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Tempo e espaço: novas linguagens contemporâneas1

Mônica Yukie Kuwahara2

A introdução de inovações, em geral, mostra-se de forma desestruturante para a vida


cotidiana de qualquer coletividade e para os modos de apropriação e domínio da
natureza. "Ao pôr em causa a estrutura do tecido social e o lugar destinado a cada um
dos seus membros, é vivida ao mesmo tempo, como um fenómeno positivo de inovação
e como factor negativo de desordem potencial"3. "Novos ritmos ao deslocamento dos
corpos e ao transporte das idéias"3 e novos ritos de circulação dos capitais foram
permitidos pela introdução de novas tecnologias de informação, com impactos
profundos sobre as relações sociais, resultando na superposição de "conquistas" tecno-
científicas que, em última instância banalizadas, são capazes de imprimir à realidade a
sensação de um presente efêmero, fugidio, às vezes sem passado. A percepção do
mundo se altera, assim como a percepção de si mesmo no mundo, alterando-se as
formas de relacionar-se com o outro e de integrar-se ao social.

No sentido de ampliar a compreensão sobre o papel das novas tecnologias de


informação sobre esse se relacionar no mundo, este texto se preocupa em apresentar
uma reflexão sobre o tempo como determinante do espaço, de forma que se evidencie
que a globalização, enquanto recurso de racionalização do tempo e do espaço, longe de
suprimir espaços e homogeneizar a experiência do mundo, exacerba diferenças culturais
e "heterogeniza" os sentidos, embora se reforce como estratégia discursiva.

O pressuposto implícito na interpretação destas relações é o de que na experiência


tradicional "o tempo é feito de repetições de uma mesma experiência originária, de uma
experiência que se distingue portanto da história propriamente humana e a transcende".5

Acredita-se que a partir desse posicionamento em relação ao tempo e ao espaço seja


possível apresentar uma diferenciação entre o processo comunicacional e o processo
informacional, considerando-se o primeiro mais amplo e de natureza expansiva,
tomando-o como uma variável independente, mas não dissociada, do processo de
globalização.

Enquanto a comunicação é um processo expansivo e voltado para a inclusão de


novos elementos significativos, a informação é um processo seletivo, que envolve a
exclusão de elementos definidos como insignificantes.6 Neste sentido, a comunicação
tem a ver com conteúdos e a informação associa-se à forma como os conteúdos entram
em circulação. As condições de escolhas sobre a forma de "circulação" de conteúdos,
contemporaneamente ampliadas pela presença dos novos dispositivos de comunicação,
permitem que o conceito de globalização se aproxime de uma conformação como uma
linguagem universal para a sociabilidade.

No intuito de compreender melhor esta nova sociabilidade, em uma primeira parte do


texto discutem-se os efeitos das novas tecnologias na expansão do espaço e na
compressão do tempo, transformados em novas linguagens. Uma segunda parte do texto
se preocupa em diferenciar os espaços da informação e os espaços da comunicação,
entendendo que a suposta "fluidez" desses espaços possa ser utilizada de forma a
transformar a globalização em uma estratégia discursiva "racionalizadora" da vida
contemporânea.
1. Novas Tecnologias e a expansão do espaço

O desenvolvimento espetacular das tecnologias de informação, "invadindo" e alterando


as esferas das relações sociais, amplia a problemática comunicacional à medida que
altera não apenas a percepção do mundo, mas a percepção de si mesmo no mundo,
assim como o relacionar-se com o outro e, portanto, do "estar ocupando" um dado
espaço. As percepções do "espaço" e do "tempo" se alteram, gerando teses que afirmam
a existência de "tempos comprimidos" e "espaços extendidos", a exemplo de Harvey, ou
de espaços dinamizados por uma temporalidade de fluxos organizados em redes, a
exemplo de Castells, e outras teses, tendo todas elas, em comum, o fato de associarem
as alterações na percepção de espaço e de tempo ao fenômeno da globalização.

Nada mais emblemático para a globalização que a imagem de mercados financeiros


conectados, on line, funcionando vinte e quatro horas por dia ou as imagens
"instantâneas" da Guerra do Iraque, divulgadas "ao vivo" e "em directo"7, de forma que
a idéia de tempo acabe por resumir-se em "simultaneidade". A aceleração
contemporânea mostra-se como um resultado também da banalização das invenções,
acelerações sobrepostas que imprimem à realidade a sensação de um presente efêmero.

