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Giulio Carlo’ A\ (4 C74 walter | ropi US JOSE OLYMPLO EDITORA Giulio Carle Argan (1909-1992) tem no seu curriculo uma Intenso atividade de cri- tico, de historiador e de escritor J6 como professor de histéria da arte moderna, na Universidade de Roma, colaborou para a Storie d'Italia (com M. Fagiolo) e para o volume Michelangelo architetto (coordena- 60 de P Portoghesi e B. Zevi, 1964). Sua rica bibliografia compreende uma afortu- nada Histéria da arte italiana e ensaios so- bre a arquitetura italiana dos séculos XIll e XIV, assim como sobre Henry Moore, Borro- mini, Picasso, Fra Angelico, Brunelleschi, Arturo Martini, Brever. Dos livros publicados no Brasil, desta- camos Arte moderna, Histéria da arte como historia do cidade, Imagem e persuaséo e Projeto e destino Ublicado em 1951, o livro de Argan sobre Gropius afirmou-se como um verdadeiro “cléssico” da cultu- fa critica do pés-guerra, Meditacéo apai- xonada sobre as caracteristicas e os idéias da vanguarda européia mais atenta a civi- lizagéo industrial, esta obra também re- Presenta uma proposta ideoldgica e criti- ca de largo empenho, que despertou mui- tas adesdes. A Bauhaus e, dentro dela, o trabalho de Walter Gropius refletem o crise da sociedade e da cultura modernas e pro- Pdem um instrumento de reforma ariistica. Associando criatividade e mundo da produ- G0, e propondo uma realidade internacio- nal, para além das tradicées locais, Gropius oferece, do ato de projetar, a imagem de uma operosa possibilidade, que liga o pro- gresso a colaboracéo entre os povos e a um correto uso de técnicas e de modernas co- pacidades produtivas. Seu arrojo de homem europeu tampouco lhe falta quando sua es- cola é fechada pelas autoridades nazistas. Tendo se transferido para os Estados Unidos com seus colaboradores, ele enfrentard o dramético tema da reconstrugéo com uma série de solugées que, eliminadas as contro digdes sociais, possam criar as condigoes para uma existéncia harménica e produtivo. © livro de Argan tem o mérito nada secun- dério de nao somente haver inserido © pro- jeto de Gropivs no quadro dos fates arquite- ténicos do século, mas também de ter feito dele uma das pegas decisivas do cultura contempordanea, walterQropius ea bauhaus Titulo do original em italiano WALTER GROPIUS E LA BAUHAUS © Giulio Einaudi Editore, s.p.4., Turim, 1951 Reservam-se 0s direitos desta edigao a EDITORA JOSE OLYMPIO LTDA. Rua Argentina, 171 - 1° andar — Sao Crist6vao 0921-380 — Rio de Janeiro, RJ - Republica Federativa do Brasil Tel.: (21) 2585-2060 Fax: (21) 2585-2086 Printed in Brazil / Impresso no Brasil Atendemos pelo Reembolso Postal ISBN 85-03-00810°6 Capa: Victor BuRTON CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. A Argan, Giulio Carlo, 1909-1992 734w ae Walter Gropius ea Bauhaus / Giulio Carlo Argan; tradugao le Joana Angélica d’ Avila Melo; posfacio de Bruno Contardi. — Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. Inclui bibliografia ISBN 85-03-00810-6 |. Gropius, Walter, 1883-1962. 2. Bauhaus (Escola). 3. Arquitetura m -Sé i ou eee Século XX. 4. Arquitetura alema — Século CDD - 724.91 05-1019 CDU - 72.036 SUMARIO Introdugéo 7 A pedagogia formal da Bauhaus 29 A arquitetura de Gropius (1911-1934) 87 A arquitetura de Gropius na Inglaterra e na América 137 Apéndice [1957] 177 Nota biografica 179 Principais obras 181 Principais escritos de Gropius 187 Publicagées da Bauhaus 191 Conferéncias, comunicagées etc. nao publicadas em livros ou em revistas 195 Bibliografia geral 197 Posfacio 1988, de Bruno Contardi 213 Indice onomistico 241 NTRODUCAO Walter Gropius foi um homem do primeiro pés-guerra. Sua obra de arquiteto, de teérico, de organizador e diretor da admiré- vel escola de arte que foi a Bauhaus é insepardvel da condig&o histé- rica da reptiblica de Weimar e da fragil democracia alema. Gropius investiu toda a sua cultura figurativa e teérica, bem como seu destino de artista, naquele momento critico da histéria européia. Sua racionalidade, sua positividade e até mesmo seu otimismo ao desenhar programas de reconstrugo social brilham sobre o fundo sombrio da derrota alemé e da angustia do pés-guer- ra; sua fé num futuro melhor para o mundo esconde um profundo ceticismo, um lticido desespero. Nao se tratava apenas de uma defesa psicoldgica e moral: aquele supremo prestigio da raz4o era também a tiltima heranca da grande cultura alema, a Gnica forga de resgate que a Alemanha podia extrair do proprio passado. A obra de Gropius se enquadra na crise dos grandes ideais que caracte- 1 século XX; nasce, também ela, da desagre- ndes sistemas e da confianga depositada capaz de apontar & resolver os proble- a. A racionalidade que Gropius desen- volve nos processos formais da arte &consentanea com a dialética da filosofia fenomenoldgica ¢ existencial (sobretudo a de Husserl), a qual de fato esté ligada historicamente: em substaincia, trataese riza a cultura alema d gagao sofrida pelos gra’ numa critica construtiva, mas imediatos da existénci WALTER GROPIUS EA BAUHAUS de deduzir, da pura estrucura légica do pensamento, determina- ges formais de validade imediata, independentes de toda Weltanschauung- ‘ formal: torna-se arquitetura, Como condigao