atribuídos. (Nota da IHU On-Line)

9 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Estado de Direito, no qual todo po- tornou Dona Maria. algum tempo no Brasil. Sua aprecia-
der decorre do Direito e não da von- ção sobre nossos costumes foi devas-
– Bem sei, mas a lei?
tade humana, ainda que seja de todo tadora: “Não importa o tamanho das
o povo. – Ora, a lei... o que é a lei, se o Se- acusações que possam existir contra
nhor major quiser?... um homem de posses, é seguro que
Nas Memórias de um Sargento de
O major sorriu-se com cândida mo- em pouco tempo ele estará livre. To-
Milícias9, há um episódio famoso
déstia”. dos aqui podem ser subornados”.
que bem define entre nós a predo-
minância do poder pessoal da auto-
ridade. Querendo livrar seu jovem IHU On-Line – Há fatos que IHU On-Line – Segundo a
afilhado do castigo que lhe impusera revelam certo esgotamento do Constituição, o Poder Judici-
o major Vidigal, a comadre prote- projeto da Carta Magna? Quais? ário tem a capacidade de in-
tora foi procurá-lo, e ele, querendo tervir quando houver lesão
atalhar a conversa, foi logo dizendo: Fábio Konder Comparato – La- ou ameaça a direitos. Como
mento dizê-lo, mas o que este país avalia a forma que o Judiciá-
“– Já sei de tudo, já sei de tudo. precisa não é uma simples reforma rio hoje vem exercendo esse
– Ainda não, senhor major, obser- constitucional, mas uma mudança de papel?
vou a comadre, ainda não sabe do poder soberano, com o abandono da
tradição oligárquica e uma profunda Fábio Konder Comparato – O
melhor e é que o que ele praticou
reforma de costumes. Em sua viagem Poder Judiciário não tem apenas a
naquela ocasião quase que não esta-
famosa a bordo do Beagle, entre 1831 capacidade de intervir quando hou-
va nas suas mãos. Bem sabe que um
e 1836, Charles Darwin10 permaneceu ver lesão ou ameaça a direitos. Ele
filho na casa de seu pai...
tem o dever de fazê-lo, sob pena de
– Mas um filho quando é soldado, 10 Charles Darwin (Charles Robert Darwin, 1809-1882): prevaricação. ■
naturalista britânico, propositor da teoria da seleção natu-
retorquiu o major com toda gravida- ral e da base da teoria da evolução no livro A Origem das
Espécies. Organizou suas principais ideias a partir de uma Charles Darwin, no evento Abrindo o Livro, do Instituto
de disciplinar... visita ao arquipélago de Galápagos, quando percebeu que Humanitas Unisinos - IHU. Sobre o assunto, confira as
pássaros da mesma espécie possuíam características mor- edições 300 da IHU On-Line, de 13-7-2009, Evolução e fé.
– Nem por isso deixa de ser filho, fológicas diferentes, o que estava relacionado com o am- Ecos de Darwin, disponível em http://bit.ly/UsZlrR, e 306,
biente em que viviam. Em 30-11-2005, a professora Anna de 31-8-2009, intitulada Ecos de Darwin, disponível em 35
Carolina Krebs Pereira Regner apresentou a palestra obra http://bit.ly/1tABfrH. De 9 a 12-09-2009, o IHU promoveu
9 ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de Um Sargento de Sobre a origem das espécies através da seleção natural ou o IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin. (Nota da
Milícias. São Paulo: Panda Books, 2015. (Nota da IHU On-Line) a preservação de raças favorecidas na luta pela vida, de IHU On-Line)

Leia mais
- Contra o absolutismo do Judiciário, o controle social. Entrevista com Fábio Konder
Comparato, publicada na revista IHU On-Line número 494, de 3-10-2016, disponível em
http://bit.ly/2Gpk2C2.
- Processo de impeachment foi grosseiramente forjado. Entrevista especial com Fábio
Konder Comparato, publicada nas Notícias do Dia de 26-4-2016, no sítio do Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2EbMDop.
- O poder judiciário no Brasil. Artigo de Fábio Konder Comparato, publicado no Cadernos
IHU ideias, número 222, disponível em http://bit.ly/2q4bLZx.
- Brasil: A dialética da dissimulação. Artigo de Fábio Konder Comparato, publicado no
Cadernos IHU ideias, número 239, disponível em http://bit.ly/2Gv1zAa.
- “Na verdade, o povo não tem poder algum”. Entrevista com Fábio Konder Comparato,
publicada nas Notícias do Dia de 4-10-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2GrPlbr.

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

Desafio é integrar a Constituição


à sociedade
Lenio Streck destaca que, antes de pregar uma reforma constitucional,
é preciso compreender e aplicar plenamente a Carta de 1988. Para
ele, algo que não é feito nem pelos juristas de hoje
João Vitor Santos

C
rise econômica, institucional, os alunos e professores se preocupam
política e ética. Num momento com ciência política, economia, moral.
de ressaca e inebriamento de- E o Direito fica atirado. Lá no cantinho
corrente dessas crises, a solução mais da sala. Com o STF não é diferente”,
apressada que surge é a de repensar a critica. Ele vai além e defende que é
Constituição de 1988. Entretanto, o ju- preciso “baixar a bola”. “Nós, juristas,
rista Lenio Streck afirma que o ponto é sabemos muito menos do que achamos
outro: é preciso, primeiro, conhecer e que sabemos. Por isso que devemos
aplicar plenamente o que já está posto seguir a Constituição. Nos amarrar às
no texto constitucional. “Hoje em dia correntes”, constata.
defender a Constituição (e o Direito)
Lenio Luiz Streck é mestre e doutor
é uma tarefa árdua”, brinca. Segun-
em Direito pela Universidade Federal
do ele, é preciso compreender que a
36 “Constituição não deve conter uma pre-
de Santa Catarina, com pós-doutorado
pela Universidade de Lisboa. Atua como
ocupação absoluta com o Estado, mas
professor do Programa de Pós-Gradua-
ser mais ampla, constituindo também
ção em Direito da Unisinos. Também
a sociedade”. “A crise que se observa
é membro catedrático da Academia
tem (des)constituído o Estado e (des)
legitimado o instrumento constitucio- Brasileira de Direito Constitucional.
nal como instrumento estabilizador da Entre suas publicações mais recentes,
sociedade a partir de demandas nem destacamos Hermenêutica e Jurisdi-
sempre internas dos Estados Nacio- ção: diálogos com Lenio Streck (Porto
nais”, acrescenta. Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2017), Hermenêutica (São Leopoldo:
Lenio, na entrevista concedida por
Edição do Autor, 2017) e Dicionário de
e-mail à IHU On-Line, ainda desta-
hermenêutica: quarenta temas funda-
ca que essa inabilidade de apreender
mentais da Teoria do Direito à luz da
a Carta de 88 é, inclusive, uma defici-
Crítica Hermenêutica do Direito (Belo
ência entre seus pares. “Os juristas têm
se preocupado pouco com o Direito nos Horizonte: Casa do Direito, 2017).
dias de hoje. Nas faculdades de Direito Confira a entrevista.

IHU On-Line – A Constituição te constatável daquilo que denomi- ignora aquilo que podemos chamar
de 1988 é fruto de um longo no de “baixa constitucionalidade”. de limites semânticos do texto legal.
processo de construção de de- Baixa constitucionalidade significa Ou seja, de um lado ainda se utiliza
mocracia, com destaque para a baixa compreensão, que ocorre por- uma hermenêutica clássica de cunho
participação popular. O Brasil que parte minoritária da doutrina e reprodutivo; de outro, impera o sub-
de hoje já compreendeu esse a jurisprudência continuam assen- jetivismo. O bizarro é que às vezes
processo? Por quê? tadas em dicotomias ultrapassadas. em uma mesma decisão se diz que
Lenio Streck – Não. Digo isso, Por exemplo, por vezes o Judiciário está claro o texto legal e, mais adian-
sobretudo, pela presença facilmen- se agarra à letra da lei; em outras, te, a clareza é ignorada. Tudo porque

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REVISTA IHU ON-LINE

“A Constituição não deve


conter uma preocupação
absoluta com o Estado, mas
ser mais ampla, constituindo
também a sociedade”

se ideologizou a aplicação do direi- nhecido jurista, sempre ironizou ção de 1988, radicalizar o con-
to. Na maior parte das vezes ocorre as “propriedades que caracterizam ceito de democracia popular?
um solipsismo judicial, a partir do o legislador racional”, uma vez
Lenio Streck – Estamos vivendo
que chamo de Privilégio Cognitivo que “ele” é uma figura singular,
num ambiente em que a democra-
do Juiz - PCJ. Dependemos, pois, da não obstante os colegiados etc. É
cia na sociedade contemporânea de
vontade de quem julga. permanente, pois não desaparece
modo geral e, no Brasil, especial-
com a passagem do tempo; é único
Na verdade, há uma crise no en- mente, está em constante redefini-
como se todo o ordenamento obe-
sino jurídico que impossibilita a ção. A “Democracia plena” nem a
decesse a uma única vontade; é
comunidade jurídica de compre- Grécia, berço do pensamento oci-
consciente, porque conhece todas
ender que a Constituição tem, por dental, vivenciou. Bonavides3 já
as normas que emana; é finalista,
excelência, um papel contramajo- havia destacado, no início dos anos
pois tem sempre uma intenção; é
ritário. Ela serve justamente para 2000, sobre os limites que a demo-
onisciente, pois nada lhe escapa,
que não caiamos na tentação de cracia formal-representativa signi- 37
sejam eventos passados, futuros
apostar em clamor público e coi- fica para o Brasil e, nesse sentido,
ou presentes; é onipotente, por-
sas do gênero. Nem o juiz é escra- indicava a potencialidade da demo-
que suas normas vigem até que ele
vo da lei e nem é o dono da lei. A cracia participativa para a consolida-
mesmo as substitua.
democracia pressupõe a presença ção de uma democracia que de fato
do povo no processo decisório, É de se perguntar: pode alguém, amplia e radicaliza o conceito de de-
contudo, esse deve ser garantido ainda, acreditar em tais “proprieda- mocracia popular. Superar o proce-
mediante espaços reais de presen- des” ou “características” do “consti- dimentalismo e consolidar um am-
ça e de conhecimento sobre quais tuinte”? No final das contas, o “espí- biente democrático substancialista.
são os temas essenciais à demo- rito” do constituinte acaba servindo
Em Paulo Bonavides4 se percebe
cracia contemporânea e os limites de álibi retórico para tentar legitimar
dois problemas que se destacam, en-
necessários a sua consolidação. decisões arbitrárias. A melhor forma
tre outros, como o da necessidade de
de, se assim quisermos, compreen-
(in)corporação da democracia dire-
der o “espírito do constituinte”, é in-
IHU On-Line – Como com- ta como necessária ao terceiro milê-
terpretar a Constituição levando em
preender o espírito do proces- nio, como forma de garantir o exer-
conta aquilo que Gadamer2 nos lega:
so constituinte? E, na prática, cício do poder pelo povo e a “(des)
“quem quer dizer algo sobre um tex-
a Carta Magna mantém ou se politização da legitimidade”, uma
to deve deixar que o texto lhe diga
afasta desse espírito? vez que a legitimidade, enquanto
algo antes”.
crença ou valor fundamental de sus-
Lenio Streck – Venho defen-
dendo há anos que essa ideia de
IHU On-Line – Vivemos hoje
espírito do legislador – ou do 3 Paulo Bonavides (1925): é um destacado jurista bra-
um estado de democracia ple- sileiro, professor emérito da Universidade Federal do
constituinte – acaba levando a
na? Como, a partir da Constitui- Ceará. Sua influência no pensamento jurídico nacional e
equívocos. Santiago Nino 1, um co- internacional o levou a inúmeras condecorações, sendo
Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa, Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, Universidad Nacio-
Escreveu também sobre o contexto social da Argentina, nal de Córdoba, Universidad Inca Garcilaso de la Vega e
1 Carlos Santiago Nino (1943-1993): filósofo e jurista encarando a aplicação dos princípios de justiça e morali- Universidade de Fortaleza. Também é comendador das
argentino, um dos juristas que alcançaram maior noto- dade social à valoração prática constitucional, que gerou maiores honras jurídicas do cenário nacional, a Meda-
riedade acadêmica em nível internacional na segunda a obra Un país al margen de la ley (Buenos Aires: Emecé, lha Rui Barbosa da Ordem dos Advogados do Brasil e a
metade do século XX. Em ensaios, Nino abordou uma 1992; reeditado em Barcelona: Ariel, 2005, com um prólo- Medalha Teixeira de Freitas do Instituto dos Advogados
série de questões práticas a partir dessa fundamentação: go de Roberto Gargarella). (Nota da IHU On-Line) Brasileiros, além de várias outras, como o Grande-Colar
a organização constitucional Argentina, as leis de fato, o 2 Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, autor de Verda- do Mérito do Tribunal de Contas da União, a Medalha
aborto (reconhecimento dos fetos como pessoas jurídicas de e método (Petrópolis: Vozes, 1997), faleceu no dia 13- da Abolição do Governo do Estado do Ceará, a Medalha
à medida em que demonstrem capacidade cognoscitiva 3-2002, aos 102 anos. Por essa razão, dedicamos a ele a Clóvis Beviláqua do Tribunal de Justiça do Estado do Ce-
e afetiva), a pena de morte (contrário), drogas (contrário matéria de capa da IHU On-Line número 9, de 18-3-2002, ará, entre outros. (Nota da IHU On-Line)
à criminalização do consumo), o presidencialismo, o con- Nosso adeus a Hans-Georg Gadamer, disponível em http:// 4 Livro A Constituição Aberta (São Paulo: Malheiros, 2004).
trole judicial da constitucionalidade, o voto obrigatório. migre.me/DtiK. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

tentação do poder com base no con- retrocesso para um conservador. adversários ou inimigos). A minha
senso dos governados, é um concei- Contudo, sob a perspectiva de uma pergunta, aqui, é a mesma que fiz
to histórico, aberto e apresenta um sociedade democrática, penso que é no caso do juiz que resolveu, por sua
conteúdo variável que sempre deve seguro afirmar que um avanço ine- conta e risco, que um pai de gêmeos
ser atualizado intensamente em uma gável foi o rol de direitos fundamen- podia usufruir, por conta do erário
Constituição. tais expostos no art. 5º. Retrocesso? público, 180 dias de licença paterni-
A reforma trabalhista que vai contra dade. Eu indagava: quanto estamos
a Constituição. dispostos a pagar? E agora pergunto,
“O Judiciário no caso do cumprimento de pena em
2º grau: quanto queremos investir?
se agarra à IHU On-Line – Com base na
atuação do Supremo Tribunal
Todos os nossos recursos democráti-

letra da lei; Federal em casos recentes, po-


demos afirmar que o Judiciário
cos? Vamos bancar que tipo de jogo?
O jogo da Constituição ou o jogo do

em outras, atende ao clamor das ruas ou


ao clamor da Constituição?
clamor das ruas? Ou da mídia?
Advirto a todos que, na famosíssi-
ignora aquilo Lenio Streck – O Supremo Tri-
ma metáfora de Ulisses6, este só se
salvou das sereias porque ordenou
que podemos bunal Federal tem procurado res-
ponder aos anseios das ruas, sobre-
que os marujos o amarrassem ao

chamar
mastro e não obedecessem a nenhu-
tudo em matérias penais. Eu tenho
ma outra ordem em contrário. So-
brincado muito com essa questão,
de limites afirmando que sou um constitu-
cionalista, mas sou limpinho. Hoje
breviveu. Será que sobreviveremos
se continuarmos a tomar decisões

semânticos do em dia defender a Constituição (e o


Direito) é uma tarefa árdua. O pro-
ad hoc? Entre o clamor das ruas e
o ronco da Constituição fico com a
texto legal” fessor de direito constitucional é um
Constituição.
subversivo diante do desrespeito
38 da Constituição. Quando digo que IHU On-Line – Na perspectiva
IHU On-Line – Quais os cam- devemos respeitar o texto Constitu- do Direito Penal, qual a função
pos em que a Constituição trou- cional, não prendendo condenados da Carta Magna? Pode ser to-
xe maiores avanços? E que pon- em 2º grau, sou taxado de abolicio- mada como instrumento para
tos não foram tocados? nista, marxista etc.; quando defendi combater o crime?
que a decisão do STF que autorizou
Lenio Streck – Torna-se vital a Lenio Streck – Combater o crime
o aborto foi ilegal, fui taxado de con-
reincorporação de um sentido mais é uma questão de política pública.
servador, fascista etc. Veja que inte-
amplo à Constituição. Essa deve Existem órgãos responsáveis e que
ressante, pois sou taxado de tudo,
manter parcela de sua visão insti- estão (ou pelo menos deveriam estar)
menos daquilo que gostaria de ser, atentos a essas questões. Deveriam
tucionalizada; contudo, precisa-se isto, um jurista constitucionalista.
desenvolver uma análise crítica da estudar os problemas de criminalida-
Disso tudo, posso dizer que os juris- de para, dentro do âmbito do execu-
necessidade de integrar a sociedade tas têm se preocupado pouco com o
à Constituição, conforme as condi- tivo ou do legislativo, tomar as medi-
Direito nos dias de hoje. Nas facul- das mais adequadas para cada caso.
ções impostas por uma sociedade dades de Direito os alunos e profes-
complexa. A Constituição não deve Respondendo objetivamente, juristas
sores se preocupam com ciência po- não devem usar o Direito para com-
conter uma preocupação absoluta lítica, economia, moral. E o Direito
com o Estado, mas ser mais ampla, bater o crime. Constituição é uma
fica atirado. Lá no cantinho da sala. carta de direitos. Contra o Estado.
constituindo também a sociedade. A Com o STF não é diferente.
crise que se observa tem (des)cons- O meu argumento é, em certa medi-
tituído o Estado e (des)legitimado O mais importante jusfilósofo do da cético, com relação à capacidade
o instrumento constitucional como século XX, Ronald Dworkin5, per- da razão humana (e não com a razão
instrumento estabilizador da socie- guntava, em casos de extrapolação em si). Hoje, um juiz acaba enfrentan-
dade a partir de demandas nem sem- nas decisões judiciais (ativismo), do um problema de repercussão eco-
pre internas dos Estados Nacionais. acerca de quanto estamos dispostos nômica; amanhã, um problema que
a pagar para que todos tenham direi- tem repercussões políticas e públicas,
Dito isso, a Constituição é um do- tos (e eu acrescento: inclusive nossos
cumento político por excelência. En- 6 Ulisses (Odisseu): nas mitologias grega e romana é um
tão responder sobre “avanços” é uma 5 Ronald Dworkin (1931): nasceu em Massachussetts, nos personagem da Ilíada e da Odisseia, de Homero. É a per-
Estados Unidos. É filósofo do Direito norte-americano, e, sonagem principal dessa última obra, e uma figura à parte
questão complicada, na medida em atualmente, é professor de jurisprudência na University na narrativa da Guerra de Troia. É um dos mais ardilosos
que o que significa um avanço para College London e na New York University School. É conhe-
cido por suas contribuições para a Filosofia do Direito e
guerreiros de toda a epopeia grega, mesmo depois da
guerra, quando do seu longo retorno ao seu reino, Ítaca,
um progressista pode significar um Filosofia Política. (Nota da IHU On-Line) uma das numerosas ilhas gregas. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

como o exemplo do combate ao crime; texto dizendo, em suma, que sequer IHU On-Line – A emergência
depois, cai em sua mesa um processo ensinávamos o processo penal antes de uma reforma política revela
com uma questão moral altamente da operação “lava jato”9. que a proposta de sistema polí-
contestável, como o caso do abor- tico pensado pela Constituição
Aliás, se o nosso Direito não esti-
to. Como esperar que o juiz seja um de 1988 se esgotou? Quais os
vesse afundado em uma crise pro-
cientista político hoje, um economista desafios para se “reformar” o
funda, a própria operação “lava jato”
amanhã e, depois um filósofo moral? sistema político brasileiro?
não teria sido possível. Costumo
Meu argumento, cético, vai no falar que isso tudo é fruto de muito Lenio Streck – Sou um consti-
sentido de “baixarmos a bola”. Nós, “esforço”. São anos de um ensino tucionalista ortodoxo. Não penso
juristas, sabemos muito menos do jurídico de péssima qualidade, for- que a Constituição tenha se esgota-
que achamos que sabemos. Por isso mando, quando muito, profissionais do embora ela tenha alguns pontos
que devemos seguir a Constituição. especialistas em má TPP (Teoria Po- que poderiam ser repensados. Acho
Nos amarrar às correntes. No fundo, lítica do Poder). até contraditório sustentar que a cul-
o canto das sereias para os juristas, Portanto, o nosso Direito perdeu pa de tudo é a Constituição quando
sobretudo os juízes, é a sua pró- completamente sua racionalidade, tudo o que se faz é não cumpri-la.
pria razão lhe sussurrando no ouvi- que deveria ser própria. Pessoas em Quero dizer que é preciso uma boa
do: “você sabe muito de economia bares, nos finais de semana, discu- leitura da realidade. Se a Constitui-
(embora nunca tenha lido um livro tem tomando cerveja o que acham ção não é cumprida e se o quadro po-
sequer sobre o tema); adote um cri- mais correto ou não para os proble- lítico é caótico, em que medida uma
tério econômico para resolver esse mas jurídicos. Só que o bar adentrou nova Constituição vai resolver os
problema e deixe o Direito de lado”. o Direito. Hoje em dia, juristas ra- problemas? Não vão ser as mesmas
E isso é a morte do direito. ciocinam assim. figuram carimbadas que vão mane-
É muito perigoso apostar em um Muitos já me contestaram, dizen- jar essa nova Constituição?
juiz, sem nenhuma formação espe- do que é implicância minha. Mas em
cífica, para resolver controvérsias qual outra área do conhecimento se IHU On-Line – No que resi-
políticas, morais e econômicas verifica um professor ensinando uma
(que os próprios especialistas da
dem os argumentos, tão em 39
ação constitucional com o “funk da voga hoje, de que se precisa de
área divergem). No final, a decisão aprovação”?10 Quero ver quem é que uma reforma constitucional?
acaba virando um “achismo” do vai se operar com um médico que Quais os riscos de se mexer na
juiz sobre a questão. Pergunte para aprendeu a fazer cirurgia cardíaca Constituição nesse momento?
qualquer um: “você quer que sua com o “sertanejo da operação”? (não
demanda seja definida pelo Direito posso perder a oportunidade de dizer Lenio Streck – Os principais argu-
ou pelo senso de justiça do juiz?”. que vai ser uma “sofrência”); ou vai mentos utilizados pela reforma consti-
Esse é o ponto. passar por cima de uma ponte em que tucional seguem a linha de questionar
o engenheiro estudou pelo “manual o caráter programático da Constitui-
descomplicado de construir pontes”? ção. Existem muitas questões de polí-
IHU On-Line – O que os epi-
Já escrevi rios de tintas sobre isso. ticas públicas que adentram de forma
sódios relacionados à Operação
detalhada dentro da CF como, pegando
Lava Jato revelam acerca de nos- No Direito isso é aceito com uma apenas um exemplo, a diretriz do art.
sa maturidade constitucional? normalidade assombrosa. É terrível. 42 do ADCT, que determina que “Du-
E o efeito prático disso é que o Di- rante 40 (quarenta) anos, a União apli-
Lenio Streck – Revelam que a reito não possui mais critérios para cará dos recursos destinados à irriga-
maturidade constitucional não exis- nada. Não temos critérios para ques- ção: I - 20% (vinte por cento) na Região
te. Para se ter uma ideia da gravida- tões essenciais como a valoração Centro-Oeste; II - 50% (cinquenta por
de do problema, Alexandre Morais probatória. Nada mais natural que a cento) na Região Nordeste, preferen-
“lava jato” represente apenas aquilo cialmente no Semiárido”. De fato, esse
da Rosa7 escreveu, em 2015, um tex-
tudo que foi “construído” com mui- tipo de previsão acaba até engessando
to perguntando “Como é possível en-
to “esforço” (por favor, não esqueça as políticas públicas, na medida em que
sinar processo penal depois da ope-
as aspas), motivo pelo qual simples- a alteração da Constituição carece de
ração ‘lava jato’?”8. Respondi esse
mente não existe uma “maturidade
um procedimento muito mais moroso
constitucional” nesse país.
7 Alexandre Morais da Rosa: doutor em Direito pela e lento do que uma lei ordinária.
Universidade Federal do Paraná – UFPR, com estágio de
pós-doutoramento em Direito na Faculdade de Direito de
Coimbra, Portugal, e na Unisinos. Também é mestre em É difícil fazer um prognóstico sobre
Direito Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC,
professor de Direito Penal e Processo Penal na da UFSC 2Gw8BJ1 >. Acesso em 21 mar. 18. (Nota do entrevistado)
os riscos de alterar substancialmente
e professor da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, 9 STRECK, Lenio Luiz. Como (não) se ensinava processo uma Constituição no momento, so-
em Santa Catarina, mesmo estado em que também atua penal antes da “lava jato”. Eis o busílis! Consultor Jurídico,
como juiz de Direito. (Nota da IHU On-Line) São Paulo, 2015. Disponível em: < http://bit.ly/2q28hY9 >. bretudo pelo fato de que, conforme
8 ROSA, Alexandre Morais da. Como é possível ensinar
processo penal depois da operação “lava jato”?. Consultor
Acesso em 21 mar. 18. (Nota do entrevistado)
10 Disponível em: < http://bit.ly/2Jg3Hxf >. Acesso em 21
já mencionei, a nossa Constituição
Jurídico, São Paulo, 2015. Disponível em: < http://bit.ly/ mar. 18. (Nota do entrevistado) não é, de fato, aplicada. ■

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

Leia mais
- Lava Jato: Quando a exceção se torna regra. Artigo de Lenio Streck, publicado nas No-
tícias do Dia de 6-12-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2H8XYbS.
- Inconstitucionalidade do crucifixo? Artigo de Lenio Streck, publicado nas Notícias do
Dia de 19-10-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2GQD7wo.
- ‘’A PEC 37 é produto de lobby poderoso da polícia’’. Entrevista especial com Lenio Luiz
Streck, publicada nas Notícias do Dia de 19-12-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em http://bit.ly/2IqEYFw.
- ‘’O CNJ está incomodando setores do Judiciário’’. Entrevista especial com Lenio Streck,
publicada nas Notícias do Dia de 9-1-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2uHu9gj.
- O crime e a sociedade estamental no Brasil. Artigo de Lenio Streck, publicado no Cader-
nos IHU Ideias, número 178, disponível em http://bit.ly/2rWs8KZ.