Esse efêmero, porém, não é uma criação exclusiva da velocidade permitida pelas novas
tecnologias de informação,

mas de outra vertigem, trazida com o império da imagem e a forma como, através da
engenharia das comunicações, ao serviço da mídia, ela é engendrada, um arranjo
deliberadamente destinado a impedir que se imponham a idéia de duração e a lógica
da sucessão. Esse tempo de paradoxos altera a percepção da História e desorienta os
espíritos, abrindo terreno para o reino da metáfora de que hoje se valem os discursos
recentes sobre o Tempo e o Espaço8.

O problema da aceleração, portanto, é que ao se aceitar de forma inconteste a pretensa


"simultaneidade" do tempo, a causalidade de fatos torna-se obscura, desestruturando as
bases da realização da sociedade. A simultaneidade existe, mas não elimina o tempo
histórico, o tempo como sucessão. A persistência do tempo histórico pode ajudar a
esclarecer também o papel do espaço, permitindo compreender as razões legitimadoras
para discursos como o do "agir globalmente e pensar localmente", das grandes empresas
capitalistas9, e até mesmo para o próprio discurso da globalização.

Milton Santos10 afirma que a reflexão sobre o tempo pode ser realizada em dois eixos de
interpretação. Um eixo de sucessões, que significaria abordar os problemas sociais a
partir da análise dos fenômenos ao longo do tempo, havendo, na seqüência dos
acontecimentos, uma ordem temporal. Um segundo eixo seria o das coexistências, da
simultaneidade, mas não apenas no sentido de possibilidades ilimitadas de interconexão,
mas sim no sentido de haver, em uma mesma área, em um mesmo lugar, diferentes
"tempos" para ações de diversos agentes.

Em outras palavras, o fato de que a utilização do tempo é diferente para uma mesma
ação evidenciaria que, "para os diversos agentes sociais, as temporalidades variam, mas
se dão de modo simultâneo".11
Para Milton Santos, o tempo histórico, "o tempo como sucessão é abstrato e o tempo
como simultaneidade é o tempo concreto"12 de forma que "a ordem espacial é a ordem
do tempo histórico - um tempo em geral - que coordena e regula as ordens exclusivas de
cada tempo particular, concreto". O mundo tornar-se-ia a soma e a síntese de eventos e
lugares, onde "tempo", "espaço" e "mundo" mudariam constantemente e o fato de
mudarem concomitantemente e de se auto-influenciarem permitiria que
o espaçopudesse ser tratado como meio em que a vida é tornada possível, mas
também como linguagem, por permitir a geração de realidade.

É essa forma de relacionar o tempo e o espaço que aproxima as reflexões desta


pesquisadora das análises do geógrafo brasileiro, distanciando-a das reflexões de
Manuel Castells13, cujas conclusões sobre alguns aspectos do funcionamento da
estrutura das redes e dos fluxos apresentam-se limitantes à analise aqui proposta.

A diferença fundamental entre os dois autores está na causalidade entre tempo e espaço
e nas inferências permitidas a partir de então. Enquanto Santos supõe o domínio do
espaço pelo tempo, Castells14 propõe a hipótese de que é o espaço que organiza o tempo
da sociedade. Este espaço, sem dúvida ampliado pela presença das novas tecnologias de
informação, construir-se-ia em forma de redes.

Rede é um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se


entrecorta. Concretamente, o que um nó é depende do tipo de redes concretas que
falamos. São mercados de bolsas de valores e suas centrais de serviços auxiliares
avançados na rede dos fluxos financeiros globais.15

Castells prossegue identificando redes concretas não apenas no conjunto de relações


entre instituições e organismos internacionais legais, como conselhos de ministros, FMI
e OMC, mas incluindo tanto o narcotráfico em suas variadas fases de "produção" e
"circulação", como também os sistemas de televisão e a indústria de entretenimento. As
redes "concretas", assim como o conjunto de "nós" dessas redes, constituiriam uma
"nova morfologia social de nossas sociedades"16 cuja novidade não estaria,
propriamente, na difusão da lógica de redes modificando a operação e os resultados dos
processos produtivos e de experiência, poder e cultura, mas sim na existência de uma
nova base material para sua expansão e alcance de penetração na estrutura social.