direta da existéncia Em sua obra, 0 rigor lgico adquire uma evidéncia humana. Na histéria de Gropius € impossfvel separar 0 momento teé- rico do momento criativo ou do momento pedagégico: cada um de seus edificios, de seus programas urbanjisticos, cada uma de suas interveng6es praticas e polémicas, por uma radical renovagao dos métodos produtivos da arquitetura € da arte aplicada ou por uma reforma do ensino formal, é ao mesmo tempo formulagao teérica, aplicagao pratica e ato criativo. Ele é de um temperamento posi- tivo — extrovertido, dir-se-ia hoje —, que deseja agir a qualquer custo sobre o terreno concreto do contingente. Sabe que, na crise dos grandes valores da historia, a estrita légica formal encontra forca de ultima ratio; e se j4 nao € possivel a existéncia de nenhuma civilizagao baseada em princfpios estaveis, mas somente na clare- za e na firmeza dos atos, seu propésito é o de atuar no cerne de uma situagdo com a tempestividade e a exatidao de uma inter- vengao cirtirgica. A racionalidade nao é mais um guia ou uma luz vinda do alto, mas uma técnica infalivel; a condigdo que a deter- mina e justifica é a constatagao da crise, que é sobretudo a crise do sentimento: dai a continua transigao do puro racionalismo ao puro pragmatismo, a substancial identidade entre processo artis- tico e processo critico, entre atividade criativa e atividade didati- ca. Deve-se provavelmente a essa continua transigao 0 fato de a obra de Gropius, interrompida na Alemanha pelo advento do nazismo, ter podido desenvolver-se coerentemente na América € encontrar pontos de contato com o pensamento de um Dewey ou de um Forbes, ampliando assim, ilimitadamente, o horizonte his- t6rico da arte contempor4nea. Em Gropius, levado por sua formagao de arquiteto a conside- rar problemas sociais concretos, a dualidade entre pragmatismo e INTRODUGAO 4 racionalismo reproduz, em outro plano, a contradi¢o entre nacio- nalismo e internacionalismo que, naquele imediato pés-guerra, angustiava toda a cultura européia. Em torno desse ponto gravita toda a sua obra: a arquitetura “internacional” nao ser4 apenas umn nivelamento das técnicas e das formas, mas também, ao mesmo tempo, 0 instrumento e a imagem de uma nova organizagio so- cial. Desta, nao é possivel Prever sequer a estrutura geral; a pr6- pria arte, agindo e desenvolvendo-se no Amago da sociedade e par- ticipando de seu devir, concorrerd para determiné-la. Na Franga como na Alemanha, embora com énfases diferen- tes, sempre que se falava de internacionalismo pensava-se, na rea- lidade, numa nagao supra-histérica ou coletiva, a “nagao européia”, a ser contraposta 4 ameaga da internacional classista. De igual modo, sempre que se falava de racionalismo, a propésito das ine- vitaveis questes sociais da arquitetura, na realidade pensava-se num pragmatismo generalizado e normativo (ou, falando de utilitarismo, numa racionalidade em ato), a ser contraposto a dra- matica concretude dos problemas sociais. O dualismo nfo expri- mia o contraste histérico de ideologias e de classes, que se vinha exasperando a cada dia, mas o mal-estar e as contradigGes inter- nas da classe dirigente: era seu Alibi tedrico diante da pressdo de outras forcas que, da extrema esquerda e da extrema direita, visa- vam ao poder alegando respectivamente um programa interna- cionalista e um programa nacionalista extremado. Nao hé diivida de que Gropius atuou no Ambito de uma cul- tura burguesa e de que seu imperativo racional o impediu I um efetivo {mpeto revoluciondrio. Seu lugar esté naquela fileira de intelectuais que se empenharam em resolver racionalmente os conflitos de classe. Com eles, Gropius assistiu ao desabamento que levou de roldao, além da fragil base da cooperagao intelectual entre i" is essa cultura estivera inue 08 povos, os “eternos valores” aos quals essa tilmente ancorada. eee Alguma coisa, contudo, excetua @ figura de Gropius 0 WALTER GROPIUS B A BAUHAUS antes de tudo, sua incapacidade de ily- e”. do coro dos “europeistas + amentar a nova comunidade no prestf- sfo e sua fria recusa a fund: ade n gio dos “grandes ideais”. Na verdade, esses grandes ideais consti- tufam o sistema que sua dialética desintegrava e dissolvia na fenomenologia da exi pressupusesse, do mesmo fias e ziam a sua propria dialética a experiencia do idealismo que criti- sténcia, ainda que essa mesma dialética os modo como as filosofias existenciais tra- cavam como sistema. Gropius constata que aqueles grandes ideais e aqueles supre- mos valores deixaram de existir com uma determinada estrutura da sociedade; admite que a crise da sociedade é também a crise da arte; quer estabelecer qual pode ser a fungao da arte, como inalienavel “experiéncia” artistica, no iminente processo de trans- formagao da sociedade. Seu limite foi o de ter acreditado que essa transformagdo pudesse reduzir-se a uma evolugao histérica da clas- se dirigente, a fim de adequar-se a novas tarefas sociais. A revolugao de Gropius foi uma revolugo fria, nao abriu a arte novos horizontes de conhecimento, mas assinalou 0 ponto nec ultra de qualquer tradigdo figurativa. Ela esgotou a tradigao artis- tica do mundo ocidental em suas proprias antiteses e resguardou a sociedade futura de qualquer possivel “renascimento”. Além des- se limite, toda eventual retomada artistica deveré necessariamen- te basear-se numa nova concepgao do valor da existéncia e da organizagéo humana. Com Cézanne, as tradigées figurativas nacionais estavam de- finitivamente esgotadas: se toda “sensagao” (e esse emergir da eensagao j4 trai a crise do sentimento) se constitui numa designa- go de consciéncia e se inscreve, como dizia poeticamente Rilke, 5s : DRE eld a orla extrema do circulo, j4 nao ha lugar para o naturalismo no qual, com énfases diversas, se encarnam ( que vai de um sentimento da natureza a u 40 do mundo) as tradigGes artisticas na os alemnes que saidam em Cézanne o re numa escala de valores ma construtiva concep- cionais. Sao justamente dentor que arrebenta os INTRODUGAO ‘i gonzos € escancara as portas do limbo naturalistico deles, para fi- nalmente inseri-los na comunidade ideal européia. Partindo de Cézanne, 0 cubismo elabora uma linguagern que quer ser totalmente racional ou “analitica”; ao remeter a terceira dimensao, que é a dimensao da ilusao ou da “naturalidade” ou do sentimento, a certeza objetiva das duas primeiras, a linguagem figurativa cubista € teoricamente imune a variantes nacionais. O primeiro expressionismo alemAo purga o “complexo de culpa” germanico na racionalidade indubitavelmente supranacional do cubismo. E verdade que, ao visar tao-somente a liberar esse com- plexo e abrir um caminho paraa transcendéncia, o expressionismo acaba deixando de lado a saturada figuratividade cubista e redu- zindo-se ao descarnado formulismo construtivista (no qual a formula assume forga liberadora, comosse pronuncid-la bastasse para entrar no dominio da razao pura); mas € também verdade que essa figuratividade cubista, embora parecesse tao certa € substanciosa, era suficientemente corruptivel para poder dissol- ver-se bem cedo naquela textualidade plana e sem espago que se chama surrealismo e que melhor se chamaria subnaturalismo. Cumpre também lembrar que, se a guerra havia truncado o nascente entendimento e reerguido barreiras ideoldgicas entre as tradig6es culturais francesa e alemé, tais barreiras j4 nao separa- vam dois nacionalismos, mas duas concep¢oes diferentes e dois diferentes programas de vida européia. Quando, em 1917, enu- merava 0 inventaire des principaux produits intellectuels et moraux qui ont cours en France depuis vingt ans et dont la provenance SS germanique, Benda atacava justamente @ concepgao Ines nal marxista como directement opposée a la conception ions (Saint-Simon, Fourier, surtout Proudhon), en haine expresse de lague elle s'est fondée. ionali ‘oblema da internacionalismo envolve 0 pr eens a rquitecura, jd assumira o lugar socialidade da arte, o qual, na a é ; da velha questiio classicista do belo ¢ do dtil, No pos-guert™, WALTER GROPIUS BA BAUHAUS n toda a arquitetura européia fundamenta-se no trindémio jonalismo socialidade-internacionalismo; e essas instAncias raci S am naturalmente @ satisfazer-se na construgao formal “cien- vis tifica” do cubismo- Mas aqui surge @ questao: essa racionalidade, essa certeza for- mal é um sistema no qual a vida pratica, com seus problemas infi- nitos, se ordena e se compoe, OU um método que define os proble- ; propria vida, ao desenvolver-se? No primei- mas apresentados pela toda a sua antiga forga de representacao, ro caso, a arte conserva ea sintese das tradigdes plar concepgao do mundo, d segundo, a mesma critica que destréi toda hist6rica Weltanschauung remete a uma mera condigio de “ser” e “fazer”, indiferenciavel segundo os contetidos histdricos da consciéncia. Os dois Iideres da renovacao da arquitetura européia sao Le Corbusier e Gropius; um e outro lutam por uma reforma em sen- tido racionalista, e suas propostas tém varias teses em comum, mas trata-se de dois “racionalismos” de sentidos contrdrios, que con- duzem a solugdes opostas da mesma questao. Le Corbusier assu- nacionais ainda acontece numa exem- le extensdo e validade ilimitadas; no me a racionalidade como um sistema e traga grandes planos, que deveriam eliminar qualquer problema; Gropius assume a racio- nalidade como um método que permite localizar e resolver os pro- blemas que a existéncia vai continuamente apresentando. A antitese manifesta-se j4 nos caracteres exteriores: Le Cor- busier langa proclamacées, publica manifestos, organiza circuitos de propaganda por todo o mundo, grita aos quatro ventos que il existe un esprit nouveau; Gropius fecha-se em sua escola, transfor- ma sua teoria numa didatica precisa e sua logica numa técnica, € talvez se pergunte se ainda existe um esprit. en a eas gorado pela vit6ria; quer a i coe area ae ae a aibtebiie el ae a-la a fazer sua paz depois daque’ 2 © Sua guerra; dé como garantia da futura cooperaga° INTRODUGAO 13 pacifica entre os povos aquela civilisation machiniste que havia sido uma das causas do conflito; sonha fazer de cada trabalhador um pequeno-burgués, compensando com um standard de bem-estar material a rentincia aos direitos e A luta de classes. Ao mundo que anseia por uma nova ética, ele oferece, radiante, uma perfeita eugenética social. Quando percebe que a civilisation machiniste fabricava canhGes em vez de casas, e, de boa-fé, protesta, os ca- nhées ja tinham comegado