40

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REVISTA IHU ON-LINE

Mesmo com limites, atual Constituição


permitiu que a sociedade refletisse
sobre seus problemas
Para Pablo Holmes, Brasil tem um processo de democratização
cheio de sobressaltos, bastante frágil e precário
João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

A
Constituição Brasileira promul- tir dela, pela primeira vez a sociedade
gada em 1988 foi fundada “numa pode “refletir coletivamente sobre seus
concepção moderna e não iden- problemas”. Ao fazer uma síntese do
titária de solidariedade”, explica o pro- Estado e do país que se democratizou
fessor Pablo Holmes. Desde os primei- apenas no final do século 20, ele res-
ros artigos, ela parte “de um imperativo salva que se trata de “uma sociedade
fundamental de inclusão social”, ou marcada por formas transversais de
seja, “todos os indivíduos têm que ter exclusão social que produzem estrutu-
acesso mínimo às oportunidades pro- ras poderosas de bloqueio à constitu-
duzidas pelas diversas dimensões da cionalização” e de “processos políticos
vida social (o saber, a saúde, a capaci- marcados pela reprodução de poder
dade de ser cidadão como os outros), a informal por oligarquias funcionais al-
fim de que ele não possa ser visto como tamente excludentes e poderosas, capa- 41
um indivíduo essencialmente inferior a zes de fortes movimentos de desconsti-
nenhum outro”. tucionalização”.
O modelo constitucional “oficial” apre- O Brasil tem um processo de demo-
senta elementos de um modelo de Esta- cratização cheio de sobressaltos e, ain-
do Social de Direito, no entanto, Holmes da hoje, bastante frágil e precário. “Se
salienta que essa não foi a grande novi- olhamos os eventos dos últimos três
dade do texto. Com essa afirmação, não ou quatro anos, podemos ver como são
pretende afirmar que o sistema consti- evidenciados, em momentos de crise, a
tucional de 1988 é continuidade da his- força do poder informal e a capacidade
tória anterior. No seu entendimento, “o de setores sociais privilegiados de ma-
elemento mais relevante da nova ordem nipular o sistema político em favor de
é de natureza política”. interesses privados”, analisa Holmes.
Na entrevista concedida por e-mail à Pablo Holmes é bacharel e mestre
IHU On-Line, Holmes observa que em Direito pela Universidade Federal
é comum tratar como trivial algo que de Pernambuco – UFPE e doutor em
se trata da grande novidade da ordem Sociologia pela Universidade de Flens-
constitucional de 1988: “o estabeleci- burg. Foi pesquisador visitante no Cen-
mento de uma democracia política pro- tro de Política e Direito Europeus da
tegida por diversos mecanismos a ga- Universidade de Bremen, Alemanha,
rantir, pela primeira vez, algum acesso e Fellow do Käte Hamburger Kolleg
mínimo de todos os brasileiros e brasi- da Universidade de Duisburg-Essen. É
leiras a processos de decisão coletiva”. professor do Instituto de Ciência Políti-
ca da Universidade de Brasília.
Há limites na atual Constituição, no
entanto, Holmes aponta que, a par- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreen- democrático de direito? E como Pablo Holmes – A Constituição
der a solidariedade enquanto ele- esse conceito de solidariedade Brasileira de 1988 é fundada numa
mento para a formação do estado aparece na Constituição de 1988? concepção moderna e não identi-

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

tária de solidariedade. E ela parte, É fato que a Constituição Brasileira é definida apenas com base no recurso à
já desde de seus primeiros artigos, rica em direitos sociais, mas isso não é ameaça permanente do uso da violência.
sobretudo os 3°, 5°, 6° e 7°, de um tão inovador assim. Outras constituições Em algum momento soldados podem
imperativo fundamental de inclusão anteriores também enumeravam direitos se negar a puxar o gatilho. Isso aliás
social. Inclusão social quer dizer: to- coletivos e sociais. Até mesmo a outor- aconteceu na derrocada dos regimes
dos os indivíduos têm que ter acesso gada pela ditadura militar, em 1967, tra- do socialismo real, no final da década
mínimo às oportunidades produzi- zia direitos trabalhistas e sociais impor- de 1980. Tampouco aqueles regimes se
das pelas diversas dimensões da vida tantes, tais quais o direito de greve (art. legitimavam apenas por meio da força.
social (o saber, a saúde, a capacidade 158, XXI), o direito à assistência médica Pode parecer, com isso, que estou
de ser cidadão como os outros), a fim (XV), à previdência (XVII), à educação a afirmar que o sistema constitucio-
de que ele não possa ser visto como (art. 168), além de diversas limitações nal de 1988 é uma continuidade da
um indivíduo essencialmente infe- à propriedade em nome do interesse história anterior. Não é isso. Isso
rior a nenhum outro. Pode-se dizer público. Aliás, direitos sociais foram estaria evidentemente equivocado.
que o artigo 3°, que estabelece como introduzidos nas constituições brasi- Eu identificaria a inovação crucial
objetivo da república a construção leiras desde 1934, acompanhando uma da ordem constitucional de 1988,
“de uma sociedade livre, justa e so- tendência de globalização dos direitos porém, em outro ponto. O elemento
lidária” (inciso I) ou a erradicação sociais que se iniciou com as revoluções mais relevante da nova ordem é de
“da pobreza, da marginalização e a Mexicana e Russa de 1917 e que pode natureza política.
redução das desigualdades sociais e ser encontrada em diversas ordens cons-
regionais” (inciso III), é o resultado titucionais do mundo, inclusive nos Es- Primeiramente, a juridificação de
da experiência concreta do país, so- tados Unidos, como aponta a conhecida processos políticos democráticos
bretudo em virtude de sua desigual- obra de 1Bruce Ackerman. com melhores chances de organiza-
dade histórica e profunda. ção para novos atores políticos e a
Nesse sentido, o nosso modelo cons- ampliação (mesmo tímida) da sua
Também os diversos direitos so- titucional “oficial” traz elementos de participação nos processos decisó-
ciais estabelecidos no artigo 6° são um modelo de Estado Social de Direito. rios: a liberdade política, o pluri-
muitas vezes vistos como resultado Mas, como disse, essa não é a sua gran- partidarismo, amplas liberdades de
42 do contexto da transição. Certamen- de novidade. Claro, houve alguns aper- associação, assim como amplo aces-
te que há constituições que não tra- feiçoamentos, sobretudo do ponto de so ao Judiciário por meio de novas
zem tão amplo catálogo de direitos. vista organizativo e da ênfase. O Siste- ações, tanto individuais e coletivas.
Ainda assim, o princípio fundamen- ma Único de Saúde e o germe de um sis-
tal, por trás desses dispositivos, é o Lembremos que a Constituição
tema de assistência social são inovações
princípio da inclusão social. E, por- anterior, de 1967, estabeleceu a
importantes. No entanto, expectativas
tanto, um princípio moderno de so- eleição indireta para presidente da
normativas de inclusão social são parte
lidariedade. Comum a grande parte república e o Ato Institucional N°
da própria estrutura de legitimação dos
das constituições políticas modernas 3, assim como uma lei de 1968 sus-
sistemas políticos modernos: até mesmo
(seja em seus instrumentos escritos, pendeu eleições diretas para prefeito
as mais tirânicas ditaduras e oligarquias
seja na forma como elas são concre- em diversos municípios brasileiros,
prometem inclusão social. Aliás, todas
tizadas e interpretadas por cortes e inclusive as capitais. Para mim, a
as ditaduras do mundo, hoje, sem ex- existência de eleições diretas, am-
comunidades políticas). ceção, têm constituições com amplos plas e inclusivas para presidente da
catálogos de direitos (trazidos no texto República é um elemento central de
IHU On-Line – Que modelo de ou pela prática de interpretação jurisdi- disputa em toda nossa história, so-
Estado a Constituição de 1988 cional). Sem essas promessas, o sistema bretudo se lembramos que o Brasil
concebe? político entra em crise, normalmente elegeu apenas quatro presidentes de
uma crise de legitimação que pode fa- forma direta nos últimos 58 anos. E
Pablo Holmes – A narrati- zer sucumbir a autoridade dos governos.
va mais comum sobre o processo que, até 1960, ano da última eleição
Uma velha lição de Max Weber2 ainda presidencial antes da nova Consti-
constitucional de 1988 afirma que faz sentido: é bastante improvável que tuição, apenas uma ínfima parte da
ele resultou de um processo que co- um governo se mantenha de forma in- população participava do processo
locou na defensiva setores conser-
eleitoral.
vadores: um resultado do desgaste 1 Bruce Ackerman (1943): pesquisador de Direito Consti-
da ditatura militar. Isso teria feito tcional nascido nos Estados Unidos. Professor da Yale Law
School. (Nota da IHU On-Line)
Para se ter uma ideia, enquanto na
da nossa carta política um docu- 2 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considera- República Oligárquica da Constitui-
do um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o
mento “progressista”, recheado de espírito do capitalismo (São Paulo: Companhia das Letras) ção de 1891 a eleição presidencial
direitos e declarações programá- é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. A
IHU On-Line dedicou-lhe a sua edição 101, de 17-5-2004,
com maior participação popular le-
ticas em favor da inclusão, sobre- intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito do vou 5% da população às urnas, em
capitalismo 100 anos depois, disponível em http://bit.ly/
tudo na forma de direitos sociais. ihuon101. Sobre Max Weber, o IHU publicou o Cader- 1929, e na ordem de 1946 a maior
Essa é, na minha opinião, apenas nos IHU em Formação nº 3, de 2005, chamado Max We-
ber – o espírito do capitalismo disponível em http://bit.ly/
eleição foi a de 1960, com partici-
uma parte da história. ihuem03. (Nota da IHU On-Line) pação de aproximadamente 17% da

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população, a eleição presidencial de cia da população nas decisões coleti- de mecanismos introduzidos nas
1989 contou com o voto de 49% da vamente relevantes. Há diversas for- constituições que tornam impossível
população. E as eleições de 2014 teve mas de reformar a constituição no qualquer deliberação pública coleti-
a participação de quase 60% de to- sentido de “desconstitucionalizar” va sobre o endividamento do Estado
dos os brasileiros. processos decisórios. ou sobre a possibilidade de realizar
gastos públicos.
Outros elementos fundamentais da Por desconstitucionalização enten-
nova ordem constitucional também do aqui dinâmicas segundo as quais Esse tipo de mecanismo consti-
podem ser identificados com esse processos de decisão coletivamente tucional é baseado, normalmente,
processo de democratização política, vinculantes, baseados em procedi- em uma premissa que é deixada in-
como o fim de dispositivos típicos da mentos inclusivos e juridificados, visível: a de que direitos individu-
ordem ditatorial, que davam amplos como os procedimentos eleitorais, ais de propriedade (os investidores
poderes ao presidente da república e legislativos parlamentares e mesmo proprietários de títulos da dívida
afastavam de qualquer tipo de con- judiciais, são substituídos por for- pública) têm primazia frente a qual-
trole parlamentar ou judicial atos mas de decidir (sobretudo acerca de quer outro direito fundamental. Veja
instituídos pelo golpe de 1964. direitos fundamentais) organizadas bem: é próprio do processo de cons-
em estruturas não procedimentali- titucionalização garantir direitos in-
Muitas vezes tratamos como trivial dividuais e coletivos. Mas o balanço
zadas e não includentes. Aqui é im-
algo que é, na verdade, a grande no- entre os dois, o sopesamento de sua
portante conceitos como o de “poder
vidade da ordem constitucional de aplicabilidade e da forma como eles
informal” e de “autoridade privada”,
1988: o estabelecimento de uma de- interagem, assim como sua opera-
pois o processo de desconstituciona-
mocracia política protegida por di- cionalização, dependem sempre de
lização implica, exatamente, que se
versos mecanismos a garantir, pela processos políticos e judiciais em
transfira o poder formal constitucio-
primeira vez, algum acesso mínimo que direitos de propriedade são con-
nal para formas de poder informal,
de todos os brasileiros e brasileiras a frontados com outros direitos segun-
desviando as decisões que deveriam
processos de decisão coletiva. Nesse do um processo reflexivo. Direitos
ser tomadas por procedimentos de-
sentido, o modelo de Estado que se fundamentais são assim politizáveis
mocráticos para outras arenas, im-
estabeleceu em 1988 foi um modelo e temporalizáveis (tornados con-
que os juristas costumam chamar de
pondo muitas vezes interesses parti- 43
cularistas a toda a coletividade. tingentes), sem que nenhum tenha,
“Estado Democrático de Direito”. de antemão, o primado total sobre
Algo surpreendente, dada nossa his- Vimos recentemente o caso do a ordem constitucional. É sempre
tória anterior. auxílio moradia de magistrados e preciso levar em conta problemas de
membros do Ministério Público, um inclusão e exclusão, problemas po-
benefício baseado em uma decisão líticos intergeracionais, a autocom-
IHU On-Line – As ideias re-
bastante questionável de um minis- preensão da comunidade política e
correntes de reforma constitu-
tro do STF [Supremo Tribunal Fe- os problemas concretos com que a
cional tentam mascarar o dese-
deral], em clara afronta a diversos sociedade tem que lidar. Em suma,
jo de constituir outro Estado?
dispositivos constitucionais. Não essas são decisões eminentemente
Pablo Holmes – Não vejo pro- quero dizer que o auxílio deveria coletivas, que compõem o núcleo da
blemas, a priori, na possibilidade de ser proibido por razões morais. Não função da política. São questões in-
se empreender reformas constitu- se trata disso. Mas ele foi mantido, decidíveis, porque implicam opções
cionais. Elas são parte do processo pura e simplesmente, por conta de que nenhum técnico pode fazer por
político democrático. O problema manobras que evitam que as insti- ninguém: elas estão na raiz da frag-
seria, na verdade, se não pudésse- tuições constitucionais possam de- mentação da moralidade e na diver-
mos alterar a constituição. Imagi- cidir. Há diversos exemplos disso, sidade de projetos de sociedade fu-
nemos o quão pouco democrática não só no Supremo, mas em diver- tura típica da modernidade.
é uma ordem constitucional que se sas instituições. Embora tivemos
imunize em relação à possiblidade um processo sempre precário de O primado total de um direito
de decisões coletivas que a alterem. constitucionalização, esse não é um (como o da propriedade) sobre o ou-
Num contexto socialmente dinâmi- problema exclusivamente brasileiro, tro (o do acesso à educação ou acesso
à saúde) significa uma absolutização
co, as consequências disso podem existe em qualquer democracia, mas
que é contrária à fragmentação de
ser tremendas: o total imobilismo da ele pode se tornar estrutural. E pode
valores que funda as ordens constitu-
sociedade. se dar por meio do poder de reforma
cionais modernas. Poderíamos dizer
constitucional, num processo que, às
Dito isto, é preciso, contudo, ter que essa, sim, é uma forma essencia-
vezes, pode tomar formas perigosas.
clareza de que há, também, a possi- lista de política “identitária”: a iden-
bilidade de reformas constitucionais Quando esse processo de des- tidade do proprietário (de títulos pú-
que procurem, exatamente, imuni- constitucionalização pode se tornar blicos) se impõe sobre a identidade
zar o Estado e o processo político estrutural? Um exemplo contem- de todos os outros indivíduos, como
contra a possibilidade de interferên- porâneo que me vem à mente é o se ele fosse um supercidadão acima

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TEMA DE CAPA

dos outros, tornados subcidadãos e, observar, por exemplo, a forma não representa necessariamente
portanto, excluídos de processos de- como as organizações democráticas um processo de constitucionaliza-
cisórios que lhe dizem diretamente são constrangidas e condicionadas ção política, no sentido técnico. Se
respeito. Alguns autores têm falado por contingências históricas e so- assim fosse, poderíamos falar em
até mesmo de uma refeudalização da ciais vindas da economia, da tradi- constitucionalização em qualquer
sociedade. Esse processo retiraria da ção jurídica, das condições de ex- contexto em que um ditador ou uma
comunidade política grande medida clusão social etc. E entender como oligarquia outorgam uma constitui-
de capacidade decisória, reduzindo se dá a constitucionalização política ção, mas utilizam de seus processos
as alternativas possíveis de futuro diante desses constrangimentos, como meros mecanismos privados
disponibilizadas à sociedade: como que são sempre inevitáveis. de manutenção do poder. A consti-
na sociedade medieval europeia, o tucionalização política é uma forma
Nesse sentido, “ideais de democra-
passado (a tradição) vincula o futu- específica de organização do poder
cia” são aspirações mais políticas do
ro, que passa a ser visto como um político, fundada na diferenciação
que teóricas. E, embora teorias pos-
“destino”. do sistema político por meio de pro-
sam ter significado político, há uma cessos juridificados (eleitorais, ad-
Ainda é cedo para dizer se a cons- diferença fundamental entre as duas ministrativos, judiciais) que se tor-
tituição política e a democracia coisas. Teorias devem ser orientadas nam a única fonte de poder legítimo
serão superadas. O poder privado primariamente para a cognição, exi- aos olhos da sociedade.
ainda necessita da polícia e do di- gindo sempre alto nível de reflexivi-
reito estatais, ainda funcionando dade e autocrítica, para permanecer Dizer que as constituições de 1824
muito mais como um parasita do sempre capazes de “aprender” com a ou de 1891 representaram processos
poder formal. E ele ainda não pa- realidade, observando seus próprios de constitucionalização, porque fo-
rece ser capaz de substituí-lo em limites explicativos. Agendas políti- ram capazes de legitimar o poder, é
suas funções de legitimação. Mas cas, por outro lado, embora também um erro conceitual básico. O poder
é evidente que estamos vendo uma possam (e devam) ser reflexivas e não se reproduzia, nesses contextos,
naturalização crescente de formas ter capacidade de aprender com a nem mesmo com base nos proces-
de poder privado e de uma compre- realidade, devem ser primariamente sos previstos constitucionalmente.
44 ensão bastante reduzida de direitos orientadas para a decisão coletiva. Os bloqueios aos procedimentos
fundamentais que parecem às vezes Portanto devem limitar a dimensão jurídicos parlamentares e judiciais
um renascimento do direito natu- de reflexão e autocrítica, sob pena eram constantes, por força da in-
ral. Uma forma, portanto, pós-polí- de serem paralisadas e terem difi- trusão de interesses particularistas
tica, pós-democrática e pós-consti- culdade de orientar qualquer ação de grupos poderosos, que continua-
tucional de definir direitos. Espero ou decisão coletivamente relevantes. mente violavam, de forma explícita,
que essa seja apenas uma tendência A teoria se preocupa primariamente os processos tais quais previstos no
entre outras na sociedade mundial. com perguntas e apenas secundaria- texto. Os procedimentos eleitorais,
mente com respostas, e com política censitários (Constituição de 1824)
se dá o inverso, dada a sua necessi- ou excludentes (Constituição de
IHU On-Line – O processo 1891) eram constantemente frau-
dade de orientar decisões. Se a teo-
constituinte pensou em um dados e bloqueados. O direito ao
ria se orienta mais por respostas, ela
ideal de democracia. No que habeas corpus foi constantemente
perde a capacidade crítica. E se a po-
consiste essa democracia e o suspenso, por força de intervenções
lítica se orienta primariamente por
quanto ela se efetiva no Brasil federais e declarações de estado de
perguntas, ela perde a capacidade de
de hoje? sítio, completamente casuísticas e
orientar decisões e ações.
Pablo Holmes – Do ponto de nunca controladas.
Ao analisarmos teoricamente o
vista teórico, é problemático se ter A Constituição de 1988 estabele-
que se deu depois da constituinte de
um “ideal de democracia”. A demo- ceu procedimentos que passaram a
1988, percebemos que seus avanços
cracia é uma forma dinâmica de to- exigir novos esforços por parte das
e seus limites podem ser observa-
mada de decisões coletivas que pode velhas oligarquias nacionais para o
dos a partir do próprio processo de
se organizar de formas diversas. exercício de poder privado informal
constitucionalização política que ela
Parece-me mais importante para a e ação desconstitucionalizante. E,
realizou. Esse processo pode ser des-
teoria social e política entender as como consequência, ela criou uma
crito como uma diferenciação entre
formas existentes de democracia e o dinâmica nova de tematização e po-
direito e política, seguido por sua
modo como elas se organizam e se litização da realidade social. Toda
reconexão graças a procedimentos
relacionam com outras estruturas uma nova agenda política surgiu,
juridificados capazes de organizar o
sociais do que insistir em um mo- trazendo à tona temas que passaram
processo de decisão coletiva de ma-
delo “normativo” de democracia, a ser vistos como problemáticos, a
neira includente.
que exista fora da realidade, capaz exigir “tomadas políticas de deci-
de servir como paradigma para as Importante insistir que a mera são”. A exclusão social e as diversas
democracias existentes. É mais útil existência de cartas constitucionais formas de desigualdade (de renda,

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de gênero, as profundas desigualda- pois isso levaria a uma fragmenta- PSDB poderia residir no fato de que
des raciais) vieram para o centro do ção política com grandes problemas o primeiro, composto por neófitos do
debate político brasileiro. Não é pos- para a governabilidade. sistema político, não dispunham das
sível negar isso. Algo que se acen- redes oligárquicas de proteção que
Contudo, a pesquisa em ciência
tuou depois da estabilização econô- garantiram (e parecem ainda garan-
política demonstrou já há um bom
mica do começo dos anos 1990. tir) proteção aos políticos dos parti-
tempo que essa narrativa conta ape-
dos tradicionais, incluindo o PSDB.
Parece-me aliás razoável espe- nas uma parte da história. Em rea-
rar que numa sociedade tão estru- lidade, sistemas parlamentaristas e Nesse sentido, parece-me relevante
turalmente desigual, reproduzida presidencialistas podem ter muitas outra crítica ao presidencialismo de co-
transversalmente por relações de semelhanças entre si, dependendo alizão, como ele se organizou sobretudo
inclusão e exclusão, o sistema polí- da forma como se dão os trabalhos desde 1993/1994. Segundo essa crítica,
tico, quando se democratize, traga parlamentares e dos poderes que são feita entre outros por Marcos Nobre3,
esses problemas para o centro da atribuídos ao presidente da repúbli- a democracia da Nova República teria
agenda pública. Sociologicamente, ca e aos atores centrais do parlamen- sido imobilizada pelo próprio modelo,
minha intuição é a de que, a menos to. De modo que o nosso presiden- funcionando quase como um prolonga-
que tenhamos uma ruptura defini- cialismo de coalizão trouxe muitos mento das formas oligárquicas do pas-
tiva com a ordem democrática, esse elementos do parlamentarismo, ao sado. Nobre chama de “peemedebismo”
tema ainda dominará a agenda po- mesmo tempo em que atribuiu mui- esse arranjo institucional no qual qual-
lítica das próximas décadas. É fun- tos poderes ao presidente da repú- quer impulso mudancista mais radical
damental para isso que haja eleições blica. No final, quase todos os presi- contra estruturas de exclusão social,
periódicas sem a exclusão de opções dentes conseguiram construir algum vindo da esfera pública, pode ser blo-
relevantes para os eleitores. E dada tipo de maioria parlamentar, procu- queado pela maioria parlamentar oligár-
nossa história, nunca se pode des- rando compor grandes coalizões que quica, que cobra um alto pedágio para
cartar a possibilidade de que eleições afastassem o risco de “perda da go- não colocar em risco a governabilidade
possam ser manipuladas ou simples- vernabilidade”. e, em última análise, o próprio mandato
mente suprimidas. do chefe do Executivo.
Com efeito, alguns criticam o sis-
Voltando ao que dizia no início, a tema político da Nova República, o Certamente, o arranjo pelo qual 45
própria democracia brasileira pro- chamado “presidencialismo de co- oligarquias e setores superincluídos
duziu um ideal de democracia fun- alizão”, por ter favorecido uma re- garantem seu poder informal pode
dado numa ampliação da inclusão lação promíscua entre o Executivo ter mudado com a Constituição de
social. E nesse sentido “a casa de e o Legislativo, o que se tornou evi- 1988, mas não sumiu completamen-
máquinas da constituição”, depois dente nos seguidos escândalos de te. E Nobre tem parcialmente razão.
da democratização, passou a ser a corrupção. Esse fato parece mesmo Sem dúvida, custa-me a acreditar
noção moderna de solidariedade so- ter sido solenemente ignorado por que 200 ou 300 anos de história
cial (funcional). Ao menos enquanto muitos dos maiores defensores do política teriam sido alterados por
tivermos uma constituição democrá- modelo do presidencialismo de coali- força do movimento constitucional
tica. Sei que essa é uma intuição pro- zão. Sobretudo alguns cientistas po- de 1988. Muitas vezes, nem mesmo
blemática, mas acredito haver boas líticos abertamente ligados ao PSDB revoluções radicais são capazes de
evidências em sua defesa. afirmaram por muito tempo que as realizar tal mudança.
crises políticas de 2005 e 2016 se de-
O sistema político de 1988, com o
viam a uma incompetência na gerên-
IHU On-Line – Como avalia presidencialismo de coalizão e suas
cia da coalizão ou mesmo à prática
o sistema político gestado na idiossincrasias, foi em muitos sentidos
indiscriminada de corrupção como
Constituição de 1988 e a sua uma alteração apenas incremental (não
mecanismo de formação de maiorias
aplicabilidade nos dias de hoje? revolucionária) da organização do Esta-
pelo Partido dos Trabalhadores. Algo
Pablo Holmes – Há formas di- que, segundo eles, não acontecia no
3 Marcos Nobre (1965): graduado em Ciências Sociais,
versas de organizar a democracia. E, passado, leia-se nos governos FHC. mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São
em realidades altamente complexas, Isso parece não só contraintuitivo, Paulo – USP. É professor da Universidade de Campinas
– Unicamp. Atua no Centro Brasileiro de Análise e Plane-
essa tarefa é também igualmente como foi desmentido seguidamente jamento – Cebrap desde 1990, como integrante da área
de Filosofia e Política, tendo se tornado pesquisador da
complexa. Muito se argumentou que pelas melhores evidências. O mais casa em 1997. Em 1999 fundou, juntamente com Ricardo
o arranjo institucional estabelecido provável é que o modelo tenha mes- Terra, o Núcleo Direito e Democracia, coletivo de pesqui-
sa interdisciplinar orientado pela perspectiva da Teoria
pela Constituição de 1988, baseado mo se sustentado, desde o começo, Crítica, do qual foi o coordenador até 2012. De 2006 a
2011, foi professor visitante da Université d’Auvergne,
no multipartidarismo e no voto em com base em uma série de práticas à Clermont-Ferrand, França. Foi pesquisador visitante nas
lista aberta, sem cláusula de barrei- margem da lei, sobretudo por meio universidades: da Califórnia (Berkeley), Johann Wolfgang
Goethe (Frankfurt/Main), Chicago, Paris I (Sorbonne),
ra, criaria uma instabilidade perma- do uso de recursos públicos para o Leipzig, Humboldt (Berlim). É autor da tese do “peeme-
debismo”, como ele batizou a ideia da existência de um
nente para as maiorias parlamen- financiamento eleitoral de aliados e bloco de forças políticas que, ao se associar ao governo,
tares, o que seria contraditório em consequente garantia de apoio par- lhe dá estabilidade e o blinda contra ameaças como o
impeachment que o ex-presidente Fernando Collor so-
relação ao sistema presidencialista, lamentar. A diferença entre o PT e o freu em 1992. (Nota IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

do, no Brasil. A nossa Constituição não de exclusão fazem parte da socieda- E quais as causas disso? Certamente
resultou de um processo revolucionário, de. Estão na economia, na educação, não faltam candidatos à vaga de cau-
como o processo de constitucionaliza- na saúde, na cultura e, portanto, sa fundamental de nossa tragédia,
ção em grande parte dos países ricos. serão refletidas no sistema político, tampouco candidatos a “intérprete
Para Dieter Grimm4, importante teórico qualquer que seja seu arranjo. Por do Brasil” a querer entregar a me-
da constituição, esse é aliás um elemento isso sou também cético em relação a lhor descrição do problema – e tal-
fundamental para compreender a origem um certo “fetichismo” acerca da re- vez a “solução final”. Alguns acham
do constitucionalismo. Mas do ponto de forma política. Sempre pode haver que os percalços da nossa precária
vista do sistema político, essa alteração avanços incrementais. Mas nenhu- democratização se devem primor-
incremental teve um relevante caráter de ma reforma (exclusivamente) polí- dialmente às nossas “desigualdades
novidade – e até mesmo de ruptura com tica irá representar uma revolução sociais” estruturais. Outros veem o
nossa trajetória anterior. Volto a reafir- social. Sociologicamente, não acho grande problema na escravidão e
mar que vejo a democratização (que en- que existem muitos equivalentes em seu legado; outros ainda identi-
tendo conceitualmente quase como um funcionais para uma revolução, para ficam as causas no próprio caráter
sinônimo de constitucionalização) como o bem e para o mal. historicamente oligárquico do siste-
algo muito menos trivial do que pode ma político, herdado de um passa-
Com todos os seus limites, a Cons-
parecer. Ainda mais por ter conseguido do colonial problemático. Há ainda
tituição de 1988 possibilitou pela
alguma estabilidade, ao menos desde aqueles que interpretam tudo como
primeira vez a sociedade refletir co-
1994 até 2016. São 22 anos! resultado da forma de inserção de-
letivamente sobre seus problemas
pendente da economia nacional no
As crises políticas desde 1988 (so- (formulando-os, em primeiro lugar).
sistema internacional de trocas.
bretudo os dois impeachments), Veja bem: estamos falando de um
Parece-me que todos – e, portanto,
assim como o “imobilismo” oligár- Estado que se democratizou apenas
nenhum – têm alguma razão. Acho
quico do nosso sistema político, têm no final do século 20. De uma socie-
um equívoco tentar identificar uma
raízes complexas e multicausais, que dade marcada por formas transver-
causa única, ou mesmo primordial,
tornam também limitadas as críti- sais de exclusão social que produzem
para o fato de que temos uma histó-
cas de Nobre ao presidencialismo estruturas poderosas de bloqueio à
ria constitucional marcada por um
46 de coalizão. Para mim, isso acontece constitucionalização. De processos
profundo déficit de democratização.
porque ele parte de uma observação políticos marcados pela reprodução
As causas para isso são várias, e elas
do processo de constitucionalização de poder informal por oligarquias
se reforçam reciprocamente.
quase que exclusivamente centra- funcionais altamente excludentes e
da no sistema político. Nesse pon- poderosas, capazes de fortes movi- A escravidão provavelmente resul-
to, é importante, como disse antes, mentos de desconstitucionalização. ta da forma como se deu a inserção
uma visão que contextualize socio- da economia brasileira no sistema
Estabilizar a democracia entre nós
logicamente também o processo de econômico mundial, mas tal inser-
é algo profundamente improvável,
constitucionalização, observando ção seria improvável sem a existên-
e essa estabilização ainda está em
suas condicionantes para além do cia da própria escravidão moderna
aberto. Mas não tenho dúvida de
sistema político. A democratização e do estabelecimento de instituições
que houve claros avanços nessa di-
política, em uma situação estrutu- (nacionais e transnacionais) capa-
reção nos últimos 30 anos. Seria um
ralmente marcada por formas de zes de garantir a reprodução de uma
retrocesso perdermos até mesmo o
exclusão social, sempre é também economia escravista. A ordem ins-
problemático presidencialismo de
estruturalmente limitada. Não exis- titucional da colônia certamente foi
coalizão da Nova República– imo-
te democracia em um vácuo social, responsável pela produção de pro-
bilista, peemedebista –, se não fosse
como resultado de um voluntarismo fundas desigualdades. E essas expli-
em favor de um arranjo mais demo-
vanguardista. E por isso democra- cam a permanência de um sistema
crático. O nosso maior problema,
cias são tão improváveis. político oligárquico. Mas apenas um
hoje, é que existe um risco razoável
sistema oligárquico extremamente
Com isso não quero dizer que o de que percamos até mesmo ele. E
hierárquico poderia ser capaz de blo-
presidencialismo de coalizão, assim sem ganhar algo melhor.
quear por tanto tempo pressões polí-
como o “presidencialismo de coopta- ticas por democratização, sobretudo
ção” que o acompanhou, é o melhor IHU On-Line – Quais os maio- depois de 1888 (ano da abolição).
dos mundos possíveis. Meu ponto é res avanços da Constituição e
apenas o de que há razões estrutu- Para resumir meu argumento: em
quais os desafios para assegu-
rais para que o processo de constitu- uma sociedade complexa, torna-se
rar sua efetivação?
cionalização brasileiro tenha se dado epistemologicamente suspeita qual-
dessa maneira. As nossas estruturas Pablo Holmes – Um exame da quer identificação de causas únicas
nossa história mostra que o processo para a reprodução de estruturas
4 Dieter Grimm (1937): jurista alemão. De 1987 a 1999, foi de democratização foi cheio de so- sociais que se entrelaçam. Pois os
juiz do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Doutor em
Direito pela Universidade de Frankfurt am Main, da qual
bressaltos. E ainda hoje é algo bas- condicionamentos são recíprocos:
tornou-se livre docente em 1979. (Nota da IHU On-Line) tante frágil e precário. a reprodução da economia depende

