Livre Arbitrio:
Como ser um bom compatibilista
Claudio Costa
Resumo
Esse artigo tem por finalidade primeira expor as principaislishas Sacoatro-
‘vésia acerca do livre arbirio. Ua fnalidade complementaré a de responder a
algumas objegbes Tis influentes contra a soluso compauibilista, esposada
pelo autor.
O problema do livre arbitrio, um dos mais antigos e intratavels da
filosofia, comega com uma simples inadequagdo terminolégica. A
cexpressiio portuguesa "livre arbitri’, assim como a expressio‘liberdade
dda vontade', que € traducao do inglés reedom of the will’,sfoenganosas,
pois nem o juizo nem a vontade so o que esté inevitavelmente em
discussio. Mais adequadas seriam expresses como ‘liberdade de
decisdo’ ou ‘tiberdade de escolha’ ou, melhor ainda (posto que mais
abrangente), liberdade de aga
Feitaessaadverténcia terminol6gica, passers ao problema dolivre
arbitrio. Ele diz respeito ao conflitoexistente entrea liberdadeque temos
ag agir e 0 determinismo causal. Podemos introduzi-lo considerando as
és proposigbes seguintes:
1 Todo evento & causado.
2 Nossas agdes slo livres.
3 Agbes livres no sto causadas.
‘A proposigio | parece geralmente verdadeira: cremos que no
mundo em que vivemos para todo evento deve haves uma causa. A
proposigae 2 também parece verdadeira: quando observamos a nés
‘mesmos, parece Obvio que niossas decis6es € ages so freqlientemente
livres. Também a proposigio 3 parece verdadcira: se as nossas ages
fossem causalmente determinadas, elas #0 poderiam ser livres.
problema do livre arbitrio surge quando percebemos que as trés
roposigdes acima formam um conjunto inconsistente, ou seja: nio é
possivel que todas elas sejam verdadeiras! Se admitimos que todo evento
incipios «UFRN Natal «789-33 jane. 2000E causado e que a agio livre ndo é causalmente determinada (que as
proposigées |e 3 sio verdadeiras) entJo no somos livres (a proposiglo
26 falsa). Se admitimos que nossas ages sio livres e que como tais elas
no sdo.causalmentedeterminadas (que 2e3 80 proposigdes verdadeiras)
tentio nao é verdade que fodo evento seja causado (a proposigao 1 é
falsa). E se admitimos que todo evento é causado e que somos livres
(que as proposigées 1 2 sio verdadeiras), entao deve haver algo de
cerrado com a idéia de liberdade expressa na proposigio 3.
Cada uma dessas alternativas possui um nome e foi classicamente
defendida, A primeira delas 6 chamada de dererminismo; ela consiste
‘em negara verdade da proposicao2, ou seja, que somos realmente livres.
Ela foi mantida por fil6sofos como Spinoza, Schopenhauer e Henri
@Holbach. A segunda alternativa chama-se libertarismo: ela no tem,
problemas em admitir que 0 mundo ao nosso redor é causalmente
determinado, mas abre uma excegiio para muitas de nossas decisdes €
ages, que sendo livres escapam a determinagdo causal. Com iss0 0
libertarismo rejeitaa validade universal do determinismo expressa pela
proposigio 1. Essa é a posigao de Agostinho, Kant e Fichte. Finalmente
hd 0 compatibilismo, que tenta mostrar que a liberdade de agdo é
perfeitamente compativel com 0 determinismo, rejeitando a idéia de
liberdade expressa na proposigio 3.
Historicamente, Hobbes, Hume e Mill foram famosos defensores do
‘compatibilismo, No que se segue, quero considerar isoladamente cada
uma dessas Solug6es, argumentando finalmente em favor do compati-
bilismo.
1. Determinism
( determinismo parte da consideragao de que da mesma forma
{que podemos sempre encontrar causas para os eventos fisicos que
‘nos cercam, podemos sempre encontrar causas para as nossas ag0es,
sejam elas quais forem, Com efeito, sendo como somos produtos de
‘um processo de evolugdo natural, seria surpreendente se nossas ages
‘no fossem causadas do mesmo modo que o so outros eventos
bioldgicos, tais como a migraco dos passaros e 0 fototropismo.
ddas plantas. Mesmo que o principio da causalidade ndo seja garantido e
que no mundo da microfisiea ele tenha sido inclusive colocado em
Princpios UFRN Natal v7 m8 p.19-33—_janvez.2000 A,a saber, a conjungio da totalidade