a destruir as casas. Entao tefugia-se mais uma vez nos princfpios imortais, torna-se 0 éléve de la nature, faz urbanismo como uma espécie de jardinagem social, sonha com civilizagGes arcaicas e mitos solares, mediterraneos: da histéria do futuro, cai de ponta-cabega, como era previsivel, na pré-histéria. Sua racionalidade esté sempre unida a utilidades especificas e, como as utilidades especificas sdo infinitas, a solugdo racional delas € um standard que representa 0 nivel médio das exigéncias. Inserindo-se na pratica, a racionalidade classifica, coordena, mas sobretudo age como elemento de equilfbrio: previne o surgimento ou contém o desenvolvimento de novos problemas. A tarefa do arquiteto coincide, como se vé, com aquela que a classe “culta” acredita ser chamada a cumprir diante de uma massa que ela su- poe inconsciente do préprio e verdadeiro interesse; e essa cultura € ainda uma cultura humanistica, de classe, cujo prestigio se ba- seia numa experiéncia mais vasta, e até universal, da histéria. Le Corbusier é um homem de boa-fé, que acredita seriamente num novo tipo de contrato social: a burguesia renunciard a guer- ra se o proletariado renunciar 4 revolugao. Como seu ideal ue ernacional no vai além da rentincia a violéncia, emboca no compromisso. As prdprias formas pressdes de contetidos profundes, permane= as de entendimento: nao é necessano que todos se proponham e resolvam os mesmos problemas, basta t0- Por isso se aplica o cubismo d arqui- dos falarem a mesma lingua. tetura: nao se busca nem mesmo uma rasho cientifica, eransfere> cooperagao int ele fatalmente des artisticas, nao mais ex cem como meras formul WALTER OROPIUS BA BAUHAUS ” terura um sistema formal que se dé por fundamen. bases genericamente cientificas. O que importa é superar tadoem snacdo histérica, a dramética aderéncia as Situagdes do a ore oromantismo havia imposto a arte. Assim, a tradi- cca exclufda sem critica, retorna sob as aparéncias mais es FEE de tradigao mediterranea. Se uma clara estry. aes ana da confusa ornamentagao academics, aparenta as escandidas proporg6es do Partenon, comemora-se: € 0 fim de toda problematizagao, de todo romantismo artistico. A alvorada de um novo classicismo surge sobre o mundo finalmente seguro de Pos- se para a arqui suir para sempre seus “eternos valores”. Do outro lado do Reno, nao havia muito entusiasmo pela inter- nacional societdria: os problemas, que para os vencedores eram tema de discursos académicos, para os vencidos eram questées de vida ou morte. O grande capital era o verdadeiro respons4vel pela catds- trofe, mas era também a tinica forga com a qual o inveterado nacio- nalismo alemao podia contar para a desforra. Hoje sabemos que a desforra se chamava Hitler, mas, naquela escuridao, para perceber © que realmente estava acontecendo A burguesia alema eram ne- cessdrios olhos de lince e o ingénuo desespero de Grosz. Aquela burguesia que havia sido Operosa e produtiva, compenetrada da Propria tradicao austera, vinha-se transformando numa plutocracia avida, corrupta, Sanguindria, decidida a desfrutar, até o fim, da ruf- na que havia provocado. A cada dia a inflagao aprofundava ainda mais 0 sulco entre a classe que empobrecia e a que enriquecia; a Tuptura da relacao quase familiar que ligava ab antiquo o industrial 20% S€us Operdtios despedacava a vida social. Junto com a fome de PO ak ee a hostilidade a qualquer actor a vs Oculto a violéncia dates eset ee ae eats vante 0 lugar dessa bur, se Spc tao bem aug : ee Suesia que a relaciona, em sua sAtira, a casta tares, N, e : Aaa 8 mesmos anos, a gélida mascara de Stroheim O Junker @ o Cavaleiro da indGstria. INTRODUGAO i ee ae. Thomas Mann, pertence aquele pequeno gru- po - intelectuais que nao escondem de si mesmos a crise da bur- guesia oe € a investigam muito além das escandalosas aparén- cias descritas pela pena espartacista de Grosz; e no entanto nao perdem a esperanga de que ela ainda possa reatar-se as suas anti- gas tradigdes de cultura, retificar 0 curso de uma evolugao aber- rante, restaurar, no mundo convulso, a autoridade da inteligén- cia. Eu nao afirmaria resolutamente que também Gropius, como Mann, vislumbre a causa profunda da crise da velha burguesia alema numa espécie de tuberculose intelectual, numa debilitante dissipagao artistica, numa fatal transformagao dos tradicionais ideais religiosos (aos quais, contudo, se devia 0 antigo apego a concretude da pratica) em vago idealismo; enfim, no abandono inerte, por parte dessa burguesia, aquele ritmo oscilante de deses- pero e exaltagdo que caracteriza a obra dos seus prediletos: a mt- sica de Wagner tanto quanto o pensamento de Nietzsche e a poe- sia de Hofmannsthal. Entretanto, o firme apelo de Gropius por uma arte inteiramente técnica, livre de qualquer ideologismo, li- gada as férreas leis econémicas da produgio, permite largamente supor: uma vez que a sociedade esta doente da arte, é esse 0 6rgao sobre o qual convém atuar para reduzir-lhe o desenvolvimento anormal e retificar-lhe o funcionamento irregular. O certo é que sua corajosa e até comovente defesa da indus- ncia de muitos anos e a en- determinaram — nada a moderna contra 0 tria — para quem a considere & distai quadre nas circunstancias de fato que a