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EXPRESSO (HTTPS://WWW.NEXOJORNAL.COM.BR/EXPRESSO/) Como o mito do amor romantico pode arruinar sua vida amorosa Ana Freitas 12 Jun 2016 (atualizado 28/Fev 13h30) Oconceito de ‘amor ideal’ é uma criagdo cultural, mas mesmo assim perseguimos 0 inatingivel, nos frustramos e nos sentimos inadequados quando nao o alcangamos 0 "OR ROMANTICO VENDE UM IDEAL. DE PARCEIRO PERFEITO, QUE TEM & RESPONSABILIDADE DE NOS FAZER FELIZ E SUPRIR NECESSIDADES Em 1997, 0 psicélogo social Arthur Aron, da Universidade Estadual de Nova York, desenvolveu e publicou um estudo (hutp://psp-sagepub.com/content/23/4/363.full pdf+html) em que afirmou ser possivel fazer com que duas pessoas desconhecidas se apaixonassem uma pela outra em poucas horas. Ele mesmo teria atingido resultados positivos em laboratorio. A téenica era relativamente simples: Aron desenvolveu 36 penguntas (http: //ww1 otha. uol.com.br/equilibrioesaude/2015/03/1607639-veja-as-36-perguntas-que-podem-fazer-umn-casal-se-apaixonar.shitml) ‘que os dois individuos deveriam responder um para 0 outro. No fim do questionério, os dois deveriam se encarar em siléncio por quatro ‘minutos contados no rel6gio. E voila: paixdo enlatada, segundo ele. As 36 perguntas sao simples, mas obrigam os individuos a se exporem emocionalmente e pessoalmente. Vio desde "Se voc’ pudesse jantar ‘com qualquer pessoa do munclo, quem seria?” até “Qual o papel do amor e do afeto na sua vida?” O estud conduzido por Aron é haseado na ideia de que demonstrar vulnerabilidades métuas é eapaz de cultivar proximidade e intimidade. pesquisador identificou um padrio na constracio de relacionamentos amorosos estiveis: transparéncia, entrega e sineeridade constantes, crescentes, reciprocas e pessoais. A lista de perguntas desenvolvida por ele tem como objetivo conduzir essa roca, “Todos nés temos uma narrativa sobre nés mesmos que apresentamos para os outros, mas as perguntas do Dr. Aron fazem com que seja impossivel usar essa narra Mandy Len Catron Colunista do The New York Times A proposta de Aron ganhou manchetes em 2015, quando o jornal The New York Times publicou texto da colunista (http: //www.nytimes.com/2015/01/1/fashion/modern-love-to-fall-in-lave-with-anyone-do-this html) Mandy Len Catron em que ela disse ter se apaixonado por alguém usando a lista de perguntas em um eneontro, Com cla, voltaram ao debate os questionamentos em torno da ideia de amor romantica, Se vulnerabilidade miétua pode levar & paixfo, onde fica a ideia de uma alma-gémea? Na desconstrugio do conceito de amor ideal ao qual nos agarramos culturalmente todos os dias, hé a possibilidade de entender as frustragSes com a vida amorosa (ou a falta dela) e o ndmero cada ves mais alto de divareias (http: //www.divorce.usu.edu/iles/uploads/lesson3.pdl) nas sociedades ocidentais, Amanufatura do amor No ocidente, a nogéo moderna de amor romantico conceitua uma sensagio magica, ineomparvel. Geralmente, ele € deserito como um encontro de almas que acontece por pura sorte — predestinagio, talvez — que responde as angistias ¢ aos desejos mais bésicas da vida idealizagdo de Rousseau que reuniu em uma s6 instituigao os conceitos de amor, sexo, ‘dade e casamento. Antes dele, tudo era vendido separadamente. © amor romantico idealizado se apresenta como a resposta a d Ge completude: sem o outro, seremos eternamente incompletos, a principal sobre o sentido da existéncia, Hé, fundamentalmente, a ideia Essas sensagies ndo foram inventadas. Essa descrigéo do amor apareceu repetidas veres ao longo da historia. f possivel eneontré-la, primeiro, na definigio de amor deserita (https://www.psychologytoday.com/blog/hide-and-seek/20:206/plato-true-love) pelo filésofo Plato, na Grécia antiga, ¢ em outras deserigées no Império Romano, no