1 Nowe-e qu a miata parrase de ele poderia te agido de outro modo" € diferente da
Contec ae decomp E Mace ie See tnenceacoa ag de
‘outro modo, ele teria pido de outo modo” qual €abera a toda sorte de objegbes
Hiberansis (ver G. E. Moore Ec, New Yor 1B65.c3p-6)-
9. Vee PV towagen: An Essay on Free Will,Osford 1983p. 70.
Principio UFRN Natal 78. p. 19-33 janddee. 20002
das leis do universo com as condigdes do mundo.em tl implica na agdo
‘Apelo agente aemt2. Ora, sea é livre, a poderia nao ter realizado a ago
‘A.em 2. Isso significa dizer que mesmo que a ttalidade das condides
‘40 mundo fosse a mesma em tl, a poderia nao ter realizado a ago A. Se
pressupormos 0 determinismo, isso leva um absurdo, pos se (L & C)
= A. entlo, pelo modus tollens,~A.-+ ~ (L&C). Mas isso signifies que
~A resulta em -L, em ~ C, ouem ambos. Mas dizer que ~A resulta em
~L significa dizer que o agente a poderia te alterado as propras leis do
uuniverso em t1! E dizer que ~A resulta em ~C significa dizer que
agente poderia ter alterado o passado. inclusive um passado remoto,
talvez antes mesmo de seu nascimento, dependendo de quando decidimos,
situar (1! Como qualquer das duas conclusGes é absurda, Inwagen
conelui que se aéum agente livreentlo a precisa em 2 se decidir por A
«de modo causalmente indeterminado.
‘Vejamos agoraoque acontece como argumentode Inwagen frente
anossaanilisedo"Ele poderia teragido de outromodo”, Diversamente
de Inwagen, nds no aceitamos que sendo o agente a livre, ele poderia
ter deixado de realizar a ago A no caso em que as condigdes do
‘mundo que 0 conduzem a decisio de realizar A fossem exatamente as,
rmesmas. Nao. 94s s6 admitimos que a poderia nio ter realizado a
ago A em 12 no caso em que a totalidade das condigées do mundo
«em t2 fosse em alguma medida diferente, pois ao menos as condigdes
internas de a precisariam seralgo diversas, admitindo um determinism.
mudanga nas condigdes do mundo também em tI. De fato, isso nos
leva a admitir que ~A -» ~C, mas no no sentido pensado por Inwagen,
de que a seria capaz de modificar magicamente o préprio passado, ¢
sim no sentido trivial de que se a no tivesse realizado a aco A em 2,
Porterem sido as condigéesdo mundo que oconduziriama ndo-realizag3o
da.agio A em t2.um pouco diversas, entao a totalidade das condigées do
smundoemt! também teriasidolgodiversadeC, Como paraodeterminista
esse resultado 6 francamente admissivel, ele desarma a redugio a0
albsurdo do compatiilismo intentada por Inwagen,
(O libertarita provavelmente nao se daré por satisfeito. Ele poderd
bjetar que mesmo que seja sempre possivel encontrar causas para as
nossas escolhas racionsis, que essas causas sejam talvez necessiias,
elas nunca sio suficientes pare a realizacdo dessas escolhas. Nds mos
6 firme sentimento de que estamos “acima e além" de nossas decis0es,
de que as poder‘amos ter sustado ou alterado, se quiséssemes.
Uma primeira coisa a ser observada € que o conceito de condigio,
causal suiciente 6 enganoso. Ele nos dé a impressio de que temos uma
Princpios, UFRN- Natl v7.8 p.19-33. jane, 2000a
condigto causal que isoladamente seria capaz de garantir 0 efeito
‘Mas na verdade, quando falamos da condigto causal suficiente, nds em
‘geral apenasescolhemos umacerta causa proeminentee desconsideramos
outras. Mesmo no caso de eventos causais no mundo fisico, muitos
elementos causalmente envolvidos so deixados fora de consideracao:
quando descrevemos uma reago quimica, por exemplo, consideramos
‘eralmente as quantidades de cada composto, a temperatura, a pressao,
‘mas no consideramos coisas como, por exemplo, a forma do recipiente.
