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HISTÓRIA DA ÁFRICA

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Meu nome é César Agenor Fernandes da Silva. Sou bacharel


e licenciado em História pela Universidade Estadual Paulista
(Unesp/campus Franca), com ênfase na área de História e
Cultura. Fiz Mestrado e Doutorado na mesma Universidade
e, tanto na dissertação quanto na tese, pesquisei os
desdobramentos do Iluminismo no Brasil na primeira metade
do século 19 e a veiculação, por meio da imprensa periódica
(jornais e revistas), do conhecimento técnico-científico e sua
articulação com o projeto civilizatório da elite letrada do
País. Nas instituições de ensino em que lecionei, entre elas
a Unesp/campus de Araraquara, trabalhei em diversas áreas das humanidades como
História, Sociologia, Antropologia e Filosofia, além ter tido experiência com Educação
Básica. Minha Tese de Doutorado, Ciência, Técnica, periodismo e civilização no Rio de
Janeiro (1808-1852), pode ser consultada no site da Unesp.
E-mail: cesar_agenor@yahoo.com.br

Meu nome é Tiago Tadeu Contiero. Sou bacharel e licenciado


em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/
campus Franca), mestre em Ciências da Religião pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Atuo na Educação
a Distância desde 2008 ministrando disciplinas nos cursos
de História e de Teologia. Sou, também, professor das
Faculdades Integradas Claretianas, ministrando a disciplina
de Antropologia Teológica.
E-mail: titcontiero@gmail.com
César Agenor Fernandes da Silva

Tiago Tadeu Contiero

HISTÓRIA DA ÁFRICA

Batatais
Claretiano
2017
© Ação Educacional Claretiana, 2015 – Batatais (SP)
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

960 S579h 
 
        Silva, César Agenor Fernandes da 
      História da África / César Agenor Fernandes da Silva, Tiago Tadeu Contiero – Batatais,  
 SP : Claretiano, 2017.  
               282 p.   
 
                ISBN: 978‐85‐8377‐538‐6 

       1. Religiosidade. 2. Colonização. 3. Imperialismo. 4. Cultura brasileira. 5. Africanidade. 
       I. Contiero, Tiago Tadeu. II. História da África. 
 
        
              
 
 
                                                                                                                                                       CDD 960 

INFORMAÇÕES GERAIS
Cursos: Graduação
Título: História da Afríca
Versão: dez./2017
Formato: 15x21 cm
Páginas: 282 páginas
SUMÁRIO

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


1. INTRODUÇÃO.................................................................................................... 9
2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO ..................................................................... 12
3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 33
4. E-REFERÊNCIA................................................................................................... 33

Unidade 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA


1. OBJETIVOS........................................................................................................ 35
2. CONTEÚDOS..................................................................................................... 35
3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE............................................... 35
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE.............................................................................. 37
5. CONTINENTE AFRICANO: DE NORTE A SUL, DE LESTE A OESTE................... 37
6. BERÇO DO HOMEM: A ÁFRICA E A ORIGEM DA ESPÉCIE.............................. 61
7. TEXTO COMPLEMENTAR.................................................................................. 72
8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS........................................................................ 78
9. CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 79
10. E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 80
11. R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 82

Unidade 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL


1. OBJETIVOS........................................................................................................ 85
2. CONTEÚDOS..................................................................................................... 85
3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE............................................... 86
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE............................................................................... 87
5. ORIGEM DO NOME “ÁFRICA”.......................................................................... 89
6. POVOS DA ÁFRICA PRÉ-COLONIAL.................................................................. 92
7. ASPECTOS CULTURAIS PRÉ-COLONIAIS.......................................................... 108
8. GRANDES CIVILIZAÇÕES AFRICANAS DA ANTIGUIDADE.............................. 114
9. ÁFRICA NO BRASIL: POVOS AFRICANOS NA FORMAÇÃO DA CULTURA
BRASILEIRA....................................................................................................... 117
10. T EXTO COMPLEMENTAR.................................................................................. 134
11. Q UESTÕES AUTOAVALIATIVAS........................................................................ 137
12. C ONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 139
13. E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 140
14. R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 141

Unidade 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS


VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES
1. OBJETIVOS........................................................................................................ 145
2. CONTEÚDOS..................................................................................................... 145
3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE............................................... 146
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE............................................................................... 146
5. ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA.................................................................................. 148
6. A CIÊNCIA “DESCOBRE” A ÁFRICA.................................................................. 169
7. TEXTO COMPLEMENTAR.................................................................................. 181
8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS........................................................................ 185
9. CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 186
10. E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 187
11. R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 188

Unidade 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/


INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20
1. OBJETIVOS........................................................................................................ 191
2. CONTEÚDOS..................................................................................................... 191
3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE............................................... 192
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE............................................................................... 194
5. DIVISÃO DA ÁFRICA PELOS IMPÉRIOS DA EUROPA....................................... 195
6. DESCOLONIZAÇÕES/INDEPENDÊNCIAS AFRICANAS:
UMA HISTÓRIA DE LUTA E VIOLÊNCIA........................................................... 222
7. TEXTOS COMPLEMENTARES............................................................................ 235
8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS........................................................................ 240
9. CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 241
10. E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 243
11. R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 244
Unidade 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E
PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS
1. OBJETIVOS........................................................................................................ 247
2. CONTEÚDOS..................................................................................................... 247
3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE............................................... 248
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE............................................................................... 250
5. APARTHEID: DA SEGREGAÇÃO SOCIAL A NELSON MANDELA...................... 251
6. IMPACTOS DA AIDS NO CONTINENTE AFRICANO......................................... 259
7. TEXTOS COMPLEMENTARES............................................................................ 269
8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS........................................................................ 277
9. CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 278
10. E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 280
11. R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 280
CADERNO DE REFERÊNCIA DE
CONTEÚDO
Conteúdos–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Apresentação dos principais temas e discussões historiográficas sobre a His-
tória da África durante a época moderna e contemporânea. Abordagem das
discussões sobre o impacto da colonização europeia e a escravidão moderna
na África. A pluralidade étnica e religiosa africana, a constituição dos Estados
Nacionais no século 20 e suas implicações.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO
Seja bem-vindo à obra História da África. Nela, estudare-
mos a fundo a “diversidade”, uma vez que a história do continen-
te africano é muito rica e variada, assim como também o são os
povos que habitam o continente desde tempos imemoriais.
Nosso caminho está cheio de idas e vindas no tempo. Par-
tiremos das divisões políticas regionais da África atual para co-
nhecermos a situação do continente e, sobretudo, para termos
a exata noção de que a construção, a demarcação e a territoriali-
zação deste mapa é relativamente recente.
Desse modo, afirmamos que angolanos, congoleses, ruan-
deses, sul-africanos, argelinos, marroquinos, entre tantas outras
nacionalidades africanas são, antes de tudo, estabelecimentos
históricos. Não são naturais nem sempre foram assim.
Depois disso, mergulharemos no poço profundo do passa-
do pré-histórico do continente, a fim de conhecermos as teorias

9
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

científicas sobre a origem da espécie humana, especialmente


a teoria da evolução que muito provavelmente teve início na
África.
Ressalta-se que a teoria da evolução, surgida no século 19,
bem como as outras teorias científicas sobre a origem da nossa
espécie, formuladas no século anterior, terão influências signifi-
cativas nos destinos do continente africano.
Antes de discutirmos isso, é importante saber que a pró-
xima etapa do estudo terá como focos dois pontos importantes:
o primeiro deles refere-se aos povos que habitavam o continen-
te africano antes do período das colonizações. Serão analisadas
suas culturas e, especialmente, suas línguas, uma vez que ex-
pressam de maneira singular as diversas visões de mundo dos
africanos.
Já o segundo ponto remete-se à influência de membros
desses povos na formação da cultura brasileira. Eles foram tra-
zidos à força ao Brasil e, a despeito disso, contribuíram de ma-
neira única como agentes ativos e participantes da construção
da cultura e sociabilidade brasileira. Ainda sobre essa temática,
você terá a oportunidade de conhecer e aprofundar seus estu-
dos sobre os debates travados em torno da condição histórica de
negros e mulatos na sociedade brasileira.
Aprofundaremos os estudos em torno das práticas da es-
cravidão, tendo em vista que milhões de negros foram trazidos
à América portuguesa, e perceberemos que a prática de submis-
são de um homem como trabalhador forçado de outro homem
era muito antiga no continente africano. Ou seja, o tráfico inter-
no de escravos na África é anterior à expansão marítima euro-
peia em direção ao Oriente e às Américas.

10 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

Entretanto, a relação entre europeus e africanos, que co-


meça a se intensificar desde fins do século 14, criou uma dinâmi-
ca própria da escravidão e das trocas comerciais entre os povos
da Europa e da África.
Esse maior contato comercial e cultural gerou encontros
e desencontros. A África era vista por europeus como um lugar
da inferioridade e, durante alguns séculos, essa superioridade
europeia foi alicerçada no discurso religioso. Mas, a partir do sé-
culo 18, as diferenças e a superioridade caucasiana passaram a
ser justificadas pelo conhecimento científico que, concomitante-
mente, se formava.
As ciências descobriram a África ao mesmo tempo que sur-
giu a necessidade de ampliação de mercados consumidores e de
fornecedores de matérias-primas, consequência decorrente do
processo de industrialização que ocorria na Europa e nos Estados
Unidos no século 19.
Necessidades econômicas, superioridades cultural, reli-
giosa, racial e científica foram os elementos que compuseram a
justificativa para as colonizações do continente africano por po-
tências europeias em fins do século 19.
França, Inglaterra, Bélgica, Alemanha, Itália, Portugal e
Espanha encabeçaram o processo que ficou conhecido como a
partilha da África. Esse movimento histórico, marcado por mui-
tos elementos constituintes, tem reflexos até hoje no continen-
te africano: desde as divisões políticas atuais até as dificuldades
econômicas, educacionais e de saúde pública (como os números
alarmantes de casos de AIDS, por exemplo) enfrentadas pelos
africanos de várias regiões do continente em seu cotidiano.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 11
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

Como podemos perceber, uma gama variada de assuntos


será abordada ao longo da obra História da África. Acreditamos
que sua visão sobre a África não será mais a mesma depois do
estudo do passado deste continente tão diversificado em termos
culturais e étnicos.
Para isso, é importante interagir, publicar seus trabalhos
e exercícios no Portfólio, participar do Fórum, consultar sites e
bibliografia indicados e, sobretudo, dedicar-se com afinco aos
estudos.
Bons estudos!