A base material para tal expansão seria a constituição do paradigma das tecnologias da
informação17, de forma que, neste ponto, esta pesquisadora concorda com a reflexão de
Castells. No entanto, a partir do momento em que Castells dirige suas reflexões no
sentido de buscar afirmar que a "lógica de redes gera uma determinação social em nível
mais alto do que dos interesses sociais específicos expressos por meio das redes"18, sua
análise passa a caminhar para uma concepção de redes como um processo "natural",
quase que definido por um determinismo tecnológico, alheio às implicações de um
poder hegemônico constituído, no qual "o poder dos fluxos é mais importante que os
fluxos de poder".19

A decorrência lógica dessa máxima conclusiva de Castells, na visão de José Luiz Aidar
Prado20, é de que a rede se naturaliza, não restando "um meio caminho entre estar ou
não nas redes, pois as redes não instrumentos para a auto-reprodução desse sistema
auto-enredante globalizante que aí está"21. Ainda segundo as críticas de Prado, a
ausência de reflexões quanto à questão da instrumentalização do agir e da
mercantilização da cultura atestariam, nas conclusões de Castells, a primazia da
morfologia sobre a ação social, de modo que o conteúdo circulante da rede não seja
mais importante que a própria circulação em si.

Prado22 prossegue nas críticas a Castells, questionando suas conclusões "otimistas"


sobre o emprego, sobre a cultura e a política, que poderão resgatadas em ou outro texto
no futuro. Na presente discussão, caberia descrever as concepções de tempo e de espaço
de Castells23, que servem ao argumento de "naturalização da rede", idéia alheia aos
objetivos deste texto.

Para Castells, o espaço é a expressão da sociedade e, mais do que um reflexo, "é a


sociedade"24. Sua concepção parte da premissa de que é o espaço que define o tempo,
como já dito anteriormente, e tal premissa, por sua vez, baseia-se noutra, a de que
"espaço é o suporte material de práticas sociais de tempo compartilhado"25, sendo esse
suporte carregado de sentido simbólico. Seria a configuração do espaço, como base
material, que determinaria as conformações das práticas sociais, tendo como resultado
uma articulação material em que prevalece a simultaneidade de práticas no tempo. A
simultaneidade, por sua vez, exige suportes materiais que não dependessem de
contigüidade física de forma que, na era da informação, as práticas sociais estabelecer-
se-iam em um outro tipo de suporte material, que seria o suporte dado pelo "espaço de
fluxos", assumido como "a organização material das práticas sociais de tempo
compartilhado que funcionam por meio de fluxos"26.

Essa concepção de espaço gera duas questões, no mínimo inquietantes. Se o fluxo passa
a ser a forma de concepção do espaço, e se a lógica dos fluxos é uma lógica determinada
pela supremacia da circulação em si em detrimento do conteúdo em circulação, o espaço
passa a ser, ele próprio, um espaço de circulação e não de conteúdos, muito menos
de construção de conteúdos, dificultando qualquer análise das possibilidades de
reconstrução desses conteúdos. Uma segunda inquietação, derivada da primeira, é a
forma como o tempo torna-se também um tempo de circulação, posto que é definido
pelo espaço. Isso implicaria em uma negação do tempo, uma afirmação de tempo
efêmero que imprimiria à prática social uma elevada dose de "fugacidade" que
desorienta a prática política.

Voltando ao geógrafo brasileiro, Milton Santos, encontra-se uma concepção de espaço


determinado pelo tempo, mas não um tempo intemporal, como o de Castells, mas sim
um tempo histórico, em que o simultâneo é mais próximo da idéia da existência de
temporalidades distintas para a ação do que um simultâneo definido pela
instantaneidade de tempos compartilhados. Segundo Santos,

tempo, espaço e mundo são realidades históricas, que devem ser intelectualmente
reconstruídas em termos de sistemas, isto é, como mutuamente conversíveis, se a nossa
preocupação epistemológica é totalizadora. Em qualquer momento, o ponto de partida
é a sociedade humana realizando-se. Essa realização dá-se sobre uma base material: o
espaço e seu uso, o tempo e seu uso; a materialidade e suas diversas formas, as ações e
suas diversas feições.27

Consideradas as reflexões de Milton Santos, o espaço passaria a ser compreendido


como obedecendo a uma ordem determinada pelo tempo histórico, um tempo geral, que
coordenaria e regularia as ordens de cada tempo particular, de cada tempo concreto,
transformando o próprio espaço em "um sistema de objetos e sistema de ações", cuja
materialidade encontrar-se-ia não apenas no fato de ser o espaço o palco do "teatro da
ação, mas condição para a ação"28. A questão fulcral que coloca esta pesquisadora
próxima de Santos é sua partida: a sociedade humana que se realiza em uma
materialidade de espaço e tempo, de modo que é a sociedade que, em última instância,
determina o espaço e o tempo e não como pode dar a entender Castells, o espaço de
fluxos determinando a sociedade e não apenas os seus fluxos.

A premissa de Santos, no entanto, não se opõe totalmente às reflexões feitas por


Castells quanto ao papel da tecnologia, pois para ele o espaço passa a ser passível de
racionalização pela influência da informação, da tecnologia e da ciência.

