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A Religião da Tecnologia1

Jorge Miklos2
RESUMO

Esta comunicação pretende estabelecer uma aproximação entre as imagens religiosas e as


imagens da mídia, partindo da crise da religiosidade e de sua dimensão comunicacional. A
experiência da contaminação mútua entre mídia e religião. Apesar de ser uma experiência
moderna, de todas as manifestações culturais do homem, a religião é a mais arcaica.
Consciência da morte, religião e cultura são indissociáveis. Por isso, é possível aproximar
a religião dos fenômenos comunicativos. Vilém Flusser, em seu artigo Da religiosidade,
afirma que: “as religiões tradicionais estão em crise. (...) Como indivíduos e como
sociedade estamos à procura de um veículo novo para substituir as religiões tradicionais e
abrir campo à nossa religiosidade latente” (1967). Em nossa sociedade, a tecnologia ocupou
o lugar dos altares num processo de deslocamento da experiência religiosa para as novas
formas de vínculos em que o espetáculo ocupa o lugar do ritual.

Palavras-chave: Ideologia da Técnica, Religião Moderna, Pensamento Instrumental.

Viver é fazer algo a despeito da evidente


futilidade de tudo. Viver é, portanto negar
a futilidade evidente de tudo. E porque é
evidente essa futilidade? Pela morte. Viver
é tentar negar a morte. Viver é fazer de
conta que não há morte. Mas há.
Vilém Flusser

De todas as manifestações culturais do homem, a religião é a mais arcaica. O Homo


sapiens surgiu entre 200 e 300 mil anos. O primeiro ramo da espécie foi o Homo sapiens

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Este artigo foi publicado no livro: MIKLOS, Jorge. A Religião da Tecnologia. In: Moreira, Alberto da Silva
(et. al.). (Orgs.). Religião, espetáculo e intimidade: Múltiplos olhares. 1ªed.Goiania: PUC Goiás, 2014, v.
1, p. 93-99.
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Graduado em Ciências Sociais e História. Mestre em Ciências da Religião e Doutor em Comunicação e
Semiótica, ambos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Psicologia Junguiana
(FACIS-IJEP). Pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Titular do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Midiática da Universidade Paulista.Vice-Líder do Grupo de
Pesquisa Mídia e Estudos do Imaginário (UNIP-SP) e do MIRE - Grupo de Pesquisa Mídia, Religião e
Política (UMESP-SP). Membro do CISC - Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (PUC-
SP). Desenvolve Pesquisa acerca do “Imaginário Religioso na Sociedade Mediática”.
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neanderthalensis. O Homem de Neandertal desenvolveu-se entre 80.000 e 35.000 anos e era
portador de um volume craniano igual ou superior ao homem atual. Ele foi o primeiro a
sepultar os mortos num claro indicio de ideias religiosas.
Para o sociólogo francês Edgar Morin, a ritualização da morte é um importante
traço cultural do homem: “É impossível conhecer o homem sem lhe estudar a morte,
porque é, talvez mais do que na vida é na morte que o homem se revela. É nas suas crenças
e atitudes perante a morte que o homem exprime o que a vida tem de mais fundamental”
(MORIN, 1988, p. 52). Nessa ótica da morte, religião e cultura são indissociáveis.
Morin afirma que a consciência da morte possibilitou ao homem um avanço em sua
natureza cultural. As sepulturas e os rituais fúnebres foram os primeiros sinais da cultura
humana e provavelmente a primeira ideia religiosa do homem.

A partir do momento em que a morte é percebida como fator irreversível e


inevitável da vida inicia-se o processo de reconhecimento da
vulnerabilidade humana diante da presença de um tempo futuro, das
imposições naturais e da transformação de um estado em outro. Encarada
como impura e ameaçadora, a mortalidade relaciona-se ao medo primitivo
do homem, e por isso, a sepultura indica o primeiro sinal de consciência
primária, fazendo da „morte grande propulsora da humanidade‟
(CONTRERA, 2002, p. 118).