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da reprodução do direito e da polí- exclusão. Isso inclui, então, atores pri- exige apenas que você tenha cidada-
tica e vice-versa. Ao invés de procu- vados e agentes públicos com acesso a nia. Claro que a cidadania pode ser
rar o “porquê” de um fenômeno, faz bens e processos e com capacidade de se também limitada por uma série de
mais sentido compreender como ele impor sobre qualquer controle: seja por desigualdades estruturais. E como
é produzido de forma estrutural e meio de normas jurídicas, pelas regras demonstram pesquisas empíricas
processual. da economia de mercado, da ciência, recentes, o comparecimento eleito-
podendo colonizar sistemas funcionais ral tem correlação positiva com o ní-
Assim, se tivesse que escolher uma
para reproduzir seus interesses e posi- vel de inclusão social e negativa com
forma de descrever o problema da for-
ções. o nível de pobreza.
ma mais simplificada possível – e isso
às vezes é necessário na teoria política Essa estrutura social passa a para- Ainda assim, no procedimento
e social –, eu escolheria fazer uso da di- sitar as estruturas organizacionais eleitoral, caso ele haja, cada indiví-
ferença “inclusão/exclusão”, como pro- do Estado, das empresas, das esco- duo tem apenas um voto. E a pró-
põe, entre outros, Marcelo Neves5. Pois las, das universidades, favorecendo, pria crítica às limitações do proces-
essa diferença consegue descrever de novamente, interesses particularis- so eleitoral, por serem marcados
forma heurística e menos abarcante uma tas e sua ação desconstitucionalizan- por desigualdades, é já um processo
relação social que tem um significado te. Assim, a estrutura de inclusão e de politização em si mesmo. A de-
transversal, embora com diferenças es- exclusão, embora seja ela mesma mocracia política pode tornar pos-
pecíficas. Pois se reproduz tanto na eco- contingente, tende a se tornar bas- sível, assim, um crescente processo
nomia, como no sistema político, como tante estável e resiliente no interior de politização de formas de exclu-
no sistema jurídico, gerando dinâmicas de um Estado, condensando-se tam- são social, ao mesmo tempo em que
altamente estáveis e capazes de se refor- bém no plano global, graças à dife- pode criar um mecanismo bastante
çar reciprocamente. renciação entre centro e periferia direto de interferência da popula-
entre Estados nacionais diversos: o ção em processos sociais de outros
Afinal, como apontava Niklas
que nos leva novamente à forma de setores da vida social.
Luhmann6, quem, em uma sociedade
inserção dos Estados na economia
moderna, não tem acesso a uma iden- Há elementos empíricos relevan-
política global.
tidade ou certidão de nascimento (e, tes, oferecidos pela pesquisa eco-
portanto, à cidadania jurídica) pode ter Certamente, a diferença entre cen- nômica, que apontam uma forte 47
dificuldades de acesso à educação for- tro e periferia, baseada na segmenta- correlação entre inclusão política
mal. Sem educação formal, reduzem-se ção do sistema político em Estados, e inclusão econômica. E a ciência
as chances de ação na economia, obten- também tem caráter contingente. política também tem investigado a
do-se acesso ao dinheiro. Sem dinheiro, Mas, em um dado contexto social, correlação entre direitos políticos
não se tem acesso a saúde, arte, ciência, relações de inclusão e exclusão, re- de associação e protesto como con-
informação, nem se pode pagar advo- forçadas por formas de inserção na dição para a garantia de direitos
gados que poderão garantir a defesa de economia global, podem se tornar fundamentais individuais, inclusive
direitos violados. Sem a capacidade de ainda mais estáveis. E sua superação aqueles que se referem às liberda-
atuar como parte em um processo judi- depende de constelações de fatores des econômicas. Nesse sentido, pen-
cial, o indivíduo se torna presa fácil de altamente improváveis. so que a Constituição de 1988, que
estruturas de poder arbitrárias, estatais estabeleceu entre nós pela primeira
Nesse ponto, parece-me extrema-
ou privadas, fundadas no poder informal vez a forma moderna de democracia
mente relevante introduzir uma
de atores sociais superincluídos. Desse representativa, deu um passo impor-
hipótese que considero bastante
outro lado, quem tem acesso a dinheiro, tante para a superação de problemas
plausível teoricamente. E na qual
tem acesso à educação, ao direito, ao po- estruturais de exclusão social.
já toquei anteriormente. E aqui me
der, tornando-se capaz de produzir redes
afasto também de Neves. Isso não quer dizer, como parecem
que garantem as relações de inclusão e
O sistema político, quando cons- pensar alguns, que o Brasil realizou
5 Marcelo Neves: bacharel e mestre em Direito pela titucionalizado democraticamente, a sua “transição”. Para começar, a
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Doutor em
Direito pela Universidade de Bremen, com estágio pós- pode desenvolver uma dinâmica ideia de transição, típica de teorias
doutoral na Universidade de Frankfurt e na London Scho- do desenvolvimento, parece-me um
ol of Economics and Political Science. Livre-Docência pela
muito particular de inclusão. Ao
Faculdade de Direito da Universidade de Fribourg na Suíça contrário de outros sistemas, como tanto simplificadora, para uma rea-
(2000). Professor da UFPE. (Nota da IHU On-Line)
6 Niklas Luhmann (1927-1998): Estudou direito em Fri- a ciência ou a economia, nos quais lidade tão complexa. Pois ela parte
burgo, onde se doutorou em 1949. Em 1960, viajou aos da ideia de que existe um processo
Estados Unidos e estudou sociologia na Universidade de
é preciso alto nível de acesso a bens
Harvard. Em 1964, publicou Funktionen und Folgen forma- como conhecimento, educação e evolutivo fixo, em que países não
ler Organisation (Duncker & Humblot, Berlim) e ingressou
na Universidade de Münster, em Dortmund, onde douto- recursos organizacionais para se desenvolvidos “se desenvolvem”. O
rou-se em Sociologia Política. Em 1968, se estabeleceu em
Bielefeld, em cuja universidade permaneceu o resto de
poder agir, ou mesmo o direito, no problema é que a relação desenvol-
sua carreira como catedrático. Recebeu o prêmio Hegel qual você precisa muitas vezes de vimento/subdesenvolvimento, equi-
em 1988. Em língua portuguesa, foram publicadas obras
como Legitimação pelo procedimento (Brasília: Ed. Univ. de um advogado com conhecimento valente à diferença tradição/moder-
Brasília, 1980), Sociologia do Direito (Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1985), A Improbabilidade da Comunicação (Lis-
técnico para figurar como parte em nidade, supõe uma relação temporal
boa: Vega, 1992). (Nota da IHU On-Line) um processo, a política democrática para uma realidade sincrônica. Só

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existe subdesenvolvimento porque domínios as condições em que se crise política? Por quê? E que
existe desenvolvimento: e as duas pode produzir inclusão são diversas. conexões podem ser estabeleci-
coisas se relacionam de forma causal Para complicar ainda mais, uma for- das entre essa crise e a Consti-
de maneira igualmente complexa. ma de inclusão sempre parece ter re- tuição de 1988?
lação com a outra. A inclusão na eco-
Segundo entendo, o que há é Pablo Holmes – Se olhamos os
nomia, em regiões com renda baixa
muito mais uma concorrência, na eventos dos últimos três ou quatro
(como o Brasil), certamente depen-
sociedade mundial atual, não de- anos, podemos ver como são evi-
de de alguma medida de crescimen-
cidida entre duas dinâmicas de denciados, em momentos de crise,
to econômico. E, embora o cresci-
reprodução: uma dinâmica fun- a força do poder informal e a ca-
mento tenha muita relação com a
dada na inclusão crescente de in- pacidade de setores sociais privi-
política, não depende apenas dela:
divíduos nos sistemas funcionais legiados de manipular o sistema
dependendo de uma constelação de
da sociedade e outra fundada na político em favor de interesses
acasos que incluem as mais diversas
manutenção da diferença inclu- privados. A resiliência de proces-
variáveis. Pense apenas em como a
são/exclusão como reguladora da sos de exclusão, a desconsideração
educação de jovens, hoje, de acordo
reprodução social em diversos ní- de resultados eleitorais e a capaci-
com determinada aptidões, pode se
veis e setores sociais. Essas dinâ- dade de promover agendas especí-
tornar incompatível com mudanças
micas podem, em dadas circuns- ficas à revelia de maiorias eleito-
tecnológicas futuras, com impacto
tâncias, ganhar uma dimensão rais são indicadores de que aquela
na economia, na política etc.
regional clara, dado que sistemas disputa de que falamos acima está
funcionais dependem das estrutu- Resumindo: a “efetivação da cons- longe de ter sido decidida de for-
ras do Estado, em muitos aspec- tituição” depende de uma série de ma definitiva.
tos. E isso nos traz mais uma vez variáveis. Que são difíceis de contro-
lar. Isso não quer dizer que não po- Não me refiro, obviamente, ao impe-
ao caso brasileiro, que é apenas
demos, ao menos, fazer aquilo que achment de Dilma Rousseff7. Acredito
mais um numa sociedade moder-
nos cabe. E nesse ponto a política que o processo foi marcado por incon-
na altamente desigual, sobretudo
continua, sim, sendo um espaço al- sistências jurídicas. Sobretudo porque
em virtude das diversas formas de
tamente relevante. violou o princípio da igualdade jurídica,
48 dependência de trajetória deixa-
que determina tratar igualmente casos
das pelo processo colonial e pela
iguais: uma condição da diferenciação
dominação política e econômica
do direito moderno e, portanto, uma
dos Estados ricos.
“Certamente, condição da constitucionalização demo-

o arranjo pelo
No sistema político-jurídico bra- crática. Mas essa é uma discussão inde-
sileiro, a primeira dinâmica parece pendente, em relação a meu argumen-
ter avançado bastante com o pro-
cesso de constitucionalização de qual oligarquias to, pois um impeachment não significa
necessariamente uma ruptura da ordem
1988 que, mesmo precário e “imo-
bilista”, criou uma dinâmica de po- e setores su- constitucional.
O problema é que estamos assis-
litização da exclusão social e uma
consequente pressão por inclusão. perincluídos tindo a um processo mais amplo.

garantem seu
Preocupa-me que, depois de 2016,
A segunda dinâmica, no entanto,
vimos seguidas manobras, no sen-
não foi extinta. Longe disso. Ela
é bastante ubíqua, apresentando-
se de diversas formas, como na
poder informal tido de bloquear investigações, de
usar o poder informal de influên-
apropriação do Estado por seto-
res privilegiados, como parte dos
pode ter mu- cia para violar procedimentos judi-
ciais – e fatalmente eleitorais – em
servidores públicos, nas redes que
protegem setores das oligarquias
dado com a favor de interesses particularistas.
O conhecido caso do processo no
da atuação do Judiciário etc. Constituição de TSE chega a ser um exemplo de

Dessa “disputa”, depende, enfim,


a “efetivação da constituição”. Mas
1988, mas não 7 Dilma Rousseff (1947): economista e política brasileira,
filiada ao Partido dos Trabalhadores – PT, eleita duas vezes
presidente do Brasil. Seu primeiro mandato iniciou-se em
uma coisa é importante: essa disputa
não é apenas política. Ela é, na falta
sumiu com- 2011 e o segundo foi interrompido em 31 de agosto de
2016. Em 12 de maio de 2016, foi afastada de seu cargo
durante o processo de impeachment movido contra ela.

de uma palavra melhor, uma disputa


“evolutiva” (ou evolucionária). Ela
pletamente” No dia 31 de agosto, o Senado Federal, por 61 votos fa-
voráveis ao impeachment contra 20, afastou Dilma defini-
tivamente do cargo. O episódio foi amplamente debatido
nas Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por exemplo, a
se dá no terreno do sistema político, Entrevista do Dia com Rudá Rici intitulada Os pacotes do
Temer alimentarão a esquerda brasileira e ela voltará ao
mas se dá também no terreno econô- poder, disponível em http://bit.ly/2bLPiHK. Durante o go-
mico, no terreno científico, no terre- IHU On-Line – O Brasil vive verno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a
chefia do Ministério de Minas e Energia e posteriormente
no pedagógico. E em cada um desses uma crise democrática ou uma da Casa Civil. (Nota da IHU On-Line)

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manual da falta de consistência de pergunta cognitivamente interes- plica que há uma ameaça reconhecida
corpos judiciais em consequência sada e aberta à contingência. como perigosa e há decisões a serem
da interferência do poder informal tomadas que podem afastar tal amea-
Mas, enfim, tampouco pode-
de atores poderosos. ça. Nesse sentido, penso que estamos
mos afirmar que a Constituição
diante de uma crise da nossa constitu-
Alguns insinuam que isso acon- de 1988 foi uma farsa comple-
cionalização. Uma crise que correspon-
tece em qualquer lugar do mun- ta. E que todo o processo político
de àquela “disputa evolucionária” de
do, inclusive em países “ricos”. É que se deu desde então é vazio de
que falei. Prefiro não ver a crise apenas
claro que existe poder informal significado. Vínhamos de um pro-
cesso político produtivo, em razão como uma reação a um governo parti-
em qualquer lugar: ele resulta da
da lábil estabilidade da democra- cular (uma reação da direita a um go-
própria diferenciação do poder
tização, desde 1994. Com todos os verno supostamente popular). Isso seria
como um meio (um recurso) na
seus problemas. Ao mesmo tempo, simplificador e mesmo falso. Do ponto
modernidade. Ainda assim, eu não
passamos recentemente a uma re- de vista teórico, não se trata de pesso-
tenho notícias de que em demo-
cracias mais estabelecidas juízes alidade extrema de incerteza. Vi- as nem de partidos, mas de estruturas
importantes atuaram de forma mos a primeira intervenção federal e processos. E não nego que entendo a
deliberada como líderes políticos em um Estado desde a vigência da história brasileira a partir dessa tensão
de facção, alterando em público Constituição. Aparentemente por evolucionária, altamente complexa, en-
suas próprias decisões e mani- razões puramente político-eleito- tre inclusão e exclusão. Sempre posso
pulando processos de forma rei- rais. E, afinal, não podemos achar me convencer do contrário, se houver
terada. Há democracias em que normal que um governante numa uma explicação melhor. Mas ainda
impeachments são exceções. E democracia diga que “aproveitará” acho que podemos aprender bastante
há “democracias” em que apenas sua impopularidade para governar. por meio dessa distinção.
dois presidentes eleitos terminam Isso é uma refutação de tudo o que Como em todo processo social,
seus mandatos num intervalo de diz qualquer teoria básica sobre ac- em uma sociedade complexa, é di-
60 anos. Há sistemas políticos em countability democrática. O temor fícil dizer de antemão qual serão os
que um presidente tenta bloquear então é o de que possamos ter um desdobramentos e o resultado des-
investigações, mas é constrangi- processo de ruptura mais profun- sa crise. É improvável que apenas
do: seja um adiamento de eleições 49
do jurídica e politicamente. E há um fator seja decisivo. Muitas são
sistemas em que ele pode recorrer ou uma mudança constitucional
as variáveis que determinam essa
a acordos de gabinetes explicita- para um parlamentarismo que iso-
dinâmica. Num país com nossa his-
mente ilegais para impedir o fun- le ainda mais o poder oligárquico
tória, no entanto, acho aconselhável
cionamento do direito. concentrado nos grandes partidos:
que sempre sejamos bastante cau-
uma constitucionalização total do
Não há como negar que há dife- telosos, evitando expectativas por
peemedebismo que reduziria ainda
renças gritantes entre ordens cons- demais otimistas. Repito: é sempre
mais a capacidade de participação
titucionais estruturadas e estáveis bom manter alguma capacidade de
e interferência da população nas
e outras altamente desestrutura- autoironia e auto-observação dis-
decisões relevantes.
das. E por isso faz, sim, sentido tanciada. Além de evitar frustra-
falar em uma modernidade perifé- Estamos vivenciando, enfim, uma ções, tal atitude pode nos esclarecer
rica. Os que negam esse fato pare- crise da nossa democracia. A ideia de acerca de quais opções estão real-
cem deixar a teoria se orientar mais crise, como formulada por Reinhart mente disponíveis. ■
por razões políticas do que por Koselleck8, de que gosto muito, im-
uma compreensão da realidade. É
8 Reinhart Koselleck (1923-2006): Um dos mais impor-
o primado da orientação pela res- tantes historiadores alemães do pós-guerra, destacan- pode-se dizer que a obra de Koselleck gira em torno da
posta (normativa e já desde sempre do-se como um dos fundadores e o principal teórico da
História dos Conceitos. As suas investigações, ensaios e
história intelectual da Europa ocidental do século 18 aos
dias atuais. Também é notável o seu interesse pela Teoria
pronta) sobre uma orientação pela monografias cobrem um vasto campo temático. No geral, da História. (Nota da IHU On-Line)

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Reconstitucionalizar o país é
fundamental para aproximar
Estado e cidadão comum
Para Tarso Genro, somente quebrando barreiras burocráticas
se conseguirá chegar perto da ideia de democracia plena

João Vitor Santos

O
ex-governador do Rio Grande pactuação passa pela reforma do siste-
do Sul Tarso Genro há muito ma tributário, pelo que chama de fim da
tempo vem defendendo uma “‘exceção’ que vem sendo implementa-
nova constituinte para o Brasil. Entre- da por setores do Judiciário e do Minis-
tanto, hoje, ele pondera: “essa Consti- tério Público” e, particularmente, pela
tuinte só se viabilizará num momento democratização da mídia. “A mídia no
de dura e profunda crise do modelo li- Brasil hoje pertencendo a 10 famílias,
beral-rentista, mas isso é apenas uma é o grande poder paraestatal, que faz
possibilidade”. Por isso, fala em “con- a agenda política do país e enquadra a
formação – pela ideologia do merca- maioria dos partidos, que faliram como
50 do e por seus protagonistas – de um instrumentos de mediação da sobera-
modelo social de três terços”, em que nia popular”, avalia.
uma parte seria orquestrada pelo mer-
Tarso Genro é graduado em Direito
cado, enquanto outra ficaria a cargo
de quem trabalha para sustentar esse pela Universidade Federal de Santa
sistema e, uma terceira, “sendo apenas Maria - UFSM e especialista em Direito
caso de polícia e exército de reserva da Trabalhista pela mesma universidade.
produção ou do fascismo, tendendo Sempre pelo Partido dos Trabalhadores
a marginalizar-se de forma integral e - PT, foi governador do Rio Grande do
partindo para violência, provavelmen- Sul (2010-2014), ministro da Educação
te criminosa”. Diante disso, Tarso, na (2004-2005), ministro das Relações
entrevista concedida por e-mail à IHU Institucionais (2006-2007), ministro
On-Line, traz outra perspectiva: a de da Justiça (2007-2010) e prefeito de
reconstitucionalização. Porto Alegre (1993-1997 e 2001-2002).
Atualmente, preside o Instituto Novos
O jurista explica que essa ideia de re-
Paradigmas, entidade que se diz empe-
constitucionalização consiste em “dese-
nhada na produção de análises, diag-
nhar mecanismos de controle público
nósticos, reflexões e estudos que contri-
dos poderes do Estado e de participa-
ção popular, para quebrar as barreiras buam para a afirmação de uma agenda
burocráticas que separam o Estado do democrática contemporânea.
cidadão comum”. Segundo ele, essa re- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em 1988, o Tarso Genro – A Constituição direitos sociais, na maioria dos pa-
Brasil abre um processo de re- de 88 é social-democrata, de cima íses, não veio acompanhada de uma
democratização com a promul- a baixo, mas surgiu num momento redistribuição de custos para finan-
gação de uma nova Constitui- constituinte no qual a experiência so- ciar o Estado. Os ricos continuaram
ção Federal. Que democracia o cial-democrata, em escala mundial, sendo absurdamente ricos e pagando
país idealizou e que democra- começara a decair. Chamei este mo- proporcionalmente poucos impostos,
cia vem construindo nesses úl- mento de crise da social-democracia com exceção dos ricos de países pe-
timos 30 anos? “sem fundos”, pois a deferência aos quenos, como a Noruega e a Suécia.

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“A Constituição de 88 é social-
democrata, de cima a baixo, mas surgiu
num momento constituinte no qual
a experiência social-democrata, em
escala mundial, começara a decair”

Assim, as conquistas da social-de- bar com a “exceção” que vem sen- leira é a conformação – pela ideolo-
mocracia tiveram que ser financia- do implementada por setores do gia do mercado e por seus protago-
das com o endividamento estatal. A Judiciário e do Ministério Público e nistas – de um modelo social de três
distribuição de renda, “via” Estado, democratizar a mídia tradicional. A terços: um terço incluído e fruindo
e as demais políticas públicas sub- mídia no Brasil hoje pertencendo a das “virtudes” do mercado; outro
sidiadas durante os Governos Lula, 10 famílias, é o grande poder para- “um terço”, comendo e trabalhando
melhoraram a vida de 40 milhões estatal, que faz a agenda política do para ele funcionar, vegetando nas
de brasileiros. Foi o máximo de con- país e enquadra a maioria dos parti- beiradas; e o “terceiro terço”, sendo
cessão que as classes dominantes dos, que faliram como instrumentos apenas caso de polícia e exército de
escravistas e reacionárias do Brasil de mediação da soberania popular. reserva da produção ou do fascismo,
permitiram. Agora, veio o troco, com Mas, isso só poderá ser feito por um tendendo a marginalizar-se de for- 51
a derrubada da presidenta Dilma poder constituinte originário, que se ma integral e partindo para violên-
Rousseff e com o “saneamento” do instale no país, no bojo do fracasso cia, provavelmente criminosa.
Estado às custas dos mais miserá- do modelo de transição liberal-ren-
veis, para preservar o que chamam tista, que está em curso.
IHU On-Line – E pensando
“sanidade fiscal”. É, na verdade, uma
numa constituinte hoje, quais
simples experimentação de barbárie
IHU On-Line – O discurso da são os riscos de retrocesso às
social, para manter tudo como está,
austeridade e a ânsia por re- conquistas de 88? E como evi-
com mais desigualdades sociais, que
formas, como a trabalhista e tar que perspectivas de cunho
serão congeladas pela violência e
da Previdência, revelam que o conservador e alinhadas com
pela redução dos foros democráticos
pacto social da Constituição de a lógica da financeirização ger-
conquistados em 88. 
1988 ainda não foi compreen- minem nesse novo processo?
dido? Por quê?
Tarso Genro – Não tem “riscos”,
IHU On-Line – Quais os de-
Tarso Genro – Ao contrário, ele pois este processo de liquidação
safios para fazer com que as
foi muito bem compreendido e por das conquistas de 88, o “retroces-
definições constitucionais as-
isso está sendo destruído e desres- so”, já está correndo brutalmente
sumidas em 1988, como cláu-
peitado. sem reformas constitucionais e sem
sulas pétreas e orientação para
Constituinte. As classes dominantes
a regulamentação de relações
não precisam mudar a Constituição
entre povo e sociedade, atin- IHU On-Line – O senhor é de-
para viabilizar seus interesses, elas
jam o patamar de democracia fensor de uma nova constituin-
o fazem aparentemente dentro da
desejado ainda no processo da te. É essa a única saída para a
ordem, aparelhando as instituições
constituinte? refazer o sistema político na-
e mudando o sentido das normas
cional? E como viabilizar essa
Tarso Genro – É preciso recons- constitucionais, quando isso lhes
constituinte no Brasil de hoje?
titucionalizar o país e, para isso, é conveniente. Basta um exemplo
desenhar mecanismos de controle Tarso Genro – Essa Constituin- paradigmático: a deposição da pre-
público dos poderes do Estado e de te só se viabilizará num momento sidenta Dilma. Quem pode isso –
participação popular, para quebrar de dura e profunda crise do modelo derrubar uma presidenta eleita e
as barreiras burocráticas que sepa- liberal-rentista, mas isso é apenas legítima – e governar com uma Con-
ram o Estado do cidadão comum; uma possibilidade. Hoje, a maior federação de Investigados e Denun-
reformar o sistema tributário; aca- possibilidade para a sociedade brasi- ciados, pode tudo.

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IHU On-Line – Deseja acres- tico no país, que ainda não se sabe já errei vários prognósticos políti-
centar algo? se será melhor ou pior, para a de- cos ao longo da minha vida – em-
Tarso Genro – A partir des- mocracia, do que o presente ciclo bora tenha acertado outros – fico
tas eleições de 2018, com ou sem que está se esgotando. A minha feliz só de pensar que posso estar
Lula, teremos um novo ciclo polí- intuição é que será pior, mas como errado. Tomara.■

Leia mais
- O risco de aniquilamento do espaço político. Entrevista com Tarso Genro, publicada na
revista IHU On-Line, número 494, de 3-10-2016, disponível em http://bit.ly/2GNzBCR.
- “O dinheiro, a ação do dinheiro, está enterrando o Estado e a política”. Entrevista es-
pecial com Tarso Genro, publicada nas Notícias do Dia de 1-3-2016, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2H43exr.