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO

Abordagem Geral
Prof. Ms. César Agenor Fernandes da Silva

Neste tópico, apresenta-se uma visão geral do que será


estudado nesta obra. Aqui, você entrará em contato com os as-
suntos principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a
oportunidade de aprofundar essas questões no estudo de cada
unidade. Desse modo, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe
o conhecimento básico necessário a partir do qual você possa
construir um referencial teórico com base sólida – científica e
cultural – para que, no futuro exercício de sua profissão, você
a exerça com competência cognitiva, ética e responsabilidade
social. Vamos começar nossa aventura pela apresentação das
ideias e dos princípios básicos que fundamentam este estudo.

12 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

Sawu bona! Entre as tribos que vivem atualmente na África


do Sul, essa expressão quer dizer “te vejo”, um equivalente ao
nosso “olá!” Se você pertencesse a uma dessas tribos, responde-
ria sikhona, que quer dizer “estou aqui”.
Para as tribos sul-africanas, você só existiria enquanto
pessoa na relação com as outras pessoas de sua comunidade. É
importante ver e ser visto, ou seja, uma pessoa somente é consi-
derada uma pessoa quando ela se relaciona com as outras. Nin-
guém se faz sozinho.
Talvez você tenha sentido certo interesse por essa forma
de encarar o mundo e as pessoas à sua volta, não é mesmo?
Quando se fala em África, quais são as primeiras imagens
que vêm à sua cabeça? Reflita por alguns momentos, pense na
pergunta em questão.
Provavelmente, sua primeira imagem contém guepardos,
elefantes, rinocerontes, leões, girafas, babuínos, grandes sava-
nas, o deserto do Saara e tribos “selvagens”. Minha segunda
aposta é que você pode ter pensado em um cenário muito triste,
que envolve miséria, fome, subnutrição e violência.
Essas são imagens que normalmente estão associadas à
visão que temos da África. Elas são imagens comuns que foram
construídas ao longo do tempo pela imprensa e ciência, pelo ci-
nema, por novelas e outras mídias, nas quais são ressaltadas, na
maioria das vezes, o “exotismo africano e suas mazelas”.
Essa construção imagética faz parte do que chamamos de
senso comum.
O senso comum é a impressão gerada pela sociedade so-
bre determinado tema. Às vezes, o senso comum acerta em al-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 13
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

gum ponto; outras vezes, porém, passa longe da reflexão sobre a


origem ou a história de seu objeto de apreciação.
O que se opõe ao senso comum é o pensamento sistema-
tizado, ou seja, o pensamento científico ou os estudos aliados às
pesquisas. Vale a pena mencionar que o chamado senso comum
não pode ser tomado como algo ruim, mas, sim, como forma de
expressão de uma cultura e, por isso, deve ser tanto respeitado
quanto estudado.
No entanto, enquanto historiadores, não podemos nos
guiar pelo senso comum ao nos debruçarmos sobre o continente
africano.
Embora todas essas imagens que temos em nossas mentes
sobre a África não sejam irreais — a fauna e flora exuberantes, o
atual estado de miséria e violência —, não podemos achar que a
África se resume a isso. Uma história muito rica e instigante foi e
é vivida no continente. É a essa história, por vezes escrita às cus-
tas de muito sangue e sofrimento, que nos dedicaremos agora.
O estudo de História da África em nosso país está dando
seus primeiros passos. Trabalhos acadêmicos mais substanciais
estão sendo feitos de maneira mais sistemática e em maior esca-
la nos últimos anos. Para conhecê-los, você pode navegar nos si-
tes de diversas universidades brasileiras e procurar por disserta-
ções de Mestrado e teses de Doutorado — disponíveis de forma
gratuita para consulta. Com isso, você conhecerá os trabalhos
mais recentes da historiografia brasileira sobre o tema e verifi-
cará que existem mais detalhes sobre a história da África do que
imaginamos.

14 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

O conhecimento que temos sobre a história do continente


africano desde a Antiguidade Clássica é construída de fora para
dentro. Ou seja, essa história foi escrita por europeus e árabes
em sua maioria, e não pelos africanos.
O próprio nome “África” foi dado por povos que não viviam
no continente, assim como o nome do nosso continente — Amé-
rica —, dado pelos europeus em homenagem ao navegador flo-
rentino Américo Vespúcio.
Segundo o historiador Joseph Ki-Zerbo (1922-2006), um
dos historiadores de maior renome da África e nascido em Bur-
kina Faso, a palavra “África” é uma derivação da palavra aprica,
vocábulo proveniente do latim e que significa “ensolarado”. A
palavra também tem o significado de “terra fértil”.
De acordo com o historiador, o continente foi batizado com
esse nome pelos romanos. A grafia “África”, por sua vez, conso-
lidou-se como nome do continente no primeiro século da era
cristã e, depois disso, nunca mais mudou.
A relação de parte do território africano com povos de
outras regiões é muito antiga. Os egípcios tiveram forte conta-
to com gregos, macedônios e romanos, e sua cultura (com suas
maravilhosas pirâmides, por exemplo) atraiu a atenção dos po-
vos antigos originários do continente europeu.
Essa atração, entretanto, não se restringiu apenas ao cam-
po das trocas comerciais e simbólicas, mas representou um do-
mínio sobre a civilização que se desenvolveu no Egito Antigo.
Primeiro foram os macedônios que, sob a liderança de Ale-
xandre, o Grande, conquistaram a terra dos faraós. Depois, foram
os romanos que estabeleceram seu domínio imperial no Egito.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 15
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

Com o fim do Império Romano, o norte do continente viu-


-se livre da dominação estrangeira, embora nesse momento os
egípcios antigos já não existissem mais. Essa situação perdurará
até os séculos 7º e 8º, quando os muçulmanos tomarão toda a
costa norte do continente.
No entanto, se analisarmos a dominação dos muçulmanos
sob a perspectiva cultural, podemos afirmar que esta perdura
até nossos dias, pois os países que compõem a região denomi-
nada África do Norte ou “África branca” — Argélia, Egito, Líbia,
Marrocos, Mauritânia, Saara Ocidental e Tunísia — têm como
sua principal forma religiosa o islamismo.
Nesse momento, talvez você esteja se perguntando: o que
é o islamismo?
A africanista brasileira Marina de Mello e Souza nos ajuda a
responder essa questão ao definir a religião da seguinte maneira:
Maomé, que viveu entre Meca e Medina de 570 a 630 d.C., foi
fundador do islã, que significa submissão a deus, único e oni-
potente. No mundo moderno, o judaísmo, o cristianismo e o
islamismo são as três principais religiões monoteístas, isto é,
que preconizam a existência de um único deus, criador de to-
das as coisas. Elas se guiam por textos sagrados, estabelecidos
em momentos diferentes: a Torá, a Bíblia e o Alcorão. O islã
foi rapidamente difundido pela pregação de Maomé e seus se-
guidores, e, no século VIII, estava presente desde a Pérsia até
a península Ibérica, passando por toda a Arábia, pelo Império
Turco e pelo norte da África.
A religião vinha acompanhada de maneiras de viver e de go-
vernar próprias do mundo árabe, chamadas de mulçumanas.
Segundo a religião islâmica, povos variados podem ser agrega-
dos em torno de uma comunidade de idéias e crenças capaz
de produzir uma unidade, chamada umma. Os cinco principais
deveres de todo adepto do islã são: a profissão de fé, isto é, a
declaração da crença em um só Deus e em Maomé como seu

16 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

profeta; a oração cinco vezes ao dia; o pagamento do imposto


religioso; o jejum no mês do Ramadã; e a peregrinação a Meca
pelo menos uma vez na vida (MELLO E SOUZA, 2007, p. 14).

Não foi apenas de dominação cultural e política estrangeira


que o continente africano viveu ao longo de sua história. Ao sul
do deserto do Saara, a chamada África Subsaariana ou “África
Negra” vivenciou uma série de expansões e formações culturais
próprias. Um dos povos que mais se destacou nesse processo
foram os Bantos.
Estima-se que o povo Banto teve origem nas florestas tro-
picais localizadas na atual região composta por Nigéria e Cama-
rões e que sua expansão ocorreu do Ocidente para o centro em
um primeiro momento e, posteriormente, do Oriente em dire-
ção ao sul da África. Essa expansão teve início em fins do século
7º e encontrou seu auge do século 8º ao 10º.
Diferentemente do período romano e da dominação mul-
çumana no norte do continente, os bantos não formaram um
grande reino ou um império. Pelo contrário, com características
nômades, os bantos espalharam-se pela África.
Nesse processo de longa duração, a cultura dos primeiros
bantos misturou-se a de outros povos e acabou por dar origem a
novos povos e, especialmente, a novas línguas que derivaram da
matriz linguística níger-kordofaniano, da qual a língua dos ban-
tos fazia parte.
Para você entender melhor esse movimento histórico, é
importante esclarecer o que é uma matriz linguística. Para isso,
farei uma breve comparação.
A nossa língua portuguesa tem como matriz linguística o
latim (falado e escrito pelos romanos na Antiguidade), assim

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 17
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

como a espanhola, a francesa e a italiana, por exemplo. Ou seja,


todas essas línguas derivaram, ao longo do tempo, de uma língua
mais antiga e comum.
No caso do níger-kordofiano, as línguas que pertencem a
essa matriz são o níger-congo e a subdivisão banto. A língua dos
bantos, por sua vez, deu origem a mais de 1.000 dialetos, dos
quais muitos são falados até hoje.
Mas o que significa a existência de tantos idiomas falados
na África?
Em primeiro lugar, é bom sabermos que uma língua não
representa apenas uma forma de comunicação entre as pessoas.
Elas carregam uma história e, sobretudo, expressam o modo que
uma sociedade e uma cultura enxergam o mundo à sua volta.
Os bantos viviam da agricultura, pesca e caça. Em muitas
ocasiões, utilizavam armas em sua expansão, pois exploravam a
região colonizada até o esgotamento dos recursos. Com o passar
do tempo e aumento da população, dividiam-se e iniciavam no-
vamente o processo de expansão territorial.
Segundo o embaixador e historiador Alberto da Costa e Sil-
va, esse processo explica a variação e pluralidade que os bantos
adquiriram, pois “ao mudar de paisagem e ao entrar em contato
com culturas diferentes”, alteravam a alimentação, modificavam
seus hábitos e transformavam a sua maneira de nomear e des-
crever as coisas. Ou seja, sua língua sofria influências e, nesse
processo, novas palavras foram criadas com significados mais
amplos e diversificados.
A questão linguística é uma das mais analisadas por histo-
riadores e estudiosos das línguas e da cultura para compreender
a diversidade cultural existente no continente até os nossos dias.