No entanto, se 0 recipiente fosse um tubo to fino que as moléculas dos
diferentes compostos no tivessem espaco para se combinar, a reagio
quimica poderia ndo ocorter. A esse respeito podemos dizer que a forma
do recipienteé um elemento causal "latente”, ou seja, que s6 eventualmente
pode importar. Minha sugestio € a de que algo nao muito diverso pode
ser dito acerca de nossas agées: a0 escolhermos um curso de ago, temos
a impressdo de que poderiamos ter agido de outro modo, sendo essa
impressio causada pela impossibilidade de adquirirmos completa
cconsciéncia de certos elementos causais "latentes” envolvidos em nossa
escoiha
TTentando ser mais preciso, minha tese €a de que a completa tomada
de consciéncia das causas de nossas agdes € uma impossibilidade
logica, considerada a notureza de nossa consciéncia, e quero introduzir
‘esse ponto considerando uma observagio de Ingmar Bergman em sua
excelente autobiografia. Ele conta que quando jovem, presenciando
‘uma discussfo, viu seu amigo alcoolizado tomar 4 mio um revolver. De
pronto ele saltou sobre 0 seu amigo c arrancou-lhe a arma, impedindo
assim que algo traigico pudesse acontecer. O que Bergman observa é no
ter feito isso de forma espontanea; ele como que viu-se a si mesmo
saltando sobre seu amigo e retirando-Ihe a arma, Esse distanciamento
entreaconscigncia de seusatos eos seus prépriosatos, observa Bergman,
€ algo que acompanhou-o durante toda a sua vida, fazendo-o sentir-se
‘mais como um ator em um palco do que como uma pessoa que falae age
espontaneamente. O exemplo mostra claramente o que quero fazer
notar. Se um agente do tipo bergmaniano (e penso que como pessoas
dotadas de voligdes de segunda ordem somos todos em certa medida
assim) tem consciéncia de estar decidindo praticar uma ago x pos uma
ccausay,elepercebe que y,embora sendoacausa suficiente (proeminente),
‘no é como tal suficiente no sentido de bastar para, na independéacia de
outros elementos causais, determinar a sua escolha, pois ele sabe que
mantém controle racional sobre a sua escolha. Afinal, a sua propria
consciéneia, que possibilita esse controle racional deve ter 0 seu proprio
Princpios «UFRN Nal 78.9233 janvder.20002
«elemento (ou complexo) causal de nivel superior - chamemo-lo de z - do
qual como agente ele nao esti presentemente consciente, posto que ele
1ndo pode ter tal consciéncia metamental, 2o mesmo tempo que tem
cconsciéncia de que a sua decisio de realizar x esté sendo diretamente
‘causada por y. Noentanto,zé um elementocausal “latente" indiretamente
relacionado a sua escolha, pois éjustamente devido existéncia dez que
ele percebe que poderia a qualquer momento interferir no processo,
‘modificando, apressando ou interrompendo 0 curso da ago. Mesmo
‘que o agente eventualmente pudesse adquirir também a consciéncia de z,
ele ndo teria consciéncia das causas latentes dessa sua consciéncia
‘metamental atual de ze assim por diante. Se esse argumento € correto,
centio a propria natureza dos atos de consciéncia torna logicamente
mpossivel adquirirmos consciéncia completa da variedade de elementos
ccausais indiretamente envolvidos em nossas agdes.
Uma iltima objegao importante do libertarista é a de que o
compatibilista é alguém que reduz.a liberdade da vontade a uma nogio
‘meramente honorifica, incapaz de dar conta da responsabilidade moral
Como o compatibilista pode explicar a responsabilidade moral de um
agente se, admitindo que a sua escolha foi causalmente determinada, ele
reconhece que 0 agente de fato nao poderia ter agido de outra forma?
Pararesponderaisso,considereadiferengaentreocasodeum homem
‘A, que assassinou a sua esposa em plena consciéncia do que fez, sendo
assim responsabilizado moralmente por seu delito, ¢ 0 caso do homem
B, que comete o mesmo crime ao softer uma crise de epilepsia temporal,
‘uma desordem mental neurologicamente comprovével que faz.com que
pessoa cometa agdes violentas em um estado de "estreitamento do
foco da consciéncia", sendo posteriormente incapaz de lembrar-se do
que fez. Essa inconsciéncia da agdo tora B legalmente nio-responsével
pelo que ele fea. O libertarista diré que enquanto B nio agiu livremente,
sendo a sua agdo causalmente determinada pelo estado de seu cérebro, A
agiu por livre e expontinea vontade, a qual vai além da determinagio
causal, ¢ no de maneira causalmente determinada, sendo isso o que 0
torna moralmente responsavel por sua aco.
‘Suponhamos agora que com o desenvolvimento da neurofisiologia e
do nosso conhecimento dos efeitos psicol6gicos do meio social sobre 0
‘compartamento das pessoas se torne possivel, em todos os casas em que
elas cometem crimes, rastrear claramente um complexo de causas que
cexplique as suas decisées. Digamos que no caso do homem A se descubra
{que devido a deficiéncias minimas no lobo frontal de seu cérebro, cle
nao tivesse completo controle sobre as suas emogdes, e que isso, aliado
Principios UFRN Natl v7.8 p 19-33 jan/dez.2000as circunstancias de sua educagio e ao meio social em que vive, 0
conduziu a cometer o crime... Nesse caso a decisio de A sera considerada
como tendosidocausalmentedeterminada. Diremosentioqueeladeixou
de ser uma aco livre? Provavelmente nao. E a razio disso é que aquilo
ue est em questio € o fato de que o caso A diz respeito a disposigdes
comportamentais socialmente malesveis, que sio passiveis de serem
alteradas, ndo s6 através de recompensa e punicZo, mas também através
de informacio e argumento, af encontrando-se a razio de ainda podermos
falar aqui de responsabilidade moral. Manter uma posigo libertarista
pode a principio parecer garantir a nossa humanidade essencial, mas
‘uma inspeedo mais cuidadosa sugere que ela também possa servir para
fechar os nossos olhos para a possibilidade de uma compreensdio mais
adequada das condigdes que nos levam a agir.
Abstract
‘The first aim ofthis paperistoexpose and to discuss critically the three main
conceptions about free will: determinism, libertarianism and compatibilism.
‘The second aim of this paper is to present anew definition of free-wil from the
‘compatibilst point of view and, finally, do defend compatibilism against some
‘of the main objections.
Principios UFRN Natal 8789-33 jade. 2000