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Schritzm eyer, Ana Lúcia Pastore - “Antropologia Jurídica” In Jornal


Carta Forense, ano HI, n° 21, fevereiro de 2005, pg. 24 e 25.

1 ) 0 que é Antropologia?
• Antropologia, Sociologia e Ciência Política compõem as Ciências Sociais. Há,
no Brasil, graduação em Ciências Sociais e pós-graduação em Antropologia,
Sociologia e Ciência Política, de modo que “antropólogo” é quem se pós-gradua
em Antropologia. Além da Antropologia Social ou Cultural, também existem a
Arqueologia, a Antropologia Biológica ou Ecológica e ramos conectados à
Lingüística e à Psicologia Antropologia Social ou Cultural é o estudo das
culturas humanas, com vistas a constituir um “inventário” de seus diversos
modos.de vida e formas de organização social

2) 0 que é Antropologia Jurídica? Como nasceu?


• A Antropologia Jurídica nasceu na Alemanha, Grã-Bretanha, França e Estados
Unidos, no final do século XIX. Segundo Norbert Rouland, antropólogo francês
contemporâneo, a Antropologia Jurídica estuda as lógicas que comandam os
“processos de jurídicizaçâo” próprios de cada sociedade, através da análise de
discursos (orais e/ou escritos), práticas e/ou representações. “Processos de
jurídicizaçâo” envolvem a importância que cada sociedade atribui ao direito no
conjunto da regulação social, qualificando (ou desqualificando), como jurídicas,
regras e comportamentos já incluídos em outros sistemas de controle social, tais
como a moral e a religião.

3) A Antropologia Jurídica é uma disciplina indispensável aos operadores do


Direito? Por quê?
• Ela é importante para a formação e atuação dos operadores do direito porque
vivemos, no Ocidente, neste início de século XXI, o questionamento do papel do
Estado (talvez o maior “mito jurídico moderno”). Estamos revisando os
princípios da Revolução Francesa que, dentre inúmeras mudanças, instaurou a
negação do mundo sobrenatural e passou a opor indivíduos a grupos; leis a
pluralismo; direito positivo a direitos costumeiros. A Antropologia Jurídica
mostra que costumes, mais que leis positivas, animam as relações sociais. O ser
humano busca sentidos para a sua existência e isso se dá através das dimensões
do sensível e do invisível, as quais são contempladas, no campo cientifico,
primordial mente pela Antropologia, Filosofia e Psicologia Um Direito que
realmente privilegie a compreensão do ser humano precisa dialogar com essas
áreas.

4) Qual a relação dessa disciplina com a Sociologia Jurídica e a História do Direito?


• A Antropologia e a Sociologia Jurídicas tiveram origens e propósitos iniciais
semelhantes — compreender, no final do séc. XIX, as regras de funcionamento
de diversas sociedades humanas —, mas enquanto a primeira enfatiza sistemas
de valores e crenças em que estão inseridos diversos aspectos da vida social,
dentre eles o jurídico, a segunda enfatiza práticas institucionais.
• Quanto à Antropologia Jurídica e à História do Direito, ambas surgiram na
Inglaterra e Alemanha, por volta de 1860/ 1870, quando a moda era estudar o
Oriente. Predominou, inicialmente, uma ênfase histórico-evolucionista que
organizava os diversos sistemas jurídicos, segundo uma seqüência progressiva e
universal de formas consideradas simples para outras complexas. A
Antropologia Jurídica nasceu da ampliação do Direito Comparado, pois ambos
se interessavam por direitos diferentes dos praticados nos grandes centros
urbanos europeus, mas, enquanto a Antropologia logo posicionou-se a favor da
preservação da diversidade cultural, o Direito Comparado enfatizou a unificação
de sistemas jurídicos diversos.

5) Quais as tendências da Antropologia Jurídica atual?


• Basicamente cinco:
1. Estudar a seqüência dos conflitos, mais do que eles próprios, bem como as
razões pelas quais as normas são ou não aplicadas, mais do que elas próprias;
2. Considerar o indivíduo um ator do pluralismo jurídico, relacionado a vários
grupos sociais e a múltiplos sistemas agenciados por relações de colaboração,
coexistência, competição ou negação;
3. A produção da Antropologia Jurídica continua alicerçada em países ocidentais
industrializados de língua inglesa (estima-se que Estados Unidos e Canadá
agrupem mais da metade de todos os atuais antropólogos do Direito);
4. No dito ‘Terceiro Mundo*’ pouco se ensina Antropologia Jurídica por razões de
ordem ideológica, pois a maioria dos Estados adota concepções unitárias de
direito legadas por ex-colonizadores No Brasil há poucos profissionais e
inexiste uma associação que os agrupe;
5. Um dos mais agitados debates refere-se à universalidade dos direitos humanos e
a seus possíveis limites.