18 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

Em trabalho apresentado no XXV Simpósio Nacional de


História, realizado na cidade de Fortaleza no ano de 2009, o mes-
trando em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
funcionário do Arquivo Nacional, Diego Barbosa da Silva, traçou
um panorama interessante sobre as línguas oficiais faladas atual-
mente no continente. Segundo Diego:
A questão linguística na África é consequência do processo de
colonização que introduziu e impôs no continente também uma
colonização linguística a partir do inglês, francês, português e
espanhol. Esses quatro idiomas de origem europeia promove-
ram profundas transformações linguísticas em uma África com
cerca de 2092 línguas autóctones tanto quanto as nações euro-
peias modificaram toda estrutura política, social e econômica
da África, sobretudo após a Conferência de Berlim (1884-1885).

Atualmente, segundo o pesquisador:


A quantidade [de idiomas falados na África] corresponde a cer-
ca de 30% de todas as línguas do mundo. A Europa tem cerca
de 239 línguas ou 3,5%. As línguas mais faladas na África são
o árabe (175 milhões), o suaíle (10 milhões como materna e
80 milhões como segunda língua), amárico (42 milhões), hausa
(25 milhões + 15 milhões como segunda língua), oromo (35 mi-
lhões), ibo e yorubá (cerca de 25 milhões cada) (BARBOSA DA
SILVA, 2009).

Como você deve ter percebido, houve uma nova invasão e


dominação do continente africano na era cristã.
Essa invasão, que na verdade se processou como uma co-
lonização, aconteceu no século 19 como um todo, mas encon-
trou seu momento auge entre os anos de 1880 e 1914, perío-
do denominado como Imperialismo ou Neocolonialismo pela
historiografia.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 19
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

As colonizações realizadas no continente africano ocorre-


ram no período denominado Idade Contemporânea, ou História
Contemporânea. Nesse momento, as potências europeias reali-
zaram a famosa partilha da África.
Vamos relembrar alguns tópicos centrais desse processo
histórico.
A Europa no século 19 foi palco de algumas mudanças
importantes, tanto culturais quanto econômicas. No campo da
economia, países como França, Bélgica, Alemanha e Itália desen-
volveram suas indústrias, assim como a Inglaterra o fizera desde
o século 18 com a sua Revolução Industrial. No ponto de vista
cultural, além de toda uma nova forma de sociabilidade que se
desenvolveu dentro das culturas europeias, o discurso científico
moderno floresceu e assumiu a posição de criador e legitimador
da verdade. Em outras palavras, tudo o que a ciência afirmava ou
provava era tido como verdadeiro.
Essa Europa industrializada e defensora do pensamento
científico, que afirmava a superioridade dos brancos em relação
aos demais povos do planeta, voltou suas atenções para a África.
Os europeus tinham o objetivo de encontrar novos merca-
dos e matérias-primas para a nova economia e levar a civilização
avançada aos povos atrasados.
Nesse momento, os africanos eram vistos pelos europeus
como um dos povos mais atrasados e “selvagens” do planeta.
Sendo assim, a ideia de que caberia aos europeus levar as benes-
ses do progresso para o continente justificou que países como
Inglaterra, França, Portugal, Espanha, Bélgica, Alemanha e Itália
dividissem o continente entre eles.

20 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

O discurso científico que colocava o negro como incivili-


zado e inferior, o processo de partilha do continente e os povos
que se desenvolveram na África antes das colonizações do século
19 serão estudados por você com maior detalhe e aprofunda-
mento ao longo da obra.
Por meio de nosso estudo, identificaremos as origens, os
problemas e as imagens que formamos em torno do continente
africano em nossos dias.
Quando você pensa no passado da África e a relação desse
continente com o nosso País, qual a primeira coisa que vem à sua
cabeça? Seria o tráfico negreiro ou escravidão?
Podemos dizer que a maioria dos habitantes negros do
Brasil é descendente de escravos. Durante aproximadamente
350 anos, mais de 5 milhões de africanos foram retirados da Áfri-
ca e trazidos para a América portuguesa como escravos.
Esses escravos foram a base da economia colonial e im-
perial de nosso País. Porém, não foram só os maus-tratos e as
condições sub-humanas que os negros escravos vivenciaram no
Brasil. Homens, mulheres e crianças de várias localidades da Áfri-
ca, arrancados e trazidos nos porões de navios negreiros para o
Brasil, contribuíram de maneira decisiva na formação da nossa
cultura ao se relacionarem com os colonizadores portugueses e
com os ameríndios.
Vale dizer que a problemática da escravidão possui muitas
implicações históricas. Ela remete a elementos culturais vividos
no continente desde o século 11 e que se aprofundaram quando
portugueses, ingleses, espanhóis, brasileiros e membros de ou-
tros povos ampliaram a escravidão e transformaram os africanos
em mercadoria e propriedade.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 21
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

A contribuição ímpar dos negros escravos na cultura que


hoje vivenciamos foi muito grande. Uma dessas contribuições,
comum e presente em nosso cotidiano, é a influência religiosa.
Proponho que você assista a dois vídeos sobre os estudos
africanos e afro-americanos produzidos pelo Projeto Abá: A es-
pada justa de Ogum e Omolu dança só, os quais explicam a ori-
gem e o papel dos orixás, os deuses do panteão de boa parte dos
povos africanos, em especial os iorubás.
O psicólogo e etnólogo Arthur Ramos (1979, s/p.), no co-
meço do século 20, sistematizou as tradições orais dos afrodes-
cendentes e descreveu minuciosamente o mito que conta a ori-
gem de um dos orixás mais conhecidos em nosso país, Iemanjá.
Com o casamento de Obatalá, o Céu, com Odudua, a Terra, que
se iniciam as peripécias dos deuses africanos. Dessa união nas-
ceram Aganju, a Terra, e Iemanjá, a Água. Como em outras anti-
gas mitologias, a terra e a água se unem. Iemanjá desposa o seu
irmão Aganju e tem um filho, Orungã.
Orungã [...] apaixona-se por sua mãe, que procura fugir de seus
ímpetos arrebatados. Mas Orungã não pode renunciar àque-
la paixão insopitável. Aproveita-se, certo dia, da ausência de
Aganju, o pai, e decide violentar Iemanjá. Essa foge e põe-se a
correr, perseguida por Orungã.
Ia esse quase alcançá-la quando Iemanjá cai no chão, de cos-
tas e morre. Imediatamente seu corpo começa a dilatar-se. Dos
enormes seios brotaram duas correntes de água que se reúnem
mais adiante até formar um grande lago. E do ventre desmesu-
rado, que se rompe, nascem os seguintes deuses: Dadá, deus
dos vegetais; Xango, deus do trovão; Ogum, deus do ferro e
da guerra; Olokum, deus do mar; Oloxá, deusa dos lagos; Oiá,
deusa do rio Níger; Oxum, deusa do rio Oxum; Obá, deusa do
rio Obá; Orixá Okô, deusa da agricultura; Oxóssi, deus dos ca-
çadores; Oké, deus dos montes; Ajê Xaluga, deus da riqueza;
Xapanã, deus da varíola; Orum, o Sol; Oxu, a Lua.

22 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

Arthur Ramos prossegue e descreve quais orixás permane-


ceram no país e os novos mitos criados em torno deles:
Os orixás que sobreviveram no Brasil foram: Obatalá (Oxalá),
Iemanjá (por extensão, outras deusas-mães) e Xango [...].
Com Iemanjá, vieram mais dois orixás yorubanos, Oxum e
Anamburucu (Nanamburucu). Em nosso país houve uma forte
confluência mítica: com as Deusas-Mães, sereias do paganismo
[...] europeu, as Nossas Senhoras católicas, as iaras ameríndias.
A Lenda tem um simbolismo muito significativo, contando-nos
que da reunião de Obatalá e Odudua (fundaram o Aiê, o “mun-
do em forma”), surgiu uma poderosa energia, ligada desde o
princípio ao elemento líquido. Esse Poder ficou conhecido pelo
nome de Iemanjá.
Durante os milhões de anos que se seguiram, antigas e novas
divindades foram unindo-se à famosa Orixá das águas, como
foi o caso de Omolu, que era filho de Nanã, mas foi criado por
Iemanjá.
Antes disso, Iemanjá dedicava-se à criação de peixes e orna-
mentos aquáticos, vivendo em um rio que levava seu nome e
banhava as terras da nação de Egbá.
Quando convocada pelos soberanos, Iemanjá foi até o rio Ogun
e de lá partiu para o centro de Aiê para receber seu emble-
ma de autoridade: o abebé (leque prateado em forma de peixe
com o cabo a partir da cauda), uma insígnia real que lhe confe-
riu amplo poder de atuar sobre todos os rios, mares, e oceanos
e também dos leitos onde as massas de águas se assentam e se
acomodam.
Obatalá e Odudua, seus pais, estavam presentes no cerimonial
e orgulhosos pela força e vigor da filha, ofereceram para a nova
Majestade das Águas uma jóia de significativo valor: a Lua, um
corpo celeste de existência solitária que buscava companhia.
Agradecida aos pais, Iemanjá nunca mais retirou de seu dedo
mínimo o mágico e resplandecente adorno de quatro faces. A
Lua, por sua vez, adorou a companhia real, mas continuou seu

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 23
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

caminho, ora crescente, ora minguante..., mas sempre cheia de


amor para ofertar.
A bondosa mãe Iemanjá adorava dar presentes e ofereceu para
Oiá o rio Níger com sua embocadura de nove vertentes; para
Oxum, dona das minas de ouro, deu o rio Oxum; para Ogum o
direito de fazer encantamentos em todas as praias, rios e lagos,
apelidando-o de Ogum-Beira-mar, Ogum-Sete-ondas, entre ou-
tros (RAMOS, 1979).