52

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Os sujeitos ocultos que desfiguram


pretensões igualitárias da
ordem constitucional
Guilherme Delgado analisa que os mercados financeiro, de terras
e o de trabalho desregulado são agentes que subvertem a lógica
da Carta Magna, transformando-a no oposto
João Vitor Santos

A
Ordem Social expressa na Cons- tamente com o mercado de trabalho
tituição de 1988 é tomada por desregulado ou todos regulados pelos
especialistas como seus maio- próprios sistemas de preços”, expli-
res avanços, mas, ao mesmo tempo é o ca. Assim, “esses sujeitos ocultos in-
maior alvo de ataques. É o que reside vertem completamente as pretensões
por trás da afirmação de que os direi- igualitárias da ordem constitucional,
tos sociais constitucionais não cabem capturando não apenas o seu espírito,
no orçamento. O doutor em Economia mas ostensivamente os recursos das
Guilherme Delgado reconhece esses finanças sociais e da renda fundiária
ataques, acrescentando que há o “agra- nacional, colocados a serviço dos ricos
vante de que o processo de desconstru- detentores de patrimônios financeiros e 53
ção ora em curso cria profunda anomia fundiários”. Como alternativa, sugere:
social e nenhum programa ou estraté- “uma reforma tributária de caráter pro-
gia capitalista de substituição ao deno- gressivo, com provisão de recursos su-
minado Estado Democrático de Direi- ficientes para financiar as necessidades
to”. Na entrevista a seguir, concedida conjuntas desses sistemas, é condição
por e-mail à IHU On-Line, demonstra necessária à continuidade da política
que essa visão de direitos caros ao orça- social de Estado”.
mento não se sustenta. Para ele, o que Guilherme Delgado é doutor em
há é uma tensão na lógica da financei- Economia pela Universidade Estadu-
rização que vende essa ideia e imprime al de Campinas - Unicamp. Trabalhou
a urgência de reformas que cerceiam durante 31 anos no Instituto de Pesqui-
direitos. “Há um sujeito oculto nessas sa Econômica Aplicada - Ipea. Entre
‘reformas’ porquanto coloca todo o sis- suas publicações, destacamos Capital
tema orçamentário da União caudatá- Financeiro e Agricultura no Brasil –
rio do ‘serviço da dívida pública’, que é 1965-1985 (São Paulo: Icone-Unicamp,
ilimitada nesse sistema”, analisa. 1985) e Do Capital Financeiro na Agri-
O sujeito a que Delgado se refere na cultura à Economia do Agronegócio:
verdade se desdobra em três. “Merca- Mudanças Cíclicas em Meio Século:
do financeiro e mercado de terras, este (1965-2012) (Porto Alegre: Editora da
último agora com pretensão à interna- UFRGS, 2012).
cionalização, são sujeitos ocultos, jun- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que concep- Guilherme Delgado – Há uma visão de meios financeiros (Título da
ção de Estado e pacto social foi política social de Estado desenhada Tributação e dos Orçamentos), dan-
construído na Constituição de nos trinta artigos de diretrizes que do, portanto, concretude às declara-
1988? E, 30 anos depois, como compõem o título “Da Ordem So- ções de princípio afirmadas no início
compreendemos este pacto? cial”, que se comunicam com a pro- (Título II) sobre “Direitos e Garan-

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tias Fundamentais” da Constituição Social, Saúde) e a Educação Básica se conceito amplo de regime de economia
Federal de 1988. Essa reiteração da caracterizam como principais sistemas familiar; um projeto de economia e
afirmação de princípios, sucedida por de direitos sociais básicos, fiscalmente sociedade completamente antagônico
provisão de meios e finalizada por ex- onerosos. Como tais, são perseguidos aos conceitos constitucionais originais,
tensa proposição de diretrizes de po- desde os primórdios da regulamen- mesmo reformulados por várias refor-
líticas sociais específicas na “Ordem tação das Leis Orgânicas respectivas, mas previdenciárias posteriores.
Social” (Seguridade Social, Educa- mas principalmente a partir do Plano
ção, Cultura Meio Ambiente, Índios, Real, mediante sucessivas Emendas
IHU On-Line – Além da Previ-
Comunicação Social, Família, Ciência Constitucionais de Desvinculações de
dência, quais os maiores avan-
e Tecnologia etc.), contém novidade Recursos da União - DRUs, cuja prin-
ços da Constituição no campo
formal em relação às Cartas anterio- cipal consequência dentro do pacto
social? Quais seus limites e
res, que se cingiam muito mais às de- constitucional original é de cortar a li- como superá-los? Há necessi-
clarações de princípio em matéria de gação da provisão de meios com as de- dade de “reformar” a Constitui-
política social. Mas contém também clarações de princípio sobre igualdade ção? Quais os riscos de mexer
um projeto implícito, e de certa forma social, da parte inicial, e as diretrizes de no texto constitucional no atual
explícito, de construir no texto cons- política social, da parte final. Neste sen- contexto político do Brasil?
titucional um programa do chamado tido, a iniciativa do Governo Temer de
Estado de Bem-Estar Social, que de- propor e aprovar a PEC do teto do gas- Guilherme Delgado – Em ter-
veria parametrizar a ação política dos to primário, mas com gasto financeiro mos gerais, o texto constitucional
governos subsequentes, sob o prisma ilimitado por 20 anos (EC, 95/2016), quando é invocado para reformas o é
dos direitos sociais fundamentados radicaliza o subfinanciamento das po- para restrição de direitos sociais, na
na igualdade social. líticas sociais de Estado. linha da eliminação dos vários con-
ceitos de “finanças sociais” vincula-
Por outro lado, as três décadas que Em sequência vem a PEC 287-2016, das a direitos. Isto não significa que
sucedem o texto original irão revelar a chamada “Reforma da Previdên- em múltiplos dos seus dispositivos,
um jogo político ambíguo, parcialmen- cia”. Essa PEC conta com propósito que tratam de políticas sociais, não
te convergente em algumas políticas explícito de restringir expectativas caibam aperfeiçoamentos.
54 com o “Programa” constitucional; mas de direito dos mais de 60 milhões de
ostensivamente divergente e contrá- segurados atuais da Previdência So- No caso específico dos Sistemas de
ria à linha da igualdade nesse período cial e, no caso dos servidores públicos Seguridade Social e Educação Básica,
crítico 2015-1018, em que se tenta de dos Estados e Municípios, migra-los o principal limite de finanças públicas
várias formas inverter completamente compulsoriamente, com subsídios a uma saudável provisão de recursos
o sentido da política pública, erigindo estatais, para o Fundos de Previdên- de financiamento às políticas sociais
os mercados autorregulados (pelo sis- cia Complementar Privada. de Estado é a forte dependência das
tema de preços) – do dinheiro, do tra- Contribuições Sociais e dos Impostos
Há um sujeito oculto nessas “refor- da União relativamente às bases tribu-
balho e da terra, como centros regula-
mas”, claramente identificável no caso tárias sobre massa de salários e despe-
dores das relações sociais básicas. Nas
da PEC do teto, porquanto coloca todo sas de consumo. Essas bases, além de
respostas em sequência esclarecerei
o sistema orçamentário da União cau- serem perversas do ponto de vista dis-
melhor o significado concreto daquilo
datário do “serviço da dívida públi- tributivo, pelo fato de onerarem iden-
que estou aqui enunciando.
ca”, que é ilimitada nesse sistema; e ticamente ricos e pobres, são também
no caso da “Reforma da Previdência” muito susceptíveis às crises econômi-
IHU On-Line – Em que medi- esse sujeito oculto são os fundos pri- cas cíclicas, quando caem abruptamen-
da a proposta de “reforma da vados de previdência complementar, te. Portanto, uma reforma tributária de
Previdência” revela a inabilida- também beneficiários por 30 a 35 caráter progressivo, com provisão de
de de se compreender o pacto anos das contribuições compulsórias recursos suficientes para financiar as
social da Constituição de 1988 estatais e dos servidores com salários necessidades conjuntas desses siste-
no campo social? E como con- acima do limite da Previdência Social. mas, é condição necessária à continui-
ceber alternativas à questão da Nesse ínterim, o Estado perderia essas dade da política social de Estado.
Previdência, de forma que não “contribuições” e continuaria com as
Não podemos ignorar o fato de que
atinjam direitos já assegurados obrigações de pagar as aposentadorias
o nosso sistema de finanças públicas
pela “Ordem Social Constitu- e pensões acumuladas, elevando, por-
e não só o sistema tributário estão
cional de 1988”? tanto, e não reduzindo os seus dese-
completamente desfigurados do pon-
quilíbrios financeiros com previdência
Guilherme Delgado – A bem da to de vista distributivo, afetando gra-
de servidores públicos.
verdade histórica é preciso esclarecer vemente o Estado de cumprir funções
que o núcleo duro da política social de Há, portanto, mais além de inabilida- sociais essenciais. Há cinco distor-
Estado – o sistema de Seguridade So- des no caso da Previdência Social, que ções estruturais, que comprometem o
cial (Previdência Social – inclui aí tam- praticamente extinguiria, para citar um Estado Democrático de Direito, mas
bém o Seguro Desemprego, Assistência caso lapidar – a Previdência Rural, no estão aí como desafio ostensivo a um

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clandestino e onipresente “Estado conexões. Vou iniciar pelo mais ge- plo de “zona de fronteira”, “terrenos
Novo da Segurança Financeira”: ral, que são os regimes jurídicos ou de marinha” e “terras devolutas”, que
regimes fundiários constitucionais, juntamente com as áreas 2 (étnica)
a) a pretensão da política fiscal
para ao final colocar a reforma agrá- e 3 (Parques e Reservas), são portas
financeira vigente, apoiada pela
ria, de direito e de fato. de entrada para o grande vilão dos
EC 95/2016, de mitigar e até
regimes de direito – “a grilagem” de
extinguir as “finanças sociais” do Há no caso da política agrária, di-
terras públicas, originalmente clan-
ordenamento geral das finanças ferentemente daquilo que analisei
destina, mas também legalizada por
públicas constitucionais; nas questões anteriores para o que
várias iniciativas de política agrária,
b) a institucionalização da irrespon- chamo de política social de Estado,
de pelo menos duas décadas.
sabilidade fiscal do “serviço da uma diferença histórica significati-
dívida pública”, conducente à ili- va. Enquanto esta última é objeto de Há aqui também um sujeito oculto
mitada geração de despesa finan- compromisso ambíguo, no sentido de fazendo aliança do capital financeiro
ceira e de nova Dívida Pública; montagem do Estado Social, princi- com a propriedade privada estrita-
c) uma gestão frouxa e igualmente palmente nos aparatos da Seguridade mente mercantil das terras, que avan-
irresponsável do ponto de vis- Social e da Educação Básica, no caso ça de fato sobre os regimes fundiários
ta fiscal dos haveres potenciais da política agrária tal compromisso é constitucionais em sentido completa-
da União – Dívida Ativa para ostensivamente sacrificado pela po- mente oposto, qual seja a pretensão de
com a União, tácita ou explicita- lítica agrária, principalmente desde “mercadorização” de toda a terra, para
mente seguida por previsíveis e a hegemonização do chamado pacto colocá-la sob a égide do sistema de pre-
contínuas operações de anistias, de economia política do agronegócio, ços. Essa pretensão é ostensivamente
“perdões” e generosos refinancia- claramente configurado neste século. apoiada pela política agrícola conjun-
mentos (REFIS); ou ainda para- É bem verdade que no governo Temer tural (Planos Safra) e agrária estrutural
lelas operações de repatriação de essas duas políticas regridem para a (legalização da grilagem) e realiza por
capitais evadidos para o exterior “mercadorização” integral; mas no sua própria natureza a antirreforma
(paraísos fiscais) à margem da caso agrário a regressão é mais antiga. agrária, juntamente com um caudal de
inscrição em Dívida Ativa; violência social sem par.
d) uma combinação de frouxidão Voltemos ao início da pergunta. No
texto constitucional original e ainda Nesse contexto histórico concreto, os 55
e permissividade no sistema
vigente, mesmo depois de 106 emen- regimes fundiários vigentes no texto
fiscal financeiro, susceptível à
das ao longo de 30 anos, a terra, no constitucional são atropelados todos os
prática de ilícitos financeiros,
sentido das dotações de bens natu- dias por ações privadas e também por
destacadamente a sonegação
rais superficiais, não produzidos pelo novas legislações que desrespeitam os
fiscal e a evasão cambial;
trabalho humano, está regulada por direitos agrários, indígenas e ambien-
e) um tratamento tributário desi-
três regimes fundiários explícitos e tais. E como não há redistribuição de
gual e ultrageneroso às rendas
um quarto difuso, que como veremos terras que não cumprem os direitos
do capital.
é uma espécie de porta de entrada ao agrários, o Programa de Assentamen-
Toda essa distorção distributiva por grande vírus contaminante. Os três tos Agrários ficou crescentemente res-
dentro das finanças públicas requer regimes explícitos são respectiva- tringido à compra legal das terras im-
obviamente reforma de profundidade, mente: 1) das terras destinadas ou produtivas. E agora no governo Temer
a grande maioria de caráter infracons- destináveis à produção agropecuá- com a Lei 13.465/2017, esse território
titucional. E é condição de possibili- ria, aí incluindo florestas plantadas dos assentamentos é virtualmente co-
dade à defesa do Estado Democrático (reguladas basicamente pelos Arts. locado no mercado de terras, com o
de Direito de 1988, como também das 184 a 186, sob a égide da função so- subterfúgio da “emancipação”.
suas diretrizes de Estado social. cial e ambiental); 2) das terras étni- Por estas e outras razões é que é tão
cas (indígena e quilombola) destina- difícil falar de reforma agrária e direito
IHU On-Line – Como avalia o das à reprodução de etnias ancestrais de propriedade no Brasil, temas inter-
tratamento que a Constituição dá (Índios – Art. 231 e Quilombolas ditados ao debate público por um siste-
para as questões relacionadas à ADCT 68); 3) das terras destinadas ma midiático corporativo que mantém
terra, sobretudo à reforma agrá- continuamente à proteção do meio as questões estruturais da terra do tra-
ria no Brasil? Em que medida o ambiente – de Parques e Reservas balho e do dinheiro sob ostensiva pre-
que foi proposto de fato se solidi- Naturais (Art. 226). tensão da “mercadorização” integral.
ficou no texto da Carta Magna? E
mais: porque é tão difícil discutir Terras da União
IHU On-Line – De que for-
reforma agrária, redistribuição
O vírus contaminante de que trato ma o sistema financeiro tem
de terra e direito de propriedade
no início da resposta é o conceito de captado compulsoriamente
constitucional no Brasil hoje?
“terras da União” ou de domínio da o espírito e as conquistas da
Guilherme Delgado – As três União, do Art. 20, contendo uma mis- Constituição de 1988? Como
questões propostas têm evidentes celânea de outros conceitos, a exem- conceber resistências?

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

Guilherme Delgado – Há, como e fundiários. produção das mais de 100 Emendas
enunciei na resposta da terceira ques- Constitucionais e muito fortemen-
A primeira e principal resistência
tão, deformação estrutural no nosso te na legislação infraconstitucional,
a este estado de coisas do ponto de
sistema de finanças públicas, que se co- principalmente no campo agrário.
vista político é colocar essas questões
munica perversamente com a política
ao conhecimento público em lingua- Não sou jurista nem cientista polí-
agrária, ambos fortemente desregula-
gem compreensível. E se possível ins- tico, mas vejo a ordem constitucio-
dos, numa linha ostensiva de favore-
crevê-lo na agenda político-eleitoral nal de 1988 ostensivamente atacada
cimento aos proprietários da riqueza
financeira em títulos da dívida pública de 2018. Não é fácil, mas é possível, no âmbito dos direitos sociais, pelas
e títulos de propriedade fundiária. porque muito mais difícil é o cami- razões que já elenquei nas respostas
nho tortuoso ora perseguido pelo sis- anteriores. Com agravante de que o
O sistema de finanças públicas favo- tema invisível de governo dominado processo de desconstrução ora em
rece de maneira combinada e desigual pelo capital financeiro. Um exemplo curso, sob comando invisível do siste-
a acumulação de Dívida Pública às ex- concreto do que estou falando seria ma financeiro, cria profunda anomia
pensas dos Haveres Públicos inscritos a proposta ora em gestação nos seto- social e nenhum programa ou estra-
ou não na Dívida Ativa e das receitas res defensores do Sistema Único de tégia capitalista de substituição ao
públicas vinculadas compulsoriamen- Saúde - SUS, para colocar a Emenda denominado Estado Democrático de
te ao serviço da dívida (EC 95/2016); Constitucional 95/2016 sob o crivo Direito. Ao contrário, flerta-se com
enquanto a política agrária favorece de um Referendo revogatório. regressão à barbárie social, ambiental
a grilagem legal das terras públicas,
e política à direita do espectro ideo-
cujos exemplos mais notórios e re-
IHU On-Line – Que sistema lógico, com um projeto econômico de
centes são as Leis de legalização dos
político foi gestado no processo “mercadorização” absoluta da terra,
registros cartoriais em zona de fron-
constituinte? Esse sistema se do trabalho e do dinheiro.
teira (Lei 13.178/out de 2015) e Lei de
legalização da grilagem na Amazônia efetivou plenamente ou sofreu A mudança deste estado de coisas
Legal (Lei 13.465/2017). transformações? E como esse nada alvissareiro passa por profunda
sistema repercute no pacto so- reforma do sistema político e das finan-
Mercado financeiro e mercado de cial proposto pela Constituição
56 terras, este último agora com preten- ças públicas, colocados como reféns da
de 1988? alta finança, sob a égide de uma “Dívi-
são à internacionalização, são sujeitos
ocultos, juntamente com o mercado Guilherme Delgado – O jogo po- da Pública” ilimitada, irresponsável do
de trabalho desregulado ou todos re- lítico até o “impeachment” da presi- ponto de vista fiscal e inimputável do
gulados pelos próprios sistemas de dente Dilma Rousseff contém muitas ponto de vista criminal. Aos que se in-
preços. Esses sujeitos ocultos inver- ambiguidades com relação à “Ordem teressarem pelo aprofundamento das
tem completamente as pretensões Social”, como também aos direitos questões aqui tratadas, brevemente
igualitárias da ordem constitucional, políticos e civis. Mas é a partir daque- publicarei sobre o teor dos temas dessa
capturando não apenas o seu espírito, la data que o chamado “pacto social” entrevista o livro intitulado Terra, Tra-
mas ostensivamente os recursos das desanda gravemente. Obviamente as balho e Dinheiro: Regulação e Des-
finanças sociais e da renda fundiária forças que apostaram contra o Estado regulação em Três Décadas da C.F.,
nacional, colocados a serviço dos ricos Social estiveram presentes e atuantes com material analítico, evidentemente,
detentores de patrimônios financeiros desde os primórdios. Atuaram na muito mais completo. ■

Leia mais
- “A corrupção número um, feita pelo sistema financeiro, está incólume”. Entrevista es-
pecial com Guilherme Delgado, publicada nas Notícias do Dia de 2-10-2017, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2En2Gjj.
- A reforma previdenciária e o declínio da “Ordem Social Constitucional” de 1988. Entre-
vista especial com Guilherme Delgado, publicada nas Notícias do Dia de 6-3-2016, no sítio
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2HcF5oB.
- “O plano econômico do PMDB não serve para nada. É só marketing”. Entrevista espe-
cial com Guilherme Delgado, publicada nas Notícias do Dia de 31-5-2016, no sítio do Insti-
tuto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2GD3Ywz.
- A ordem social será uma tábula rasa. PEC 241 inverte o princípio da justiça distributiva.
Entrevista especial com Guilherme Delgado, publicada nas Notícias do Dia de 17-10-2016,
no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2q8CrsM.

9 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

A Constituição contra o Estado


e a permanente luta pelos
direitos indígenas
Jorge Eremites de Oliveira analisa como, apesar das garantias
constitucionais aos povos tradicionais, o Brasil produz sistematicamente
a suspensão da lei em benefício das elites políticas e econômicas
Ricardo Machado

O
Estado Brasileiro possui uma brar que o Congresso não tem qualifica-
Constituição Federal rica em ção técnica para fazer demarcações de
direitos aos povos originários, terra, sem contar os interesses econô-
mas paupérrimo em sua aplicação. As micos em jogo.
comunidades ameríndias, no interva- Mesmo diante deste cenário, Oliveira
lo de 30 anos, deixaram uma posição á cauteloso ao defender qualquer aber-
de protagonismo progressista para se tura de uma nova constituinte. “Tenho
tornarem, novamente, as principais ví- grandes preocupações com a possibili-
timas das forças conservadoras e ultra- dade de haver uma revisão constitucio-
conservadoras. “Certa vez uma lideran-
ça indígena de Mato Grosso do Sul me
nal a ser feita pelo atual Congresso Na- 57
cional ou por um novo parlamento com
explicou que o Estado Brasileiro é igual
semelhante configuração política. Meus
a feijão, isto é, só amolece na pressão.
receios são por conta dos riscos iminen-
Disse isso para que compreendêssemos
tes de retrocessos que poderão haver
que a luta pela garantia dos direitos
em um cenário tão conversador e, até
assegurados na legislação indigenista
certo ponto, reacionário pelo que passa
é algo diário e contínuo, que não per-
o país”, pondera. “Uma coisa é certa: o
mite folga, descanso ou desatenção”,
movimento indígena seguirá sua traje-
aponta o professor e pesquisador Jorge
tória de lutas em defesa de seus direitos
Eremites de Oliveira, em entrevista por
e isso continuará em qualquer cenário
e-mail à IHU On-Line.
que venha a ser constituído a partir de
Não se trata de dizer que os indígenas 2018 e 2019”, complementa.
pararam de lutar por seus direitos, mas,
Jorge Eremites de Oliveira é
sim, que estamos diante de um cenário
de aumento sistemático da força políti- professor de Antropologia Social e Ar-
ca dos ruralistas, ao passo que os povos queologia da Universidade Federal
tradicionais foram perdendo espaço na de Pelotas - UFPel. É licenciado em
mídia e na política institucionalizada. História pela Universidade Federal de
Isso se reflete em projetos de lei como Mato Grosso do Sul - UFMS, mestre e
da PEC 215, que tenta repassar ao par- doutor em História/Arqueologia pela
lamento a decisão sobre a demarcação Pontifícia Universidade Católica do Rio
de terras indígenas. “O processo ad- Grande do Sul - PUCRS, com estágio
ministrativo de demarcação de terras de pós-doutoramento em Antropologia
indígenas é feito pela agência indige- Social pelo Museu Nacional/UFRJ. Foi
nista oficial. Isso é realizado a partir de pesquisador colaborador junto ao Insti-
normas estabelecidas e através de pro- tuto Anchietano de Pesquisas/Unisinos
cedimentos científicos mundialmente e trabalhou como professor universitá-
consagrados na Antropologia e campos rio em Mato Grosso do Sul.
afins”, destaca o entrevistado ao lem- Confira a entrevista.

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Ainda é possí- legado de várias gerações de brasi- sidente da Assembleia e parlamen-
vel chamar nossa Carta Magna leiras e brasileiros às gerações atu- tar pelo PMDB, fez um histórico e
de “Constituição Cidadã”? ais. É uma espécie de patrimônio memorável discurso. Assim há em
ou uma herança cultural do povo parte de sua fala, na qual constam
Jorge Eremites de Oliveira – A
brasileiro. alguns destaques feitos por mim:
Constituição Federal de 1988 ficou
conhecida como “Constituição Ci- Hoje em dia, forças conservadoras “A Nação nos mandou executar um
dadã” por significar uma conquista e ultraconservadoras, cada vez mais serviço. Nós o fizemos com amor,
coletiva das cidadãs e dos cidadãos expressivas no Congresso Nacional aplicação e sem medo. A Constitui-
brasileiros após o fim do regime e em outras esferas do poder insti- ção certamente não é perfeita. Ela
militar (1964-1985), implantado tucionalizado, tentam, a todo custo, própria o confessa, ao admitir a re-
com o golpe de 19641, durante a violar direitos assegurados na Lei forma. Quanto a ela, discordar, sim.
Guerra Fria2 (1945-1991), por meio Maior. Esta situação é especialmente Divergir, sim. Descumprir, jamais.
do qual foi deposto o então presi- asseverada a partir do golpe de 2016, Afrontá-la, nunca. Traidor da Cons-
dente da República João Goulart3, quando foi deposta a presidente Dil- tituição é traidor da Pátria. Conhe-
do antigo PTB, e implantado um ma Rousseff4, legitimamente eleita cemos o caminho maldito: rasgar a
Estado de exceção no país. Oficial- para a presidência da República. Constituição, trancar as portas do
mente reestabelece o Estado De- Os desdobramentos negativos deste Parlamento, garrotear a liberdade,
mocrático de Direito e assegura di- episódio são observáveis nos retro- mandar os patriotas para a cadeia,
reitos até então não registrados na cessos registrados aqui, ali e acolá e o exílio, o cemitério. A persistência
legislação nacional. Significa dizer a todo instante. da Constituição é a sobrevivência da
que a Carta Política é um divisor democracia. Quando, após tantos
Importa registrar que no contexto
de águas na história do Brasil e um anos de lutas e sacrifícios, promul-
atual, a Carta Constitucional pode
gamos o estatuto do homem, da li-
e deve ser chamada de “Constitui-
berdade e da democracia, bradamos
1 Golpe de 1964: movimento deflagrado em 1º de ção Cidadã” à medida que forças
abril de 1964. Os militares brasileiros, apoiados pela por imposição de sua honra: temos
pressão internacional anticomunista liderada e finan- progressistas resistem ao atual es-
ódio à ditadura. Ódio e nojo.”
ciada pelos Estados Unidos, desencadearam a Opera-
ção Brother Sam, que garantiu a execução do golpe,
tablishment e lutam, inclusive pela
58 que destituiu do poder o presidente João Goulart, o via legal, em defesa dos direitos Por isso, entendo que a Carta Mag-
Jango. Em seu lugar, os militares assumiram o poder
e se mantiveram governando o país entre os anos de humanos e outros avanços nela as- na pode e deve, sim, ser chamada
1964 e 1985. Sobre a ditadura de 1964 e o regime mi- segurados. Disso não se pode abrir “Constituição Cidadã”. Todavia,
litar, o IHU publicou o 4º número dos Cadernos IHU
em Formação, intitulado Ditadura 1964. A memória do mão. Vale ainda rememorar que isso deve ser feito a partir da pers-
regime militar, disponível em https://goo.gl/a4e8VX.
Confira, também, as edições nº 96 da IHU On-Line,
durante a implantação da Assem- pectiva de pessoas que lutam por
intitulada O regime militar: a economia, a igreja, a im- bleia Nacional Constituinte, em um país melhor, mais solidário,
prensa e o imaginário, de 12 de abril de 2004, dispo-
nível em https://goo.gl/a2yUBr; nº 95, de 5 de abril 1987, houve a mobilização do cam- justo, fraterno e igualitário, como
de 2005, 1964 – 2004: hora de passar o Brasil a limpo.
1964, disponível em https://goo.gl/cU7FEV; nº 437, de
po progressista e de muitos movi- milhares de cidadãs e cidadãos que
13 de março de 2014, Um golpe civil-militar. Impactos, mentos étnicos e sociais, como o estão indignados diante, por exem-
(des)caminhos, processos, disponível em https://goo.gl/
gXbCaL; e nº 439, de 31 de março de 2014, Brasil, a movimento indígena, o movimento plo, do assassinato da vereadora
construção interrompida – Impactos e consequências do estudantil e o movimento sindi- Marielle Franco6, do PSOL, e de seu
golpe de 1964, disponível em https://goo.gl/wENVN6.
(Nota da IHU On-Line) cal, para que fossem conquistados motorista, Anderson Pedro Gomes,
2 Guerra Fria: nome dado a um período histórico de
disputas estratégicas e conflitos entre Estados Unidos e direitos na Carta Constitucional vítimas de provável execução ocor-
União Soviética, que gerou um clima de tensão que en-
volveu países de todo o mundo. Estendeu-se entre o final
promulgada no dia 5 de outubro de rida no dia 14 de março de 2018, no
da Segunda Guerra Mundial (1945) e a queda da União 1988. Na ocasião, o deputado fede- Rio de Janeiro.
Soviética (1991). (Nota da IHU On-Line)
3 João Belchior Marques Goulart ou Jango (1919- ral Ulysses Guimarães5, então pre-
1976): presidente do Brasil de 1961 a 1964, tendo sido
também vice-presidente, de 1956 a 1961 – em 1955, foi IHU On-Line – Quando da
eleito com mais votos que o próprio presidente, Jusce-
lino Kubitschek. Seu governo é usualmente dividido em 4 Dilma Rousseff (1947): economista e política brasi- promulgação da Constituição,
duas fases: fase parlamentarista (da posse, em janeiro
de 1961, a janeiro de 1963) e fase presidencialista (de
leira, filiada ao Partido dos Trabalhadores – PT, eleita
duas vezes presidente do Brasil. Seu primeiro mandato
a pauta indígena parecia ser
janeiro de 1963 ao golpe militar de 1964). Jango fora iniciou-se em 2011 e o segundo foi interrompido em 31 uma grande vitória dos movi-
ainda ministro do Trabalho entre 1953 e 1954, durante de agosto de 2016. Em 12 de maio de 2016, foi afasta-
o governo de Getúlio Vargas. Foi deposto pelo golpe da de seu cargo durante o processo de impeachment mentos sociais, mas passados
militar do dia 1º de abril de 1964 e morreu no exílio.
Confira a entrevista “Jango era um conservador refor-
movido contra ela. No dia 31 de agosto, o Senado Fe-
deral, por 61 votos favoráveis ao impeachment contra
quase 30 anos, que direitos de
mista”, com Flavio Tavares, de 19-12-2006, em http:// 20, afastou Dilma definitivamente do cargo. O episódio fato foram garantidos?
bit.ly/ihu191206; João Goulart e um projeto de nação foi amplamente debatido nas Notícias do Dia no sítio
interrompido, com Oswaldo Munteal, de 27-08-2007, do IHU, como, por exemplo, a Entrevista do Dia com
em http://bit.ly/ihu270807. Confira também as entrevis- Rudá Ricci intitulada Os pacotes do Temer alimentarão
tas com Lucília de Almeida Neves Delgado intitulada O a esquerda brasileira e ela voltará ao poder, disponível 6 Marielle Francisco da Silva ou Marielle Franco
Jango da memória e o Jango da História, publicada na em http://bit.ly/2bLPiHK. Durante o governo do ex-pre- (1979-2018): foi uma socióloga, feminista, militante
edição 371 da IHU On-Line, de 29-08-2011, em http:// sidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a chefia do dos direitos humanos e política brasileira. Filiada ao
bit.ly/ihuon371 e ‘’Dúvidas sobre a morte de Jango só Ministério de Minas e Energia e posteriormente da Casa Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), elegeu-se vere-
aumentam’’, de 05-08-2013, em http://bit.ly/ihu050813. Civil. (Nota da IHU On-Line) adora do Rio de Janeiro na eleição municipal de 2016,
Veja ainda “João Goulart foi, antes de tudo, um herói”, 5 Ulysses Guimarães (1916-1992): político e advogado com a quinta maior votação. Crítica da intervenção fe-
com Juremir Machado, de 26-08-2013, em http://bit.ly/ nascido em São Paulo. Foi presidente da Assembleia deral no Rio de Janeiro e da Polícia Militar, denunciava
ihu260813 e Comício da Central do Brasil: a proposta era Constituinte que deu origem à Constituição Federal de constantemente abusos de autoridade por parte de
modificar as estruturas sociais e econômicas do país, com 1988. Um dos grandes apoiadores da redemocratização policiais contra moradores de comunidades carentes.
João Vicente Goulart, de 13-03-2014, em http://bit.ly/ do Brasil, cuja campanha ficou conhecida como Diretas Em 14 de março de 2018, foi assassinada a tiros. (Nota
ihu130314. (Nota da IHU On-Line) Já. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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Jorge Eremites de Oliveira – À so ou desatenção. Com efeito, sem Esta situação é percebida, apenas
época da promulgação da Constitui- a pressão política dos movimentos para citar um exemplo, na CPI Fu-
ção Federal, o movimento indígena étnicos e sociais não há cumpri- nai e Incra 2. Além disso, são muitas
e aliados registraram grande prota- mento da Lei, ao menos não para as lideranças indígenas assassinadas
gonismo na garantia de direitos aos a grande maioria da população. todos os anos, ininterruptamente,
povos originários. Havia um singu- Sobre este aspecto, em particular, no território nacional, de Norte a
lar contexto político favorável a eles, observo que o movimento indíge- Sul e do Centro-Oeste ao Sudeste e
mas, passados quase 30 anos desde na está cada vez mais organizado, Nordeste. Relativo ao assunto, tenho
aquele histórico 5 de outubro de atuante e convencido de que as escrito e publicado vários trabalhos8.
1988, muitos direitos ainda não fo- comunidades indígenas devem ser
Nesta linha de raciocínio, devo ex-
ram aplicados à risca. Este é o caso as principais protagonistas de sua
plicar que parte do Judiciário tem
da regularização de todas as terras própria história. Não podem de-
agido de maneira a gerar inseguran-
tradicionalmente ocupadas por co- pender da benevolência do Estado
ça jurídica no país, como é o caso da
munidades indígenas, conforme as- nacional ou de alguns segmentos
interpretação que faz sobre o Art.
segurado no Art. 231 da Lei Básica. da sociedade civil organizada. Isso
231 da Constituição Federal de 1988,
Portanto, o fato de um direito estar porque o próprio Estado-nação não
haja vista o paradigma do marco
registrado na Carta Magna não sig- foi por elas inventado e, em boa
temporal de 1988, sobre o qual falo
nifica que será imediata e automa- medida, representa a continuidade
mais adiante.
ticamente respeitado em um país de práticas colonialistas inaugura-
como o Brasil, marcado por várias das nesta parte da América do Sul
situações históricas de exceção, co- há mais de 500 anos, quando os IHU On-Line – Como a PEC
nhecidas desde 1822. primeiros portugueses aportaram 215, que busca dar ao legisla-
no atual estado da Bahia. tivo, retirando do executivo, o
A Carta Constitucional ainda é
percebida por pessoas do movi- De todo modo, não se pode negar a poder de decidir sobre as de-
mento indígena com um instru- existência de alguns avanços, como marcações de terras indígenas,
mento de luta e resistência, dentro nos campos da saúde e da educação rompe com o paradigma cons-
titucional de 1988?
e fora do país, inclusive em cortes escolar indígena. Embora a saúde e a 59
internacionais. Ocorre que mui- educação ainda sejam precárias em Jorge Eremites de Oliveira –
to recentemente, ainda no mês várias regiões, algumas conquistas Na minha opinião, e falando aqui
de março de 2018, foi veiculada a têm sido constatadas. Além disso, como quem não é do campo do
notícia de que “[...] a Corte Inte- no tempo presente ainda há ações Direito, tampouco um renomado
ramericana de Direitos Humanos afirmativas em várias instituições de jurista, a PEC 215 é algo inconsti-
reconheceu a responsabilidade ensino superior, públicas e privadas, tucional. Meu ponto de vista, con-
internacional do Estado brasileiro que asseguram certo empoderamen- tudo, não surge do nada, tampou-
na violação aos Direitos de pro- to aos indígenas através da escolari- co é uma espécie de achismo à toa.
priedade coletiva, garantia judi- zação formal. Respeitados juristas, como os pro-
cial de um prazo razoável e pro- fessores doutores Dalmo de Abreu
teção judicial em relação ao povo Dallari e Carlos Frederico Marés
IHU On-Line – De que forma a
indígena Xukuru de Ororubá”, de de Souza Filho, já se pronuncia-
luta por direitos dos indígenas
Pernambuco, conforme divulgado ram amiúde sobre o assunto e suas
se transformou, a partir das
pelo Conselho Indigenista Missio- análises corroboram minha inter-
interpretações atuais do judici-
nário - Cimi e por setores da im- pretação.
ário, em criminalização desses
prensa nacional e internacional.
movimentos? Faz-se necessário explicar que, em
Esta situação corrobora minha lei-
tura sobre o assunto 7. Jorge Eremites de Oliveira linhas gerais, o processo adminis-
– Forças conservadoras e ultracon- trativo de demarcação de terras in-
Ainda relativo a esta questão, lem- dígenas é feito pela agência indige-
servadoras, assim identificadas por
bro que certa vez uma liderança in- nista oficial. Isso é realizado a partir
um conjunto de práticas ligadas à
dígena de Mato Grosso do Sul me de normas estabelecidas e através
violação dos direitos humanos, as
explicou que o Estado Brasileiro é de procedimentos científicos mun-
quais possuem assento nos poderes
igual a feijão, isto é, só amolece na dialmente consagrados na Antropo-
constituídos na República, tendem a
pressão. Disse isso para que compre- logia e campos afins. Portanto, não
criminalizar não apenas lideranças
endêssemos que a luta pela garantia há nada de ilegal em procedimentos
do movimento indígena, mas tam-
dos direitos assegurados na legisla- desse tipo, pelo contrário. Retirar
bém indigenistas, antropólogos e
ção indigenista é algo diário e contí-
outros profissionais que, a serviço do
nuo, que não permite folga, descan- 8 Para saber mais, ver o recente artigo “Conflito pela pos-
próprio Estado ou atuando de outra se de terras indígenas em Mato Grosso do Sul”, divulga-

