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Público • Sexta-feira 17 Setembro 2010 • 43

Roteiro de duas semanas de volta ao país irreal de Sócrates de inauguração em inauguração

O país afunda-se mas o circo não pára

N
ENRIC VIVES-RUBIO
o dia 28 de Agosto, um sábado, José Só- Até porque, entretanto, há um país teimosamen-
crates inaugurou um pedaço de estra- te real. Nestas semanas ficámos a saber que Portu-
da de 14 quilómetros. Entre Oleiros e gal caiu mais três lugares no índice de competitivi-
Proença-a-Nova. Esses quilometrozitos, dade do Fórum Económico Mundial ( já recuamos
disse, serão muito importantes “para 18 lugares desde que Sócrates é primeiro-ministro)
o dinamismo económico e para a segurança ro- e caiu outros dois lugares no ranking dos melhores
doviária”… países para fazer negócios da revista Forbes. São
José Três dias depois, a 31 de Agosto, foi à inaugura- dois indicadores preocupantes de como estamos a
Manuel ção de um jardim-de-infância num hipermercado perder a corrida e de como nos será cada vez mais
Fernandes Jumbo. Quem pagou foi o grupo privado, mas Só- difícil sair da crise. Pelo que não surpreende que
Extremo crates gabou-se de ter chamado a atenção “para a
necessidade de se resolver o problema crónico da
as previsões revistas da Comissão Europeia confir-
mem a anemia portuguesa: em 2010, o crescimento
ocidental falta de investimento em creches”. na UE foi revisto em alta, para 1,8 por cento, mas
No dia seguinte voltou a uma creche, desta vez em o português deverá ficar abaixo de um por cento.
Torres Vedras. A instituição era de uma IPSS, e não Pior: enquanto no segundo trimestre o emprego
do Estado, mas o primeiro-ministro foi lá para falar na União Europeia recuou 0,6 por cento, em Por-
“dos desafios do Estado social moderno”, falando tugal caiu 1,5 por cento, permitindo que no final
em “investimento do Governo” quando este nem de Julho tivéssemos a quarta mais elevada taxa de
chegou a cobrir um terço dos custos. De resto, das desemprego de toda a OCDE.
342 creches abertas entre 2004 e 2008 só duas são Entretanto, a despesa pública continua a aumen-
públicas, as restantes ou são privadas, ou perten- tar, como se estivéssemos numa nave de loucos. O
cem a IPSS. De Torres Vedras o primeiro-ministro país endivida-se ao ritmo de 2,5 milhões de euros
saiu a correr para a Líbia, onde foi o convidado de por hora, os juros estão em máximos históricos e
honra de Kadhafi nas cerimónias do 41.º aniversário crescem os rumores de que o FMI já está à porta.
do regime, onde esteve sempre ao lado do ditador, Numa situação destas, o que o país devia estar
partilhando o mesmo automóvel. a discutir, com seriedade, era se no Orçamento de
A 3 de Setembro foi a vez de ir a Braga, agora 2011 a redução do défice se fará por mais subidas
para inaugurar um hotel. Aproveitou para falar da de impostos ou pela redução da despesa, pois isso
“recuperação da economia”. Já o dia 4 foi dia de não é indiferente para a saúde da economia, mas
comício. O local escolhido foi um jardim público todos se entretêm em jogos florais sobre o destino
em Matosinhos que, de acordo com os moradores, de uma negociação que tem de existir – o Governo
estava pronto há vários meses mas estivera fecha- é minoritário –, mas que ainda nem sequer come-
do com um gradeamento que só desapareceu para çou. Sendo que, como escreveu esta semana Vítor
montar o palco de Sócrates. Bento, ao estar a “dramatizar a não aprovação do
Dia 7 voltou a um jardim-de-infância, desta feita novo Orçamento” está-se “a enviesar o processo
em Lisboa, para celebrar “um feito”: Portugal apa- negocial” e a aceitar a chantagem de quem não
recer no relatório da OCDE sobre Educação com recebeu dos portugueses mandato para governar
uma taxa de cobertura do pré-escolar superior à sozinho.
média. Mas não comentou o resto do relatório da Em Portugal nunca se aprende nada. E o que
OCDE, que não era nada favorável mais aflige é como o país saltita, tal como uma
Em Portugal nunca se a Portugal e ao que cá se fez nos fazer com que Portugal seja o país da Europa onde barata tonta, de “caso” em “caso”, sem sequer
últimos anos. as famílias mais gastam com educação”. perceber a irrealidade do mundo que o primeiro-
aprende nada. E o que