A influência dos africanos e seus descendentes na forma-


ção da cultura brasileira não se restringiu apenas às questões
religiosas. Nossa música tem muita influência das sonoridades
trazidas pelos escravos da África. Veja, por exemplo, o samba, o
gosto pela oralidade, a ginga e uma série de vocábulos que foram
incorporados e adaptados à vida e língua dos homens e mulhe-
res que fazem parte de nosso passado direto.
Veja algumas palavras que usamos cotidianamente que
têm sua origem diretamente ligada à cultura afro-brasileira:
Abóbora, angu, bagunça, balangandã, banguela, batucada,
berimbau, biboca, borocoxô, brucutu, bunda, cabaça, cabala,
caçamba, cachaça, caçula, cafua, cafuné, cafundó, cafungar,
cafuzo, calombo, cambada, camburão, camundongo, canga,
cangaço, canjica, cantiga, capanga, capenga, capote, carimbo,
catinga, caxinguelê, cochilo, cotoco, curinga, dendê, dengo,
dengosa, desbundar, embalo, encabulado, encafifado, enxerido,
esmolambado, forró, fubá, fuçar, fungar, futrica, fuxico, fuzarca,
fuzuê, galalau, gangorra, garapa, ginga, Iaiá, inhaca, jacabulê,
jagunço, jegue, jiló, jurema, lambada, lelé, lengalenga, lundu,
macaco, maconha, macumba, mafuá, mambembe, mandinga,
mandraque, mangar, meganha, miçanga, milonga, minhoca,
mocambo, mocotó, molambo, muleque, mondrongo, monjolo,
moqueca, moringa, muamba, murundu, muvuca, muxibento,
muxoxo, orixá, perrengue, quengo, quiabo, quibebe, quilombo,
quindim, quitanda, quitute, quizomba, sacana, samba, senzala,
songamonga, sunga, tanga, tipóia, tiritar, tribufu, urucubaca,
vatapá, xavado, xingar, xodó, zabumba, zangar, zonzo, zumbi
(MELLO E SOUZA, 2007, p. 129).

24 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

Você percebeu que utilizamos muitas dessas palavras em


nosso dia a dia naturalmente. Quem nunca disse que estava
passando por um perrengue ou nunca ouviu um forró? Quem
nunca comprou, em algum momento da vida, uma garrafa de
cachaça para dar de presente ou para preparar a brasileiríssima
caipirinha?
Desse modo, estudar a História da África é fundamental
para compreendermos muito do que nós somos hoje e também
para promovermos debates essenciais sobre o lugar que negros
e mulatos ocupam em nossa sociedade. Esperamos que você
desperte a vontade de conhecer a história tão rica da África.

Glossário de Conceitos
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá-
pida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um
bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área
de conhecimento dos temas tratados na obra História da África.
Veja, a seguir, a definição dos principais conceitos:
1) África Subsaariana ou África Negra: a região localizada
geograficamente ao sul do deserto do Saara (por isso
Subsaariana), cuja população é majoritariamente com-
posta por negros (daí África Negra).
2) Branqueamento: ideia defendida por intelectuais e
políticos brasileiros do final do século 19 e início do
século 20, com bases em preceitos científicos, para
transformar paulatinamente a população brasileira em
um povo de homens caucasianos a partir da imigração
de europeus e da predominância das características da
raça superior que se expressariam na miscigenação.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 25
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

3) Etnia: tal conceito deriva do grego ethnos, cujo signifi-


cado é “povo”. A etnia representa a consciência de um
grupo de pessoas que se diferencia dos outros. Essa
diferenciação ocorre em função de aspectos culturais,
históricos, linguísticos, raciais, artísticos e religiosos
(SUA PESQUISA, 2012).
4) Glotocronologia: de acordo com o Dicionário Aurélio
(2009), significa: “[De glot(o)- + cronologia.] método
que procura relacionar, por meio de técnicas estatís-
ticas, a percentagem de cognatos presentes em duas
línguas com o tempo em que ambas se originaram de
uma única fonte. [Assim, se duas línguas têm atual-
mente em comum 80% de cognatos, ambas devem ter
começado a divergir cerca de 7,4 séculos atrás, i. e.,
por volta do séc. XIII.]”.
5) História Natural: ramo do conhecimento que estuda a
história da natureza, flora e fauna, dos seres extintos e
de tudo mais que se relacione ao passado do planeta
Terra. A História Natural surgiu no século 18 e desen-
volveu-se até nossos dias, tornando-se uma área de
conhecimento multidisciplinar, com pesquisadores de
várias áreas como a Biologia (Botânica e Zoologia), Pa-
leontologia, Ecologia, Geologia, Física, Meteorologia,
entre outros.
6) Imbricação: mistura de culturas entre etnias ao longo
do tempo.
7) Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): Trata-se de
uma escala numérica que vai de 0,0 a 1,0 e mede a
qualidade de vida da população de um país levando
em conta quesitos como: saneamento básico, mora-
dia, educação, saúde pública etc.; quanto mais próxi-

26 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

mo do 1,0, maior o desenvolvimento humano do país.


Como estudaremos, muitos países do continente afri-
cano apresentam índices mais próximos do 0,0 do que
do 1,0 (IBGE; ONU; 2007, 2009).
8) Magreb: a região norte da África era conhecida por
esse nome, palavra de origem árabe e que significa
“poente” ou “ocidente” (por estar localizada na parte
ocidental do chamado mundo islâmico). O oriente do
mundo islâmico, ou ‘nascente’, começa na Península
Arábica e termina no Egito.
9) Opep: “A Opep (Organização dos Países Exportadores
de Petróleo) é uma organização internacional formada
por países que são grandes produtores de petróleo”
(SUA PESQUISA, 2012).

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais
importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um
Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você
mesmo faça o seu Esquema de Conceitos-chave ou até mesmo o
seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir
o seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de
suas próprias percepções.
É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações
entre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos
mais complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar
você na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteú-
dos de ensino.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 27
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

Com base na teoria de aprendizagem significativa, enten-


de-se que, por meio da organização das ideias e dos princípios
em esquemas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o
seu conhecimento de maneira mais produtiva e obter, assim,
ganhos pedagógicos significativos no seu processo de ensino e
aprendizagem.
Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem
escolar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pes-
quisas em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se,
ainda, na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel,
que estabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de
novos conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do alu-
no. Assim, novas ideias e informações são aprendidas, uma vez
que existem pontos de ancoragem.
Tem-se de destacar que “aprendizagem” não significa, ape-
nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-
so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configu-
re como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante
considerar as entradas de conhecimento e organizar bem os ma-
teriais de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos
conceitos devem ser potencialmente significativos para o aluno,
uma vez que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes es-
truturas cognitivas, outros serão também relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é
você o principal agente da construção do próprio conhecimen-
to, por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações
internas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por
objetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando
o seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou
seja, estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou

28 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

de conhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de


mundo (adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.
br/edutools/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>.
Acesso em: 11 mar. 2010).
África  Expansão Árabe 
 
Capitalismo 
Mercantilista (sec. 15 
Expansão 
Marítima  ao17) /Capitalismo 
Escravidão Tráfico de  Industrial (sec. 18‐...) 
Europeia 
Escravos

Iorubas  Experiências  Revolução 


Cangoleses  Colonização  Atlânticas/Col Industrial 
Bantos  da América  onização das 
Nagos  Portuguesa Américas 
Angolas  Iluminismo 

Religiosidade,  Sociedade Colonial  Neocolonialismo Cientificismo


Linguagens e  – Casa‐Grande &  /Imperialismo 
Cultura  senzala VS Ordem 
social competitiva 
Superioridade da 
raça caucasiana 
Partilha 
Cultura da  da África 
Violência 

Formação dos Estados 
africanos 
Falência do 
Resistências e  contemporâneos 
Discurso 
Revoltas 
Colonialista  Racismo 
Miséria/Falta de  Científico 
infraestrutura/Subdesenvol‐
Independências/Descolonizações  vimento 

Apartheid 
AIDS 

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave de História da África.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 29
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

Como pode observar, esse Esquema oferece a você, como


dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes deste estudo. Ao segui-lo, será possível transitar entre
os principais conceitos e descobrir o caminho para construir o
seu processo de ensino-aprendizagem. Por exemplo, o Conceito
superioridade da raça caucasiana. Ele emergiu do seio das ciên-
cias naturais no século 18 e, à medida que o discurso científico
contemporâneo ganhou corpo ao longo do século 19, a ideia de
que o homem europeu era o mais talhado para promover as be-
nesses da civilização e do progresso – por pertencer a uma es-
tirpe humana superior –enraizou-se e foi utilizada como um dos
elementos que justificaram a colonização e partilha do território
africano entre as potências europeias do período.
O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos
de aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no am-
biente virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem
como àqueles relacionados às atividades didático-pedagógicas
realizadas presencialmente no polo. Lembre-se de que você, alu-
no EaD, deve valer-se da sua autonomia na construção de seu
próprio conhecimento.