tem de uma entusidstica apologia da técnic persistente tradicionalismo do artesanato. No defesa de uma indistria entendida humani “fordismo”, ou avilcamento plano tedrico, € a sticamente Como potencializagao do engenho contra o n ee da personalidade no mecanicismo da produgao; no plano social, a defesa de uma austera tradigio de operosidade productive) de uma consciéncia ou espiritualidade do trabalho industrial a - peculagiio improdutiva e dissociante. Por isso os vastos 6 WALTER GROPIUS B A BAUHAUS vkbunde e os grandiosos programas reformistas de um e um Behrens, ainda aquecidos pelo entusiasmo romantico de Mortis, reduzem-se na didatica de Gropius a um r- gido formulismo, a esquemas te6ricos exatos, a uma inflexivel dis. ciplina racional, que de outro modo estariam deslocados, se afinal nao se tratasse apenas de sustentar, no campo da arte aplicada, a superioridade da produgao industrial em relag4o a artesanal. O fato & que Gropius preocupa-se bem menos com agir sobre a massa e solicité-la a conquistar um nivel mais elevado de cultura do que comisentar a classe dirigente e produtora a um crescente declinio, reconduzi-la aos seus deveres sociais, reorganizar tecnicamente a produgao, criar as condigdes efetivas e objetivas para © progresso da vida social. Ele exige que a autoridade da classe dirigente nao sociais dos We' Van de Velde e d mais derive da posse dos capitais e dos meios de produgao, mas sim da capacidade de produzir do melhor modo (e aqui entra em jogo a funcdo artistica, porque a arte é modo perfeito), isto é, de- rive de um seguro preparo técnico. Por isso exclui de sua polémica qualquer acento filantrépico e até qualquer simpatia humana, seu discurso esté voltado exclusivamente para os responsdveis, para os “quadros”. O tecnicismo de Gropius, a rigor, pode ser interpretado como uma ndo-politica, no sentido em que visa a resolver ou até evitat, na liicida funcionalidade social, todo contraste ideolégico — ou- tro motivo que nos remete & atitude de Mann e daqueles intelec- tuais alemaes que colocam o afastamento diante da competi¢40 politica como condigao de seu “empenho” no plano da cultura. Mas esse precoce antincio de uma “revolugao dos técnicos”, ess firme convocagio a tarefa que cabe aos intelectuais na transfor- magac: da velha sociedade hierArquica numa sociedade funcional, nao podia deixar de assumir um claro significado politico; e de fat calor meeteaehceasia sta. Em ee, 1923, ao receber uma comissao de intelectuais, o prime INTRODUGAO 7 ro-ministro Stresemann advertia: “Vém-se formando na Alema- nha conceitos malsaos que devem desaparecer. JA nao se quis re- conhecer qualquer diferenga entre trabalho manual e trabalho intelectual; muitas vezes, quis-se subverter a situagao precedente (...) No entanto, os homens nfo sao todos iguais; eles sao diferen- tes, como sao diferentes as forgas espirituais da humanidade; do povo originam-se as forgas que tendem para o alto; uma supressao dessas forgas que aspiram a abrir caminhoe que talvez estejam des- tinadas aos postos de comando seria um nivelamento inadmissivel. Somente se conseguirmos render mais do que outros poderemos recuperar aquilo que a guerra nos tirou.” Da premissa anticomunista passava-se, logicamente, a uma conseqiiéncia nacionalista; para recuperar aquilo que a guerra lhe tirou, a Alemanha deverd “render mais do que outros”. Sua afir- magdo no plano internacional dependeré do modo pelo qual as classes dirigentes alemas souberem cumprir sua tarefa. Palavras semelhantes poderiam ter sido ditas na inauguragao dos cursos da Bauhaus, que, em tltima andlise, € um instrumento criado para produzir uma nova classe de técnicos dirigentes cuja obra possa desenvolver-se no plano internacional. Gropius decla- ra que todo trabalho é a manifestago de uma esséncia interior € somente esse trabalho tem um significado espiritual, ao passo que 0 trabalho puramente mecdnico nao tem sentido vital; “enquan- to a economia e a maquina permanecerem como fins em si mes- mas, em vez de meios para liberar cada vez mais, do peso do traba- lho mecAnico, as energias do espirito, © individuo continua escra- vo e a sociedade nao encontra seu equilibrio definitive”. E mais: “A solugdo nao depende de melhoramentos nas condigées exter- nas de vida, mas sim de uma atitude diferente do individuo em relagéo A sua propria obra.” peti he bitte em relagao a propria obra cumpresss® i jth ‘cto que se destina d coletividade, fungiio social do artista; mas, visto ana teat a obra reflete a relagdo entre indivfduo e corpo is WALTER GROPIUS BA BAUHAUS dessa relagio depende a validade efetiva, simultaneamente art. tica ¢ social, da obra de arte. Assim como, no processo da ideagao a execucio, apresenta. se e se resolve o problema da relagao entre trabalho intelectual ou ideativo e trabalho manual ou executivo, da mesma forma, do particular para o geral, o problema de trabalho qualificado e tra. balho manual, no qual se esquematizava 0 contraste histérico entre capital e trabalho, reduz-se a uma questao de técnica e organiza- gao. De resto, assim abstrafdo dos seus reais e dramaticos termos de luta de classes, esse contraste entre trabalho qualificado e tra- balho manual se apresenta como um momento de transicéo