A palavra religião vem do latim religio, formada pelo prefixo re (outra vez, de
novo) e o verbo ligare (ligar, unir, vincular). A religião é um vínculo. Quais as partes
vinculadas? O mundo profano e o mundo sagrado, isto é, a Natureza (água, fogo, ar,
animais, plantas, astros, metais, terra, humanos) e as divindades que habitam a Natureza ou
um lugar separado da Natureza. Para vencer a morte, o homem inventou a Religião. Em
termos de etimologia, religião é o que liga o homem a Deus. A Religião é o caminho, o
meio utilizado pelos homens para se comunicarem com os deuses. Assim, não há como
negar que as manifestações religiosas promovem meios de comunicação no espaço da
cultura. A religião está no meio entre os deuses e o homem.
A religião engaja o homem de duas maneiras: primeiramente, explicando a natureza
e o significado do universo ou justificando os caminhos de Deus para o homem, isto é, a
teodicéia; e, em segundo ligar, elucidando a função e o propósito do homem no universo
ou ensinando-lhe como libertar-se de suas limitações e terrores, isto é, a soteriologia.
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No segundo ponto, religião é uma doutrina da unidade: Deus, que para as religiões
monoteístas em sua realidade mais elevada é único, é o Criador, Senhor e o fim último do
universo e do homem nele. No segundo ponto, religião é um método de união: um caminho
sacramental, um meio de salvação. Quaisquer que sejam as maneiras pelas quais os
chamemos, estes dois componentes estão sempre presentes: teodicéia e soteriologia;
doutrina e método; teoria e prática; dogma e sacramento; unidade e união.
Doutrina ou teoria diz respeito à mente (ou no nível mais alto, ao intelecto, no
sentido preciso e metafísico do termo); método ou prática, diz respeito à vontade. A
religião, para ser ela mesma, deve sempre engajar tanto a mente quanto a vontade.
O segundo componente da religião, ou a pratica, pode ser dividido em dois: culto e
moralidade. O culto, elemento propriamente sacramental, em geral assume a forma de
participação nos ritos revelados (públicos ou privados) de uma dada religião, com vistas a
assimilar a vontade do homem à de Deus. A moralidade, o elemento social que gerencia a
maneira como devemos ou não fazer as coisas. Alguns dos conteúdos da moralidade são
universais: “não matarás”, “não roubarás”. Alguns dos conteúdos são específicos da
religião em questão: “não farás imagens esculpidas”, “o que Deus uniu o homem não
separa”.
Chega-se, assim, aos três elementos que consideramos os aspectos definidores de
toda a religião: dogma–culto–moralidade. Quando elevados a um grau mais intenso, o da
espiritualidade ou mística tornam-se palavras: verdade –via espiritual– virtude.
Muitos perguntam: Por que há tantas religiões? Não existe a verdadeira religião?
Qual Religião é certa ou errada? Religião é um tema delicado. Um rápido olhar pela
história revela que a religião serviu de argumento para o dogmatismo e a prepotência. É
comum a religião abrir as portas para o fanatismo e, no lugar de instaurar a solidariedade,
erguer barreiras entre as culturas. Por outro lado, observa-se que também que a religião
pode ser experiência social de libertação.