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas ques-
tões autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais
podem ser de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas
dissertativas.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como
relacioná-las com a prática do ensino de Licenciatura em História
pode ser uma forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim,
mediante a resolução de questões pertinentes ao assunto tra-

30 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

tado, você estará se preparando para a avaliação final, que será


dissertativa. Além disso, essa é uma maneira privilegiada de você
testar seus conhecimentos e adquirir uma formação sólida para
a sua prática profissional.

As questões de múltipla escolha são as que têm como res-


posta apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entendem-se
por questões abertas objetivas as que se referem aos conteú-
dos matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determi-
nada, inalterada. Já as questões abertas dissertativas obtêm
por resposta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado;
por isso, normalmente, não há nada relacionado a elas no item
Gabarito. Você pode comentar suas respostas com o seu tutor
ou com seus colegas de turma.

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as bi-
bliografias complementares.

Figuras (ilustrações, quadros...)


Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte in-
tegrante dos conteúdos; ou seja, elas não são meramente ilus-
trativas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados
no texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com
os conteúdos da disciplina, pois relacionar aquilo que está no
campo visual com o conceitual faz parte de uma boa formação
intelectual.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 31
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

Dicas (motivacionais)
O estudo desta obra convida você a olhar, de forma mais
apurada, a Educação como processo de emancipação do ser hu-
mano. É importante que você se atente às explicações teóricas,
práticas e científicas que estão presentes nos meios de comunica-
ção, bem como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois,
ao compartilhar com outras pessoas aquilo que você observa,
permite-se descobrir algo que ainda não se conhece, aprenden-
do a ver e a notar o que não havia sido percebido antes. Obser-
var é, portanto, uma capacidade que nos impele à maturidade.
Você, como aluno do curso de Licenciatura em História na
modalidade EaD e futuro profissional da Educação, necessita de
uma formação conceitual sólida e consistente. Para isso, você
contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor presencial
e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugerimos, pois,
que organize bem o seu tempo e realize as atividades nas datas
estipuladas.
É importante, ainda, que você anote suas reflexões em seu
caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas poderão
ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produções
científicas.
Leia os livros da bibliografia indicada, para que você am-
plie seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático,
discuta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às
videoaulas.
No final de cada unidade, você encontrará algumas ques-
tões autoavaliativas, que são importantes para a sua análise
sobre os conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram
significativos para sua formação. Indague, reflita, conteste e

32 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
CONTEÚDO INTRODUTÓRIO

construa resenhas, pois esses procedimentos serão importantes


para o seu amadurecimento intelectual.
Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na
modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procuran-
do sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.
Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a
este estudo, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto
para ajudar você.

3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DICIONÁRIO AURÉLIO. Curitiba: Positivo, 2014.
MELLO E SOUZA, M. África e Brasil africano. 2. ed. São Paulo: Ática, 2007.
RAMOS, A. As culturas negras no novo mundo. 3. ed. São Paulo: Cia Ed. Nacional,
1979.

4. E-REFERÊNCIA
BARBOSA DA SILVA, D. Encontros e confrontos linguísticos: o local e o global na África. In:
XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, Fortaleza: ANPUH, 2009. Disponível em: <http://
www.ethnologue.com/>. Acesso em: 24 ago. 2010.
IBGE. Planisfério político. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/
atlasescolar/mapas_pdf/mundo_planisferio_politico_a3.pdf>. Acesso em: 12 mar.
2012.
SUA PESQUISA. O que é a OPEP. Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/
geografia/petroleo/opep.htm>. Acesso em: 04 jul. 2012.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 33
© HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1
UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

1. OBJETIVOS
• Caracterizar o continente africano na atualidade.
• Apontar e discutir a situação atual das regiões africanas,
com ênfase na economia e na indústria.
• Reconhecer a ligação da África com a história da
humanidade.
• Estudar as origens do homem moderno.

2. CONTEÚDOS
• frica e suas divisões regionais.
Á
• Darwinismo e evolução das espécies.
• África no século 20.
• Pré-História africana.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Tenha sempre à mão o significado dos conceitos expli-
citados no Glossário e suas ligações pelo Esquema de
Conceitos-chave para o estudo de todas as unidades

35
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

desta obra. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e


seu desempenho.
2) Leia os livros indicados nas referências bibliográficas,
para que você amplie seus horizontes teóricos. Com-
pare com o material didático e discuta a unidade com
seus colegas e com o tutor.
3) Antes de iniciar os estudos, é importante conhecer um
pouco da biografia de estudiosos, cujo pensamento
também é utilizado como referência para a aprendiza-
gem dos conteúdos desta unidade:
• Carla C. Porcher: doutora em Geociências pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na
qual atua como docente.
• Ruth Hinrichs: professora doutora associada do De-
partamento de Geologia do Instituto de Geociên-
cias da UFRGS.
4) Assista:
• A série Cosmos, realizada por Carl Sagan e Ann Dru-
yan. Dir.: Adrian Malone. Estados Unidos, 1980. 780
min.
• A Guerra do fogo (La Guerre du Feu, 1981). Dir.:
Jean-Jacques Annaud. Canadá, França, EUA. 100
min. O filme retrata um período na Pré-História e
apresenta dois grupos de hominídeos, sendo que
um é mais evoluído por apresentar comunicação,
técnicas e hábitos mais complexos que o outro.

36 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

4.  INTRODUÇÃO À UNIDADE


Olá, seja bem-vindo ao estudo de História da África. Nesta
unidade, vamos iniciar o processo de construção do conhecimen-
to sobre a África. Antes de começarmos nossas reflexões, é im-
portante ter em mente que, quando falamos sobre a África, es-
tamos nos referindo a um contexto de diversidade e pluralidade.
Além disso, precisamos ter consciência de que o estudo
sistemático sobre a História da África é recente no País, uma vez
que se trata de uma área relativamente nova do conhecimento
histórico no Brasil.
Vamos nos concentrar, portanto, em dois pontos:
1) Conhecer os aspectos geográficos e políticos do con-
tinente, no qual veremos as divisões regionais e suas
principais características econômicas e sociais. Dar es-
pecial atenção à atual situação dos países africanos,
familiarizando-se com os nomes das regiões.
2) Investigar a ligação que todos nós possuímos com o
continente africano e, especialmente, com o discurso
científico que permitiu a construção da ideia de evo-
lução da espécie e, consequentemente, da teoria que
também serviu como justificativa para a colonização
da África.
Dedique-se e bons estudos!

5. CONTINENTE AFRICANO: DE NORTE A SUL, DE


LESTE A OESTE
Para iniciar efetivamente o estudo sobre a História da Áfri-
ca, convidamos você a fazer um exercício: feche os olhos, pense

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 37
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

na África e responda: qual é a primeira imagem que vem à sua


mente?
Pensou em guepardos, elefantes, leões, babuínos, savanas,
tribos “selvagens”, pobreza e miséria? Essa é uma imagem trivial
que faz parte do que chamamos de senso comum e que mui-
tas vezes não condiz com a realidade encontrada no continente
africano.
Observe que, muitas vezes, o que sabemos sobre a África
se resume ao lado exótico de sua fauna, ao seu real estado de mi-
séria e a uma ou outra curiosidade. Essa imagem que temos vem
sendo delineada ao longo dos anos em documentários, filmes
e telejornais que são muitas vezes produzidos com a finalidade
de reforçar essa imagem negativa da África enquanto continente
subdesenvolvido.
Porém, com o desenvolvimento de estudos sistemáticos e
científicos sobre a realidade africana e sua multiplicidade cultu-
ral, teremos condições de ampliar nosso conhecimento sobre o
continente, o que fará com que nossa imagem sobre a África seja
mais aprofundada e coerente.
Entretanto, vale destacar que a primeira imagem criada
sobre o continente africano não é totalmente equivocada, uma
vez que todos os elementos geralmente citados sobre a fauna e
a situação da população estão presentes na África. Entretanto,
não podemos resumir a riqueza étnica e cultural africana apenas
a essa ideia vaga e muitas vezes imprecisa.
Um exemplo disso é a ideia imprecisa de que a África se
desenvolveu de modo isolado. Isso é uma incoerência que histo-
ricamente é facilmente negada, uma vez que ao longo de toda a
história, a África manteve contatos constantes com a Ásia e com

38 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

a Europa. Ou será que alguém ignora a importância de Cartago


para a História de Roma? Ou ainda porderíamos mencionar o
Egito e sua rica civilização. Isso para ficarmos apenas em exem-
plos da Antiguidade.
A África ocupa cerca de 20% das terras emersas do pla-
neta (30 milhões de Km²). Em um continente dessas propor-
ções, é natural encontrarmos uma variedade de culturas e
línguas. Em Moçambique, por exemplo, há uma forte indús-
tria cinematográfica. Em países como Egito e África do Sul, os
índices de desenvolvimento econômico estão em patamares
razoáveis, ou seja, a miséria não é encontrada na totalidade
do continente. Além disso, África possui grandes e modernos
centros urbanos.
Já citamos a relação entre a África-Europa e África-Ásia,
mas não podemos ignorar a íntima relação do continente afri-
cano com a América, com destaque para o Brasil, pois foi desse
continente que os colonizadores e traficantes retiraram homens,
mulheres e crianças para serem submetidos à condição de escra-
vos na América. Consequentemente, boa parte de nossas tradi-
ções culturais tem forte influência da cultura africana sobre as
quais poderemos ampliar nossos conhecimentos.
Para prosseguir nossos estudos, vejamos nos mapas
da Figura 1 as divisões geográficas regionais do continente
africano:

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 39
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Figura 1 Mapas físico e político do continente africano.