A ciência, a tecnologia e a informação estão na base mesma de todas as formas de


utilização e funcionamento do espaço, da mesma forma que participam da criação de
novos processos vitais e da produção de novas espécies (animais e vegetais). É a
cientificização e a tecnicização da paisagem. É também, a informatização, ou antes, a
informacionalização do espaço. A informação tanto está presente nas coisas como é
necessária à ação realizada sobre essas coisas.29

O espaço assim racionalizado, transformar-se-ia em um meio, denominado por Santos


como "meio técnico-científico informacional", no qual as ações hegemônicas se
estabelecem e se realizam por intermédio de objetos hegemônicos, de modo que o
espaço se transforma em um "teatro de fluxos hegemônicos e fluxos hegemonizados,
fluxos mais rápidos e eficazes e fluxos mais lentos"30, constituindo,
contemporaneamente, um espaço global formado por todos os objetos e todos os fluxos.

Nesse sentido, o "espaço" dos fluxos financeiros, tão comumente associado à


globalização, não seria mais que um subsistema do espaço global. Essa concepção
permitiria contrariar a afirmativa sobre uma "compressão" do espaço e até mesmo a de
uma "globalização" da Terra. Embora tenha havido uma unificação do espaço e do
tempo em termos globais pelas técnicas e meios, o espaço foi tornado único, e não
suprimido, através da globalização de lugares que não se unificaram, mas sim se
revelaram ao mundo em suas diferenças. A idéia do todo global, do espaço-mundo
globalizado se faz pela revelação ao mundo dos lugares, tidos como extensões tanto do
acontecer hegemônico, como do acontecer solidário, de forma que passa a ser pelo lugar
"que revemos o Mundo e ajustamos nossa interpretação, pois, nele, o recôndito, o
permanente, o real triunfam, afinal sobre o movimento, o passageiro, o imposto de
fora"31.

O lugar tornar-se-ia o locus do tempo concreto, a possibilidade da simultaneidade de


temporalidades distintas e, portanto, local de contradições, tornadas acessórias pelo
espaço-mundo globalizado. No entanto, como a racionalização do espaço-mundo exige
a revelação do mundo dos lugares, verificar-se-ia no "meio técnico-científico
informacional" um processo dialético de construção teórica do espaço, que
aparentemente mostra-se suprimido na análise de Castells.

A contradição entre o espaço-global e o espaço dos lugares, porém, não se evidencia


apenas na construção teórica do termo "meio técnico-científico informacional", mas
também se verifica na estrutura e funcionamento desse meio. Sua estrutura e
funcionamento são, em grande medida, condicionados por imperativos em termos de
produção, somados às possibilidades e necessidades de circulação. Isto implica em dizer
que

como se produzem cada vez mais valores de troca, a especialização não tarda a ser
seguida pela necessidade de circulação. O papel desta, na transformação da produção
e do espaço, torna-se fundamental. Os fluxos de informação são responsáveis pelas
novas hierarquias e polarizações e substituem os fluxos de matéria como organizadores
dos sistemas urbanos e da dinâmica espacial.32

Essa influência do tempo concreto sobre os espaços, conformando um tempo histórico,


abstrato, racionalizado pela presença da tecnologia torna-se visível nas "redes" e
"fluxos" de Castells que, ao concentrar-se no tempo abstrato, perdeu de vista as
contradições do sistema de produção e distribuição. O fato de que no espaço global haja
redes só acessíveis aos atores hegemônicos torna as redes desiguais, gerando-se lugares
especializados de acordo com determinações técnicas, e não mais naturais, de forma que
até a ocupação do território obedeça a imperativos "informacionais", ditados pelo uso
do meio tecno-científico informacional cujo controle encontra-se nas mãos de alguns
poucos atores.

Explicar-se-ia assim a transformação de territórios nacionais em espaços nacionais da


economia internacional, ao mesmo tempo em que se compreenderia a presença de
sistemas tecnológicos mais bem utilizados por empresas transnacionais do que pela
sociedade nacional enquanto os próprios movimentos expressar-se-iam como resultados
da forma de apropriação do tempo concreto, evidenciando as contradições geradas não
apenas pela forma de ocupação do espaço global, discutidas por Castells, mas também
como resultados das contradições do padrão de acumulação capitalista.

O espaço global mostra-se, portanto, um espaço diversificado, heterogêneo, não porque


haja uma teimosa "resistência" dos lugares, mas porque o lugar é a base primeira do
próprio espaço mundo globalizado. Nessa concepção, os fluxos de informação
evidenciam-se como parte dos fatores explicativos das novas polarizações e hierarquia
de poderes na sociabilidade contemporânea.