no processo, ainda em curso, de uma sociedade de economia artesanal para uma sociedade de economia industrial. Quando a industria tiver exaurido totalmente a fungao do artesanato e a transforma- go for perfeita, todo trabalhador participara da racionalidade produtiva da indiistria e todo trabalho ser4 trabalho qualificado: esse dia assinalaré a vitéria definitiva da racionalidade social so- bre 0 irracionalismo politico. Naturalmente, nao haverd evolugao e transformagao se a indtistria, em vez de assimilar o artesanato, vier a esmaga-lo com 0 peso da propria organizagao mecAnica, por isso a didatica da Bauhaus é regulada pelo ritmo de um desenvol- vimento gradual da ferramenta 4 mAquina. Na verdade, os pro- Cessos operativos do artesanato transmitiam uma experiéncia es- pecifica da realidade, condicionavam de um determinado modo a relagao entre ohomem e o ambiente. Essa telagdo era limitada pela capacidade dos sentidos em perceber a matéria e pela capacidade da mao e da ferramenta em operar sobre essa matéria. Os recursos mec4nicos da indistria, nascidos de Processos cientificos que ampliam o dominio do conhecimento até muito além dos limites dos sentidos, permitem operar numa zona que ultrapassa o Ambi- to do “natural”; mas, a superagao do “natural”, deve corresponder um conhecimento da realidade mais extenso e aprofundado, nao , o irrealismo e 0 arbitrio do super-homem e da supernatureza. En- INTRODUGAO 19 fim, 0 processo do artesanato a indistria deve reduzir-se ao pro- cesso que converte a experiéncia individual em experiéncia co- letiva. Qual é 0 papel da arte figurativa nesse Processo evolutivo da sociedade? Foi dito que o mal profundo da burguesia alema podia ser diagnosticado como uma espécie de hipertrofia artistica; 0 ca- rater misterioso que se atribufa aos fatos da arte, e, nao raro, aos mais mediocres e banais, era depois estendido a todos os atos de uma classe que se julgava predestinada as grandes tarefas hist6ri- cas, ao renascimento da “alma alema”. A andlise precisa de Viereck demonstrou que 0 préprio nazismo foi, no fundo, uma monstruo- sa superestrutura esteticista. Ao “sublime” indubitavelmente mér- bido dos Wagner e dos Boecklin, Gropius contrapée o estrito regi- me da arte “titil”. A obra de arte nao deve pregar, exortar, apelar para oO sentimento, apontar metas ideais: ela tem seu objetivo em si mesma, e nao além de si; é Gtil na medida em que € arte, visto que a arte é uma fung4o da sociedade; mas é arte enquanto cum- pre essa fungao. A obra de arte é uma realidade que a sociedade produz para corresponder a uma necessidade real, e nao para sa- tisfazer aspiragGes ociosas: uma sociedade que nAo use a arte por ela produzida sera defeituosa, porque as necessidades insatisfeitas ou os residuos ndo utilizados criarao perigosas descompensagdes ideoldgicas. E preciso, portanto, que a arte seja de tal ordem que possa ser completamente reabsorvida na circulagao da vida. Sua fungao é demasiado delicada para se confiar ao arbitrio in- controlavel da inspiragao. Como o “génio” politico, o génio artis- tico nao encontra lugar no quadro de uma organizagao perfeita. Renova-se 0 ostracismo decretado para a arte na Republica, de Platao; mas, do mesmo modo como este se justificava, em tiltima anilise, pelo fato de que as obras isoladas, em sua concreta e ne cessariamente imperfeita realidade, ficavam muito abaixo da idealidade estética pela qual era permeada a propria vida do povo helénico, o novo ostracismo sé seré justificavel se a sociedade rea 0 WALTER GROPIUS EA BAUHAUS 2 ratemente, NOS alos da propria existéncia, essa arte que nhece como transcendéncia e catarse. nenhum dogma estético afirma que a arte deva oduzir-se mediante um processo técnico de carater artesanal; esse tipo de processo esta ligado auma determi. nada concepgao historica da arte. Do ponto de vista marxista, todo inclusive 0 da arte, depende do desenvolvimen- se fosse excegdo a essa lei e continuasse Hizar imane’ ela jf nao reco! Naturalmente, necessariamente pr processo hist6rico, to dos meios de produgao: numa sociedade industrializada, os procedimentos téc- tesanato, a arte constituiria uma forga conservadora e nto, ela dever4 servir-se dos meios de produgao a valorizar, nicos do ar reacionéria. Porta: da indiistria, os tinicos que podem inseri-la no circulo da vida so- cial moderna. Visto que uma estreitfssima continuidade liga ideacao e execugao, a propria idéia de arte deverd transformar-se profundamente para adequar-se aos novos meios de produgao. E, visto que a indtistria produz bens de utilidade coletiva, a obra de arte nao deveré voltar-se para as classes mais cultas, mas ser utilizdvel pela coletividade inteira. Na verdade, ela nao pede para ser interpretada ou compreendida, mas sim utilizada; nao pressu- poe um certo grau de cultura, porque ela mesma determina um certo grau de cultura. A energia racional, de que toda obra esté renleta, descarrega-se na vida e lhe intensifica o ritmo; ainda que a eS Seja 0 escoadouro sereno e liberador para além da contin- Bencia, a arte € a forga que nos faz superar a contingéncia na pr6- oa Contingéncia, obrigando-nos a realizar com clareza racional até Os minimos atos da vida cotidiana. da se voltava-se paraa