Pós-modernidade

As vertiginosas mudanças saudadas por muitos como o despontar da era pós-


moderna, cujos paradigmas estariam sepultando a modernidade, suscitam questões que o
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campo da comunicação e cultura deve focalizar e discutir.
É inegável que o sistema produtivo atual marca longa distância com o que se
estendeu até a primeira metade do século XX. A tecnologia avançou extraordinariamente
na linha de produção de bens de curta duração, e isso daria à pós-modernidade a
característica de era pós-industrial, entendendo-se por industrial a fase em que prevalecia a
indústria pesada e a produção de bens de longa duração. O mundo transformou-se numa
grande vitrina – um supermercado global – em que milhões de produtos diferenciados e de
marcas do mesmo produto são oferecidos ao comprador.
A „condição pós-moderna‟ e seus paradoxos e dilemas, penetra no campo das
religiões, deixando marcas profundas que precisam ser analisadas. O niilismo constitui um
dos aspectos mais salientes da pós-modernidade. Partindo dos oráculos de Nietzsche, eles
proclamam que é chegado o fim dos valores, dos ideais e instituições acalentados pelo
Ocidente, tais como família, revolução, Estado, produção, consciência, sujeito, ciência,
verdades, santidade, razão, ser e Deus. Em seu lugar, nascem novos temas: o desejo, a
loucura, a sexualidade, o primitivo, o lúdico, a poesia. Tudo centrado no indivíduo, em suas
relações imediatas e em seu cotidiano.
O niilismo libertaria o indivíduo das velhas crenças, instaurando um mundo em que
não há mias lugar para Deus. Lê-se, com muita frequência, que o mundo pós-moderno, não
é religioso. Como maioria silenciosa, ele foge do social, abandona o futuro e as utopias,
torna-se apático frente à política e deserta da religião. Para alguns, o pós-moderno é o
túmulo da fé. Para outros, instaura uma fé sem, Deus. A crença se transforma em busca
patológica que não desemboca em nenhum ser transcendente. É difícil compartilhar essas
hipóteses sem restrições. Superficial seria tachar todas essas manifestações generalizadas
como simples psicologismo ou como fé sem Deus. Por outro lado, sem dúvida, percebe-se a
explosão de uma imensa constelação do sagrado, que explode marcando a crise da
racionalidade moderna.
Por outro lado, sem dúvida, a pós-modernidade promove a emergência de um
caminho da religião que, em muitos aspectos, se afasta dos moldes tradicionais. Aderindo à
corrente que interpreta a pós-modernidade como fase de transição e um período inacabado
da história humana, como uma fase heurística, na qual a humanidade está em busca de algo

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novo, acreditamos que a religião e o sagrado também se encontram numa virada de
mudanças, um tempo que afirma ainda muitos valores tradicionais, ao lado de muitas
posturas, tudo isso num clima em que emergem mais paradoxos que certezas.
Em decorrência desse fenômeno instituições se esvaziam e outras despontam. A
pós-modernidade, com seu caráter de absoluta transitoriedade, promoveu o arrefecimento
de grandes sistemas religiosos tradicionais, em especial o catolicismo, provocando um
fenômeno migratório, em busca de novos credos e novas formas de expressar o sagrado.
Este, por sua vez, promoveu uma reação tentando recompor seu rebanho. O movimento
carismático, bem como a ampla utilização dos meios de comunicação de massa pela igreja
católica, por exemplo, é uma forma encontrada por alguns setores da igreja católica para
fazer frente à „desgraça demográfica.‟