7 Mais informações acerca da decisão estão disponíveis


maneira, têm sido indiciados por su- do em 2016 na revista Ciência e Cultura, disponível para
acesso gratuito no link http://bit.ly/2HmqQNY. (Nota do
no link http://bit.ly/2GMTEyf . (Nota do entrevistado) postos crimes que teriam cometido. entrevistado)

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

do Executivo esta atribuição legal e Coffaci de Lima, organizamos um na” com a tentativa de eliminar
designá-la ao Legislativo é, portanto, dossiê chamado “Remoções força- ainda mais direitos dos povos
algo inconstitucionalissimamente das de grupos indígenas no Brasil originários?
inadmissível, segundo apontam vá- Republicano”, publicado no periódi-
Jorge Eremites de Oliveira –
rios especialistas em Direito Consti- co Mediações – Revista de Ciências
O termo “Outono Indígena” foi uma
tucional e, especialmente, em Direi- Sociais, no qual constam vários tra-
expressão que usei em 2013, em alu-
to Indigenista. balhos sobre o assunto, elaborados a
são à Primavera Árabe10, iniciada em
partir de estudos de caso9.
fins de 2010, para me referir a um
levante dos povos originários em de-
“Forças con- IHU On-Line – Frente a um
cenário político majoritaria-
fesa de seus direitos, sobretudo do
direito às terras de ocupação tradi-
servadoras e mente conservador, sobretudo cional, como verificado no estado de
Mato Grosso do Sul, por exemplo.
levando em conta o atual parla-
ultraconserva- mento nacional, quais os riscos Nos dias atuais, há, de fato, um
doras tentam,
de se abrir uma brecha para contexto desfavorável à garantia dos
revisão constitucional e, com direitos dos povos originários no
a todo custo, isso, perdermos ainda mais di-
reitos?
Brasil. Por outro lado, o movimento
indígena segue em sua caminhada e,
violar direitos Jorge Eremites de Oliveira
– Particularmente, tenho grandes
pela primeira vez na história, conta
com uma pré-candidata à vice-pre-
assegurados preocupações com a possibilidade sidência da República, a professora
Sonia Bone Guajajara11, filiada ao
de haver uma revisão constitucional
na Lei Maior” a ser feita pelo atual Congresso Na- PSOL. Há ainda outros tantos nomes
cional ou por um novo parlamento que serão candidatos a cargos parla-
com semelhante configuração polí- mentares em diversos estados bra-
tica. Meus receios são por conta dos sileiros. Existe, portanto, uma real
60 IHU On-Line – Trazendo a riscos iminentes de retrocessos que possibilidade de haver representan-
análise em perspectiva com as poderão haver em um cenário tão tes indígenas nas assembleias legis-
decisões de turma do STF, que conversador e, até certo ponto, re- lativas e no Congresso Nacional. Sig-
ainda discute a aplicação do acionário pelo que passa o país. No nificar dizer que o levante indígena
chamado “Marco Temporal”, entanto, não acredito nesta possibi- segue seu curso na luta por direitos
como manter vivo o paradigma lidade para este ano, mas a depen- no Brasil e também em tantos outros
da Constituição de 1988? der de quem venha a ser eleito para países das Américas.
Jorge Eremites de Oliveira – a presidência da República, caso
Ademais, ainda que estivéssemos
Em síntese, a tese do “Marco Tem- ocorram eleições em 2018, a situa-
em um “inverno indígena”, com
poral” está ligada à ideia de que ção poderá ser outra. Em um cenário
temperaturas baixas como as que
as terras indígenas seriam apenas pessimista, sendo eleito o candida-
ocorrem em certa parte do ano na
to da extrema-direita – conhecido
aquelas tradicionalmente ocupadas região Sul, o certo é que esta estação
por declarações racistas, sexistas e
em caráter permanente pelas co-
LGBTTfóbicas, além de um destem-
munidades indígenas até a data da 10 Primavera Árabe: os protestos no mundo árabe
pero político e notório despreparo ocorridos de 2010 a 2012 foram uma onda revolucio-
promulgação da Constituição Fede- nária de manifestações e protestos, compreendendo o
para tratar de temas econômicos –, Oriente Médio e o Norte da África. Houve revoluções na
ral, ou seja, até o dia 5 de outubro de Tunísia e no Egito, uma guerra civil na Líbia e na Síria;
talvez até tenhamos o fechamento do
1988. Este paradigma denota franca grandes protestos na Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque,
Congresso Nacional, ideia esta já ex- Jordânia, Omã e Iémen e protestos menores no Kuwait,
inconstitucionalidade, como verifi- Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e
ternalizada por ele em outras ocasi- Saara Ocidental. Os protestos têm compartilhado técni-
cado no pronunciamento de alguns cas de resistência civil em campanhas sustentadas en-
ões. Logo, toda atenção é pouca para
magistrados de cortes superiores volvendo greves, manifestações, passeatas e comícios,
e pelo futuro do Brasil. bem como o uso das mídias sociais, como Facebook,
do Judiciário. Está voltada à tenta- Twitter e Youtube, para organizar, comunicar e sensi-
bilizar a população e a comunidade internacional em
tiva de legalizar o ilegal, quer dizer, face de tentativas de repressão e censura na Internet
legalizar a posse e a propriedade de IHU On-Line – Depois do Ou- por partes dos Estados. (Nota da IHU On-Line)
11 Sônia Bone Guajajara (1974): é uma líder indígena
terras das quais comunidades indí- tono Indígena, como o senhor brasileira, formada em Letras e em Enfermagem, espe-
cialista em Educação especial pela Universidade Estadu-
genas sofreram processo de esbulho descreveu em entrevista ao al do Maranhão. Recebeu em 2015 a Ordem do Mérito
ao longo do século XX, como com- IHU em 2013, estaríamos agora Cultural. Sua militância em ocupações e protestos co-
meçou na coordenação das organizações e articulações
provadamente tem sido constatado diante de um “inverno indíge- dos povos indígenas no Maranhão - Coapima e levou
-a à coordenação executiva da Articulação dos Povos
em vários estados da Federação. Indígenas do Brasil – Apib. Antes disso ainda passou
9 A revista pode ser acessada gratuitamente pelo link pela Coordenação das Organizações Indígenas da Ama-
Mais recentemente, em parceria http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/is-
sue/view/1419/showToc e vale a pena conhecer os traba-
zônia Brasileira - Coiab. Atualmente é pré-candidata à
vice-presidência na chapa com Guilherme Boulos, pelo
com a professora doutora Edilene lhos ali publicados. (Nota do entrevistado) PSOL. (Nota da IHU On-Line)

9 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

passará e a primavera há de chegar. O presidencialismo de coalização ção Federal?


Caso ocorra, que seja um inverno se- inclui a distribuição de cargos a pes-
Jorge Eremites de Oliveira –
melhante ao que ocorre anualmente soas de diferentes partidos políticos
Alguns setores do agronegócio ga-
no semiárido nordestino e na Ama- e isso é feito em nome da governabi-
nharam significativo espaço no cená-
zônia, com chuvas generosas que re- lidade. Muitos dos desdobramentos
rio nacional por conta, dentre outros
avivam paisagens, economias e cole- desta prática estão voltados a esque-
fatores, do próprio presidencialismo
tivos humanos. mas de corrupção que perpassam
de coalização e da política econômi-
por praticamente todos os governos,
ca adotada nos últimos anos. Não es-
desde José Sarney12 (1985-1990),
IHU On-Line – Ao longo des- do PMDB, passando, por exemplo,
tão imbuídos de propósitos ligados
sas três décadas o Brasil foi pela chamada “privataria tucana”, a um projeto de nação, exceto para
governado por partidos mais nos tempos de FHC13 (1995-2003), perpetuar assimetrias historicamen-
alinhados à centro-direita e à até chegar aos dias de hoje com os te constituídas no país. São herdei-
centro-esquerda. Contudo, po- escândalos que vieram a público. ros de uma elite escravista e costu-
de-se notar diferenças signifi- Romper com esta prática é um desa- mam desdenhar das pessoas que
cativas no que diz respeito às fio para o campo progressista e, para não fazem parte de sua classe social.
garantias constitucionais volta- isso ser feito, alianças precisam ser Esta ascensão ao poder também está
das aos povos originários? articuladas em torno de um projeto ligada a uma política oficial de de-
nacional de desenvolvimento, orien- sindustrialização e, por conseguinte,
Jorge Eremites de Oliveira –
tado por um projeto de nação. No- à dependência do país em relação à
Este é um assunto demasiado com-
ta-se que coalizões pragmáticas de exportação de grãos, carnes, miné-
plexo. Houve avanços e retrocessos
última hora, constituídas com vistas rios, petróleo e outras commodities,
em todos os governos a partir da
a apoiarem certos nomes e legen- geralmente sem muito valor agrega-
promulgação da Constituição Fede-
das políticas, são nocivas ao país e à do. Sucessivos governos incluíram o
ral de 1988. A maior decepção ad-
imensa maioria da população nacio- país numa posição de subalternida-
veio de governos situados no que se
nal, constituída por pessoas ligadas de no contexto da mundialização do
costuma chamar de “centro-esquer-
à classe trabalhadora e a coletivos capital. Tudo isso, e muito mais, fez
da”, quer dizer, do campo progres-
etnicamente distintos em relação à com que setores conservadores do 61
sista. Exemplo disso é a não regula-
elite nacional, majoritariamente for- agronegócio fossem cada vez mais
rização das terras tradicionalmente
mada por homens de origem euro-a- empoderados e buscaram alianças
ocupadas por comunidades originá-
mericana. programáticas com outros segmen-
rias, em atenção ao que determina
tos análogos no cenário nacional.
a Lei Maior, o que prolonga o so-
frimento de pessoas envolvidas em IHU On-Line – Como setores
disputas pela posse de terras indí- econômicos ligados ao agro- IHU On-Line – Deseja acres-
genas no país. negócio se transformaram no centar algo?
Para mais ou para menos, sucessi- principal entrave à efetivação Jorge Eremites de Oliveira –
vos governos pautaram suas ações das garantias sociais dos indí- Desejo finalizar esta entrevista di-
genas expressas na Constitui-
por meio do chamado “presidencia- zendo que não temos como prever,
lismo de coalizão”, estratégia políti- 12 José Sarney [José Sarney de Araújo Costa] (1930):
com exatidão, o que será do Bra-
ca através da qual são feitas alianças político nascido no Maranhã, 31º presidente do Brasil sil e dos povos indígenas daqui em
(1985-1990). Foi governador do Maranhão e presiden-
pragmáticas com diferentes forças te do Senado Federal por quatro vezes. (Nota da IHU diante. Porém, uma coisa é certa: o
políticas, representadas por distin- On-Line)
13 Fernando Henrique Cardoso (1931): sociólogo,
movimento indígena seguirá sua tra-
tas legendas. Esta forma de exercer o cientista político, professor universitário e político bra- jetória de lutas em defesa de seus di-
sileiro. Foi o 34º Presidente do Brasil, por dois mandatos
poder conduz a um conjunto de equí- consecutivos, entre 1995 e 2003. Conhecido como FHC, reitos e isso continuará em qualquer
vocos e causa significativos prejuízos ganhou notoriedade como ministro da Fazenda (1993-
1994) com a instauração do Plano Real para combate à
cenário que venha a ser constituído a
à grande maioria da população. inflação. (Nota da IHU On-Line) partir de 2018 e 2019. ■

Leia mais
- Outono Indígena. Entrevista especial com Jorge Eremites de Oliveira, publicada na No-
tícias do Dia, de 15-6-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2GjE3Jx.

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

O aperfeiçoamento da
democracia política
Para o sociólogo Luiz Werneck Vianna, a principal evidência da
consistência da Constituição brasileira depois de três décadas
da sua promulgação é sua resistência à crise política
João Vitor Santos e Patricia Fachin

A
análise do sucesso ou do fracasso a criação de partidos políticos, que teve
da Constituição brasileira depois como consequência a criação de “um
de 30 anos da sua promulgação sistema político quase ingovernável”,
precisa considerar e responder à se- a criação de um “Judiciário gigante”
guinte pergunta: “A democracia políti- que tem “problemas disfuncionais”, e
ca, ao longo desses anos, afirmou-se ou um comprometimento excessivo com
não? Essa é uma questão chave”, afirma o gasto social. “Ela prometeu mais do
Werneck Vianna à IHU On-Line. “Para que podia fazer: a sociedade não tinha
mim”, diz, “ela se afirmou. Encontrou e não tem recursos para assumir todos
sua forma superior? Não, está longe dis- os encargos sociais que a Constituição
so, mas está em aperfeiçoamento e en- anunciou e defendeu. Acho que este foi
contra sua resiliência, capacidade de en- um erro: prometer demais. (...) Temos
frentar conflitos, de resolver conflitos”. uma social-democracia, mas que é uma
62 social-democracia de fachada. Para re-
Na avaliação dele, o principal indi-
cativo de que a Constituição tem sido verter isso, a sociedade tinha que se in-
respeitada pode ser visto nos desdo- clinar de fato para a social-democracia
bramentos da crise política dos últimos e não o faz nem pela esquerda nem pela
anos. “Nós vivemos uma crise feroz direita. Ao contrário, a sociedade recu-
nesses últimos quatro, cinco anos e o sa o modelo social-democrata, que é o
impeachment trouxe um elemento de modelo da Constituição”, argumenta.
muito conflito. Apesar de tudo isso, a  Luiz Werneck Vianna é professor
Constituição está aí, e longe de ser iden- -pesquisador na Pontifícia Universida-
tificada como um fator de crise, ela tem de Católica - PUC-Rio, doutor em So-
ganhado muita expressão e força na ciologia pela Universidade de São Paulo
sociedade, especialmente na sua parte - USP. É autor de, entre outras obras, A
mais organizada. Exemplo: as Forças revolução passiva: iberismo e ameri-
Armadas, a essa altura, em condições canismo no Brasil (Rio de Janeiro: Re-
semelhantes a essa, no passado, teriam van, 1997); A judicialização da política
uma posição muito diversa da que estão e das relações sociais no Brasil (Rio de
tendo agora. As Forças Armadas hoje se Janeiro: Revan, 1999); e Democracia
comportam como uma força de susten- e os três poderes no Brasil (Belo Ho-
tação da Constituição”, constata. rizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pen-
samento, leia a obra Uma sociologia
Na entrevista a seguir, concedida por indignada. Diálogos com Luiz Werne-
telefone para a IHU On-Line, o soci- ck Vianna, organizada por Rubem Bar-
ólogo também comenta os limites da boza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de
Constituição brasileira. Entre eles, des-
Fora: Ed. UFJF, 2012).
taca os entraves relacionados à questão
agrária, a suspensão de restrições para Confira a entrevista.

IHU On-Line — A Constituição mento de transição entre o fim ra política. O que isso significou
de 1988 foi elaborada num mo- do regime militar e a reabertu- e de que forma esse momento

9 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“A Constituição brasileira nasceu de um


período de transição do regime militar para
uma democracia política em construção
e, nesse sentido, houve impasses no seu
curso que não foram fáceis de superar”

político impactou na elabora- Sepúlveda Pertence, que participou passado, teriam uma posição muito
ção do texto final? de todo o processo da Constituinte, diversa da que estão tendo agora. As
lamenta, hoje, a criação do MP da Forças Armadas hoje se comportam
Luiz Werneck Vianna — A
forma como foi concebida. Ele fez como uma força de sustentação da
Constituição brasileira nasceu de um
parte desse movimento que levou o Constituição. Só o fato de a Consti-
período de transição do regime mili-
MP a ter esse perfil inédito no Bra- tuição resistir a essa crise, mantendo
tar para uma democracia política em
sil, mas hoje ele o acha desastroso. as instituições operantes, é um ga-
construção e, nesse sentido, houve
O Ministério Público surgiu com um nho extraordinário. O general [Edu-
impasses no seu curso que não fo-
poder muito grande, sem controle, e ardo] Villas Bôas, que é o comandan-
ram fáceis de superar, especialmente
alguns efeitos negativos têm se veri- te supremo das Forças Armadas, faz
em algumas questões, como a agrá-
ficado agora. Então, a Constituição comentários que defendem a Cons-
ria, por exemplo, que dividiu a Cons-
muda em alguns temas importantes tituição e tem sustentado que nada
tituinte ao meio e acabou pondo uma
e ao mesmo tempo conserva. Ela é aconteça fora da Constituição. Quer
solução recessiva para a questão
propriamente uma Constituição fei- coisa mais relevante do que isso? A
63
agrária brasileira.
ta nas circunstâncias da transição. democracia política, ao longo des-
O grande triunfo da Constituição Entretanto, o sistema de liberdade ses anos, afirmou-se ou não? Essa é
foi em relação aos direitos civis; que ela criou e os institutos criados uma questão chave. Para mim, ela se
avançou-se bastante aí. No mais, para defender a liberdade deram afirmou. Encontrou sua forma supe-
ela conservou a nossa tradição frutos muito interessantes. Além do rior? Não, está longe disso, mas está
constitucional em linhas gerais. mais, a Constituição, ao longo dos em aperfeiçoamento e encontra sua
Veja o caso da questão sindical: a 30 anos da sua existência, passou ao resiliência, capacidade de enfrentar
Consolidação das Leis do Trabalho largo da contestação dos seus termos conflitos, de resolver conflitos.
- CLT foi preservada com algumas apesar de termos vivido, como ago- O mesmo ocorre com o Poder Judici-
alterações significativas, mas, no ra, momentos de crise muito profun-
fundamental, a modelagem que ário, que se reforçou muito e se blinda
dos. A chamada resiliência da polí- com as instituições que o constituinte
vinha desde os anos 30 persistiu e tica brasileira, que é extraordinária,
está sendo alterada agora. De forma lhe legou. De modo que apesar da cri-
tal como se verificou e se está verifi- se, apesar da insatisfação e do tempo
muito geral, a Constituinte trouxe cando ao longo desse tempo de crise
avanços, mas conservou alguns de cólera que andam dominando por
política que vivemos, é uma marca aí, a Constituição navegou com tran-
traços da modernização autoritária muito importante da Constituição.
dos anos 1930. Então, nesse sentido, quilidade. Nenhuma força social de
Note que ela criou canais capazes peso, nenhuma corporação de peso
a Constituição não trouxe grandes de dar sentido e expressão e susten-
transformações. denuncia a Constituição como causa
tar a ordem. Nós vivemos uma crise da crise, o que não quer dizer que ela
Constituição e Poder Judi- feroz nesses últimos quatro, cinco não seja objeto – em outras dimen-
ciário anos e o impeachment trouxe um sões – de crise, uma vez que ela foi
elemento de muito conflito. Apesar
muito detalhista. Aliás, esse detalhis-
Uma mudança significativa foi o de tudo isso, a Constituição está aí,
mo dela é uma marca que talvez não
papel que a Constituição preser- e longe de ser identificada como um
resista ao longo do tempo. Mas o pen-
vou ao Poder Judiciário, inclusive fator de crise, ela tem contrariamen-
samento das instituições novas que ela
com a criação do Ministério Públi- te ganhado muita expressão e força
nos trouxe está aí e está garantindo a
co, que, do ponto de vista do Direi- na sociedade, especialmente na sua
democracia política brasileira.
to Internacional, é uma jabuticaba, parte mais organizada. Exemplo: as
porque só existe este MP, com esta Forças Armadas, a essa altura, em Uma dificuldade agora é que o
autonomia, aqui no Brasil. O jurista condições semelhantes a essa, no Judiciário, que é o intérprete e o

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

guardião da Constituição, está vi- pelo fato de ela suceder ao regime tituinte em matéria de sistema polí-
vendo um processo de admissão de autoritário, ela se sentiu como que tico, em nome da liberdade, saindo
dissenso, especialmente no Supre- obrigada a uma modelagem de novo de um regime autoritário. E esse
mo Tribunal Federal - STF, e isso é tipo da sociedade brasileira, social- absenteísmo foi quase fatal. Mas
perturbador para o regime da Carta mente mais justa. O problema é que por outros caminhos, a Constituição
de 88. Esse risco, que antes era um entre a imaginação e a realidade há pensou de forma virtuosa e deu en-
risco importado pela ação militar, uma distância muito grande. A de- caminhamentos importantes para a
hoje em dia não vem dessa corpora- sigualdade, ao invés de diminuir ao sociedade brasileira. Basta ver que
ção, do ponto de vista institucional, longo desses anos, se intensificou. enfrentamos essa crise, com a gravi-
mas de outros territórios sociais. E, dade e exasperação que ela traz, com
inclusive, em alguns pontos, do pró- Sistema político a Constituição íntegra e sem que seja
prio Judiciário. o objeto principal da crítica dos en-
Para mim, o problema mais sensí- volvidos no mercado político.
Reforma constitucional vel dessa Constituição é o fato de ela
descrer do sistema político, descrer
Estamos vivendo essa crise sem da política e do sistema de repre- IHU On-Line – Por que diz
que se fale de reforma constitucio- sentação. A Constituição suspendeu que a Constituição prometeu
nal de modo forte. Só os setores todas as restrições, criou um regime demais em termos sociais?
laterais falam disso, mas no mais o libertário, todos os partidos podem Luiz Werneck Vianna — Ela
texto constitucional se tornou o livro se organizar no número que for, por- prometeu saúde para todos, educa-
guia da sociedade brasileira e é com que segundo a Constituição essa ma- ção para todos, sem criar as estru-
ele que tem sido possível encontrar téria não deve ser regulada, é livre, turas capazes de pavimentar esse
sistema de defesa para a democracia e a sociedade pode criar os partidos caminho de reformas sociais.
política no Brasil. Quem na socieda- que assim desejar. Mas isso criou um
de está postulando uma nova Cons- sistema político quase ingovernável.
tituição? Setores minoritários. Isso Então, o que a Constituinte dedicou IHU On-Line – Que tipo de
é sinal de que há vigor nela, é sinal à reforma do Judiciário, criando medidas deveriam ter sido to-
64 de que de algum modo, apesar do mecanismos de intervenção, de de- madas para garantir a efetivi-
seu detalhismo, ela criou um vigor mocratização social, a aposta forte dade do estado de bem-estar
interessante, com capacidade de efi- que fez no Judiciário, não a fez no social?
cácia e permanência. Nesse sentido, campo da política, e deixou a política Luiz Werneck Vianna — Em pri-
a Constituição foi um êxito. aberta. Certamente isso ocorreu em meiro lugar, tínhamos que ter uma
função do regime anterior. Acredi- economia que não temos, e em se-
tou-se que a liberdade na regulação gundo lugar, uma política mais de-
IHU On-Line – A Constituição
política seria o melhor remédio, e finida quanto aos recursos de que
propôs um modelo de bem-es-
não foi. Tanto é que a classe política, precisaríamos para dar conta da
tar social para a sociedade bra-
o Congresso, sentindo o que havia agenda social nova. O modelo so-
sileira, mas à luz da crise que o
de perturbador no sistema político, cial da Constituição é o modelo da
país vive hoje, um dos discur-
introduziu algumas reformas cons- social-democracia, porém a social-
sos proferidos é o de que não há
titucionais muito relevantes, como democracia tem custo, alguém tem
recursos financeiros para que o
aquelas que afetaram a criação de que perder alguma coisa, e nós não
Estado possa garantir o estado
partidos políticos, criando cláusulas enfrentamos essa questão e as fontes
de bem-estar social. Como o
de barreira e coisas do gênero. Isso, das desigualdades permaneceram.
senhor vê, de um lado, a pro-
que poderia ter melhorado conside- Houve crescimento em alguns mo-
posta de garantia do estado de
ravelmente o funcionamento do sis- mentos, mas as bases econômicas e
bem-estar social e, de outro, o
tema político, foi barrado pelo STF, políticas eram muito restritas e de-
discurso da falta de recursos?
que desarmou essa possibilidade e pendentes de mecanismos de Esta-
Luiz Werneck Vianna — A essa tentativa de melhorar o nosso do; elas não mexiam nas relações da
Constituição trouxe algumas inova- sistema político. E esse sistema polí- sociedade com o Estado. Aliás, elas
ções na questão social num sentido tico que estava e está aí é incapaz de fortaleceram o Estado em relação à
positivo. Agora, em outros termos, dar sentido à vontade da sociedade, sociedade, e deixou-se ao Direito e
de outro ângulo e outra perspecti- porque existe um número imenso de às suas instituições um papel muito
va, ela prometeu mais do que podia partidos, uma perda de ânimo polí- audacioso. Por exemplo, na ques-
fazer: a sociedade não tinha e não tico extraordinária, e criou uma difi- tão da saúde se achou que a lei seria
tem recursos para assumir todos os culdade de decisão muito grande por capaz de resolver todas as questões
encargos sociais que a Constituição parte do sistema político. e com isso demonstrou-se uma in-
anunciou e defendeu. Acho que este genuidade. Aí temos um noticiário
A meu ver, o grande calcanhar de
foi um erro: prometer demais. En- capaz de opinar sobre tudo, de com-
Aquiles foi o absenteísmo do cons-
tretanto, é preciso ver também que, petições esportivas a questões subs-