6) Qual a diferença do controle social ocidental através do Direito e do controle


social produzido em outras sociedades?
• Para a Antropologia Jurídica atual, todas as sociedades conhecem o Direito. As
tTadidonais relalivizam seu papel, enquanto as ocidentais modernas o enfatizam
O Direito pode existir sem o Estado e este sem o Direito Quem os associou foi a
experiência ocidental pós-1789. Numerosas sociedades não têm as palavras
direito e jurídico em seu vocabulário porque tais esferas estão mescladas a
outros modos de regulação da vida social como a moral, a magia e a religião. A
maioria das sociedades tradicionais concebe-se como uma reunião de grupos
familiares, residenciais, religiosos, de idade e tal unidade não implica
uniformidade. Como as relações entre esses grupos tendem mais à
complementaridade que à oposição, o Direito (geralmente secreto e oral) bem
como as sanções não são uniformes e contemplam particularidades.

7) O que estudos de antropólogos do direito concluem sobre nosso atual sistema


penal?

• Eles refutam a postura evolucionista segundo a qual a vingança é uma reação


“selvagem e arcaica” a uma infração, pondo em risco a ordem social, ao passo
que a “pena civilizada” é uma reação do corpo social — em geral representado
por uma autoridade estatal — benéfica para o conjunto. Esses estudos
demonstram que os sistemas penais modernos ocidentais, dentre eles o
brasileiro, englobam “vinganças pessoais ou coletivas”, sendo fortemente
marcados por relações de poder e por discriminações étnicas, etárias, de gênero
etc. O Direito das sociedades ocidentais modernas e, conseqüentemente, seus
sistemas penais são apontados como excessivos, inflacionários e pouco eficazes
porque se distanciaram da moral e são menos interiorizados. FicçÕes —
“ninguém pode alegar o desconhecimento da lei” ou “a coisa julgada é uma
verdade” — ocultam preconceitos, privilégios e vários conflitos sociais que
estão na própria origem e manutenção das penas e sistemas penais

8) Que paralelos articulam maneiras de pensar o universo religioso e jurídico? E


qual deles .a sociedade moderna ocidental institucionalizou?
• Segundo Norbert Rouland, tais paralelos podem ser reduzidos a três grandes
arquétipos:
• identificação: caracteriza os direitos do Extremo Oriente. Não se pensa o bem
sem o mal, o espírito sem a matéria, o racional sem o sensível, o yin sem o yang.
Não há imposição de leis externas. Ainda hoje, a maior parte dos conflitos na
China é regrada pela conciliação ou arbitragem, nâo havendo mais que 5.000
advogados para uma população de mais de 1 bilhão de chineses.
• diferenciação, comum no Egito antigo e entre certos grupos tribais (Ex: Dogon
na África). A criação é entendida como ura processo contínuo de diferenciação,
assim como a estrutura social, mas os homens não se reduzem a indivíduos (pois
sua existência é fugaz) e sim a grupos complementares (de existência mais
perene). Legislações uniformizantes são tidas como destrui doras de uma unidade
que depende da diferença e da complementaridade (união dos contrários).
• submissão: para as religiões dos “Livros” (islamismo, judaísmo e cristianismo)
Deus pré-existe a suas criações e as rege do exterior. Os homens são, portanto,
submissos a poderes e leis exteriores. No Ocidente, o Estado se equiparou a esse
Deus que cria, transforma e melhora a sociedade através do Direito.
• As sociedades modernas ocidentais institucionalizaram o arquétipo da
submissão, mas, em seu interior, funcionam outras lógicas

9) Quais traços comuns existem entre as ditas sociedades “tradicionais” ou


“primitivas” e as ocidentais modernas, no que se refere ao direito?
• O pensamento mítico as aproxima, pois os mitos (escritos, orais, plásticos) são
interpretações da realidade. O Estado nos países ocidentais é um mito jurídico
moderno, nascido juntamente com os mitos do indivíduo e da lei como
expressão da vontade popular
• Também as aproxima o caráter inacabado do Direito, pois ele depende
largamente de ações subjetivas de profissionais da justiça e de seus
administradores.
• Outro traço comum é a dificuldade de poderes inovadores se institucionalizarem,
pois é mais fácil mudar as leis do que a jurisprudência ou práticas
administrativas (Ex: implantação do ECA - Estatuto da criança e do
Adolescente).
• O direito oficial é geralmente evitado. Vários grupos (famílias, associações,
partidos politicos, sindicatos, igrejas, ordens profissionais) criam suas próprias
regulações e sanções (avisos, desaprovações, autocríticas, ostracismo, exclusão),
recorrendo, só em casos extremos, aos tribunais estatais

10) Qual o mercado de trabalho atual para o Antropólogo do Direito? .


• No campo acadêmico, temas relacionados a direitos humanos, direitos de
“minorias”, administração da justiça e sistema de justiça criminal vêm
estimulando cada vez mais pesquisadores. Também se discute a inclusão da
disciplina Antropologia Jurídica na grade curricular de cursos de graduação em
Direito. No campo da elaboração e gestão de políticas públicas de segurança e
justiça já há antropólogos atuando e têm ocorrido concursos públicos para que
esses profissionais componham quadros nos quais atuem junto com promotores
públicos, secretários de segurança etc. Enfim, uma sensibilidade maior para com
problemas culturais vêm criando uma demanda crescente por antropólogos do
direito.

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