O sagrado nômade

O caráter permanentemente migratório da pós-modernidade provoca, no âmbito do


sagrado, um fenônemo que se caracteriza como nomadismo místico. Mesmo permanecendo
nominalmente vinculado a alguma forma tradicional de culto, que em geral herdou do berço
materno, a tendência religiosa do homem pós-moderno é um trânsito constante pela
constelação religiosa, compondo nessas inúmeras viagens, um sentindo para a existência.
O conceito de pluralismo, desdobramento inevitável da modernidade, é bastante amplo
e permeia atualmente uma grande parte dos ramos do saber humano. Historicamente, a
construção da modernidade resultou em concepção que propõe como modelo a sociedade
composta de vários grupos ou centros de poder, mesmo que em conflito entre si, aos quais é
atribuída a função de limitar, controlar e contrastar, até o ponto de o eliminar, o centro do
poder dominante, historicamente identificado com o Estado.
O pluralismo converteu-se no valor supremo da modernidade, baseado na crença da
autodeterminação do indivíduo, no fim de todo e qualquer sistema monolítico de cultura ou
expressão religiosa. O pluralismo defende, sobretudo, a liberdade de pensamento e ação,
através da coexistência da diversidade de ideias e comportamentos. A expressão mais
ampla do pluralismo é a convicção de que a sociedade deve ser profundamente
transformada a partir da adesão firme e da luta incessante contra todas as violações dos
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direitos fundamentais da pessoa humana.
Qual o impacto da modernidade e do pluralismo sobre a religião? O triunfo da
modernidade sobre as instituições tradicionais produtoras de sentido resultou em um amplo
questionamento acerca da postura das Igrejas frente às sociedades modernas. Esse princípio
coloca em xeque a busca de uma unidade uniforme ou uma redução do humano a uma
única A esse respeito, porém, ressalta-se que a transitoriedade, o relativismo e o pluralismo
não é marca absoluta. O fundamentalismo ainda está presente, seja nas instituições
tradicionais, impedindo a liberdade hermenêutica. Em troca da fidelidade ao novo dogma,
oferecem recompensas, que vão desde a iluminação mística até a vitória sobre os espíritos
malignos e a posse da felicidade nesta vida, tendo como acréscimo o bem estar eterno na
outra. Um mercado de trocas simbólicas na expressão de Pierre Bourdieu.
O Iluminismo se propôs a desencantar o mundo, submetendo todos os ângulos da
vida humana a explicações racionais. Teria a modernidade , introduzido um novo
encantamento? Vivemos atualmente na era da democracia e do pluralismo cultural. As
fronteiras vão se desfazendo e sendo ultrapassadas obrigando o ser humano a conviver real
ou virtualmente com outras culturas. Muitas vezes o contato com o outro nos obriga a um
constante exercício de alteridade, ou seja, aprender a acolher e cultivar a diversidade
cultural para não cair no preconceito, na exclusão e na intolerância.
A diversidade religiosa é parte integrante da diversidade cultural. Conhecer as
religiões da humanidade tornou-se um ponto básico na educação geral dos jovens, que
pretende ser pluralista e democrática, preparando o espírito humano para ser cada vez mais
aberto e cosmopolita.
É imprescindível conhecer as diferenças culturais para que se desenvolva o respeito
ao outro, ao diferente. O conhecimento é uma grande arma contra o preconceito e a
intolerância.

Tempo Sagrado Tempo Profano

Podemos esboçar os contornos das alterações sofridas com o processo de


transferência da busca da experiência da transcendência e do divino. O Espetáculo ocupa o

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lugar do ritual. Como postula Malena Contrera:

o homem contemporâneo recorre à comunicação virtual, inaugurando um


tempo virtual infinito que foge às leis da mortalidade, satisfazendo seu
instinto/ pulsão de poder e de controle do egóico. Na carne, morremos; na
imagem somos, instantaneamente, ilusoriamente eternos. Virtualizar o
corpo foi uma forma simbólica encontrada por nosso tempo para
apaziguar o medo da morte. Só que, ao abrirmos mão da morte, abrimos
também mão da vida, já que elas são indissociáveis. (CONTRERA, 2006,
p. 118)

A religião é permeada pela experiência do sagrado. O sagrado é uma experiência da