Japio Feudal e na Grécia No fim do século 17, a literatura ganhou outras narrativas mais contundentes que exaltavam o amor romantica. Os exemplos mais tembleméticos sao o de Tristio e Isolda e Romeu e Julieta, que descrevem historias de amantes que se viam diante de obsticulos — e essas impossibilidades eram um combustivel para esse amor. Até entio, o amor romintico que tomamos como regra no ocidente aparecia somente em narrativas pontuais. O conceito do casamento, em si, ‘io envolve “amor” na concepeao. Casamentos foram criados para serem instituigGes econémicas, aliancas forjadas para fortalecer e concentrar poder ou dinheiro, “Antes, as pessoas no se casavam por amor. Isso é uma coisa recente, j4 que casamento era uma coisa muito séria para se misturar com amor.” Regina Navarro Lins Psicanaista ¢ escritore especielizada om relacionementos (hitp:/www grupoestacao.com br/arquivo/eventos/eate- filo05/hieds.nern) Foi o romantismo, resumido nos ideais da Revolugdo Francesa, que culminou (www-ppamidiaecotidiano.ufbr/ojs/index php/Midecot article/download/50/45) no surgimento da ideia de que o amor avassalador, finieo ‘e magico era um direito e um dever de todo ser humano, uma parte fundamental -talvez nossa Gniea real motivacio, Um dos filésofos responsiveis por essa mudanca de pensamento foi o francés Jean Jacques Rousseau, O projeto do fldsofo tinha como base a ideia tradicional de familia como a conhecemos. Fle criticava relagdes baseadas em perpetrar poder ‘ou fortunas, que para Rousseau, impediam a construglo de uma sociedade altruistae ideal, filésofo acreditava que o amor conjugal — a constituigdo de uma familia baseada no amor romantico — era o Ginico caminho para que individuos se dispusessem a sacrificar os proprios interesses para o beneficio comum, resultando em uma sociedade melhor. A relugio conjugal defendida por Rousseau previa que 0 amor ¢ 0 sexo andassem juntos, porque a busea de sexo fora do casamento significava a busca por valores egoistas, como conquista e vaidade, e nao a felicidade alheia e o beneficio da sociedade. F070: REPRODUCHO/CASABLANCA umpHrey BOGART incrip BERGMAN pauL HENREI cABANC WINNER OF 3 ACADEMY AWARDS* 8 INCLUDING BEST PICTURE | AMPAS (1943) | MES COMO "CASABLANCA”, OE 1942, AJUDARAM A CONSTRUIR NO IMAGINARIO SOCIAL © MITO BO AMOR ROMANTIC Aidealizagio de Rousseau reuniu em uma sb instituigio os coneeitos de amor, sexo, flicidade ¢ casamento, Antes dele, tudo era vendido separadamente (http://www2.uol.com.br/fhistoriaviva/artigos/entrevista_livro_amor_regina_navarro. htm). Ja na Revolugéo Industrial, mesmo com a formagio da familia nuclear, formada por pai, mae e filhos, ocasamento ainda nio tinha muito a ver com amor. A propagacio definitiva do amor romantico idealizado veio com o surgimento da cultura de massa da televisio ¢ do cinema, que transformou em produto o mito do amor romatico: isso comegau nos anos 1940, ¢ bons exemplos sio filmes eomo “O Vento Levou" ¢ blanca”. Pola primeira vez, uma saciedade inteira -a ocidental - passou a acreditar que o amor roméntico, culminando em um relacionamento © depois em um casamento feliz, duradouro, monogimico e sexualmente ativo, era a forma ideal de se relacionar com o outro, AM je, a cultura pop — dos filmes & masica, pasando pela literatura e pela internet -é profandamente baseada nesses ideas. Uma conta dificil de fechar facil constatar que essa idealizacao esta fadada a criarfrustragio. O conto de fadas ainda é usado, consciente ou inconscientemente, como referencial para qualquer relacionamento amoroso na sociedade ocidental “Presumimos que, comparado ao amor romantico, qualquer outro tipo de amor entre duas pessoas que se relacionam de maneira amorosa seria frio¢ insignificante”, escreve o psicanalista Robert A. Johnson, no livro “We- A Chave