A dinâmica dos espaços da globalização supõe adaptação permanente das formas e das
normas. As formas geográficas, isto é, objetos técnicos requeridos para otimizar uma
produção, só autorizam essa otimização ao preço do estabelecimento e aplicação de
normas jurídicas, financeiras e outras, adaptadas às necessidades do mercado. Essas
normas são criadas em diversos níveis geográficos e políticos, mas dada a
competitividade mundial, as normas globais, induzidas por organismos supranacionais
e pelo mercado, tendem a configurar as outras. Uma vez mais, todos os subespaços
mostram essa presença simultânea de horizontalidades e verticalidades33.

A aproximação às reflexões de Santos permite também um olhar distinto sobre as


alternativas de ocupação do espaço que se mostram reduzidas nas análises de Castells
quando naturaliza as redes. Segundo Santos, a presença de horizontalidades e
verticalidades expressa o movimento dialético presente no processo de ocupação do
espaço.
Horizontalidades são o domínio de um cotidiano territorialmente partilhado com
tendência a criar suas próprias normas, fundadas na similitude ou na
complementariedade das produções e no exercício de uma existência solidária34.

A possibilidade e também a necessidade de autonomização do cotidiano presente nas


horizontalidades auxiliariam tanto a geração de alternativas ao desenvolvimento quanto
alternativas políticas, pois se ampliam as possibilidades de produtividade econômica,
política e cultural.

Quanto mais a globalização se aprofunda, impondo regulações verticais novas a


regulações horizontais preexistentes, tanto mais forte é a tensão entre globalidade e
localidade, entre o mundo e o lugar35.

A persistência das horizontalidades mostra-se como uma "força" contrária à tendência


totalizadora de espaços que se configuram como sistema de objetos cada vez mais
artificiais e povoados por "sistemas de ações imbuídos de artificialidade, tendentes a
fins estranhos ao lugar e aos seus habitantes"36. Embora o espaço global siga buscando
legitimação nos lugares, apropriando-se das especificidades locais e buscando sua
universalização, a legitimação desse espaço global requer discursos, construções
intersubjetivas e expressivas que permitam tornar esse particular universal.

Objetos e ações contemporâneos são, ambos, necessitados de discursos. Não há objeto


que se use hoje sem discurso, da mesma maneira que as próprias ações tampouco se
dão sem discurso37.

Nesse sentido, os media poderiam também ser encarados como espaço. E como espaço,
cumprindo o papel de se distinguir em função do grau de fluidez entre coisas, objetos e
mensagens, de modo que, para serem percebidos, o espaço e os media, em sua natureza
de espaço, precisam impor-se velocidade, dando velocidade a pessoas, coisas e
mensagens. Para ampliar sua "velocidade", necessitaria constituir-se em espaço
autônomo, exercendo uma função específica de mediação entre os demais campos
autonomizados.

2. Espaços comunicacionais e espaços informacionais

Os processos comunicacionais e os processos de informação, distinguir-se-iam por se


realizar em espaços distintos, tanto de legitimação, como de construção de conteúdos. O
processo comunicacional mostrar-se-ia um processo cuja natureza é negociada,
transacional, definido pelo reconhecimento das diferenças e pela abertura ao outro;
processo que abrange domínios diversificados, podendo ser compreendido tanto em sua
dimensão expressiva quanto em sua dimensão pragmática, existindo mesmo na ausência
de signos materiais exteriores38, posto que é a colocação em comum da experiência.

A partir dessa reflexão, torna-se mais evidente que a comunicação tem a ver com
conteúdos, mesmo que ausentes de signos materiais, e com sua circulação, envolvendo
desde as representações imaginárias até as representações simbólicas e seus meios,
constituindo um processo amplo, aglutinador, e exatamente por essa amplitude,
irredutível, de modo que o "total" seja sempre superior que a "soma" de suas partes
constitutivas; ou posto de outra forma, de modo que a subtração das partes do total
nunca volte a um início, "zero", havendo sempre um "resto": a experiência cultural
individual.

A informação, por sua vez, "apareceria como um ato básico de discriminação, como a
geração de uma diferença entre o que merece atenção e aquilo que é dado observar,
perceber ou conhecer, mas diz respeito estritamente à diferenciação geradora da
forma"39. Enquanto o "espaço" da comunicação se define pela lógica da transparência,
da expansão, voltado para a inclusão de novos elementos significativos, o "espaço" da
informação é definido pela exclusão, tanto do ponto de vista da "escolha" de elementos
significativos a serem codificados, como do ponto de vista da possibilidade de
apropriação da informação-mercadoria pela lógica do capital.