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tanciais da sociedade, e tudo isso foi nas. Como isso tem repercutido gigante que está aí, que tem pro-
entregue a um Judiciário cada vez na prática? blemas disfuncionais, mas resolver
mais gigantesco, e a tentativa de re- isso é robustecer o sistema político,
Luiz Werneck Vianna — Houve
solver a crise foi através de decretos, é fazer novos partidos, selecionar
um avanço importante. A Constitui-
leis e sentenças. O sistema de saúde melhor os quadros políticos, e isso
ção tem servido de bandeira para
gasta com doenças crônicas e com é tempo e operação institucional,
que várias questões relevantes da
remédios que nós não produzimos, porque não é possível ficarmos com
nossa sociedade encontrem formas
que temos que importar e que são o número de partidos que temos
de expressão e a indígena é uma de-
caríssimos, em nome da defesa da aqui. Não há vontade política que
las. Quem fala mal da Constituição?
saúde. Mas essas são questões muito consiga encontrar uma formatação.
Quem fala mal não tem causa, por-
difíceis. Você dá para poucos e tira Não creio que haja solução para os
que ela é a gramática de todos, pois
de muitos. nossos gravíssimos problemas a
todos interpelam a Constituição,
partir de uma negação do que foi e é
mesmo que contraditoriamente en-
a Constituição de 88.
IHU On-Line – Qual seria a tre si, sem dúvidas, mas o argumen-
melhor forma de discutir o sis- to é constitucional, servindo a gregos A Constituição ficou devendo em al-
tema de bem-estar social a par- e a troianos. gumas coisas, como nesse absenteís-
tir das suas críticas acerca do mo em intervir na regulação política
que acontece hoje? e apostar tudo num sistema indiscri-
Luiz Werneck Vianna — Esse
sistema vai prevalecer, mas terá que
“Estamos minado de liberdade como reação ao
regime militar. Nenhuma sociedade
ser ajustado e já está sendo ajustado. vivendo essa complexa como a brasileira pode ser
governada por um sistema que com-

IHU On-Line – O que significa


crise sem porta mais de 30 partidos. O zelo do
constituinte na questão do Judiciá-
ser ajustado? que se fale rio não foi acompanhado por igual
zelo na questão do sistema político.
Luiz Werneck Vianna — Te-
mos que pensar numa economia que de reforma Essas questões já estão identificadas
ao menos no nível da reflexão, o que
65
pode realizá-lo, porque ele não está
no “mundo da lua”. Não se pode constitucional falta é execução. Perdemos a oportu-
nidade de fazer uma reforma política
garantir direitos ao atendimento de
todos e para todas as doenças. O ob-
de modo forte” mais audaciosa, moderna e conser-
vamos muito do que havia de reces-
jetivo de estender o direito à saúde
sivo; é a nossa prática de sempre.
a todos é um direito democrático
IHU On-Line – É possível rea-
que deve ser conservado, mas ele
lizar uma reforma política sem
tem seus limites. Eu não posso obri- IHU On-Line – Alguns pes-
alterar o texto constitucional?
gar, com o sistema da justiça, que quisadores fazem críticas às
determinados bens que são muito Luiz Werneck Vianna — A reformas trabalhista e da Pre-
escassos sejam oferecidos a grupos Constituição não pode ser vista vidência, afirmando que elas
restritos de doenças crônicas, por como um texto sagrado. Ela pode põem em xeque direitos cons-
exemplo. Não podemos pensar essas ser perfeitamente aperfeiçoada, ex- titucionais. Como o senhor
questões sem considerar que temos purgada de seus excessos, e já foi de avalia essas reformas à luz da
uma sociedade economicamente alguns, como na questão dos juros. Constituição?
ainda muito insegura do ponto de Acho que esse é um processo que
Luiz Werneck Vianna — Não
vista do seu sistema produtivo. As- não está fechado. Tudo vai depender
conseguiram provar que a reforma
sim, temos uma social-democracia, muito do processo eleitoral que se
trabalhista é inconstitucional de for-
mas que é uma social-democracia abre para a sucessão. Nesta suces-
ma alguma. A questão do mercado
de fachada. Para reverter isso, a so- são, quais são as candidaturas que se
de trabalho se enfrenta na vida, com
ciedade tinha que se inclinar de fato definem como negadoras da Consti-
sindicatos fortes e não em sindicatos
para a social-democracia e não o faz tuição de 88? Nenhuma. Isso é um
que funcionam atrelados ao Estado,
nem pela esquerda nem pela direi- triunfo. A Constituição tem servido
como tem sido na nossa tradição
ta. Ao contrário, a sociedade recusa de referência, de lugar de segurança,
desde sempre. A sociedade reclama
o modelo social-democrata, que é o um porto onde se pode abrigar da
da mudança, porque são décadas de
modelo da Constituição. conflitividade que está disseminada
conservação de algumas instituições,
pela sociedade.
mas o que vale mesmo para o mun-
IHU On-Line – A Constituição É claro que uma mudança mui- do do trabalho é como se consolidam
também prevê uma série de di- to significativa da sociedade pós- os sindicatos capazes de lutar por
reitos às comunidades indíge- Constituição é esse Judiciário seus interesses, com independência

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TEMA DE CAPA

do mundo externo. Mas para isso é tivesse, a reforma já tinha dançado. forma errada, equivocada, manten-
preciso ter um sindicalismo livre e Por trás da questão da Previdência do a sociedade imobilizada. Agora o
desvinculado do Estado. Fora essa temos que ter alguma clareza de que mundo subalterno está se movendo
questão trabalhista, o sindicalismo a resistência a essa reforma vem dos com a pauta identitária, o que signi-
tem se mexido onde e para onde? A setores altos, das elites, dos privilé- fica que a presença da Marielle tem a
esquerda que está aí não é sindical. A gios que existem, porque, do ponto de ver com isso e não com o mundo do
base dela é popular e vem de outros vista popular, onde a questão da Pre- trabalho, com a economia. Estamos
lugares. Por exemplo, a vereadora vidência afeta os interesses? O que numa sociedade capitalista sem que-
Marielle, que foi assassinada, veio de havia de errado tem sido corrigido rer assumir algumas das suas carac-
uma região do social e não do mundo através de um processo de luta muito terísticas essenciais. Temos forças
do trabalho. E o mundo do trabalho interessante e vai se chegando a um para fazer o socialismo? Não temos.
não está vindo de lugar nenhum. consenso pelo tempo e pela crítica. O Mas temos forças para criar as bases
fundamental é garantir possibilida- sociais de um socialismo futuro? Te-
Se a vitalidade é do mundo do tra- des e oportunidades de crescimento mos. Mas não por decreto, não pela
balho, isso demandaria que os seto- econômico, um crescimento que não política simplesmente, pelo esforço
res subalternos se movimentassem implique o aprofundamento das de- mobilizador dos de baixo. Não po-
com mais audácia, mais agressivi- sigualdades, e esse crescimento tem demos ficar mexendo somente nas
dade. Mas estamos apenas envolvi- que ser orientado não só para a pro-
dos com direitos identitários. O caso questões identitárias, embora elas
dutividade, mas para a produção de sejam relevantes.
dessa vereadora é importante e ficou igualdade. Mas enquanto isso toda a
evidente que a sociedade tem inte- nossa história tem sido derivada da
resse nisso, inclusive os subalternos, presença do Estado. Um exemplo é IHU On-Line – Deseja acres-
mas isso não interfere no mercado o sindicalismo atrelado à legislação centar algo?
de trabalho. Como vamos ter social- dos anos 1930, que deixou de fora o
democracia sem sindicatos fortes? Luiz Werneck Vianna — A
trabalhador do campo. Atenção, isso Constituição tem que ser defendida
Essa luta identitária vai investir tem em si a marca da desigualdade:
mais no Estado. Claro que ela é im- como vem sendo e não deve ser tra-
uns dentro e outros fora. tada canonicamente: o que tiver que
66 portantíssima, mas isso não garante
rigor e peso social. Estamos numa A meu ver, encaminhar essas ques- mudar, tem que mudar, como tem
sociedade de massa, com mercado tões é deixar o conflito rolar. E onde sido mudado, e a população tem que
de massas, mas se faz uma política ele deve rolar? Embaixo, no merca- estimá-la nas demandas das questões
orientada para valores identitários. do de trabalho, na disputa por bens sociais e institucionais. Não identifico
Tem alguma coisa errada aí. escassos. Se encaminharmos apenas nenhum elemento mais importante
no sentido das instituições do Esta- do que o fato de as Forças Armadas
Reforma da Previdência do, no sentido de que o Estado traga terem se identificado com a Consti-
a sociedade para dentro de si e paci- tuição, tendo feito dela o seu livrinho,
Qual seria a questão inconstitucio- fique seus movimentos, vamos conti- o seu sistema de conduta política.
nal da reforma da Previdência? Se nuar fazendo o que temos feito, e de Isso tem uma relevância total.■

Leia mais
- “O Judiciário usurpou o papel que era da política”. Entrevista especial com Luiz Werneck
Vianna, publicada nas Notícias do Dia de 18-1-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em https://bit.ly/2Jp1fET.
- A Carta de 88 e a democracia brasileira estão em risco. Ou aparece uma política de
moderação, ou vamos ladeira abaixo”. Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna, pu-
blicada nas Notícias do Dia de 22-9-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em https://bit.ly/2GDgg4g.
- É preciso coragem, paciência e ética de responsabilidade para interromper a moder-
nização autoritária. Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna, publicada nas Notícias
do Dia de 3-7-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em https://bit.
ly/2GK8y8A.
- O nevoeiro persiste e as bolas de ferro nos pés nos mantêm no mesmo lugar. Entrevis-
ta especial com Luiz Werneck Vianna, publicada nas Notícias do Dia de 14-8-2016, no sítio
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em https://bit.ly/2qgBQoj.

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“A Constituição é ainda
projeto de construção”
José Geraldo de Sousa Júnior propõe que a Carta Magna não seja
vista como processo acabado, mas algo que está em movimento
e que busca adequação a sempre inconclusa democracia
João Vitor Santos

C
ompreender no que consiste a buscar conexão com o tempo em que se
Constituição requer um movi- vive. “Os mecanismos de participação
mento mais amplo em que se permanecem como método e estraté-
deve buscar um entendimento sobre gia de comunicação com o social, para
o que é a democracia. Para o jurista e ações de controle, supervisão e delibe-
professor José Geraldo de Sousa Jú- rativas, nos três níveis de atuação do
nior, “democracia, como se aprende na Estado”, destaca José Geraldo. Para ele,
política, é uma obra inconclusa, nun- pensar numa nova constituinte como
ca acabada, insatisfeita de si própria e resposta à crise que se vive no Brasil é
que desafia a atualização continuada, temerário. “Uma revisão constitucional
em sua materialidade (os direitos ali- nessas condições apenas homologaria,
mentares) e em sua forma (os direi- tal como estamos assistindo e consta-
tos elementares)”. Assim, não se pode tando, as artimanhas em curso de des-
constitucionalização e de desdemocra-
67
conceber como regime imóvel. Logo,
seguindo com o professor, é preciso tização”, avalia.
ter um olhar sobre a Constituição não José Geraldo de Sousa Júnior
como uma obra acabada. “A Constitui- possui graduação em Ciências Jurídi-
ção é ainda o projeto de construção de cas e Sociais pela Associação de Ensino
uma sociedade que se comprometa com Unificado do Distrito Federal - AEUDF,
a superação das desigualdades, da po- mestrado e doutorado em Direito pela
breza que exclui, aliena e desumaniza, Faculdade de Direito da Universidade
que rompa com o atraso colonialista de Brasília - UNB. É também jurista,
que infantiliza, tutela, espolia e oprime pesquisador de temas relacionados aos
o trabalhador, o gênero e as etnias”, de- direitos humanos e à cidadania, sen-
fine, na entrevista concedida por e-mail do reconhecido como um dos autores
à IHU On-Line. do projeto O Direito Achado na Rua,
Tal perspectiva leva a crer que um grupo de pesquisa com mais de 45 pes-
debate, provocado por muitos, sobre quisadores envolvidos. Ainda é profes-
o início de um novo processo consti- sor da Faculdade de Direito da UNB e
tuinte é vazio. Afinal, a própria lógica membro da Comissão Justiça e Paz da
da Constituição de 1988 consiste em Arquidiocese de Brasília.
desenvolver dispositivos que a façam Confira a entrevista.

Compreender no que consiste de concretizar direitos em percurso A Constituição é ainda o projeto de


IHU On-Line – Como o senhor instituinte, aqueles que, conforme construção de uma sociedade que se
avalia a Constituição Federal o parágrafo segundo de seu artigo comprometa com a superação das
quase 30 anos depois da sua quinto, derivam do regime e dos desigualdades, da pobreza que ex-
promulgação? O que ela ainda princípios que moldam a arquite- clui, aliena e desumaniza, que rompa
tem a nos oferecer? tura da própria Constituição, nota- com o atraso colonialista que infanti-
damente os que se fundam no mo- liza, tutela, espolia e oprime o traba-
José Geraldo de Sousa Júnior vimento solidário e mundializado lhador (subalternização pela classe),
– A promessa ainda não realizada de afirmação dos direitos humanos. o gênero (subordinação patriarcal da

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TEMA DE CAPA

mulher e segmentos identitários) e tiva, supervisora das funções públi- Boaventura de Sousa Santos8), por-
as etnias (desumanização pelo racis- cas e do controle social das políticas, que ela é por experimentação a pos-
mo e pelas discriminações de todos nas formas previstas e inventadas a sibilidade de criação permanente de
os matizes). partir da dinâmica desses processos liberdades e de direitos, muitas ve-
que configuram os direitos não como zes contra o constituído (observe a
Ela é ainda a promessa de institui-
quantidades estocáveis em pratelei- norma de definição de família e das
ção de um projeto de sociedade que
ras de um almoxarifado legislativo, relações que a formalizam, material
supere a cultura do favor, do apa-
mas como relações que se ressigni- e subjetivamente: casamento/união
drinhamento, do clientelismo, do
ficam em experimentalismos eman- estável de afetos; homem/mulher),
nepotismo, do cunhadismo, do pre-
cipatórios. ou contra o legislado (observe as
bendalismo (leia-se Raymundo Fao-
variações relativas ao acesso à pro-
ro1, Darcy Ribeiro2, Sérgio Buarque Motivados por uma expectativa
priedade, terra e território: invadir/
de Holanda3, Victor Nunes Leal4), distributivista solidária, que avalia
ocupar). Direitos são promessas,
enquanto aponta para a construção as coisas como base para a realiza-
mas não podem se tornar promessas
de uma sociedade plural, fundada ção das esperanças e dos sonhos hu-
vazias, e o apelo democrático do arti-
na dignidade, na cidadania e nos di- manizadores que moldam projetos
go 5o leva a essa consciência, ou seja,
reitos. Ela é a contraposição entre a de vida. Isso é o que a Constituição
a de que é a cidadania protagonista,
afirmação censitária (A “Constitui- simboliza e é o horizonte de sentido
ativa, insurgente, achada na rua, o
ção da Mandioca”, de 1824, do perío- que oferece para nortear (no caso,
núcleo de uma subjetividade cole-
do escravista), dos homens letrados, sulear) o trânsito político nas crises,
tiva (sujeitos coletivos de direito),
de bem (porque proprietários), hete- nas descontinuidades e nas tensões
em movimento (movimentos sociais
rossexuais assim declarados, confes- sociais e institucionais próprias da
emancipatórios), a razão legitima-
sionais, fascinados pelos imperati- república.
dora do processo político e realiza-
vos de acumulação possessiva de um
dora contínua do processo de afir-
sistema de mercado que tudo coisi-
IHU On-Line – O que ain- mação de direitos já conquistados e
fica, para se realizar, lutas sociais
da resta do apelo à democra- de criação de novos direitos. Tratei
depois, “Constituição Cidadã, que
cia como processo político de disso também, junto com meu cole-
68 qualifica a democracia e a radicaliza
construção permanente de di- ga Antonio Escrivão Filho9, no livro
pela participação popular delibera-
reitos, expresso no Artigo 5º da Para um Debate Teórico-Conceitual
Constituição? e Político sobre os Direitos Huma-
1 Raymundo Faoro ou Raimundo Faoro (1925-2003):
Jurista, sociólogo, historiador e cientista político brasileiro. nos10, que foi, aliás, objeto de uma
Suas obras se propõem a fazer uma análise da sociedade, José Geraldo de Sousa Júnior
recensão crítica e instigante feita por
da política e do Estado brasileiro. Em seu livro mais clássi-
– O pensamento crítico mais avan-
co, Os Donos do Poder (Porto Alegre: Editora Globo, 1958), Fábio de Sá e Silva11.
abordou conceitos de patrimonialismo brasileiro, onde çado tem caracterizado a democracia
o contextualizava a partir da colonização portuguesa.
Raymundo foi membro da Academia Brasileira de Letras como uma invenção (Claude Lefort5,  
e Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
(Nota da IHU On-Line)
Marilena Chauí6, Chantal Mouffe7, IHU On-Line – As reformas
2 Darcy Ribeiro (1922-1977): etnólogo, antropólogo, pro- trabalhista e previdenciária pa-
fessor, educador, ensaísta, romancista e político mineiro.
Completou o curso superior na Escola de Sociologia e Po- 5 Jean-Claude Lefort (1924-2010): filósofo francês, au- recem se chocar com o paradig-
lítica de São Paulo, no ano de 1946. Trabalhou como etnó- tor de, entre outros A invenção democrática: os limites ma pensado para Constituição
logo no Serviço de Proteção ao Índio, e, em 1953, fundou da dominação totalitária (São Paulo: Brasiliense, 1983) e
o Museu do Índio. Foi professor de etnologia e linguística Desafios da escrita política (São Paulo: Discurso Editorial, de 1988, da constituição cida-
tupi na Faculdade Nacional de Filosofia e dirigiu setores de 1999). Por ocasião de seu falecimento, a Revista IHU On
pesquisas sociais do Centro de Pesquisas Educacionais e -Line entrevistou a filósofa Olgária Matos, na edição 348,
da Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, de 25-10-2010, disponível em http://migre.me/34oI9 e
além de ocupar, no biênio 1959/1961, o cargo de presi- intitulada Claude Lefort e a invenção democrática. (Nota http://bit.ly/2vq0bf3. (Nota da IHU On-Line)
dente da Associação Brasileira de Antropologia. Foi eleito da IHU On-Line) 8 Boaventura de Sousa Santos (1940): doutor em Socio-
em 8 de outubro de 1992 para a Cadeira n. 11 da Acade- 6 Marilena de Souza Chaui (1941): filósofa especialista na logia do Direito pela Universidade de Yale, Estados Uni-
mia Brasileira de Letras. (Nota da IHU On-Line) obra de Baruch Espinoza e escritora brasileira, professora dos, e professor catedrático da Faculdade de Economia
3 Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): historiador, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universida- da Universidade de Coimbra, Portugal. É um dos princi-
crítico literário e jornalista nascido em São Paulo - SP. En- de de São Paulo. Também se destaca pela atuação política, pais intelectuais da área de ciências sociais, com mérito
tre outros livros, escreveu Raízes do Brasil (1936). Obteve tendo combatido a ditadura militar e participado da ges- internacionalmente reconhecido, tendo ganho especial
notoriedade por meio do conceito de “homem cordial”, tão da prefeitura de São Paulo como membro do Parti- popularidade no Brasil, principalmente depois de ter par-
examinado nessa obra. A professora Eliane Fleck apresen- do dos Trabalhadores, partido político de que é uma das ticipado nas três edições do Fórum Social Mundial, em
tou, no evento IHU Ideias, de 22-8-2002, o tema O homem fundadoras e ativa militante intelectual. Entre seus livros Porto Alegre. Confira a entrevista O Fórum Social Mundial
cordial: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, mais recentes estão: Sobre a Violência (Belo Horizonte: desafiado por novas perspectivas, concedida por Boaven-
e no dia 8-5-2003, a professora apresentou essa mesma Autêntica Editora, 2017), Conformismo e resistência (São tura ao sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 30-
obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasil, concedendo, nessa Paulo: Autêntica Editora, 2014) e Spinoza e as Américas 1-2010, disponível em http://bit.ly/BoaventuraIHU. (Nota
oportunidade, uma entrevista à IHU On-Line, publicada (Fortaleza: EdUECE, 2014). (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)
na edição nº 58, de 5-5-2003, disponível em http://bit. 7 Chantal Mouffe: filósofa belga, autora de Dimensions of 9 Antonio Sergio Escrivão Filho: doutor em Direito pela
ly/152MP1v. Sobre Sérgio Buarque de Holanda, confi- radical democracy (London: Verso, 1992) e The democratic Universidade de Brasília (UnB), Pesquisador Visitante da
ra, ainda, a edição 205 da IHU On-Line, de 20-11-2006, paradox (London: Verso, 2000). Mouffe era grande parcei- Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA School of
intitulada Raízes do Brasil, disponível em https://goo.gl/ ra de Ernesto Laclau. A edição 508 da IHU On-Line traz um Law - 2015/2016), possui Graduação e Mestrado em Direi-
RN3W57, e a edição 498, de 28-11-2016, Raízes do Bra- artigo de Mouffe intitulado O desafio populista, disponível to pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Professor
sil – 80 anos. Perguntas sobre a nossa sanidade e saúde em http://bit.ly/2w7hMFr. O sítio do IHU vem publicando Substituto da Faculdade de Direito da UnB e do Instituto
democráticas, disponível em http://bit.ly/2nDmdFE. (Nota diversos textos da e sobre a autora. Entre eles A influência de Ensino Superior de Brasília (IESB). Tem experiência na
da IHU On-Line) de Laclau e Mouffe no Podemos: hegemonia sem revolu- área de Direito e Ciência Política, com ênfase em Teoria
4 Victor Nunes Leal (1914-1985): jurista brasileiro, mi- ção, disponível em http://bit.ly/2sY0vAL; “O kirchnerismo do Direito, atuando principalmente nos seguintes temas:
nistro do Supremo Tribunal Federal. Bacharelou-se em é uma fonte de inspiração”. Entrevista com Chantal Mouffe, Teoria Geral do Estado e do Direito, Direitos Humanos e
Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de disponível em http://bit.ly/2t284r8; e “Existe uma neces- Movimentos Sociais, Sociologia Jurídica e Constituciona-
Direito da Universidade do Brasil, atualmente Universida- sária dimensão populista na democracia”. Entrevista com lismo. (Nota da IHU On-Line)
de Federal do Rio de Janeiro - UFRJ em 1936. Colaborou Chantal Mouffe, disponível em http://bit.ly/2vFPl4Y. A IHU 10 Rio de Janeiro: D’Plácido, 2016. (Nota da IHU On-Line)
com Pedro Baptista Martins na elaboração do Código de On-Line número 508 se dedica a análise do conceito de 11 Em publicação da revista IHU On-Line, disponível em
Processo Civil de 1939. (Nota da IHU On-Line) populismo, trabalhado por ela e Ernesto Laclau. Acesse em http://bit.ly/2GAfol2. (Nota do entrevistado)

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dã. Como compreender essa de retomada da recuperação civil e re- tra afetada a própria condição do valor
mudança de rumo? publicana da política, em direção a um democracia no projeto de sociedade.
projeto de reconstrução democrática,
José Geraldo de Sousa Júnior
tensa, com descontinuidades, com
 
– Não parecem se chocar, colidem vio- IHU On-Line – Como o senhor
avanços e retrocessos, perdas e recon-
lentamente. Por isso elas se inscrevem avalia a possibilidade de uma
quistas, em disputa histórica de um
num programa que se procura cons- nova constituinte? Quais os ris-
projeto de sociedade e de País. Sem-
truir na forma de um Golpe Institucio- cos de tentar abrir uma brecha
pre procurei14 deixar claro a condição
nal-Parlamentar-Judiciário-Midiático, para a revisão da reforma po-
de transição experimentada, por me-
no interesse de um projeto de acumu- lítica e ela se transformar em
diações razoáveis – a luta pela anis-
lação. Que se trata de um Golpe, cuidei uma ampla revisão, incluindo a
tia, pela constituinte e pela memória,
de o caracterizar em várias oportunida- retirada de direitos?
verdade e justiça – num processo sem
des, em ações políticas de resistência e
garantias. O que nos impõe postura de José Geraldo de Sousa Júnior
críticas12, sempre procurando demons-
engajamento, resistir em face de ame- – Aposto na mobilização e na afir-
trar de que modo o processo em curso,
aças e avançar sem temer enfrenta- mação dessa plataforma na constru-
que teve início com o procedimento ar-
mentos, sabendo que as energias utó- ção de espaços públicos amplos – a
tificioso de afastamento da presidente
picas acumuladas nessa experiência rua – para aferir as condições de um
da República eleita, se faz atentado à
podem animar o protagonismo que “momento constituinte”. Não temos
Democracia, à Constituição e, em últi-
mobilize, nas crises, as forças emanci- ainda, na conjuntura crítica e radi-
ma análise, aos trabalhadores, com a
patórias do social. calizada de disputa de projetos de
Constituição arguida contra a própria
sociedade, consensos razoáveis para
Constituição. Ou ainda com iniciativas Dou um exemplo atual. Quando o
esboçar um projeto constituinte.
de reformas constitucionais e legisla- ministro da Educação ameaçou in-
Não há, sequer, uma agenda mínima
tivas, retirando direitos, transferindo tervir nas universidades para censu-
entre os segmentos de esquerda ou
ativos e reorientando o orçamento rar a liberdade de ensino e de cátedra
progressistas, ou bases sólidas para
público para transferir o financiamen- em face da criação de disciplina para
armar arcos de alianças.
to de políticas sociais para subsidiar a estudar o Golpe de 2016, houve uma
lucratividade financeira e industrial em reação espontânea e imediata galvani- Há institucionalidade instalada, no 69
nítido movimento de estrangeirização. zada pela exigência de resistência em Legislativo, no Executivo, no Judici-
Tratei disso vivamente em meu artigo defesa do espaço crítico universitário ário e nas organizações de sociedade
Resistência ao Golpe de 2016: Contra que se espalhou pelas instituições, civil – o procedimento de impeach-
a Reforma da previdência13. e eu próprio, com parlamentares e ment mostrou isso – para assegurar
juristas, imediatamente representei a legitimidade e as salvaguardas da
 
contra o ministro, na Comissão de própria legalidade de condução de
IHU On-Line – Os impasses
Ética Pública e na Procuradoria Ge- um processo constituinte ou de uma
atuais em relação à Constitui-
ral da República, para salvaguardar revisão. Nessa institucionalidade,
ção Federal são, ao menos, de
a autonomia universitária protegida prevalecem os corporativismos, o
duas ordens: a manutenção
pela própria Constituição. O Golpe elitismo e os arranjos interessados
das garantias sociais (incluí-
parece estar recuando em face desse (bancadas da bala, do boi, da bíblia)
dos aí os direitos humanos) e
movimento, mas nós não vamos deter e o comprometimento de estamen-
a necessidade de uma reforma
o avanço. Estamos estudando encami- tos burocráticos encastelados na de-
política. Como enfrentar esses
nhar à Relatoria do Brasil designada fesa de status e privilégios. Não há
dilemas, fazendo avançar a re-
para o monitoramento das ações de mediações para a transparência, a
forma política sem retroceder
violações à Convenção Americana de equidade e o equilíbrio entre as pro-
nos direitos sociais?
Direitos Humanos a reivindicação de postas e as suas justificações, ainda
José Geraldo de Sousa Júnior incluir o tema na agenda das audiên- mais agravadas essas limitações pelo
– A pergunta em si é uma resposta ao cias e da visita ao País, porque se mos- monopólio ideológico e patrimonia-
problema atual que nos mobiliza. A lista de meios de comunicação im-
Constituição de 1988 se inscrevia num 14 Algumas feitas aqui no espaço do IHU e outras em permeáveis ao controle social e ao
movimento de transição entre a dita- publicações ao longo desse tempo: Ser Constituinte, Re-
vista Humanidades, n. 11, Editora UnB, Brasília, 1988, págs.
acesso democrático da informação
dura instalada em 1964, por meio do 18-26; Ser Gente e Cidadão, Revista Humanidades, n. 19, e de sua circulação. Uma revisão
Editora UnB, Brasília, 1988, págs. 15-18; Soberania e Di-
Golpe que a tornou possível, e as ações reitos: Processos Sociais Novos?, Caderno CEAC/UnB, n. 1 constitucional nessas condições ape-
(Constituinte: Temas em Análise), Editora UnB, s/d; A Nova nas homologaria, tal como estamos
Constituição e os Direitos do Cidadão, Que Brasil Emerge
da Constituição?, Revista de Cultura Vozes, n. 2, Petrópolis, assistindo e constatando, as artima-
12 Ver, neste caso meu artigo Estado Democrático da Di- 1988, págs. 28-34; Obstáculos à Efetivação da Democracia
reita, publicado no livro organizado por Roberto Bueno, no Brasil, CNBB/Seminário “Exigências Éticas da Ordem nhas em curso de desconstituciona-
Democracia: da Crise à Ruptura, Max Limonad, São Paulo, Democrática” - Sociedade, Igreja e Democracia, São Paulo, lização e de desdemocratização.
2017, págs. 407-412. (Nota do entrevistado) Edições Loyola, 1989, págs. 31-36; Avaliação e Perspectivas
13 Publicado no livro O Golpe de 2016 e a Reforma da do Trabalho da Comissão de Acompanhamento das Cons-
Previdência. Narrativas de resistência, organizado por Gus- tituintes – 1987/1990, Estudos CNBB n. 60. Participação  
tavo Teixeira Ramos e outros, na série editada pelo Projeto
Editorial Práxis e Instituto Defesa da Classe Trabalhadora
Popular e Cidadania. A Igreja no Processo Constituinte,
Edições Paulinas, São Paulo, 1990, págs. 288-301). (Nota
IHU On-Line – Como a Cons-
(Bauru, 2017, págs. 242-246). (Nota do entrevistado) do entrevistado) tituição Federal, em vez de ser