contemplagao; por meio tetura solene da ‘ton, e a ae esciaeeee ORNS manas ganhavam desta : en a es ejuonaspaixces bY humanismo, sempre ii singe ine heréicos. Mas cee suprimivel dualismo Seay ah 0 Koslunive na arte) con g : uma humanidade hierarquica es sete Spee sg mente dividida numa classe superior INTRODUGAO ea e dirigente, partfcipe, por investidura divina (o “génio”), das leis supremas do universo, e numa classe inferior e servil, cuja tarefa é 0 fazer segundo a indicagao de iluminados regentes. A arte, como eke, a criagdo e oie a das leis desta em imagens , sempre tem, seja ela sacra ou profana, um valor de paradigma: é a prova tangivel do prestigio de uma certa cultu- ra e das classes depositdrias dessa cultura. A arte sacra nas maos da Igreja Romana durante a Idade Média, a arte profana e classi- cizante do Renascimento, a arte eclesidstica da Contra-Reforma, aarte “histérica” do Terceiro Estado sao outras tantas entidades de forga por meio das quais as classes dirigentes exercem sua au- toridade. Se essas classes renunciarem ao seu prestigio e exercerem sua autoridade mediante a intervengo direta nos processos produti- vos, se a praxis, apoiando-se nas ciéncias exatas, tomar 0 lugar da teoria e assumir a dignidade desta, a racionalidade, que constitui a prerrogativa e a forga dessas mesmas classes, nado mais se mani- festarA na designacao de conceitos gerais, mas na série infinita dos atos da existéncia. A vida verdadeira, auténtica, j4ndo sera aque- la que se realiza na contemplagao, mas que se efetua na agao; a realidade concreta, no iluséria, j4 nao sera aquela que ocorre no distanciamento sereno da meditagao, mas que coincide com o em- penho dramético do agir. Esse € 0 problema que Gropius quer colocar e resolver com sua arquitetura e com a didética da Bauhaus. Jé que subsiste uma classe dirigente, que deriva sua capacidade diretora de uma consciéncia mais lucida do real, a arte permanece indubitavel- manifestagao da realidade em suas leis, mente como representagao, do tempo. Cada um, na nas categorias fundamentais do espago e pera empregando objetos que sao da realidade, de: nfio uma realidade constante, genérica, pa- de realidade que est no espago ¢ RO forem pensados racionalmente, & medida em que oJ apreende a realida norAmica, mas aquela fragao tempo do ato. Se esses objetos WALTER GROPTUS F A BAUHAUS a o sera lticida e exata, na qual ele aconte- de e uma localizagao precisas, que lhe a fungao vital sera clara e sem des- e se dé no at ceré com uma rempestivida garantirao @ maxima eficdciay perdicio, como clara € sintéti : e. A tarefa da arte, portanto, €@ de conferir uma absoluta cumpre- clareza formal a t atos de uma existén essa existéncia, com! mesma atividade, ao se cumprir, a0 do mundo que € propria, nao mais do homem “natural” realidade qu ca sera a realidade na qual ela se odos os objetos Pot meio dos quais se exercem os cia organizada; que compOem 0 espago no qual o atividade continua, se realiza e que essa determina; que, enfim, constroem ano ou tendente a reconquistar uma artificiosa naturalidade fugindo A contingéncia, mas do homem social, que vive e opera na con- tingéncia. O individuo nao capta a profunda razao construtiva dos obje- tos artfsticos que condicionam sua existéncia a um espago e a um tempo regulados pela fungao social; mas, no contato com eles, experimenta um prazer estético, que nasce da percepgao nitida e circunscrita, da perfeita correspondéncia que se estabelece entre o mundo interno e 0 externo, do senso de eficiente vitalidade sus- citado pela clareza e pela propriedade formal das coisas que cons- tituem o ambiente imediato de sua existéncia. A propria super fluidade de uma mediagao intelectiva para 0 “goz0” efetivo, prati- co, das coisas artisticas assegura a imediagao, a inevitabilidade, a totalidade desse prazer estético, garante a validade dessa expe- peng artistica doravante insepardvel dos atos cotidianos da vida. ens estética inerente ao fazer, pave nplieeee a pote aaa: implicando o momento @ serie: » Ba ara valor criativo. ee consciente dos ee engsleaanic nae da tradicao se ase. oe gous pesacglte cee como ¢ sabido, fundanre e assim chamado abstracionismo: ste, a-se no princfpio da independéncia da INTRODUGAO 3 forma artistica em relagdo a toda determinante empirica, € por isso se apresenta como absoluto antinaturalismo. Embora essa defini- ¢a0 negativa parega insuficiente, nao se consegue substitui-la por outra, positiva, que declare os novos contetidos, nao-naturalisticos, da forma — contetidos que, na verdade, o abstracionismo nao tem nem pode ter porque reflete uma atitude critica e nao construti- va, repudia toda concepgio sistematica do mundo que vise a rein- tegragdo e a objetivagao de uma natureza, repele toda distincdo entre um contetido (em ultima anilise, sempre naturalfstico) e uma forma que o supere ou 0 libere. Em outras palavras, o abstracio- nismo nao visa a fornecer uma interpretagao da realidade, mas determinar e designar uma condigao da consciéncia na qual toda atitude especulativa seja de fato irrevogavelmente proibida. Nega- se toda evasdo para a natureza, toda efusao do sentimento, toda consolatio philosophiae. A prépria imediagao com que a obra se apresenta em seus tangiveis