da Psicologia do Amor Romantico”. © mito do amor romantica idealiza o outro e atribui a ele caraeteristicas inexistentes (hitp://www-fisstthings.com/web- exclusives/2011/02/the-myth-of-romantic-love). O conceito sugere que, se vocé se apaixona por alguém, essa &a pessoa que vai suprir todas as suas necessidades. Daf a ideia de que o parceiro no qual devemos mirar é alguém que provoca uma paixio avassaladora que nos faz sentir completo, nos satisfaz sexualmente, desperta em nés a vontade de morar junto para o resto da vida e dividir todos os aspectos dela — negécios, pattimOnio, amigos ce aspirages — s6 com aquela pessoa, além de ter filhos, tudo isso sendo felizes o tempo todo. ‘Todos os especialistas em comportamento e psicologia social concordam: é responssbilidade demais para colocar sobre uma pessoa s6. Nao ba (http:/ /bigthink.com/the-evolution-of-enlightenment/piercing-the-romantic- illusion) pessoa ou fendmeno nenhum capaz de fazer todas ‘No entanto, porque o conceito é dado como real e possfvel, nos eobramos a vida tir otal amor romantico xda para buscar, encontrar ¢ ideal. Ese algumna dessas coisas dé erradlo no processo, nos sentimos inadequados, fracassadlos ou eulpamos o companleito. “Quando no realizamos o ideal imaginério do amor, buscamos explicar a impossibilidade culpando ands mesmos, aos outros ou ao mundo, mas nunca contestando as regras comportamentais sentimentais ou cognitivas que interiorizamos quando aprendemos a amar. [...] 0 amor-paixio roméntico encampou a ideia de felicidade emocional, criando seus parias e cidadaos de primeira classe.” Jurandir Freire Costa Psicanalista © autor do lvro (https //books google.com, br/books/about/Sem_traude_nem_favorintmi? Id=mPat\AAACAAJBredit_ese=)) "Sem Fraude Nem Favor- Estudos Sobre o Amor Roman Alideia do amor romantico considera que paixio ¢ amor si sentimentos permanentes, duradouros ¢ que simplesmente surgem do nada. A cincia ja sabe algurma coisa sobre o que chamamos de paixao: trata-se de um fendmeno neuroquimico (http://lifehacker.com/why-you- smake-bad-decisions-when-youre-attracted-o-som- izado pela influéncia de substancias como adrenalina, dopamina e serotonina no cérebro e no corpo. Fssas substincias sio iberadas por glndulas quando nos relacionamos de alguma forma com alguém por quem nos sentimos fisicamente ou afetivamente atraidos. O contato fisico ¢ os estinmulos mentais trocados com o outro alimentam a liberagio dessas substincias, mas ealcula-se que o fendmeno quimico — que foi até comparado Chttp://www.salon.com/2015/02/14/love_is_like_cocaine_the_remarkable_terrfying_neuroscience_of_romance/) ao efeito de drogas, porque vieia — possa durar de poueos dias a até um ou dois anos. Fs. ste conjunto psicoldgico inclui uma exigéncia inconsciente de que o nosso amante ou ednjuge nos alimente continuamente com essa sensagao de éxtase e de emogio intensa.” Robert A. Johnson No livra "We & Chave da Psicologia do Amor Romantica As 36 perguntas desenvolvidas pelo psicélogo Arthur Aron so um atalho para gerar intimidade e fomentar& liberagio de algumas dessas substncias quimicas. Mas o estimulo inicial 86 pode levar a um relacionamento ¢ & construgdo de um afeto real caso os dois envolvidos no questionério escolham continuar a traca ea construgio desse afeto Quando nao estamos mais tomados pelo coquetel de hormanios e ficamos diante das dificuldades cotidianas impostas pela convivéncia com 0 outro, orelacionamento foge do esperado, lista do amor roméntico ideal ndo prevé a necessidade de esfargos, construgio diévia, concessies enem contempla os defeitos do outro como obsticulos. “O amor néo aconteceu simplesmente para nés. Estamos apaixonados porque escolhemos isso.” Mandy Len Catron Colunista do New York Times, sobre as 36 perguntas para se acalxonar elo