EDIÇÃO 519
TEMA DE CAPA

um instrumento mediador do coisas, as dificuldades da metódica Também O Direito Achado na Rua,


direito, foi capturada institucio- jurídica residem mais na sua rotina enquanto compreensão teórico-polí-
nalmente e quase que exclusiva- e falta de comunicação com outros tica do jurídico, pode se inscrever
mente pelo Judiciário, transfor- horizontes de reflexão como as da nessa categoria de prática democrá-
mando-se em uma justificativa sociologia e da filosofia do que nos tica de ampliação da cidadania e dos
de retirada de direitos? seus pontos de partida quanto à in- direitos e são inúmeros os registros
vestigação e “extrinsecação” do sen- de inscrição nos repertórios norma-
José Geraldo de Sousa Jú-
tido das normas para efeito da sua tivos de novas categorias que emer-
nior – Tratei desse tema em algu-
aplicação prática. gem do processo de reconhecimen-
mas intervenções que fiz ao IHU15.
to do processo social instituinte de
No Observatório da Constituição
novas juridicidades. Isso explica, em
e da Democracia16, perguntei ao IHU On-Line – Fazendo uma boa parte, a exaltação ultimamen-
professor José Joaquim Gomes retomada histórica do Brasil te ressonante, inclusive no espaço
Canotilho17 se a multiplicidade de pós-Constituição de 1988, que do Supremo Tribunal Federal, que
sujeitos que se movem no debate exemplos concretos podemos logo identificou nesse fundamento
constitucional contemporâneo ten- trazer de práticas democráti- uma contraposição ideológica, ética
de a abrir expectativas de diálogo cas alinhadas ao paradigma da e epistemológica às razões que têm
político estruturado na linguagem cidadania sustentado à época sido esgrimidas para funcionalizar
do direito. E complementei: quais de sua promulgação? o jurídico para embalar a substan-
as principais “posições interpreta-
José Geraldo de Sousa Júnior tividade de formas de atribuição de
tivas da Constituição” que emer-
gem desse processo? – Apesar de obstáculos que a resis- titularidades, de modos de aquisição
tência elitista e conservadora em patrimonial ou investidura de prer-
A resposta que me deu vale para todos os âmbitos provoca a todo rogativas que já não respondem ao
a questão aqui proposta: em tra- momento – pense-se, por exemplo, substrato material que devam infor-
balhos anteriores demos conta de a edição de decreto legislativo com má-las, em face de profundas trans-
que a “luta constituinte” era (e é) o fim de suspender iniciativa do formações na infraestrutura do sis-
uma luta por posições constituin- Executivo com o objetivo de cons- tema econômico de acumulação ou
70 tes e de que a lógica do “pluralismo do sistema jurídico de legitimação do
tituir procedimentos, como método
de intérpretes” não raro escondia de governança e de gestão, de me- poder político. Ou de reconhecimen-
que essa luta continuava depois de didas de abertura e regulamentação to da atribuição excludente do siste-
aprovada a constituição. A interpre- dos instrumentos de participação ma judicial para monopolizar e reali-
tação seria afinal um “esquema de na Administração Pública, “denun- zar o sistema de Justiça, alienando-se
revelações” de pré-compreensões ciando” o caráter “bolivariano” das da participação da cidadania.
políticas. Continuamos a conside-
medidas adotadas, sem inovar, ape- O Direito Achado na Rua prosse-
rar que a metódica jurídica refle-
nas cumprindo o que já estabeleci- gue, teórica e politicamente, a de-
te todas as dimensões de criação e
do na Constituição e em leis – os signar a ampliação de espaços de
aplicação das normas jurídicas e
mecanismos de participação per- sociabilidade para as relações de re-
a prova disso é que as diferenças
manecem como método e estratégia ciprocidade legitimadas que permi-
entre legislação (legislatio), juris-
de comunicação com o social, para tem instituir-se novas sociabilidades
prudência (jurisdictio) e doutrina
ações de controle, supervisão e deli- e novos direitos; a contribuir para
(jurídica e política) surgem cada
berativas, nos três níveis de atuação reconhecer a legitimidade dos pro-
vez mais imbricadas e flexíveis. De
do Estado, bastando ver a realiza- tagonismos sociais desses sujeitos
qualquer forma, o elemento cen-
ção de conferências, instalação de contra a tentação de criminalizar as
tral da nossa posição reconduz-se
conselhos, audiências públicas, co- suas formas de intervenção e a ofe-
ainda à ideia de conformação cons-
missões, gestão de planos, consul- recer categorias de enquadramento
titucional dos problemas segundo
tas, Amicie Curiae etc., formando jurídico para as invenções democrá-
o princípio democrático e não de
um extenso leque de intervenções ticas desses novos direitos (CF, art.
acordo com princípios a priori ou
transcendentais. Se vemos bem as vinculantes do social no processo 5o, parágrafo 2o). É uma disputa de
da governança, legislativo e de ad- narrativa e, como lembra Canotilho,
15 Entre elas, especialmente uma entrevista em que tratei ministração da Justiça. Sem deixar na entrevista citada, aludindo exa-
do tema da judicialização da política, disponível em http:// de mencionar aqueles institucio- tamente a O Direito Achado na Rua
bit.ly/2uIIqcE. (Nota do entrevistado)
16 Editado pela Faculdade de Direito da UNB, um tabloide nalmente previstos na Constitui- para a acentuar, trata-se de afrontar
de 24 páginas que fizemos circular por cerca de três anos,
em que fui um dos organizadores. (Nota do entrevistado) ção, cujos frutos são notáveis, por a insensibilidade dos juristas à pers-
17 José Joaquim Gomes Canotilho (1941): jurista portu-
guês e professor catedrático da Faculdade de Direito da
exemplo, as leis de iniciativa po- pectiva antinormativista dos cultores
Universidade de Coimbra, e professor visitante da Facul- pular, entre elas a que resultou na das teorias críticas. Estes têm apon-
dade de Direito da Universidade de Macau, considerado
por muitos como um dos nomes mais relevantes do di- constitucionalização do Direito de tado para a necessidade de o sujeito
reito constitucional da atualidade. Foi distinguido com o
Prémio Pessoa em 2003 e com a Comenda da Ordem da
Morar ou a de inabilitação eleitoral de direito se aproximar dos “sujeitos
Liberdade em 2004. (Nota da IHU On-Line) denominada “Lei da Ficha Limpa”. densos” da vida real e para o plura-

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lismo e diferença de regulações no materialidade (os direitos alimenta- Na Comissão Brasileira de Justiça
contexto global e “alteromundial”, res) e em sua forma (os direitos ele- e Paz fui indicado para prestar de-
até que seja sacudida e se mostre dis- mentares), como dizia em seu tempo, poimento numa das 24 Subcomis-
posta a ir para o meio da rua. João Mangabeira18, a propósito da re- sões criadas para organizar o tra-
tomada democrática em 1946 depois balho propositivo dos constituintes.
do soluço autoritário de 1937, com a Depois, nos anos que se seguiram,
“A Constituição Ditadura e a tremenda repressão dos
agentes do Estado Novo.
pude participar de mais de uma au-
diência pública em comissões mistas
de 1988 se nas quais se discutiram projetos de

inscrevia num IHU On-Line – Deseja acres- emendas para revisão parcial ou to-
centar algo? tal da própria Constituição. Enfim,

movimento José Geraldo de Sousa Júnior


essa combinação de Memória e de
História dá uma vivacidade singular

de transição – Apenas para confidenciar um sen-


timento. Cada vez mais, em novos
ao significado político da realização
constitucional como expressão de
entre a ditadura auditórios, expor acerca desses te-
mas, vai deixando de ser um exer-
momentos marcantes da historici-
dade de um país e da maturidade de
instalada cício de memória para se constituir
também um registro de História.
seu projeto de sociedade. Contribui
para discernir os sinais que indicam
em 1964” Boa parte desses auditórios hoje é
formada por estudantes nascidos
a emergência constituinte desses
momentos singulares, quando as cri-
muito depois dos acontecimentos ses aceleram o perecimento das for-
que demarcam o período no qual mas arcaicas de organização da po-
IHU On-Line – Completamos a Constituinte se realizou. Sabe-se lítica e tornam possível desabrochar
o processo de transição demo- dela pelos livros, assim como outros as formas novas que a própria crise
crática iniciado pela Consti- eventos do passado. Para mim, en- fecunda. É o momento constituin-
tuição de 1988 ou os recentes tretanto, que vivenciei esses aconte- te que vai pavimentar o movimento
cimentos19 é diferente. formidável que as contradições de-
71
episódios jurídico-políticos
ilustram o seu rompimento? sencadeiam quando do esgotamento
18 João Mangabeira (1880-1964): foi um jurista, político
e escritor brasileiro. (Nota da IHU On-Line) das motivações corporativas, elitis-
José Geraldo de Sousa Júnior 19 Participei dos debates e das avaliações na Universidade
tas, intolerantes, odiosas, discrimi-
(membro da Comissão de Estudos e de Acompanhamento
– Penso ter respondido a essa inda- da Constituinte que a UnB instalou); nessa Universidade, natórias que atingem as multidões e
gação nas questões anteriores. Entre- incluído no Grupo Pedagógico para a preparação do Cur-
so a Distância “Constituinte & Constituição”, um suple- que fazem com que elas se transfor-
tanto, vale destacar que a Democra- mento encartado por semanas, como tabloide, na edição
mem em povo.■
de sábado do principal jornal da cidade, o que permitiu
cia, como se aprende na política, é aos participantes do curso levarem à ANC propostas para
discussão, em entrega solene ao Presidente Ulisses Gui-
uma obra inconclusa, nunca acabada, marães, e devidamente consideradas no debate conforme
insatisfeita de si própria e que desa- atesta o relatório de uma das Subcomissões que as exami-
nou; na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, ção que a Entidade criou para assessora seus dirigentes e
fia a atualização continuada, em sua membro da Comissão de Acompanhamento da Constitui- seu Conselho de Pastoral. (Nota do entrevistado)

Leia mais
- Direitos não são quantidades, são relações. Entrevista com José Geraldo de Sousa Ju-
nior, publicada na revista IHU On-Line número 494, de 3-10-2016, disponível em http://bit.
ly/2GwKo5b.
- O julgamento e os impactos políticos da condenação do ex-presidente Lula. Algu-
mas leituras. Entrevista com José Geraldo de Sousa Junior, publicada nas Notícias do
Dia de 25-1-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://
bit.ly/2q4SeIZ.
- A Constituição e a construção de direitos. Entrevista especial com José Geraldo de Sou-
sa Junior, publicada nas Notícias do Dia de 3-12-2013, no sítio do Instituto Humanitas Uni-
sinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2q3Qqze.

EDIÇÃO 519
ENTREVISTA

O catálogo de tragédias aos Yanomami


na voz de Davi Kopenawa
Julie Dorrico, ao analisar o livro A queda do céu.
Palavras de um xamã yanomami, comenta sobre
a força narrativa e política da obra
Ricardo Machado

O
s múltiplos sentidos da obra A nawa pode, para além da reconfiguração
queda do céu. Palavras de um da imagem de seu povo e a sua, com-
xamã yanomami (São Pau- partilhar outras epistemologias que não
lo: Companhia das Letras, 2015) vêm se subsumem ao binarismo moderno:
sendo, pouco a pouco, revelados por natureza x cultura, indígena x não in-
pesquisadores e professores das mais dígena, mulher x homem etc.”, analisa.
diversas áreas, da antropologia à teoria “Devemos ouvir o que diz o xamã para
literária. Com foco nesta última pers- aprendermos que a Terra não é colônia
pectiva, da teoria literária, Julie Dorrico de exploração, é o lugar que habitamos,
faz uma leitura atenta e minuciosa deste de que ela não é uma propriedade, mas
que pode ser considerado um dos princi- uma partilha, um presente que foi dado
pais tratados da cosmologia yanomami. gratuitamente a todos e para o usufruto
“A narrativa do xamã yanomami denun- de todos”, complementa.
72 cia as práticas políticas, econômicas e
Julie Dorrico é graduada em Letras
sociais ancoradas no modelo normativo
Português e suas respectivas Literatu-
ocidental. Por modelo normativo oci-
ras na Fundação Universidade Federal
dental compreendo as formas de pro-
de Rondônia - UNIR, onde também
dução baseadas no regime capitalista,
realizou mestrado no Programa de Pós-
em que grandes empresas mantêm o
Graduação do Mestrado em Estudos
monopólio das forças produtivas desen-
Literários. Atualmente é doutoranda no
cadeando uma série de dependências:
Programa de Pós-Graduação em Letras
financeiras para os grupos com menos
na Pontifícia Universidade Católica do
potência econômica; e subjetivas, uma
Rio Grande do Sul - PUCRS. Sua pesqui-
vez que nossa sociedade brasileira tende
sa volta-se à Literatura Contemporânea
a apagar os sujeitos à margem dos cen-
com ênfase na Literatura Indígena Con-
tros bem sucedidos em geral”, descreve
temporânea e autobiografia indígena e
Julie Dorrico, que concedeu entrevista
integra o Grupo de Estudos em Culturas,
por e-mail à IHU On-Line.
Educação e Linguagens - GECEL.
“O xamã nos mostra que a modernida-
de tem uma relação tão essencial com a A pesquisadora apresentará A Que-
mercadoria que transcende e subverte da do Céu. Palavras de um Xamã
o sentido normativo das relações hu- Yanomami. Obra de Davi Kope-
manas: de fins passamos a ser meios, nawa e Bruce Albert, no dia 18-4-
ao passo que as mercadorias de meios 2018, a partir das 19h30, na Sala Igna-
passam a ser fins”, critica a entrevistada. cio Ellacuría e Companheiros – IHU.
Uma das características mais potentes O evento integra a programação do
do livro é que as tensões trazidas no tex- evento A contemporaneidade em
to evidenciam que a visão xamânica do debate. Intérpretes e suas obras
mundo não se dá em termos individuali- (2ª edição).
zantes, mas relacionais. “O xamã Kope- Confira a entrevista.

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REVISTA IHU ON-LINE

“Davi Kopenawa pode ser tomado,


nesse sentido, como um exemplo,
posto que ele é um narrador que
dá coesão, nesta obra, por meio de
sua voz, memória e experiência”

IHU On-Line – Como a obra A povos indígenas. as formas de produção baseadas no


Queda do Céu: Palavras de um regime capitalista, em que grandes
Dessa forma, quando eu penso em
Xamã Yanomami (2015) traz empresas mantêm o monopólio das
Davi Kopenawa Yanomami2 como
novas perspectivas para com- forças produtivas desencadeando
autor do texto junto ao antropólo-
preendermos a crise sistêmica uma série de dependências: finan-
go francês Bruce Albert3, e penso
instaurada pela obsessão de- ceiras para os grupos com menos po-
no enredo do livro, logo considero
senvolvimentista? tência econômica; e subjetivas, uma
a potência literária que ela denota
vez que nossa sociedade brasileira
Julie Dorrico – Antes de tudo em termos de autoria e em termos
tende a apagar os sujeitos à margem
gostaria de ressaltar que a leitura de narrativa. Utilizo como referên-
dos centros bem sucedidos em geral.
que realizo da obra A queda do céu: cia também o intelectual Kaká Werá,
Entre outras, uma característica im-
palavras de um xamã yanomami no livro Kaká Werá (Rio de Janei-
portante dessa compreensão é que a
processa-se à luz da teoria da litera- ro: Azougue, 2017), que considera
natureza e as relações humanas são
tura. Especificamente, da teoria da serem as sociedades tradicionais, 73
concebidas, de um modo geral, como
literatura indígena brasileira. Isso literárias. Em sua visão, os contado-
instrumentais – aquilo que Marx4
significa dizer que fundamento mi- res de histórias são imprescindíveis
chamou de precedência dos valores
nhas análises da obra em estudos de para a coesão de um dado povo. Davi
de troca em relação aos valores de
teóricos que vêm pensando a expres- Kopenawa pode ser tomado, nesse
uso. Esta forma de conceber as rela-
são indígena no campo da teoria da sentido, como um exemplo, posto
ções sociais perpassa desde as políti-
literatura – só depois procuro pen- que ele é um narrador que dá coe-
cas que regem a nossa sociedade até
sar questões e consequências políti- são, nesta obra, por meio de sua voz,
as epistemologias desenvolvidas na
cas dela. Com uma série de autores1 memória e experiência, ao povo Ya-
academia. Adotando um modelo dis-
que intercambiam antropologia, li- nomami em suas relações com as so-
cursivo que se pretende neutro, im-
teratura, educação, saúde e política, ciedades não indígenas, e nesse caso,
parcial e impessoal, reproduzimos a
de modo que esses escritores indíge- por meio da escrita alfabética.
visão de que a natureza, as relações e
nas e não indígenas trabalham para
A narrativa do xamã yanomami de- as formas de conhecimento existen-
diminuir as compreensões equivo-
nuncia as práticas políticas, econô- tes são pertenças coisificadas do ho-
cadas e estereotipadas acerca das
micas e sociais ancoradas no modelo mem; como se ao homem, por pura e
expressões estéticas e políticas dos
normativo ocidental. Por modelo simplesmente existir, lhe fosse lega-
1 Os autores estudados, entre outros, são Oscar Sáez, em
normativo ocidental compreendo do o direito de posse sobre a nature-
seu artigo Autobiografia e sujeito histórico indígena (2006); za e, como a História têm mostrado
Suzane Lima Costa, em seu artigo Povos indígenas e suas
narrativas autobiográficas (2014); Marília Librandi-Rocha, em alguns momentos, sobre outros
em seu artigo Escutar a escrita: por uma teoria literária 2 Davi Kopenawa Yanomami (1956): escritor e líder indí-
ameríndia (2012); Maria Inês de Almeida e Sônia Queiroz, gena brasileiro. Ainda criança, viu a população de sua ter-
em seu livro Na captura da voz – as edições da narrativa ra natal ser dizimada por duas epidemias, ambas trazidas 4 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, econo-
oral no Brasil (2004); Janice Thiél, em seu livro Pele silen- pelo contato com o homem branco. Trabalhou na Funda- mista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensa-
ciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque; Graça ção Nacional do Índio como intérprete. Mudou-se para dores que exerceram maior influência sobre o pensamen-
Graúna, em seu livro Contrapontos da literatura indígena a aldeia Watorik+ na década de 1980. Casou-se com a to social e sobre os destinos da humanidade no século 20.
contemporânea no Brasil (2013); Lúcia Sá, em seu livro filha do pajé e se tornou chefe do posto indígena Demini. A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda
Literaturas da floresta: textos amazônicos e cultura latino Foi um dos responsáveis pela demarcação do território Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl
-americana (2012). Além dos próprios indígenas que têm Yanomami em 1992. Recebeu o prêmio ambiental Global Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre
ensaiado uma teoria para sua própria expressão, tais como 500 da ONU. Em 2010, viu sua autobiografia La chute o autor, a edição número 278 da revista IHU On-Line, de
Daniel Munduruku, em seu livro Mundurukando 2: sobre du ciel, escrita em parceria com o antropólogo francês 20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo e sua
vivências, piolhos e afetos – roda de conversa com educa- Bruce Albert, foi lançada na França. O livro teve tradução crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível em https://
dores; Olívio Jekupé, em seu livro Literatura escrita pelos para o inglês, e sua edição em português saiu em 2015 goo.gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: os homens não são o
povos indígenas (2009); Tiago Hakiy, em seu poema Índio (A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras). (Nota que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por
e tradição (2011); Márcia Kambeba, em seu livro Poemas da IHU On-Line) Pedro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição 327
e crônicas: Ay Kakyri Tama – Eu moro na cidade (2013); 3 Bruce Albert (1952): antropólogo francês, nascido no da IHU On-Line, de 3-5-2010, disponível em http://bit.
Kaká Werá, em seu livro Todas as vezes que dissemos adeus Marrocos. Participou em 1978 da fundação da ONG Co- ly/2p4vpGS. A IHU On-Line preparou uma edição especial
(2002); Ailton Krenak, Ailton Krenak, organizado por Sér- missão Pró-Yanomami, que conduziu com Davi Kopenawa sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty
gio Cohn e Idjahure Kadiwel (2017); Ely Macuxi em entre- uma campanha até obter, em 1992, a homologação da O Capital no Século XXI, que retoma o argumento central
vista no canal Mundurukando no Youtube, sobre a educa- Terra Indígena Yanomami, à qual viaja quase anualmente. de O Capital, obra de Marx, disponível em http://www.
ção indígena (2016). (Nota da entrevistada) (Nota da IHU On-Line) ihuonline.unisinos.br/edicao/449. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 519
ENTREVISTA

homens. Como consequência desse Aliás, uma das críticas mais cen- nawa, nesta primeira parte do livro,
paradigma moderno e modernizan- trais que Davi Kopenawa faz à mostra exatamente o contrário, ele
te, vemos, como bem pontuam Ella modernidade, por meio de sua vo- revela que sua crítica, reflexivida-
Shohat e Robert Stam, no livro Crí- z-práxis xamânica, consiste exata- de e emancipação são possíveis na
tica da imagem eurocêntrica (São mente nessa denúncia de que nos própria vinculação sociocultural e
Paulo: Cosac Naify, 2006): a ex- transformamos no povo, na cultura pertença antropológico-ontológica,
propriação de territórios em esca- da mercadoria. O xamã nos mostra tornando-se crítica da modernidade
la maciça; a destruição de povos e que a modernidade tem uma rela- via xamanismo e desde sua diferen-
culturas locais; a transformação de ção tão essencial com a mercadoria ça. Situando o leitor na origem de
africanos e índios em escravizados; que transcende e subverte o sentido seu povo e do mundo yanomami, ele
a ascensão do racismo nos territó- normativo das relações humanas: de justifica a normatividade que conduz
rios colonizados. fins passamos a ser meios, ao passo o seu povo, e, por meio da voz e da
que as mercadorias de meios pas- palavra, vamos conhecendo a potên-
Respondendo a essa conjuntura sam a ser fins. Precisamos, a partir cia estética que perpassa esta narra-
que se desenhou historicamente, e a dessa reflexão xamânica, retomar tiva. Do estético ao político, do po-
partir do seu lugar de fala – sujeito e reafirmar uma noção normativa lítico ao estético, tudo mediado pelo
individual, sujeito coletivo, yanoma- de sociedade humana, de natureza, xamanismo. Nessa fórmula, lemos
mi – Davi Kopenawa denuncia um percebendo essas esferas como to- a obra, sobretudo a primeira parte,
catálogo de tragédias que afetaram e talmente interligadas. que se funda em dois conjuntos de
afetam seu povo. narrativas que orientam o mundo tal
Devemos lembrar que sua atuação qual o povo Yanomami reconhece a
IHU On-Line – A obra é divi-
política é voltada para a defesa do configuração dele: o primeiro con-
dida em três partes – Devir ou-
seu povo e dos povos indígenas que junto é do tempo muito remoto em
tro, A fumaça do metal e A que-
foram quase extintos com a empre- que os ancestrais animais se meta-
da do céu. Como cada uma das
sa da modernidade. Logo, seu re- morfoseavam continuamente. Este
seções ajuda a explicar as dife-
lato compreende a cosmovisão de conjunto, conforme assinala Bruce
rentes crises contemporâneas?
seu povo, orientada pelo demiurgo Albert, descreve a socialidade sem
74 Julie Dorrico – A primeira par- lei dos ancestrais humanos/animais
Omama, valorizando a floresta e as
relações humanas, o que, em grande te da obra, Devir outro, traz a pers- (yarori) da primeira humanidade,
medida, nos leva a refletir sobre as pectiva da autoafirmação na e pela que provocou sua metamorfose em
nossas próprias na sociedade bra- diferença. No artigo publicado no caça (yaro), e a de suas “imagens”
sileira. Vale lembrar que, historica- periódico O eixo e a roda, A litera- (utupë) em espíritos xamânicos; e
mente, desde os primeiros contatos tura indígena como crítica da mo- o segundo conjunto trata do tempo
com os não indígenas nas décadas de dernidade: sobre xamanismo, nor- em que Omama cria os Yanomami;
1910 e 1940, mediados pelo extinto, matividade e universalismo – notas esta parte também desenvolve a ges-
em 1967, Serviço de Proteção ao Ín- desde A queda do céu: palavras de ta (a criação/trabalho) do demiurgo
dio - SPI, os extrativistas, os soldados um xamã yanomami, de Davi Kope- Omama e ainda de seu irmão, o en-
da Comissão de Limites para demar- nawa e Bruce Albert, o professor ganador Yoasi, criadores do mundo
car fronteiras brasileiras, a presença Leno Francisco Danner e eu refleti- e da sociedade atuais.
pertinente das missões, a abertura mos que o paradigma normativo da
O objetivo expresso nesta primeira
da Perimetral Norte durante o perío- modernidade vê o xamanismo como
parte da obra consiste em dar-se a
do da Ditadura Militar, mineradores o antípoda da racionalização, defen-
conhecer, pois, conhecendo a ordem
e garimpeiros que resistem até hoje, dendo que a crítica, a reflexividade,
que guia seu pensamento-outro, tal-
os Yanomami tiveram perdas demo- a emancipação e o universalismo só
vez, como afirma Kaká Werá, se di-
gráficas alarmantes. Então, a partir são possíveis, por meio desse mesmo
minua a distância de entendimento
dessa sua experiência, material e paradigma em suas características
de costumes, valores, mitologias etc.
espiritual, o xamã alerta que as rela- de formalização, neutralidade, im-
entre a sociedade não indígena e os
ções ocidentais que se incursionam pessoalidade e imparcialidade.
remanescentes das culturas ances-
em direção ao seu espaço estão longe Nessa visão, o xamanismo, a cos- trais. A primeira parte ajuda-nos a
de ser o modelo de vida a ser tomado movisão ameríndia yanomami não entendermos as diferentes subjeti-
como paradigma. Podemos inferir, é compreendida como princípio vidades que estão constantemente
de seu depoimento-profecia que, se antropológico capaz de autogerir- radicadas no signo das minorias,
o povo da mercadoria continuar sua se, devendo sempre ser tutelada e minorias, é claro, em direitos. Essa
empreitada de desmatamento des- assumida como menoridade, como parte, entre outras lições que ense-
mesurado em favor do lucro, o céu criança órfã que precisa crescer, ci- ja, propõe que conheçamos o outro,
irá desabar. E, dessa vez, os xamãs vilizar-se e integrar-se à sociedade a cultura do outro, antes de declarar
nada poderão fazer para impedir do não indígena (muitas vezes dei- um ódio àquele que não se enquadra
essa tragédia. xando de ser indígena). Davi Kope- no paradigma ao qual fomos educa-