presença de uma potência ou de uma força sobrenatural que habita algum ser – planta,
animal, humano, coisas, ventos, água, fogo. Essa potência é tanto um poder que pertence
própria e definitivamente a um determinado ser, quanto algo que ele pode possuir e perder,
não ter e adquirir. O sagrado é a experiência simbólica da diferença entre os seres, da
superioridade de alguns sobre outros, do poderio de alguns sobre outros, superioridade e
poder sentidos como espantosos, misteriosos, desejados e temidos.
Mircea Eliade afirma que face ao desencantamento do mundo, a experiência profana
jamais se encontra em seu estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do mundo, o
homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o
comportamento religioso. Mesmo para o homem não-religioso, para aquele que recusa a
sacralidade do mundo e que assume uma existência unicamente profana, purificada de toda
experiência religiosa, a existência conserva ainda traços da uma valorização religiosa do
mundo.
Para Mircea Eliade (1992) a experiência religiosa pressupõe uma vivência no tempo
e no espaço. Para o homem religioso, o espaço e o tempo não são homogêneos nem
contínuos. O que funda a experiência religiosa é manifestação da hierofania no espaço-
tempo o que configura a clivagem do espaço-tempo sagrado e profano. „A manifestação do
sagrado funda ontologicamente o mundo.‟ Assim, participar de uma experiência religiosa
implica a saída da configuração espacial e temporal ordinárias e a reintegração no espaço e
no tempo sagrado. O homem religioso experimenta duas experiências da dimensão espaço
tempo. A dimensão profana e a dimensão sagrada. Na dualidade espaço profano-sagrado;
tempo sagrado-profano que se configura a existência religiosa do homem para quem o
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religare orienta o caminho da transcendência inscrito no tecido da cultura.
„Para um crente, uma igreja faz parte de um espaço diferente da rua onde ele se
encontra. A porta que se abre para o interior da igreja significa de fato uma solução de
continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre
os dois modos de ser, profano e sagrado. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a
fronteira que distingue e opõe dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos
se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado.
O advento das novas tecnologias da comunicação e da informação tem contribuído
para uma série de modificações de ordem estrutural na sociedade contemporânea. É cada
vez mais corrente a ideia de que os alicerces de nossa sociedade estão sendo reconstruídos a
partir da consolidação da Sociedade em Rede. A velocidade de transmissão de informações
propiciada pelas novas tecnologias, notadamente a web, tem alterado de maneira
igualmente drástica as formas como percebemos espaço e tempo, bem como agenciamos
nossas práticas subjetivas. Simultaneamente nota-se a explosão de uma imensa constelação
do sagrado, marcando a crise da racionalidade moderna.
Para Eugênio Trivinho (2007), na pós-modernidade, a civilização cibercultural,
configuração material simbólica e imaginária da era pós-industrial avançada, forjou uma
experiência antropológica denominada glocal – nem exclusivamente global, nem
inteiramente local, misto de ambos sem se reduzir a tais. O fenômeno do glocal foi
percebido em relação ao cyberspace e nasce na vigência da cibercultura, na conversação
on-line com alteridades virtuais, na exploração de dispositivos automatizados na web, na
promiscuidade corporal entre ser humano e máquina entre outros.
A civilização glocal reconfigura o espaço e o tempo. A civilização glocal é aquela
em que o tempo local, ou seja, o fuso horário de todas as partes do mundo está subordinada
ao tempo real. Isso implica dizer que o fenômeno glocal responde a uma radical
reprogramação dos vetores do espaço e do tempo real. O espaço local se subordina também
à geografia em rede do planeta.
A dimensão econômica e social da nova forma do capital é inseparável de uma
transformação na experiência do espaço e do tempo designada como compressão espaço-
temporal. A fragmentação e a globalização da produção econômica engendram dois

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fenômenos contrários e simultâneos.
De um lado, a fragmentação e a dispersão espacial e temporal. De outro, sob efeito
das tecnologias eletrônicas e de informação, a compressão do espaço – tudo se passa „aqui‟
sem distâncias, diferenças nem fronteiras – e a compressão do tempo – tudo se passa
„agora‟ – sem passado e sem futuro.
A condição glocal é marcada pela dispersão do espaço e do tempo que condiciona
sua reunificação num espaço indiferenciado, plano e pleno de imagens fugazes, e num
tempo efêmero desprovido de profundidade pretérita ou futura.
A sociedade reconfigurada pelo glocal promove uma mudança no sentido do
espaço. O espaço anteriormente tomado como uma dimensão material é agora transformado
por meio da „produção de uma arena tecnológica em dupla via: o espaço imediato da
condição glocal, contexto da vivência concreta, e a sociespacialização tecnoimagética do
aparelho de base (numa palavra, a tela)‟ (TRIVINHO, 2007).
O espaço glocal contribui também para a intensificação da visibilidade mediática
como nova modalidade do real. Para Trivinho, o isolamento perante a tela verificado no
glocal interativo é compensado pela sensação imaginária de gregarismo produzido pelo
contexto de conexão.
Dentro dessa mesma vertente, Paul Virilio fala em acronia e atopia, ou a
desaparição das unidades sensíveis do tempo e do espaço vivido sob os efeitos da revolução
eletrônica e informática. A profundidade do tempo e seu poder desaparecem sob o poder do
instantâneo. A profundidade de campo, que define o espaço de percepção, desaparece sob o
poder de uma localidade sem lugar e das tecnologias de sobrevôo. (VIRILIO, 1993)
Vivemos sob o signo da telepresença e da teleobservação, que impossibilitam
diferenciar entre aparência e o sentido, o virtual e o real, pois tudo nos é imediatamente
dado sob a forma da transparência temporal e espacial das aparências apresentadas como
evidências.
Volátil e efêmera, hoje nossa experiência desconhece qualquer sentido de
continuidade nem de ruptura e se esgota em um presente sentido como instante fugaz. Ao
perdermos a diferenciação temporal não só rumamos para o que Virilio chama de „memória
imediata‟, ou ausência de profundidade do passado, mas também perdemos a profundidade