mesmo motivo, quando um companheiro falha em suprir algum item da lista do amor romantico ideal, identifica-se que nao pode ser amor verdadeiro e hé a sensagio de que o relacionamento ¢ disfuncional (http://www.nytimes.com/2016/05/29/opinion/sunday/why-you- will-marry-the-wrong-person_btml?mwrsm=Facebook&_r=1). Isso vale para tradieGes como dividir a casa com o eOnjuge, ser monogamico e ter filhos, por exemplo. Na mesma linha, qualquer outro formato de relacionamento — eénjuges que no vivam na mesma case, easais que nfo planejam ter filhos, relacionamentos abertos — ganham status de tabu. Se bé uma cultura de massa vendendo uma lista de critérios para ser feliz ema um. relacionamento, € desagradvel ser confrontado com pessoas que se dizem felizes mesmo depois de terem escrito uma lista nova. “0 condicionamento cultural 6 muito forte. Chegamos i idade adulta sem saber se nossos desejos so nossos ou se aprendemos a desejé-los. Mas estamos vivendo um modelo [o amor romantica idealizado] que néo da conta da realidade contemporanes, que nio dé mais respostas satisfatrias’, teoriza Regina Navarro Lins, psicanalista eescritora especializada em relacionamentos em entrevista a0 Nexo, Para ela, a cultura ocidental nas Gltimas duas décadas esté passando por umn momento de busea por individualidade. "Hoje, a grande viagem o ser humano e do jovem éestar dentro de si mesmo, investir em seu potencial, suas habilidades, se conkecer”, expliea. F070 LAURA SANCHEZ/FLICRS/CREATIVE COMMONS @NOvOS MODELOS DE RELACIONAMENTO CONTESTAM OS MITOS PROPAGADOS PELO IDEAL DE AMOR ROMANTICO ‘Oamor romantico ideal bate de frente com essa tendéneia, porque prega o oposto, Para Navarro Lins, isso abre espago para que mais pessoas cescolham como querem viver relacionamentos ¢ indica que o coneeito de amor romantico da sinais de que pode estar saindo de cena. Um indicio seria o surgimento (http: /attitude.co.uk/open-relationships-ere-now-the-most-common-form-of-partnership-in-gay-and-bi-men/) de relacionamentos abertos e de relagdes poliamorosas — relacionamentos fechados mas compostos de trés ou mais individuos. (08 modelos novos propdem um formato que, diante do tradicional, parece Joueura: a pessoa que voeé escolhe para se relacionar nio éaquela ‘com quem voo8 é obrigado a passaro resto da vida, ter filhos, dividir a casa. Pode existir uma para cada, aids A partir dai, a obrigagio de fazer o outro feliz (http://bigthink.com the-evolution-of-enlightenment/piercing-the-romantic-illsion) sai do ‘cOnjuge e vai para o individuo e suas escolhas. Regina acredita que o fim do mito do amor romantico como cultura massificada é fundamental para que as pessoas sejam mais felizese realizadas com a vida amorosa. "Pode demorar, mas estamos camiahando pra isso", conelui. VEJA TAMBEM [EXPRESSO (HTTPS://WWW.NEXOJORNAL.COM.BR/EXPRESSO/) Por que a generosidade é a principal caracteristica dos casamentos felizes (https://www-nexojornal.com.br/expresso/2017/01/29/Por-que-a-generosidade- %C3%A9-a-principal-caracter%C3%ADstica-dos-casamentos-felizes) UM AVISO IMPORTANTE Para melhorar a oxoeriéncia dos leitoros © roduzir 0 uso de dados de internet na navegacso pelo celular, 0 Nexo retirou os contetdos. que apareciam ao final de suas paginas. Esta alteracso 6 experimental. Clique agul (httns://www.nexojomal.com be/about/contato? jtm_source=mini homegutm mediumslinkgutm campaign=contato minlhome&utm content=experimental minihome) se deseja tenviar um comentario & nossa equipe sobre a mudanca, (ir PARA A HOME ) (https://www.nexojornal.com br/? utm_source=mini_home&utm medium=btngutm_campaign=retorno_home&utm_content=experimental_mi tps: nexojomal.com brlexpresso/2016/06/12iComo-c-mito-do-amor-om%CSY4AZntco-pade-aruinar-sua-vida-amarasa a8

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