A informação, quando colocada na esfera pública da comunicação, absorve e neutraliza


conteúdos, na medida em que implica em seleção desses em função das necessidades de
racionalização do real. Entre as necessidades de racionalização do real encontra-se o
anseio por romper com a ordem totalizante da experiência tradicional de modo que
dessa racionalização, derivem diferentes modos de racionalização da experiência,
inaugurando novas maneiras de legitimar ações e discursos.

Já a comunicação, mesmo quando considerando um conjunto específico de meios de


informação, é um processo que ocorre entre pessoas que se relacionam, fazendo parte de
um mesmo mundo cultural, partilhando de um mesmo referencial. Dotados de razão e
de liberdade, os seres humanos mantêm entre si uma identificação que vai além do
fenômeno, do factual, para englobar a esfera de símbolos compartilhados40.

Porém, o espaço da comunicação é cada vez mais enraizado na experiência concreta,


evidenciando-se a impossibilidade da globalização da experiência e reforçando-se a
idéia de globalização como uma linguagem, uma estratégia discursiva, "uma operação
de marketing destinada a "armadilhar" o presente em nome da miragem de um futuro de
contornos problemáticos".41

A linguagem, entendida como uma ordem de acolhimento das diferenças e de promoção


da dinâmica mediadora entre homens42 e mulheres, assegura a ação comunicativa, de
modo que os atos de produção de linguagem, os atos de fala, implicam sempre em
discurso. A globalização, assim, pode ser entendida como linguagem, dotada portanto
de força de discurso e caracterizada como projeto de emancipação que, todavia, ao se
realizar, deixa de ser projeto e mostra-se como utopia.

O discurso globalizante se reforça pela atuação dos modernos meios de comunicação


que constituem um campo social autônomo em relação aos demais campos da
experiência, contando com uma legitimidade delegada dos demais campos e mantendo,
porém, a capacidade de interferir sobre a estrutura social.

Segundo Maria Nazareth Ferreira43, a estrutura social reflete uma dada compreensão da
sociedade acerca dos seus objetivos, prioridades e formas de ação, permitindo
incorporar à análise de Rodrigues, a idéia de que

(...) a comunicação é um campo autônomo, tendo sua dinâmica umbilicalmente ligada


às ações do ser humano. Os meios de comunicação não são apenas instrumentos para
comunicar; estão vinculados à produção e podem influenciar a conduta humana,
estimulando, organizando, desorganizando, ativando ou não indivíduos sociais.44

A autora sistematiza a ligação da comunicação com a atuação política, complementando


a idéia de Rodrigues de que os órgãos de informação transformaram-se cada vez mais
em "campo social de encenação pública de imagens de marca que emprestam aos
homens políticos"45, mas que não reduzem a função ideológica do campo político.

A compreensão da autonomia da comunicação, assim como a conseqüente vinculação


dos meios de comunicação à produção reduziria o equívoco pós-moderno de acreditar
que o político aproxima-se da transparência dos atos. Como lembra Rodrigues, "a lógica
do poder, ao contrário da lógica de informação, não é função de transparência mas do
segredo, que detém o poder aquele que for detentor do segredo (...)"46

Partindo de outras premissas e buscando objetivos diversos, Muniz Sodré apresenta uma
análise convergente às preocupações de Rodrigues e Ferreira. Ao refletir sobre as
vinculações entre a esfera moderna dos media ou das tecnologias comunicacionais e a
ordem tradicional da sociedade civil, salienta que há um conjunto de inter-relações que
se estabelecem no sentido de obscurecer a compreensão da verdadeira natureza dos
meios de comunicação.

No período em que o liberalismo econômico em sua forma globalista é o sistema de


pensamento dominante nas coalizões hegemônicas de governo, a inserção e a
legitimação das novas tecnologias comunicacionais nos espaços nacionais ou regionais
tendem a ser medidas apenas por parâmetros economicistas oriundos de setores
transnacionais ou então por miúdos interesses políticos-patrimonialistas locais.
Nesse obscurecimento, as tecnologias comunicacionais são apreendidas como meros
canais de informação ao invés do que realmente são - dispositivos geradores de real,
com ambiência própria e um eticismo particular, em que avulta uma dimensão de
mítico-religiosidade sem sagrado.47

A informação, a partir dessas perspectivas, mostra-se como um segredo valioso na


manutenção do próprio poder e, dessa forma, como bem escasso, sacralizada e passível
de comercialização e, uma vez vinculada à produção, torna-se sujeita a uma lógica de
valorização presente em qualquer atividade capitalista. Mais que um segredo, a
"constituição do campo dos media sob a forma de redes da informação já não se trata
sequer de uma ordem a preservar, mas da instauração de simulacros do real, de modelos
de significação relativamente fechados sobre si próprios"48.