e incontestaveis fatos formais (as for- mas geométricas, as cores puras), a invariabilidade e a inacessi- bilidade deles 4 emogdo, a impossibilidade de uma fabula de lineis et coloribus nao permitem assumir essa obra como guia numa aven- tura qualquer dos sentidos, da fantasia, do intelecto. A obra de arte, como qualquer coisa da realidade, é constatével mas nao julgavel: ela é mera percepgao, uma percepgao retificada, como a que pode ocorrer a uma consciéncia que se despojou da prépria historia, do proprio contetido de experiéncia; uma consciéncia que, j4 nao possuindo um antes e um depois, € puro momento do ser. A arte é, em sintese, a forma do “fendmeno”. Todavia como condigdo do nao-contemplar, a arte ¢ condi- 40 do fazer, é técnica. Dado que a contemplagao € catarse, supe- ragao da contingéncia na universalidade da histéria, alivio para o obscuro operar da vida e conforto para seu transcorrer no tempo, onao-contemplar j4 ¢ aceitagao do fazer, empenho no conangente, na utilidade imediata do ato. Por isso é que se devem procurar na arquitetura “técnica” as primeiras formas nfio-figurativas ou abs: Mu WALTER GROPIUS B A BAUHAUS e destinadas a resolver problemas objetivos, alidades objetivas dos novos materiais; for- prescindirem de toda concepgao pré- erdade realizam outra inteiramente prem enquanto coisas ou objetos fratas, aparentement praiticos, através das qu mas que, justamente por constitufda do espago, na v nova, inerente a fungao que cum| ae . da realidade, fatos novos que se superpoem a Costumeira nogao naturalfstica. Por outro lado, esse puro fazer nao é pensdvel senao em sua negatividade, em seu ser auséncia e impossibilidade de contem- placdo e distanciamento, rentincia a evasao, empenho. Se assim nao fosse, se 0 ser € 0 fazer fossem um dever ser e um dever fazer, se se apresentasse um fim a alcangar, reabrir-se-ia uma passagem para o futuro e para o passado, e a agao aconteceria de novo num tempo historico e num espago naturalfstico, pois quem nao pos- sui uma concepgao sistematica e certa daquele mundo — que, ao contrario, s6 se apreende no fendmeno — nfo se propde um fim. Nesse sentido, esse fazer pode verdadeiramente assumir um sentido trégico (e nos vem a mente o motivo kierkegaardiano) de continua “derrota”, de ser um fado, a punicdo por uma culpa original. E na gravidade e na urgéncia dessa condig&o de crise da cul- tura européia que 0 apelo de Gropius adquire uma forga moral. Para ele nao se coloca o dilema de angtistia e fé que espicaga o indi- viduo repentinamente consciente de sua solidao no espago e no tempo; a racionalidade, que levou a esse impasse, 6 também a for- G4 que 0 supera, porque se exerce nas telagdes que ligam a comu- nidade dos homens, constituem a sociedade, ; tecem a rede da so- lidariedade humana. No dinamismo da vida social, a quele obscuro fazer se organi- 2a € se esclarece numa técnica, rena ee que € justamente modo de fazer, arte, isto €, um modo de resgatar na imanéncia a espirit = ; pt 4 qual se nega um resultado de transcendéncia, um ¢ hiberar no mundo, na vida que se exerce, as energias que INTRODUGAO 25 j4 nao podem escoar-se na natureza e confundir-se com as energias arcanas do cosmo. Daf 0 chamado de Gropius ao artesanato, em cujo assiduo fa- zer se expressou durante séculos a idealidade religiosa alem4; e daf 0 apelo a industria, que pode ser salvagao ou perdigdo, meio de uma plena coesdo ou de uma completa desagregagao social, mas ser salvagao se souber domar a bruta materialidade da méquinae religar-se Aquela antiga idealidade da qual extrai sua origem his- t6rica e sua justificagéo moral; se souber absorver a tradigao artesanal e desenvolvé-la numa socialidade ilimitada, na qual nao mais existam classes diversas, mas somente diversas fungées. Sao ainda as idéias de Max Weber e de Troeltsch sobre a justifica- tiva do espfrito capitalista na ética religiosa da Reforma: o traba- lho industrial como “ascetismo involuntério e inconsciente do ho- mem moderno”, 0 “senso profissional” como um operar “no mun- do sem divinizar a criatura, isto é, sem amar o mundo”, a socieda- de que nao tem metas ideais mas realiza a espiritualidade humana na clareza, na ordem, no fatal progredir de sua fungao. E ainda o dilema, que angustia toda a cultura moderna, da doenga e do remédio, de um bem e de um mal que, nado mais estatufdos por uma lei natural ou divina, se alternam e se repro- duzem uma partir do outro. A indistria, como a arte, é ao mesmo tempo o mal e o tratamento. Essa identidade j4 estava colocada, desde o fim do século XIX, no art nouveau, que de fato queria ser ao mesmo tempo arte e indtistria, esteticidade e socialidade ilimi- tadas. Haveria exemplo mais caracteristico daquela viciosa hiperfungao do ideal artistico, daquela “artisticidade” j4 inde- limitével em sua historicidade e por isso confundida com a vida, oscilante entre o naturalismo e a quimera, que representa a doen- ga do século? E no entanto também 0 art nouveau, com sua vag poeticidade e musicalidade, aspirava a ser arte social, a abrir s todos, sem discriminagao de classes e de cultura, os parafsos arti+ ficiais da arte, a redimir na poesia a vulgaridade da vida cotidiana.

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