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dos, o do homem, branco, heteros- fazer para ajudar. Estas imagens (es- relações materiais e subjetivas.
sexual, capitalista e judaico-cristão. tas doenças), eles não as conhecem,
O que, no Brasil, penso ser bastan- por isso não podem fazer nenhum A queda do céu
te suspeito adotarmos esse modelo, ritual de cura e, além disso, a doen-
considerando nossa formação de ca- ça física resultante do contato com o Por fim, a terceira parte, intitulada
ráter complexo. branco significa a doença no plano A queda do céu, fala do ato político
espiritual dos xapiri. O mundo ma- do sujeito Davi em defesa da Terra
Fumaça do metal terial e espiritual adoece concomi- Indígena Yanomami. Fala um pou-
tantemente pondo em risco toda a co mais de sua empreitada com a
A segunda parte, A fumaça do me- vida comunitária. União das Nações Indígenas - UNI
tal, denuncia metalinguisticamente que começava a articular-se em fa-
o contato com os não indígenas e as A fumaça do metal, entendida pelo vor dos povos indígenas no país. Das
sucessivas epidemias advenientes xamã como uma fumaça presente nas suas primeiras viagens em defesa
desse contato. Ela também nos relata ferramentas utilizadas pelos brancos da demarcação da TY, o reconheci-
sobre como o desastre ecológico afe- na aldeia ou deixadas aos Yanomami mento da importância de suas pala-
tou diretamente o mundo espiritual, sob a forma de presentes, foi a respon- vras serem publicizadas para além
que, por sua vez, depende da floresta sável por reduzir demograficamente das florestas. As palavras em defesa
para (sobre)viver perto dos Yanoma- os Yanomami em razão de sua consti- da floresta são um alerta de que, se
mi. Os espíritos, os xapiri, são seres tuição diferenciada da do branco. So- os brancos, o povo da mercadoria,
sensíveis que se comunicam com o ma-se a esse contato, nesta parte do continuarem explorando desenfrea-
xamã quando este fica em estado de livro, a abertura da Perimetral Norte damente a natureza, esta implodirá,
fantasma, isto é, quando bebe o pó no território sul dos Yanomami, na haverá destruição dos biossistemas
da yãkoana que o coloca em transe década de 1970; os projetos de colo- e as hastes que sustentam o céu não
capaz de comunicar-se com o mun- nização agrícola e ação dos soldados poderão ser seguradas pelos xamãs,
do espiritual. Os espíritos habitam da Comissão Demarcadora de Limi- ou seja, decretaremos a nossa pró-
esse plano imaterial que se situa na tes e Fronteiras - CDBL. Todos estes pria morte. A paixão pela mercado-
floresta, no céu, no subterrâneo, em projetos empreendidos pelo governo ria, na visão do xamã, torna o ‘bran-
todos os lugares. brasileiro no período da Ditadura Mi- co’ ganancioso, sempre com o intuito 75
litar foram prejudiciais à consistência de acumular mais, incapaz de com-
Gostaria, contudo, de ressaltar dois do povo Yanomami que, em todos es- partilhar suas pertenças. Na contra-
aspectos em especial: o primeiro é tes períodos, sofreram com perdas e mão da posse, em todos os sentidos,
que os xapiri não tocam no plano mortes. A ação da equipe de Demar- os Yanomami são desprendidos
material, quando eles querem ficar cação de Fronteiras teve consequên- dela, isto porque os objetos não mor-
perto dos humanos, eles caminham cias dramáticas aos Yanomami; esta rem. Os objetos são diferentes dos
pela floresta por um caminho espe- ação divulgou as jazidas de minério homens que adoecem, envelhecem
lhado que eles mesmos projetam e localizadas no território Yanomami, e morrem facilmente. Já os objetos
criam, nunca tocando o chão; eles abrindo picadas e estradas aos mais não, eles relembram aqueles que as
são por demais puros. Quando um de 40 mil garimpeiros que viriam usavam, por isso compartilham para
xamã bebe o pó da yãkoana, os espí- explorar aquela região. A atuação de
longe estes objetos para não ficarem
ritos os ensinam, pelo canto e dança, Davi destaca-se na denúncia e luta
tristes com a lembrança no objeto do
a caçar, curar doenças, a celebrar a pela demarcação daquele território,
parente que se foi. Outro aspecto a
vida. Contudo, com a ação preda- contando com a ajuda de ONGs na-
ressaltar é a certeza da morte. Sa-
tória do não indígena, o desmata- cionais e internacionais. A explicação
bendo que vão morrer, os Yanomami
mento desmesurado da floresta, dada dos mundos físico e espiritual
desprendem-se facilmente de seus
este forasteiro coloca em risco não revela o esmero para com a floresta
objetos, evitando, assim, a avareza.
só a sobrevivência física do sujeito e a vida comunitária. As técnicas de
Com o sentido de partilha coletiva,
yanomami, sobretudo a cosmologia subsistência residem no cuidado com
baseado na economia da troca, os
na qual os Yanomami radicam seu o solo, no equilíbrio com a caça na
Yanomami evitam ser escravizados
modo de vida. Antes do contato, natureza, não poluindo o rio. Orien-
por estas mercadorias. Esquivam-se
quando um yanomami ficava doen- tados por uma entidade espiritual, os
do consumo exagerado e partilham
te, na cultura yanomami a doença Yanomami mostram que sua razão,
tais objetos, estendendo a amizade
significa que a imagem do sujeito negada pela modernidade, opera em
para além da comunidade. Nas pa-
está sendo atacada por um espírito simbiose, revelando que as formas de
lavras de Davi: “Se não fosse assim,
(yarori), e os xapiri precisam inter- vida, para não desaparecerem, preci-
seríamos como os brancos, que mal-
vir recuperando a imagem desse su- sam atuar de modo coordenado com
tratam uns aos outros sem parar por
jeito, resgatando-a do ancestral ani- a natureza e que o não indígena pre-
causa de suas mercadorias”.
mal raptor, e devolvê-la ao paciente cisa respeitar a vida do sujeito yano-
yanomami. Hoje, com as epidemias mami. Isto é, o não indígena precisa Portanto, esta expressão yanoma-
do ‘branco’, os xapiri pouco podem reaprender, reeducar suas formas de mi, dividida em três partes, formato

EDIÇÃO 519
ENTREVISTA

escolhido por Bruce Albert, nos en- ótica do colonizador e reproduzidos co, Davi Kopenawa Yanomami, não
sina, a partir da prática da reflexão, na literatura, na história, em quase se desvencilha do sujeito mítico, o
a necessidade de conhecermos um todos os campos de saber. Colocar as xamã. Aliás, esta relação une inex-
povo, uma cultura e nos relacionar- palavras, a história em peles de pa- tricavelmente história pessoal e des-
mos com ela antes de a segregarmos pel significa inscrever o povo Yano- tino coletivo. Isto é, a autobiografia
por sua diferença radical; que o go- mami na história do país, mas uma indígena aqui apresentada não pode
verno brasileiro foi responsável pela história adveniente desde si mesmo, ser dissecada na fórmula do sujeito
dizimação de muitos povos indíge- de sua experiência e característica individual individualizante ociden-
nas com os projetos desenvolvimen- calcadas na diferença. Em suma, os tal, senão que reflete o coletivo, a
tistas e expansionistas em relação às indígenas – e, em nosso caso, Davi pertença étnica, como o ponto de
regiões centro-oeste e norte, e em Kopenawa – escrevem para publici- partida para se entender a voz-prá-
particular pelas mortes, de modo zar condição e a causa indígena, para xis indígena. O “eu” que narra é o
direto e indireto, na comunidade Ya- consolidá-la na sociedade civil, para “eu” coletivo, mas é também o “eu”
nomami; e, por fim, a importância afirmarem-se como sujeitos público individual que não se dissocia de sua
de se cultivar uma rede de partilha -políticos, desde sua singularidade etnia, por isso plural. Este conceito
coletiva de bens materiais e espiritu- antropológica. postulado por Oscar Sáez, de auto-
ais, a fim de evitar tratamentos ina- biografia indígena, anteriormente
dequados na relação com o outro e encontrado nas narrativas de indíge-
IHU On-Line – Como esta
na relação com o meio ambiente. nas norte-americanos, e desenvolvi-
obra ajuda a compreender uma
do por Suzane Lima Costa na área da
outra ordem de conhecimento
teoria da literatura, não nega a voz
IHU On-Line – O que signi- que tensiona o modo hegemô-
aos sujeitos indígenas, reconhece-a
fica a decisão e a estratégia de nico do Ocidente de pensar o
em suas manifestações culturais.
Kopenawa de colocar em “pe- ser humano e a relação com o
Por isso fica fácil perceber o descen-
les de papel” suas memórias e ambiente?
tramento de si para o sogro, para os
falar sobre certos conhecimen- Julie Dorrico – Conforme falei espíritos, para o demiurgo, floresta,
tos tradicionais dos Yanoma- antes, um dos aspectos centrais da rios, porque a narrativa é desenvol-
76 mi? Qual a importância política racionalização é exatamente a instru- vida nessa perspectiva de caráter
desse ato? mentalização da natureza e até das pessoal e coletivo, individual e étni-
Julie Dorrico – Imprimir suas relações humanas em muitas situa- co, do homem em seu contexto.
palavras no livro, na “pele de papel”, ções, inclusive levando à separação
Isso evidencia que a cosmologia
denota o reconhecimento do alcan- (não apenas teórica, mas também po-
opera em termos interligados, e
ce dos instrumentos tecnológicos lítica) entre sociedade-cultura e na-
não individuais e individualizan-
da sociedade majoritária. A palavra tureza. O xamanismo de Davi Kope-
tes; isso evidencia, inclusive, que
oral passada milenarmente de gera- nawa, em contrapartida, apresenta
a perspectiva ontológica, esse todo
ção em geração não conseguiu frear uma concepção fundamentalmente
imbricado e relacional, é a base seja
as incursões predatórias dos não in- normativa de natureza e ser humano
da autocompreensão antropológica
dígenas, nem os projetos do governo e imbrica de modo profundo e mu-
indígena, seja de sua vinculação pú-
contra o seu povo. Reconhecer que o tuamente dependente natureza e so-
blico-política como sujeito indígena
livro, ao lado de outras mídias, pode ciedade. O xamanismo é uma crítica
que fala em nome de um coletivo.
alcançar a sociedade não indígena, saudável a esse modelo paradigmá-
A expressão de Davi, a sua voz nar-
pode ser tomado como ato político tico ocidental, é uma crítica que nos
rativa que aqui entendemos como
na medida em que em um duplo mo- invoca a sermos mais sensíveis com o
autobiográfica, é capaz de situar
vimento busca ser bem sucedido: ao outro e com a natureza.
o leitor na cultura yanomami sem
mesmo tempo em que o xamã dá a necessariamente passar pela expe-
conhecer sua tradição ancestral, afir- IHU On-Line – Em vários tre- riência solitária do sujeito, mas de
mando sua alteridade, ele denuncia, chos da obra, Kopenawa des- como todo o coletivo são importan-
no corpo do texto, as investidas con- loca o protagonismo para dife- tes para a sobrevivência do povo.
tra seu povo. rentes atores, seja seu sogro, Indica, ainda, que a pertença étni-
Esse ato é importante, porque seja os espíritos xamãs, seja os ca valoriza a tradição ancestral e a
demais seres da floresta. Como sabedoria que ela tem ensinado aos
marca uma presença, uma voz, via
isso evidencia a cosmologia ya- Yanomami.
livro impresso, literatura, antropo-
nomami?
logia, sua reivindicação pelo direi-
to à re-existência. A sociedade não Julie Dorrico – O protagonismo IHU On-Line – De que forma a
indígena despersonaliza o sujeito é continuamente deslocado para di- narrativa da obra, autoetnográ-
indígena porque se agarra ao ima- ferentes atores porque a narrativa, fica, oferece um novo campo de
ginário construído desde os textos tal como o pensamento, não segue produção de conhecimento so-
fundacionais do país escritos sob a a lógica ocidental. O sujeito históri- bre os saberes ameríndios?

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Julie Dorrico – A narrativa, ad- tituição e pela aplicação de uma lin- lógica relatando-se, apresentando-
veniente da experiência de Davi, ar- guagem técnica, calcada em um pro- se a nós, para além das caricaturas
ticula uma nova forma de produção cedimentalismo imparcial, neutro, que dela fizemos. Sua originalidade
de conhecimento. Essa experiência impessoal e formal, de cunho alta- consiste na condição antropológico
de autoetnografia reconfigura a im- mente institucionalista e cientificista, -ontológica que resiste no tempo e
pressão tida sobre os Yanomami, re- centralizada e monopolizada exata- no espaço. Não obstante a violência
presentados na sociedade ocidental mente pelas instituições e seu pes- perpetrada continuamente contra
pelo antropólogo norte-americano soal lógico-técnico, assumindo uma os povos indígenas, contra o povo
Napoleon Chagnon como “o povo dinâmica autorreferencial, autossub- Yanomami, eles seguem existindo,
selvagem”. Utilizando o conceito sistente, autossuficiente e endógena contrariando o agronegócio, a ban-
de Mary Louise Pratt, no livro Ojos que, no mais das vezes, (a) prescinde cada ruralista, da bala, da Bíblia e do
imperiales: literatura de viajes y das pessoas comuns e deslegitima o boi. A mensagem do xamã estende-
transculturación (Fondo de Cultura senso comum, bem como (b) estabe- se não apenas em sua defesa, mas na
Economica USA, 2010), que com- lece, desde uma perspectiva eurocên- de todos os humanos. A destruição
preende o conceito como a capaci- trica e colonialista, uma cisão entre maciça da floresta prejudica não so-
dade de reformulação da represen- razão e mito-fé, entre modernidade e mente o modo de vida dos Yanoma-
tação realizada historicamente sobre pré-modernidade ou tradicionalismo mi, mas também daqueles que a des-
os sujeitos periféricos, em resposta a que deslegitima o não moderno como troem. Controlada por empresas que
esses textos ou como forma de dia- algo inferior, incapaz de expressão detêm o monopólio econômico, a ri-
logar com eles, vemos que, a partir justificada, incapaz de reflexividade, queza de poucos traz sérias consequ-
dessa experiência autoetnográfica, criticidade e universalismo e, por isso ências para muitos. É nesse sentido
o xamã Kopenawa pode, para além mesmo, dogmático, fundamentalista, que devemos ouvir o que diz o xamã
da reconfiguração da imagem de seu fanático. para aprendermos que a Terra não é
povo e a sua, compartilhar outras colônia de exploração, é o lugar que
epistemologias que não se subsu- Nesse sentido, a utilização do habitamos, de que ela não é uma
mem ao binarismo moderno: natu- xamanismo como base da expressão propriedade, mas uma partilha, um
reza x cultura, indígena x não indíge- pública do indígena procura mostrar presente que foi dado gratuitamente
na, mulher x homem etc. A escolha exatamente a pluralidade e a potên- a todos e para o usufruto de todos. 77
do escritor Bruce Albert na ênfase cia das múltiplas formas de expres-
do relato autoetnográfico possibilita são, de ser e de estar no mundo de
cada cultura, de cada povo, no caso IHU On-Line – Deseja acres-
a troca de ideias com outros grupos
do povo Yanomami – são perspec- centar algo?
em suas especificidades culturais,
epistemológicas. Inclusive, nesse re- tivas não apenas suficientes, mas Julie Dorrico – Gostaria de en-
lato autoetnográfico, não temos mais totalmente capazes de fundar e de fatizar que citei outros livros de
a descrição objetiva (porque impar- sustentar sentido, validade e vincu- autores indígenas e não indígenas
cial, impessoal e neutra) do obser- lação. E, com isso, não precisamos nesta entrevista que podem ajudar
vador extemporâneo acerca de uma ser modernos e nem assumir uma na compreensão da expressão in-
sociedade pré-moderna e de sua so- perspectiva modernizante para fun- dígena via literatura. Lembrando
cialidade-subjetividade tradicional, darmos a crítica, a reflexividade e a sempre que este conceito é usado de
mas exatamente a autoexpressão e a emancipação. modo alargado, pois abarca outras
autoafirmação pública das próprias expressões advenientes de suas pró-
diferenças, sem mediações tecnicis- IHU On-Line – Por que a ci- prias culturas e não somente aquele
tas, cientificistas e institucionalistas vilização ocidental deveria ler/ formato ocidental conjugado à es-
(estas, no máximo, assumem um ouvir atentamente as palavras crita alfabética. O conhecimento da
caráter periférico, porque central é de um xamã yanomami? Qual literatura indígena é, também, uma
a própria voz-práxis das diferenças, forma de descolonização do pen-
a originalidade de seu pensa-
no caso do próprio indígena). samento e dos saberes ocidentais
mento sobre o mundo contem-
como essencialmente homogenei-
porâneo?
zantes e determinantes do que po-
IHU On-Line – Qual a relação
Julie Dorrico – A civilização de- demos gostar-estudar-conhecer, tal
da linguagem dos brancos com
veria ler/ouvir/conhecer as palavras como o xamã yanomami nos ensina
a instauração das crises da mo-
dadas pelo xamã yanomami, porque na obra A queda do céu. Esta aber-
dernidade nas quais estamos
elas possuem a voz da ancestralida- tura a outras epistemologias é uma
inseridos? Como o pensar é re-
de. Porque elas nos ensinam mode- alternativa para dialogarmos com
velado no falar?
los alternativos de convivência com as diferenças, educando-nos com
Julie Dorrico – Uma das caracte- o meio ambiente, com o homem, e novos olhares e saberes, sobretudo,
rísticas fundamentais do pensamento com a própria noção de posse e par- pelo que tenho aprendido com essa
ocidental está em que a objetividade tilha. E, além disso, porque elas nos literatura, em termos de sensibilida-
e a validade teórica é dada pela cons- apresentam uma diferença antropo- de às diferenças. ■

EDIÇÃO 519
ESPECIAL

A transformação do mundo em
película pensante

D
epois de lançar o livro Dos Meios à Midiatização. Um Conceito em Evolução
(São Leopoldo: Unisinos, 2017), na versão impressa no final do ano passado, a editora
Unisinos disponibiliza a versão e-book da obra do Prof. Dr. Pedro Gilberto Gomes. O li-
vro, publicado nos idiomas português e inglês, retoma a trajetória da pesquisa em comunicação,
revisitando desde o funcionalismo norte-americano até as sociedades contemporâneas, descri-
tas pelo autor como “sociedades em midiatização”.
Uma das intuições interessantes da obra é, a partir das leituras de Teilhard de Chardin em
perspectiva com McLuhan, a descrição de como o planeta acabou transformando-se em uma
película pensante. A proposta apresenta as tecnologias, digitais e comunicacionais, não como
aparatos tecnológicos artificiais totalmente alheios aos humanos, senão como parte da evolução
de nosso sistema nervoso.
Em reportagem publicada na edição 517 da revista IHU On-Line, em dezembro de 2017, o
professor Göran Bolin, do Departamento de Mídia & Estudos de Comunicação da Södertörn
University, na Suécia, vê na obra novas abordagens sobre o tema. “Compartilho totalmente da
sua abordagem da análise da paisagem midiática (como geralmente me refiro à totalidade da
mídia e da infraestrutura da comunicação e a conteúdos que nos rodeiam) e também acho que
78 se trata de uma parte central do processo de midiatização ou, talvez, dos processos ‘midiáticos’
a que se refere”, pontua.

Filme (ano), autor

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ARTIGO

O século XXI como o século africano:


o African Renaissance
Anselmo Otávio

A

lém de buscar reconstruir a dignidade africana,
sentimento importante no combate ao estigma
existente sobre o continente de território eterna-
mente dependente da caridade advinda do mundo exte-
rior, o African Renaissance propõe a formação de novos
modelos de interação na África e fora do continente”, pon-
dera Anselmo Otavio.
Anselmo Otavio é professor de Relações Internacio-
nais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos
e membro do Centro Brasileiro de Estudos Africanos - CE-
BRAFRICA/UFRGS).
Eis o artigo.

80

O término da Guerra Fria simbolizou não apenas o fim do cenário internacional dividido entre
Estados Unidos e União Soviética, mas também a fase de intensa difusão dos valores sociocultu-
rais estimados pelo Ocidente. De fato, se no âmbito político a democracia passava a ser o modelo
que os países deveriam adotar, no plano econômico, a vitória do capitalismo sobre o socialismo
criava um cenário propício à disseminação do neoliberalismo e seus condicionantes. Diante des-
te cenário de transformações, o continente africano iniciava a década de 1990 sob o predomínio
da visão de incapacidade dos povos africanos em romperem com as intermináveis guerras civis
e com a pobreza excessiva (afro-pessimismo), porém, encerrava este período inserido em uma
visão marcada pelo otimismo.
No âmbito internacional, tal sentimento era resultado da maior busca de recursos minerais
por países como EUA, França, Inglaterra e, principalmente, China. Já no cenário regional, o
entusiasmo era resultante de um ciclo de transformações no continente, este simbolizado pelo
crescimento econômico, pelo fim do regime racista (apartheid) na África do Sul e diminuição,
isolamento ou fim de regimes autoritários. É neste cenário que surge a ideia de um Renascimen-
to Africano, este mais comumente conhecido como African Renaissance. E é diante disso que o
artigo em destaque busca realizar breve análise sobre o que, de fato, se trata este renascimento.

O African Renaissance
Em análise desenvolvida por Hlophe e Landsberg (1999), é possível destacar duas dimensões
do Renascimento Africano. A primeira diz respeito à sua relação com o termo ganense “Sanko-
fa”, que significa mover o continente africano em direção a um futuro próspero, este que seria
alcançado através da valorização e resgate do passado africano anterior à invasão europeia. Já a
segunda refere-se à importância de a África integrar-se ao mundo globalizado.
As dimensões indicadas anteriormente já vinham sendo trabalhadas por seu criador, Thabo
Mbeki, antes mesmo de assumir a presidência da África do Sul. Inclusive, tais características
podem ser encontradas em discurso proferido na United Nations University e intitulado de The
African Renaissance, South Africa and the World - AFSAW, de 1998, onde Mbeki apresenta a

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“O African Renaissance propõe a


formação de novos modelos de interação
na África e fora do continente”

proposta de Renascimento Africano, expondo que o continente encontrava-se em transição e o


caminho a ser seguido girava em torno do resgate e valorização de um passado glorioso, como
também da interação entre o continente e o mundo.
De fato, o AFSAW (1998) deixava evidente a necessidade em resgatar um passado africano
marcado por grandes obras arquitetônicas, por importantes civilizações, enfim, marcas que fo-
ram colocadas em segundo plano com o advento do imperialismo europeu. Logo, o regresso
anterior à invasão europeia leva-nos a compreender que o African Renaissance objetiva não
apenas construir uma espécie de contrapeso à imagem amplamente divulgada da África como
um continente incapaz de combater suas mazelas, mas principalmente em demonstrar que os
regimes autoritários não deveriam ser vistos como símbolos do continente africano, uma vez que
os povos africanos sempre valorizaram e lutaram pela liberdade.
O African Renaissance no âmbito regional considera que a maior articulação entre todos os
povos africanos é fundamental para romper com os flagelos existentes no continente. Já na inte-
ração entre o continente africano e o mundo, o African Renaissance deseja uma forma diferen-
ciada de pacto, este não mais marcado pelo assistencialismo, mas sim pela cooperação. 81
Em outras palavras, além de demonstrar para o mundo que os países africanos passaram a
adotar a boa governança, a democracia, o respeito aos direitos humanos, os preceitos neolibe-
rais, dentre outros pontos que simbolizam o mundo pós-Guerra Fria (LANDSBERG, 2005), o
Renascimento Africano deixa nítido que sua continuidade encontra-se atrelada aos países in-
dustrializados, cuja participação relaciona-se ao aumento do investimento externo direto e à
abertura de seus mercados aos produtos africanos. Em síntese, o African Renaissance prega
a responsabilidade mútua, forma de interação considerada como estratégica para a África do
século XXI.

Considerações Finais
Em abril de 2018 completar-se-ão 20 anos do AFSAW e, desde então, tornou-se claro duas
características do African Renaissance. A primeira diz respeito à relação entre o African Re-
naissance e a África do Sul, uma vez que sua existência encontra-se atrelada à figura do segundo
presidente sul-africano pós-apartheid, Thabo Mbeki (1999-2008). Já a segunda refere-se ao
estilo de parceria proposta entre os países africanos e o mundo, esta simbolizada pela respon-
sabilidade mútua entre as partes. Em outras palavras, esta nova forma de relação defende que
os países africanos devem se adequar ao mundo pós-Guerra Fria, valorizando os direitos huma-
nos, respeitando a democracia, o meio ambiente, o desenvolvimento sustentável, dentre outros
pontos que desde a década de 1990 ganharam importância no cenário internacional. Em con-
trapartida, as grandes potências econômicas devem participar deste processo de renascimento
apoiando, por exemplo, via auxílio financeiro, perdão de dívidas externas e facilidade na entrada
de produtos africanos em seus respectivos mercados internos.■

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto
Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

EDIÇÃO 519
ARTIGO

Referências
HLOPHE. Dumisani, LANDSBERG. Chris. The African Renaissance as a modern South Afri-
can Foreign Policy Strategy. CERI: Paris, 1999. Disponível em: < https://bit.ly/2pQbmdU >.
Acesso em: 30 mar. 2018.
LANDSBERG. Chris. 2005. Toward a Developmental Foreign Policy? Challenges for South
Africa’s Diplomacy in the Second Decade of Liberation. In. Social Research. Vol. 72. Nº 3,
2005
MBEKI. Thabo. Speech by Deputy President Thabo Mbeki at the United Nations
University the African Renaissance, South Africa and the World, United Nations
University. United Nations: 1998. Disponível em:< http://bit.ly/2qfeP5Y > Acesso em:
30 mar. 2018.

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Deus e o Diabo na política:


compaixão e vocação profética

O
número 129 do Cadernos de Teologia Pública traz o artigo da teóloga
Ivone Gebara, intitulado Deus e o Diabo na política: compaixão e
vocação profética. O texto se inspira no uso das figuras de Deus e
do Diabo na atual conjuntura política do Brasil e do mundo. Abre a refle-
xão para uma fenomenologia filosófica a partir da qual se pode apreender
esses fenômenos como presentes na produção de sentido que é própria da
maioria das culturas. Deus e o Diabo
misturados em nós, como expressão
de nossos medos e de nossa própria
busca de sentido. A compaixão e o
profetismo inscrevem-se nessa mes-
ma linha de um querer o bem e evitar
o mal, convidando-nos a ir além dos
conceitos preestabelecidos e a buscar
os sentidos no caminho cotidiano. 83
Ivone Gebara é doutora em Filo-
sofia pela Universidade Católica de
São Paulo; Doutora em Ciências Re-
ligiosas pela Universidade Católica de
Louvain – Bélgica. Membro da Con-
gregação das Irmãs de Nossa Senho-
ra. Professora aposentada de Filosofia
e Teologia do Instituto de Teologia do
Recife. Atualmente é membro do con-
selho consultivo de “Católicas pelo
direito a decidir” e professora do CE-
SEP. Professora convidada da Union
Theologycal Seminary de Nova York
e outras universidades. Assessora de
diferentes grupos no Brasil e em ou-
tros países.
A versão completa do artigo em PDF
está disponível em http://bit.ly/2qjo-
GXn.
Esta e outras edições dos Cadernos
Teologia Pública também podem ser
obtidas diretamente no Instituto Hu-
manitas Unisinos – IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisi-
nos, 950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.br. Informa-
ções pelo telefone (51) 3590–8213.

EDIÇÃO 519
PUBLICAÇÕES

O Princípio Pluralista

A
edição de número 128 dos Cadernos Teologia Pública traz o artigo de
Claudio de Oliveira Ribeiro intitulado O Princípio Pluralista. O texto
apresenta resultados de pesquisa realizada a partir de esforços de ava-
liação sobre a teologia latino-americana no tocante aos desafios suscitados
pelo pluralismo. Trata-se de uma análise crítica de sua metodologia, tendo
em vista contribuir com o seu aprimoramento e com a indicação de respos-
tas mais adequadas e mais consistentes ao quadro crescente de complexi-
dade da realidade social e de pluralismo, sobretudo religioso. Este cenário
é emoldurado pelos fatores econômicos e marcado por uma emergência de
subjetividades, além de ser também moldado por um quadro de pluralismo
em diferentes aspectos cada vez mais intenso nas sociedades e culturas. Para
este esforço crítico, foi concei-
tuado o princípio pluralista.
Claudio de Oliveira Ribeiro é
84 doutor em Teologia pela Ponti-
fícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-Rio), com
estágio pós-doutoral na Sou-
thern Methodist University, de
Dallas-EUA, com o tema “Plu-
ralismo religioso, democracia e
direitos humanos”. É professor
do Programa de Pós-Gradu-
ação em Ciências da Religião
da Universidade Metodista de
São Paulo. Atualmente, ocupa
a vice-presidência do conselho
diretor da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação
em Teologia e Ciências da Re-
ligião (ANPTECRE).
A versão completa do artigo em PDF está disponível em https://bit.ly/2GEqi9l.
Esta e outras edições dos Cadernos Teologia Pública também podem ser
obtidas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus
São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço
humanitas@unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590–8213.

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Contato e improvisação: O que


pode querer dizer autonomia?

A
edição de número 268 dos Cadernos IHU Ideias traz o artigo de Alana
Moraes de Souza intitulado Contato e improvisação: O que pode que-
rer dizer autonomia?. O texto pretende pensar o problema da autono-
mia no fazer político hoje a partir de algumas problemáticas relacionadas à
transição entre ciclos de lutas no Brasil. Superando o binômio velhos e novos
movimentos, as reflexões apresenta-
das aqui respiram pelos interstícios e
traçam algumas linhas entre a auto-
nomia do petismo dos anos 1980 e as
proposições daqueles e aquelas que
foram às ruas em 2013 e que continu-
am experimentando possibilidades de
luta e resistência. O texto apresenta a
forma-ocupação como uma tecno- 85
logia política precisa para lidar com
algumas das encruzilhadas antide-
mocráticas do regime neoliberal e seu
modo de governo da vida
A versão completa do artigo em PDF
está disponível em https://bit.ly/2q-
cBrmJ.
Esta e outras edições dos Cadernos
IHU Ideias também podem ser obti-
das diretamente no Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, no campus São
Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos,
950), ou solicitadas pelo endereço hu-
manitas@unisinos.br. Informações
pelo telefone (51) 3590–8213.

EDIÇÃO 519
86

9 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Judicialização da política e da vida dos cidadãos.


A democracia e o Estado de Direito em tensão
Edição 494 – Ano XVI – 3-10-2016

A judicialização da política e da vida dos cidadãos e das cidadãs no Bra-


sil contemporâneo é o tema em debate nesta edição da IHU On-Line. O
que está em pauta, mais precisamente, é a tensão entre a democracia e o
Estado de Direito, ou seja, entre a política e o direito. Pois, como afirma
uma das entrevistadas, “a democracia não se reduz ao Estado de Direito.
A democracia não pode ser confundida simplesmente como o regime da
lei e da ordem, mas da lei, da ordem e dos conflitos”.

25 anos da Constituição: avanços e limites


87

Edição 428 – Ano XIII – 30-9-2013

Nesta edição, discute-se a tensão entre a democracia e o Estado de Di-


reito, ou seja, entre a política e o direito. Pois, como afirma uma das en-
trevistadas, “a democracia não se reduz ao Estado de Direito. A democ-
racia não pode ser confundida simplesmente como o regime da lei e da
ordem, mas da lei, da ordem e dos conflitos”.

Movimentos sociais. Criminalização é um


atentado à democracia

Edição 266 – Ano VIII – 28-7-2008

Entender a dinâmica, a força e a fragilidade do movimento social bra-


sileiro e buscar compreender o que faz com que se busque, sempre de
novo, criminalizar o diferente, é o tema de capa desta edição da IHU
On-Line.

EDIÇÃO 519
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