A autonomização do campo dos media fortalece a figura do simulacro que, quando


constituído pelos modernos dispositivos de comunicação mediática, parece eliminar a
diferença entre o verdadeiro e o falso.

O terror da figura dos simulacros reside precisamente na impossibilidade de distinção


entre o figurante e o figurado, na perfeita obliteração da diferença, na morte
dissuadora do real e na dissuasão mortífera da própria representação.
...
O funcionamento disciplinar do poder contava ainda com uma realidade exterior e
secreta que resistia à vontade do político, alimentando o seu dispositivo maquínico de
vigilância e transparência. Nessa diferença se inseriam as resistências e a autonomia
do sujeito, com a sua margem improdutiva. É da obliteração desta diferença destas
possibilidades de resistência, desta margem, da total sideração dos corpos e das vozes
que se alimenta o imaginário reticular do campo dos media e se jogam os actuais jogos
de poder."49

As discussões até aqui apresentadas evidenciam que os referenciais a serem


compartilhados pelos indivíduos expandiram-se para além dos limites territoriais e que
as exigências da economia de mercado impõem progressivamente um código cultural
assimilador de todas as atividades humanas, apoiado por uma rede complexa de
tecnologias de produção e consumo de massa, onde desempenham papel de proa os
meios de comunicação de massa50.

A utilização dos meios de comunicação como artifícios do poder não poderá ser
estudada apenas do ponto de vista da concentração da oferta de informações, tampouco
se circunscrevendo apenas ao universo simbólico, pois se limitaria o horizonte de
reflexões que permitiria visualizar as possibilidades de insurgência da classe subalterna.
O desafio da reflexão, portanto, caminha cada vez mais na direção da trans e
interdisciplinariedade, na convergência de abordagens, exigindo esforços redobrados na
busca de conexões de sentido entre e dentre as áreas do saber.