Note que, ao longo deste estudo, utilizaremos expressões


como África Oriental, Austral, Meridional, Ocidental, Equato-
rial, Central, Subsaariana, Negra ou África do Norte. Desse
modo, estaremos nos referindo não apenas às divisões geográ-
ficas regionais do continente, mas também aos seus aspectos
culturais.
A África é separada da Europa pelo Mar Mediterrâneo e
se separa da Ásia pelo Mar Vermelho. Contudo, é ligada à Ásia
pelo Istmo de Suez. A região localizada geograficamente ao norte
e nordeste do continente africano é chamada de “África Branca”,
composta por países islâmicos, ou seja, nações cuja maior parte
da população é mulçumana e falante das línguas árabes. Esses po-
vos foram os que mais intimamente mantiveram relações com a
Europa, de modo mais específico nas regiões do mediterrâneo, e
também com a Ásia.

40 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Em contraste a essa África, temos todo o restante do con-


tinente que está localizado ao sul do deserto do Saara (por isso
Subsaariana) e cuja população é majoritariamente composta por
negros (daí a denominação de “África Negra”). Nessa imensa re-
gião ao sul do Saara, ocorreram intensos processos migratórios
que propiciaram o surgimento de diversos reinos africanos e o
desenvolvimento de um rico universo cultural.
Observando as características geográficas do continente,
se levarmos como exceção os Montes Atlas, ao norte, a África
é um grande planalto marcado por quatro bacias hidrográficas:
Nilo, Níger, Congo e Zambeze. Para seguirmos nossos estudos
sobre a África, veremos, ainda que brevemente, suas regiões e
os países que compõem cada uma delas. É importante que vo-
cês tenham clareza de que a política no interior do continente é
muito instável, assim como as fronteiras geográficas de cada país
que constantemente são alteradas.

África do Norte
A região denominada África do Norte é composta atual-
mente pelos seguintes países:
1) Argélia;
2) Egito;
3) Líbia;
4) Marrocos;
5) Mauritânia;
6) Saara Ocidental;
7) Tunísia.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 41
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Vamos localizá-los no mapa da Figura 2:

Figura 2 Mapa da África do Norte (ou África Setentrional).

O deserto do Saara domina a paisagem no interior de qua-


se toda a região setentrional e seu litoral é predominantemente
banhado pelo Mar Mediterrâneo, com exceção da Mauritânia e
do Saara Ocidental, que estão voltados para o Oceano Atlântico.
Por essa razão, o clima ao norte é mediterrâneo e desértico
em sua maior parte.
Como já sabemos, a população predominante é composta
por maioria árabe, religião que marcou profundamente a região.
Toda a região ocidental do norte é chamada também de Magreb,
palavra de origem árabe que significa “poente” ou “ocidente”,
por estar localizada na parte ocidental do mundo islâmico. A par-
te oriental ou “nascente”, por sua vez, estende-se da Península
Arábica até o Egito.
Vale destacar que a África do Norte é a região que apresen-
ta os melhores resultados econômicos e sociais do continente e
que tem o Egito como seu país com o maior grau de industriali-
zação. Esses resultados são consequência da relação constante

42 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

com Europa e Ásia, bem como com o mundo árabe, ligado ao


norte da África pela religião.
Ademais, o Egito (país dos antigos faraós) e a Argélia pos-
suem grandes reservas de petróleo e encontram-se entre os
maiores produtores do mundo, razão pela qual fazem parte da
OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo (IBGE;
ONU, 2009). Nessa região, desenvolveram-se grandes civiliza-
ções que compõem o denominado “Mundo Antigo” — período
que se inicia aproximadamente entre 5000 a 3000 a. C e se en-
cerra por volta do século 4º da era cristã no Ocidente.
O Egito, hoje país islâmico, foi palco, graças ao Rio Nilo (se-
gundo maior rio do planeta, atrás apenas do Rio Amazonas), de
uma das mais grandiosas civilizações humanas conhecidas, famo-
sa, sobretudo, por suas pirâmides, múmias e sarcófagos (ver a Fi-
gura 3).

Figura 3 Sarcófago de Sha-amun-en-su.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 43
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

O sarcófago de Sha-amun-en-su atualmente faz parte do acervo


do Museu Nacional do Rio de Janeiro, localizado na Quinta da
Boa Vista, local que, durante o século 19, serviu como morada
da família real brasileira.

Para compreender melhor a grandiosidade dessa civiliza-


ção, seguem alguns dados de sua trajetória.

Civilização egípcia
A civilização egípcia desenvolveu-se entre aproximada-
mente 3200 a. C. (quando houve a unificação do norte com o sul)
e 30 a. C. (período de dominação romana). Os egípcios desen-
volveram uma sociedade extremamente complexa, que incluía
um sistema de escrita e o desenvolvimento literário, médico,
astronômico e matemático. Ao final da unidade, na leitura com-
plementar, você encontrará uma descrição detalhada dos signifi-
cados em torno da vida e da morte expressos por meio do ritual
da mumificação (cf. CÉSAR, 2010).
Uma questão a ser considerada sobre este povo e sua tra-
jetória histórica refere-se ao fato de que, em tempos antigos, o
Egito foi controlado por gregos, persas, macedônios (Alexandria)
e, posteriormente, por romanos na época de sua expansão im-
perial. Além disso, durante a Idade Média, a África Setentrional
foi conquistada e ocupada pela população árabe e testemunhou,
portanto, a expansão árabe no Ocidente.
Já durante o período colonial (séculos 19 e 20), a região foi
dominada em sua maior parte pela França e pela Inglaterra.

44 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Constatamos que a África do Norte, assim como a África


Ocidental (que estudaremos a seguir), é uma das regiões que de-
monstra há mais tempo um forte intercâmbio/contato comercial
e cultural com a Europa.

África Ocidental
A denominada África Ocidental está localizada no noroeste
do continente e, atualmente, pertencem a essa região 15 países:
1) Benin;
2) Burkina Faso;
3) Cabo Verde;
4) Costa do Marfim;
5) Gâmbia;
6) Gana;
7) Guiné;
8) Guiné-Bissau;
9) Libéria;
10) Mali;
11) Níger;
12) Nigéria;
13) Senegal;
14) Serra Leoa;
15) Togo.
Vamos localizá-los no mapa da Figura 4:

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 45
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Figura 4 Mapa da África Ocidental.

Observe que a maior parte desses países que compõem


a África Ocidental foi colônia francesa, do final do século 19 ao
início da segunda metade do século 20 — com exceção de Benin
(colônia inglesa), Guiné-Bissau e Cabo Verde (colônias portugue-
sas), como também Libéria (não colonizada).
Como compreenderemos melhor as colonizações dos paí-
ses africanos em outro momento (Unidade 4), por ora é impor-
tante apenas percebermos que, nos séculos 16 e 17, devido à
proximidade geográfica com a Europa, existiu um contato co-
mercial dos habitantes costeiros da região com os europeus. No
século 18, esse comércio se intensificou e, como consequência
disso, pequenas possessões, como Freetown, fundada pelos in-
gleses em 1780, em Serra Leoa, ganharam aspectos de colônia
(MACKENZIE, 1994).
A África Ocidental é rica em minério (ferro, bauxita e es-
tanho) e durante alguns séculos foi a principal fornecedora de
marfim e outros produtos coloniais para a Europa.

46 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

O comércio de marfim foi tão importante que um dos paí-


ses que compõem a região foi batizado com o nome do produto
retirado dos elefantes, a Costa do Marfim.
Já a Nigéria é um dos países mais ricos da região em ter-
mos de matérias-primas como o petróleo e o gás natural, além
de apresentar uma das maiores densidades demográficas do
continente.
A maior parte dos outros países da região tem na agricul-
tura sua atividade econômica mais forte, especialmente a agri-
cultura de subsistência. São os casos de Burkina Faso e Mali,
que têm os piores índices de desenvolvimento humano (IDH) do
mundo, ao lado de Serra Leoa, segundo dados da ONU (2009).

IDH - Índice de Desenvolvimento Humano–––––––––––––––


O IDH é uma escala numérica que vai de 0,0 a 1,0 e mede a qualidade de vida
da população de um país levando em conta quesitos como: saneamento básico,
moradia, educação, saúde pública, etc. Quanto mais próximo do 1,0, maior o
desenvolvimento humano do país. Como veremos, muitos países do continente
africano apresentam índices mais próximos do 0,0 do que do 1,0 (IBGE; ONU,
2009).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Além do conhecimento do IDH e da identificação dos paí-


ses africanos que detêm a menor pontuação desse índice no
mundo, outra questão que agrava a situação das pessoas que vi-
vem nesta região é a limitação geográfica ao norte de alguns paí-
ses. Mali e Burkina Faso, por exemplo, têm parte de suas terras
preenchidas pelo deserto do Saara, o que as torna improdutivas.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 47
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Diferentemente desta realidade, há países na África Oci-


dental que possuem polo industrial em suas cidades, mas que
apresentam uma das piores qualidades de vida do mundo. É o
caso, por exemplo, de Serra Leoa.
Para encerrar nossa reflexão sobre a África Ocidental, é
importante saber que seus países formam o bloco econômico
denominado CEDEAO – Comunidade Econômica dos Estados da
África do Oeste, cujas características você poderá conhecer reali-
zando uma breve pesquisa em sites de busca da internet.
Agora, vamos refletir sobre uma questão relevante a res-
peito desta região da África: várias regiões do continente afri-
cano exercem, desde o século 19, o papel de fornecedores de
matérias-primas para a indústria do chamado “Primeiro Mun-
do”. O continente praticamente inteiro foi colonizado por potên-
cias europeias e, após meio século do início dos processos de
emancipação política (a partir de 1950), o continente apresenta
índice de desenvolvimento econômico, social e humano muito
abaixo da média mundial. A situação econômica também não é
das mais cômodas, tanto que o relatório da comissão econômica
da África da ONU, em 2009, aponta que o continente foi um dos
que mais sofreu, direta e indiretamente, com a crise econômica
mundial (ONU, 2009).
Diante disso, surge a questão: por que, depois de tantos
anos de suposto auxílio ao desenvolvimento do continente, a po-
breza está tão presente de norte a sul na África?
Reconhecendo e refletindo sobre as características da Áfri-
ca Ocidental, passaremos ao estudo da África Central.