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do futuro como possibilidade inscrita na ação humana enquanto poder para determinar o
indeterminado e para ultrapassar situações dadas, compreendendo e transformando o
sentido delas. (VIRILIO, 1993)
Dada a quantidade de usuários que frequentam a web para fazer promessas, pedidos,
rezar, enviar santinhos, agradecer graças alcançadas e até acender velas para seu Santo, vale
perguntar se o ícone maior dos nossos tempos, a Internet, pode também ser sinônimo de Fé.
Teria a conexão técnica substituído experiência do religare?
O Iluminismo se propôs a desencantar o mundo, submetendo todos os ângulos da
vida humana a explicações racionais. Teria a Pós-Modernidade, introduzido um novo
„encantamento‟? Pelo quê se encantam os homens em nossos tempos?
Parece-nos que é tarefa do campo científico da Comunicação promover um esforço
no sentido de construir uma análise mais consistente sobre uma questão central: em que
medida e sob quais procedimentos, a comunicação, mediada pelos equipamentos
eletrônicos e, mais recentemente, informáticos de tempo real, relaciona-se com as atuais
transformações no campo das experiências religiosas. Como postula Flusser: “as religiões
tradicionais estão em crise. (...) Como indivíduos e como sociedade estamos à procura de
um veículo novo para substituir as religiões tradicionais e abrir campo à nossa religiosidade
latente” (FLUSSER, 1967, p. 15).
A experiência religiosa tradicional pressupõe uma vivência no tempo e no espaço.
Precisamente, esse tipo de vivência espaço-temporal é eliminada no cyberspace. Pessoas
buscam na web desfrutar do seu momento de fé em qualquer lugar onde estejam
manipulando um computador; tornando-as livres das dificuldades de precisarem estar num
templo ou de conseguirem isolar-se num cômodo silencioso de sua casa. Entretanto, é
possível experimentar o sagrado no cyberspace, com a compressão espaço-tempo? Se a
resposta a esta pergunta for negativa, cabe indagar, o que é sagrado no cyberspace, senão a
própria mídia.
A reconfiguração da experiência religiosa permeada pelas novas tecnologias
comunicacionais apela para uma gradativa perda da dimensão do sagrado. A representação
– imagem – testemunho de uma ausência – presença de uma ausência determina o sucesso
dos fenômenos midiáticos que respondem por uma desesperada experiência de comunhão –

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participação no sagrado. A técnica ocupou o lugar dos altares

Bibliografia

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: M. Fontes, 1996.

CONTRERA, Malena Segura. A dessacralização do mundo e a sacralização da mídia: consumo


imaginário televisual, mecanismos projetivos e a busca da experiência comum. In: BAITELLO
JÚNIOR, Norval et alii (Org.). Os Símbolos vivem mais que os homens: ensaios de comunicação
cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 2006, p. 107-120.

______ . Mídia e pânico: saturação da informação, violência e crise cultural na mídia. São Paulo:
Annablume, 2002.

______ . O mito na mídia. São Paulo: Annablume,1995.

FLUSSER, Vilém. Da Religiosidade. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 2002.

MORIN, Edgar. O homem e a morte. Portugal: Europa-América, 1988.

TRIVINHO, Eugênio Rondini. A dromocracia cibercultural: lógica da vida humana na civilização


mediática avançada. São Paulo: Paulus, 2007.

VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.

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