Notas

1. O presente texto foi extraído e modificado a partir do quarto capítulo da


tese "Informação, conhecimento e poder", defendida pela autora em 28 de
maio de 2004.
2. Doutora em Comunicações pela ECA-USP, pesquisadora do Centro de
Estudos Latino Americanos de Cultura e Comunicação (Celacc),
pesquisadora do Núcleo de Pesquisas sobre Qualidade de Vida (NPQV) da
Universidade Mackenzie e professora do Depto de Economia da
Universidade Mackenzie - SP.
3. Adriano Duarte RODRIGUES. Estratégias da Comunicação. Lisboa: Ed.
Presença, 1990, p. 49.
4. Milton SANTOS. Técnica, Espaço, Tempo: globalização e meio técnico-
científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 30
5. Adriano Duarte RODRIGUES Comunicação e Cultura: a experiência
cultural na era da informação. Lisboa: Editorial Presença, 1994, p 54
6. Gabriel COHN. "A forma da sociedade da informação" in DOWBOR, L &
IANNI, O.
7. Desafios da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 20-27.
8. Não deixa de ser curioso que, no Brasil, durante muito tempo, uma
transmissão ao vivo fosse considerada também uma transmissão direta. O
"ao vivo" significava a "viva" presença de um representante qualquer dos
media, mesmo que este representante fosse funcionário de uma agência de
notícias estrangeira que re-transmitia as informações. Ou seja, o "ao vivo"
não significava "em presença de", e era mais no sentido de uma
transmissão direta do local, que afinal não era tão direta assim. O "direta"
passou a amplamente associado ao simultâneo depois da Guerra do Golfo,
quando o mundo, através da CNN, acompanhou o ataque de mísseis
cruzadores Tomahawk a Bagdá, em junho de 1993.
9. Milton SANTOS. Técnica, Espaço, Tempo. p. 30
10. Enquanto, para as grandes empresas capitalistas que competem em termos
mundiais, o imperativo de competitividades seja "agir globalmente e pensar
localmente", para os movimentos sociais e para pequenas e médias
empresas, o imperativo parece caminhar para um "agir localmente e
pensar globalmente", com todas as ambigüidades que a frase pode sugerir.
11. Milton SANTOS. Técnica, Espaço, Tempo.
12. Ibid. p. 163
13. Ibid., p. 164
14. Manuel CASTELLS. A Sociedade em Rede. . 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra,
1999
15. Ibid., pp. 404-496
16. Ibid., pp. 497
17. Ibid. p. 497
18. Paradigma técno-econômico, ou paradigma das tecnologias de informação,
é uma categoria utilizadas por economistas adeptos da escola
neoschumpeteriana. Neste texto, entende-se que um paradigma técno-
econômico expressaria um conjunto de determinações sociais, culturais,
econômicas e científicas para a emergência das inovações, assim como
efeitos destas inovações alterando também as relações sociais, culturais,
econômicas e científicas.
19. Manuel CASTELLS. A Sociedade em Rede. p. 497
20. Ibid. p. 497
21. José Luiz Aidar PRADO. "O enredo globalizante de Castells" in PRADO,
J. L. A & SOVIK, L. (orgs) Lugar global e lugar nenhum: ensaios sobre
democracia e globalização. São Paulo: Hacker Editores, 2001, pp. 97-114
22. Ibid., p. 99
23. Ressalva deve ser feita ao fato de que Prado apresenta uma crítica
concentrada nas conclusões a que chega Manuel Castells, sem pretender
questionar a pesquisa propriamente dita, expressa em mais de 1000 páginas
e resultado de doze anos de pesquisa e de análise de dados. Em suas
próprias palavras, "o que nos interessa aqui é como Castells fecha seu
bordado, como ele costura os panos de um extenso panorama tecido (…),
como ele, enfim, fecha discursivamente esses temas para poder concluir sua
idéia de "sociedade em rede". Nossa crítica incide justamente nessa
operação em que Castells finaliza seu empreendimento discursivo". José
Luiz Aidar PRADO. "O enredo globalizante de Castells", p. 97
24. Concepções definidas nos capítulos 6 e 7 do primeiro volume da trilogia.
Manuel CASTELLS. Op.cit.,. pp. 404-496
25. Ibid., p. 435
26. Ibid., p. 436.
27. Idem. Ibidem.
28. Milton SANTOS. Técnica, Espaço, Tempo. p.42
29. Ibid., p.177
30. Ibid., p. 51
31. Ibid. p. 53
32. Ibid., p. 37
33. Ibid. p. 54
34. Ibid. p. 55
35. Ibid., p. 55.
36. Ibid., p. 56
37. Ibid., p. 90
38. Ibid., p. 91
39. Adriano Duarte RODRIGUES. Estratégias da Comunicação. . Lisboa:
Editorial Presença, 1990, pp. 67-68.
40. Gabriel COHN. "A forma da sociedade da informação". p. 24
41. Adriano Duarte RODRIGUES . Comunicação e Cultura: a experiência
cultural na era da informação. Lisboa: Editorial Presença, 1994 p. 21.
42. Adriano Duarte RODRIGUES. "Para uma genealogia do discurso da
globalização da experiência", in PRADO, J. L. A & SOVIK, L. (orgs)
Lugar global e lugar nenhum: ensaios sobre democracia e globalização. São
Paulo: Hacker Editores, 2001, p. 64
Muniz SODRÉ. Reinventando a Cultura. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 11
43. Maria Nazareth FERREIRA. "Introduzindo" in FERREIRA, M. N. (org.)
O impasse da comunicação sindical: de processo interativo a transmissora
de mensagens. São Paulo: CEBELA, 1995, pp. 13-23.
44. Ibid. pp. 15-16.
45. Adriano Duarte RODRIGUES. Estratégias da comunicação. p. 161.
46. Ibid. p. 161
47. Muniz SODRÉ. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação
linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 74-75
48. Adriano Duarte RODRIGUES. Estratégias da comunicação. p. 169
49. Ibid. p. 169-170
50. Muniz SODRÉ . Reinventando a Cultura. p. 49.

Referências Bibliográficas

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999
COHN, Gabriel. "A forma da sociedade da informação" in DOWBOR, L & IANNI, O.
Desafios da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 20-27.
FERREIRA, Maria Nazareth. "Introduzindo" in FERREIRA, M. N. (org.) O impasse
da comunicação sindical: de processo interativo a transmissora de mensagens. São
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PRADO, José Luiz Aidar. "O enredo globalizante de Castells" in PRADO, J. L. A &
SOVIK, L. (orgs) Lugar global e lugar nenhum: ensaios sobre democracia e
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1990.
SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: globalização e meio técnico-científico
informacional. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 30
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em
rede. Petrópolis: Vozes, 2002.
SODRÉ, Muniz. Reinventando a Cultura. Petrópolis: Vozes, 1996.
Mônica Yukie Kuwahara é doutora em Comunicações pela ECA-USP e professora
do Depto de Economia da Universidade Mackenzie - SP. Contatos pelo e-
mail: monicayukie@hotmail.com.

http://www.martamaia.pro.br/pesquisas_monica.asp

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