48 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

África Central
A África Central é composta pelos seguintes países (veja a
Figura 5):
1) Angola;
2) Chade;
3) Congo;
4) Camarões;
5) Gabão;
6) Guiné Equatorial;
7) São Tomé e Príncipe;
8) República Centro-Africana;
9) República Democrática do Congo.

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UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Figura 5 Mapa da África Central.

50 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Observe que, das divisões geográficas regionais propostas


pela ONU (2009), essa é a que apresenta uma das menores uni-
dades culturais e geográficas.
Isso se verifica porque, se considerarmos aspectos exclusi-
vamente físicos, a classificação central não deveria abarcar países
que são banhados pelo Oceano Atlântico ou que estão mais ao
sul, como Angola, ou mais para o oeste, no caso da ilha que com-
põe São Tomé e Príncipe. Entretanto, os critérios adotados para
definir a região, segundo o departamento de estatísticas da ONU,
seguem convenções do dia a dia para uma melhor compreensão
das regiões do planeta.
Seus limites geográficos são, portanto: ao oeste, o Atlânti-
co; ao norte, o deserto do Saara; ao leste, as regiões dos lagos; e
ao sul, as fronteiras do Zimbábue e da Namíbia.
Assim como na África Ocidental, há um bloco econômico
que tem por objetivo o desenvolvimento econômico da região,
denominado Comunidade Econômica e Monetária da África Cen-
tral (CEEAC/ECCAS), composto pelos países: Chade, Congo, Ca-
marões, Gabão, Guiné Equatorial e a República Centro-Africana.
Trata-se de uma das regiões mais pobres da África, por apresen-
tar baixos índices de desenvolvimento humano e industrialização
(IBGE; ONU, 2009).
Além disso, a África Central foi uma das regiões que mais
conheceu colonizadores diferentes ao longo de sua história, ten-
do sido palco da ação de portugueses, belgas, italianos, alemães,
franceses, ingleses e espanhóis. Contudo, antes da colonização,
em um passado remoto, a África Central conheceu o grandioso
império Congo (cf. GIORDANI, 1985). Outra característica mar-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 51
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

cante desta região da África é que Angola, cuja língua oficial é


o Português, foi um dos países que mais forneceu homens ao
Brasil para serem transformados em escravos.
O historiador Luis Felipe de Alencastro, em seu livro O trato
dos viventes (2000), demonstra como os destinos de Angola e do
Brasil foram cruzados desde o início da colonização portuguesa no
século 16. Ainda segundo este autor, o Brasil nasceu do desmonte
de Angola.
Entretanto, Angola não se destaca apenas por isso, mas
também por ser um dos maiores produtores e exportadores de
petróleo do continente. Ao lado da Argélia, Líbia e Nigéria, é um
dos membros africanos da Organização dos Países Exportadores
de Petróleo (OPEP).

África Oriental
A maior região geográfica do continente africano, a África
Oriental, é composta por 19 países:
1) Burundi;
2) Comoros;
3) Djibuti;
4) Eritreia;
5) Etiópia;
6) Quênia;
7) Madagascar;
8) Malauí;
9) Ilhas Maurício;
10) Mayotte;
11) Moçambique;

52 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

12) Ilhas Reunião;


13) Ruanda;
14) Seychelles;
15) Somália;
16) Uganda;
17) Tanzânia;
18) Zâmbia;
19) Zimbábue.
Vejamos a disposição geográfica desses países no mapa da
Figura 6:

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 53
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Figura 6 Mapa da África Oriental.

54 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Segundo cientistas, foi nessa região que surgiram os ances-


trais primitivos do homem e o próprio homem moderno (como
ainda veremos nesta unidade).
Suas fronteiras são: ao norte, o Saara (Egito); ao sul, a Áfri-
ca do Sul; a oeste, a República Democrática do Congo; e a leste, o
Oceano Índico, sendo o ponto mais oriental formado pelas Ilhas
Reunião e pelas Ilhas Maurício.
Na divisão política estabelecida com as colonizações do sé-
culo 19, a região foi dominada em grande parte pelos ingleses,
mas também foi cenário da ação de portugueses (Moçambique)
e belgas (República Democrática do Congo e Ruanda).
Vale salientar que, apesar do longo domínio inglês, a língua
predominante da região é o suaíli, falada por mais de 50 milhões
de pessoas no continente, com concentração maior de falantes
na Tanzânia (90% da população) e no Quênia (60% da população)
(cf. MARHOUM; SAMPER, 2009). Note que, diferentemente da
denominada África Central, a divisão regional da África Oriental
obedece a um caráter mais cultural do que geográfico e, como a
maior parte do continente, o desenvolvimento humano também
se encontra inferior à média mundial.
Já no que se refere à economia e à concentração popu-
lacional urbana, a região apresenta industrialização em centros
urbanos em nível inferior aos encontrados na África do Norte e
na África Meridional (Sul), e a agricultura também é predomi-
nantemente dominada pela subsistência. Outra característica,
assim como a África Ocidental, é a da África Oriental ser rica em
recursos minerais.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 55
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Por essas razões, sua população está dividida, de maneira


geral, quase igualmente entre aqueles que vivem no campo e os
que vivem na cidade (ONU, 2009).
Ao lado da África Central, é a região que apresenta um dos
maiores índices de população economicamente ativa (acima de
15 anos e abaixo dos 60), compreendendo cerca de 70% do total.
Vejamos, para finalizar, a última divisão regional africana!

África do Sul
A África do Sul ou África Meridional (Austral) é composta
pelos seguintes países (veja a Figura 7):
1) África do Sul;
2) Botsuana;
3) Lesoto;
4) Namíbia;
5) Suazilândia;
6) Zimbábue.

56 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Figura 7 Mapa da África do Sul.

Como você pôde notar, a África do Sul é a menor sub-região


do continente. Porém, assim como alguns países da região norte,
ela apresenta os maiores índices de IDH e de industrialização,
especialmente no país África do Sul — um dos mais prósperos de
todo o continente.
A biodiversidade da região é uma das maiores encontradas
no continente, além da grande quantidade de recursos minerais
e naturais.
Apesar da relativa prosperidade da região, problemas si-
milares às outras regiões do continente também estão presentes
no sul. Pobreza e falta de saneamento são alguns exemplos.
A África do Sul passou por sérios problemas políticos e so-
ciais ao longo do século 20, como o longo período de segrega-
ção (separação) entre brancos e negros, a formação de guetos e
favelas, a alta concentração de renda, as prisões arbitrárias etc.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 57
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

A região foi a primeira a ser colonizada por europeus, di-


ferentemente do restante do continente, que foi de fato colo-
nizado no século 19. A parte austral da África teve os primeiros
administradores ainda no século 16, especialmente a atual África
do Sul (antiga colônia do Cabo) — dominada por holandeses e
ingleses. Observem também que há uma região do continente
que chamamos de “África do Sul”, mesmo dado a um país dessa
região. Temos que ter cuidado para não nos confundirmos com
isso.

Recursos naturais da África


Conforme abordamos as regiões do continente africano,
vocês devem ter notado que há grandes recursos minerais pre-
sentes em todas as regiões. Isso nos leva a constatação de que
a África é um continente muito rico de recursos minerais, algo
fundamental para compreendermos a exploração ocorrida por
séculos e até mesmo a política atual do continente.
Segundo Visentini (2014), o subsolo da África possui a
maioria dos minerais conhecidos, incluindo os mais raros e va-
liosos. Há grande quantidade de carvão, petróleo e gás natural
presentes na África. Também não podemos ignorar a existência
de ouro, cobre, diamante, entre outros, sendo que Congo, África
do Sul e Namíbia concentram 98% da produção de diamantes do
mundo. Já no tocante ao ouro, África do Sul, Zimbábue e Gana
detém 50% da produção mundial.
É fundamental notarem que apesar de toda essa riqueza,
pouco – ou quase nada – é revertido para a melhoria das con-
dições humanas do continente, o que nos leva a constatar uma
grande contradição entre a riqueza produzida e o desenvolvi-
mento social da África. Isso também é evidenciado quando ob-

58 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

servamos que, mesmo concentrando a produção de 66 bilhões


de barris de petróleo por ano e possuir grande quantidade de
gás natural, a maior parte da energia consumida no continente
provém da lenha.
Por tudo isso, é possível afirmarmos que a extração de mi-
nerais é a primeira e mais importante atividade econômica da
África. A segunda atividade é a agricultura. Em todo o interior do
continente, a agricultura é praticada para subsistência e também
para exportação. A pecuária também está presente, mais con-
centrada no norte.
A mesma lógica que empregamos quando falamos da ri-
queza mineral se aplica à agricultura e pecuária. Mesmo presen-
te e em grande escala (como a agricultura), milhões de pessoas
morrem de fome na África, não tendo acesso aos alimentos pro-
duzidos no interior do continente, situação essa que se agrava
cada vez mais.
O nível de industrialização é muito baixo em todo o conti-
nente. De modo geral, a maior parte da indústria africana é con-
centrada no norte – principalmente no Egito (onde a presença
de indústria petrolífera é destacada) e na Argélia. Há presença
industrial na África do Sul, porém em menor intensidade e im-
portância. Para finalizar nossos estudos, convidamos você a ana-
lisar o IDH desse continente e a refletir sobre suas características
na Figura 8:

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 59
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Figura 8 Mapa do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do continente africano.