E
A 8 de Setembro Sócrates tro- ministro lhe procura apresentar no seu corrupio
mais aflige é como o país cou o pré-escolar pelo ensino bási- ste frenesim e esta sucessão de banalidades de inauguração em inauguração. É que se há um
co e foi até Paredes inaugurar um ditadas para a comunicação social é todo ano nos apresentaram uma narrativa política (so-
saltita, tal como uma centro escolar. O tema foi o en- um estilo de governação. Todos os dias tem bre a irrelevância do endividamento do país face à
barata tonta, de “caso” em cerramento de escolas do básico, de haver um evento para consumo para ga- importância dos investimentos públicos, por exem-
um processo que celebrou de for- rantir uns minutos no telejornal, naquilo a plo) que se revelou totalmente falsa mal passaram
“caso”, sem sequer perceber ma tão entusiasmada que, ao ser que já chamaram os “momentos Chavez” de Sócrates, as eleições, agora criaram outra narrativa irreal (a
confrontado com os conflitos com traduzindo uma forma de fazer política onde tudo é de que é mantendo tudo como está que se salva o
a irrealidade do mundo algumas autarquias e as obras atra- espectáculo e acções de propaganda, alimentadas por Estado social) e ainda há quem lhes dê o benefício
que o primeiro-ministro sadas, sentenciou: “Não estou pre- citações de estatísticas à la carte, onde tudo visa cen- da dúvida. Mesmo depois de ouvir a ministra da
ocupado com excepções.” trar sobre o “líder” e sobre o seu país irreal a atenção Cultura dizer o contrário ao avisar que “o Estado
lhe procura apresentar A 9 de Setembro escolheu Al- da comunicação social. Ao mesmo tempo instala-se social encontrou o seu limite”…
verca onde, talvez inspirado pelos o diálogo e faz-se da fuga em frente uma forma de Nas óperas-bufas ainda sorrimos – neste país-bufo
no seu corrupio entre
fumos das fábricas, falou sobre cur- evitar governar e, sobretudo, de se ser confrontado já só rangemos os dentes. Jornalista (www.twitter.
escolas e creches sos profissionais. com os limites e os desastres da governação. com/jmf1957)
Depois, a 10 de Setembro, regres-
sou à Escola Secundária de Pedro Nunes, onde já
tinha estado em 2008 e 2009, mas parece haver
sempre coisas novas para ver. Foi lá que anunciou
Leituras Para compreender a I República
cem-inaugurações-cem de escolas para o 5 de Ou-
tubro, invocando a aposta da República na Edu- a Tem sido produzida abundante Já passaram 36 anos sobre a [Partido Republicano Português]
cação. Só que essa aposta foi sobretudo retórica, bibliografia sobre a I República, primeira edição, mas não é destruíra o genuíno liberalismo
tendo-se traduzido num enorme fiasco: entre 1911 mas temo que a obrigatoriedade possível compreender o que foi o da Monarquia; e a República,
e 1930 a percentagem de analfabetos baixou apenas de “comemorar” tenha 5 de Outubro e o regime que dele longe de ser ‘democrática’ no
sete pontos percentuais (de 75 para 68 por cento) prejudicado uma produção que, saiu sem ler aquelas pouco mais sentido moderno da palavra,
enquanto, nos dez anos seguintes de Estado Novo, por enquanto, não produziu de 300 páginas. E quem por aí sobrevivera sobretudo graças ao
baixaria mais de oito pontos (de 68 para menos de nenhum estudo marcante. Por anda inflamado – nomeadamente terror popular”. Quanto aos seus
60 por cento). isso, agora que se aproxima a os que, postumamente e como dirigentes, “estavam dispostos
No dia 13 rumou ao Funchal – um amor recente –, data do centenário, nada como Fernando Rosas, parecem querer a usar os militantes para os
onde fez companhia a Alberto João Jardim na aber- regressar à mais incontornável “dar a táctica”, qual professores seus próprios fins, não estavam,
tura do Ano Académico da Universidade da Madeira. das obras sobre esta época, O Marcelo, aos políticos de evidentemente, dispostos a
No dia seguinte já estava no Porto, no Instituto Su- Poder e o Povo: A Revolução de então – bem poderia recordar- permitir que pusessem em causa
perior de Engenharia, onde foi surpreendido pelos 1910, de Vasco Pulido Valente, se que, como escreveu Vasco, os seus santos privilégios”.
estudantes, que lhe entregaram uma medalha “por agora reeditado pela Aletheia. “na luta pelo poder, o PRP Uma leitura desintoxicante.

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