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UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

6. BERÇO DO HOMEM: A ÁFRICA E A ORIGEM DA


ESPÉCIE
Começaremos agora a nossa viagem histórica ao continen-
te que há mais tempo conhece a presença humana: a África.
Observe que a referida presença data de tempos difíceis
de imaginarmos, pois não são anos, séculos ou mesmo milênios:
trata-se de uma escala de tempo de milhões de anos. Nesse pe-
ríodo, nossos ancestrais realizaram uma longa caminhada para
que hoje existíssemos.
Para você ter uma ideia da magnitude desse tempo, toma-
mos emprestado o pensamento de Carla C. Porcher e Ruth Hin-
richs, que fazem uma analogia entre o nosso calendário e a idade
do planeta. Se pudéssemos comprimir a história do Planeta Terra
em apenas um ano, veríamos que nós, seres humanos, represen-
taríamos apenas alguns minutos antes da meia-noite do dia 31
de dezembro. Acompanhe o exercício de imaginação:
Imagine que os 4,5 bilhões de anos da Terra foram comprimidos
em um só ano (entre parênteses colocamos a idade real de cada
evento).
Nesta escala de tempo, as rochas mais antigas que se conhece
(@3,6 bilhões de anos) teriam surgido apenas em março.
Os primeiros seres vivos (@3,4 bilhões de anos) apareceram
nos mares em maio.
As plantas e os animais terrestres surgiram no final de novem-
bro (há menos de 400 milhões de anos).
Os dinossauros dominaram os continentes e os mares nos mea-
dos de dezembro, mas desapareceram no dia 26 (de 190 a 65
milhões de anos), mais ou menos a mesma época em que as
montanhas rochosas começaram a se elevar.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 61
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Os humanoides apareceram em algum momento da noite de 31


de dezembro (há aproximadamente 11 milhões de anos).
Roma governou o mundo durante 5 segundos, das 23h:59m:45s
até 23h:59:50s.
Colombo descobriu a América (1492) três segundos antes da meia
noite, e a geologia nasceu com as escritos de James Hutton (1795),
Pai da Geologia Moderna, há pouco mais que um segundo antes
do final desse movimentado ano dos anos (PORCHER; HINRICHS,
2010).

Continue imaginando o calendário. Estamos no dia 31 de


dezembro à noite, mas não conseguimos precisar a hora exata.
Eis que surgem nossos primeiros ancestrais! Com passos indeci-
sos, eles não sabem se optam por usar a palma das mãos ou as
pernas para se locomover.
Para entender melhor esta explanação, sugerimos que
você assista à série Cosmos, idealizada e apresentada pelo as-
trofísico Carl Sagan (1934-1996), pois nela você poderá ver uma
analogia semelhante. O calendário exibido no programa não diz
respeito apenas a nosso planeta, mas a todo o Universo. E a Terra
só surge no dia 31 de dezembro.
No entanto, se não é possível precisar a hora exata do “nas-
cimento” do ancestral longínquo do homem, é possível identi-
ficar o local: a África. Para elucidar melhor essas ideias, vamos
relembrar os grandes períodos geológicos de nosso planeta.

Períodos geológicos do Planeta Terra––––––––––––––––––


Primário, Secundário, Terciário e Quaternário. O período Terciário está dividido
em cinco sub-períodos: Paleoceno, Eoceno, Oligoceneo, Mioceno e Piloceno.
Já o Quarternário (o nosso período) está dividido em dois: Pleistoceno e Holo-
ceno (GIORDANI, 1985).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

62 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Após recordarmos os períodos pelos quais passou nosso


planeta, é importante reconhecer que, atualmente, a versão
mais aceita entre arqueólogos e pesquisadores de História Na-
tural é que o parente comum dos seres humanos e dos demais
primatas surgiu no continente africano, de norte a sul e de leste
a oeste. As evidências mais abundantes foram encontradas na
África Oriental. Para ampliar seus conhecimentos sobre a histó-
ria da arqueologia africana, sugerimos que você leia o texto de
Z. Iskander, Arqueologia da África e suas técnicas: processos de
datação.

Historiadores e História Natural


Nós, historiadores, estudamos das mais diversas formas a
presença, a cultura e as sociedades humanas no tempo e no es-
paço. Já o pesquisador de História Natural é aquele que estuda
a história da natureza, da flora e da fauna, dos seres extintos e
de tudo que se relaciona ao passado do Planeta Terra. A História
Natural surgiu no século 18 e desenvolveu-se até nossos dias,
tornando-se uma área de conhecimento multidisciplinar, com
pesquisadores de várias áreas como a Biologia (Botânica e Zoo-
logia), Paleontologia, Ecologia, Geologia, Física, Meteorologia,
entre outros. Nas referências bibliográficas desta unidade, você
encontrará indicações de sites de museus de História Natural do
Brasil e de várias regiões do mundo. Consulte-as!
Dando prosseguimento a nosso estudo sobre a arqueo-
logia africana e suas evidências, veremos que no ano de 2009,
após 17 anos de trabalho, uma equipe de pesquisadores interna-
cionais composta por etíopes e norte-americanos encontrou um
esqueleto fossilizado de um primata bípede que viveu há cerca
de 4,4 milhões de anos. A Figura 9 traz a representação do pri-
mata encontrado.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 63
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Figura 9 Ardipithecus ramidus – reprodução artística criada com base em um fóssil,


encontrado na Etiópia, de antepassado humano que viveu há 4.4 milhões de anos.

Segundo os arqueólogos, alguns milhões de anos depois


do surgimento deste primata bípede, os hominídeos mais primi-
tivos já podiam ser encontrados no continente africano buscan-
do sobrevivência e adaptação ao mundo à sua volta.
Vale salientar que esse mundo é difícil de ser composto e
descrito em uma história linear, pois, quando se trata da nossa
origem enquanto espécie, falamos de uma escala de tempo qua-
se abstrata.

64 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Em outras palavras, o que chega até nós são apenas frag-


mentos desse passado remoto — fêmures partidos, pedaços de
dentes e de crânios — que permitem esboçar algumas conjuntu-
ras sobre nossas origens.
Uma questão interessante foi colocada pelo antropólogo
Roberto DaMatta (1991) para refletirmos sobre nossas possíveis
origens e a imagem que criamos delas. Você já prestou atenção
nas imagens que representam a Pré-História humana, encontra-
das nos livros didáticos e na internet?
Como constata DaMatta, o cenário criado sempre é com-
posto de animais enormes e com posturas ameaçadoras, ou o
“homem” é colocado no meio de um lugar inóspito com vulcões
em atividades, falta de água, entre muitas outras intempéries.
O mundo é, portanto, representado como um lugar extre-
mamente perigoso e nossos ancestrais longínquos como verda-
deiros sobreviventes. Observe a Figura 10.

Figura 10 Representação de hominídeos na Pré-História.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 65
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Reflita: será que os primatas e hominídeos sobreviveriam


a um lugar tão hostil o tempo todo como representado na figura
anterior? Será que não havia condições favoráveis de clima, tem-
peratura e uma relativa estabilidade para que esses seres pudes-
sem reproduzir-se, alimentar-se e prosseguir com sua existência?
Note que dificilmente teremos uma resposta definitiva
para essas questões, uma vez que as áreas da ciência que se de-
bruçam para encontrar tais respostas estão sempre oferecendo
novas teses que normalmente geram mais perguntas e, por ve-
zes, até mesmo entram em contradição.
Isso acontece, especialmente, porque novas tecnologias —
como a possibilidade de extrair e comparar o DNA, tirar tomo-
grafias detalhadíssimas em três dimensões e analisar possíveis
doenças — ajudam a aprofundar cada vez mais os estudos sobre
essas questões. Como exemplo, podemos citar os arqueólogos
do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Eles fazem uso da tecnolo-
gia de extrair e comparar o DNA nos estudos de múmias, fósseis
indígenas e vestígios arqueológicos ainda mais antigos.
Sabe-se, também, que várias espécies de hominídeos coe-
xistiram ao longo do tempo. O homem de Neandertal viveu na
Europa entre 250 a 30 mil anos atrás (período em que foi extin-
to) e coexistiu com o homo sapiens sapiens, a única espécie de
hominídeos que sobreviveu à longa corrida da evolução e à qual
denominamos “homens modernos”.
A ideia de que o homem moderno e todos os seres vivos
estão constantemente se adaptando ao mundo à sua volta surge
no século 19, com a publicação do revolucionário livro A evo-
lução das espécies (1859), do naturalista inglês Charles Darwin
(1809-1882).

66 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Nesta importante obra, que redefiniu a maneira como en-


xergamos a natureza, o naturalista britânico afirma que todas
as espécies que conhecemos — inclusive nós mesmos — estão
em um constante estado de evolução biológica, adaptando-se
às condições que a relação com o mundo oferece. A “seleção
natural”, termo central da teoria da evolução das espécies, diz
respeito a essa capacidade de adaptação.
Por essa razão, existem tipos diferentes da mesma espécie
de animais que estão localizados em regiões distintas do planeta.
É o caso dos ursos polares e pardos, por exemplo. Ambos são ursos
que ascendem de um mesmo ancestral comum, mas que, no longo
percurso da evolução, acabaram se tornando espécies diferentes de
ursos.
Em 1857, em sua famosa viagem científica ao redor do
mundo, Charles Darwin escreveu uma carta ao amigo Asa Gray,
botânico francês radicado nos Estados Unidos, na qual define o
termo “seleção natural” e seu uso da seguinte maneira:
[...] utilizo-o, na condição de agente, tanto quanto um geólogo
emprega a palavra Desnudação para expressar o resultado de
várias ações conjuntas. Tomarei cuidado de explicar, não ape-
nas por inferência, o que pretendo dizer com esse termo, pois
preciso utilizá-lo; caso contrário, teria que ampliá-lo reiterada-
mente em algum tipo de fórmula (aqui precariamente expressa)
como a seguinte: “tendência à preservação (graças à severa luta
pela vida a que estão expostos todos os seres orgânicos, em
algum momento ou geração) de qualquer das variações mais ín-
fimas, em qualquer lugar, que seja da mais ínfima serventia, ou
que seja favorável à vida do indivíduo que sofreu tal variação,
juntamente com a tendência à sua herança”. Qualquer variação
que não tivesse nenhuma utilidade para o indivíduo não seria
preservada por esse processo de “seleção natural” (DARWIN,
2000, p. 267).

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 67
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Segundo Darwin, a adaptação ao meio, ou seja, as peque-


nas variações e/ou transformações que as espécies sofrem são
aproveitadas se forem úteis à sua sobrevivência. Caso contrário,
elas seriam descartadas, e a própria natureza trataria de selecio-
nar as mudanças eficazes e as espécies mais aptas.
A carta do naturalista prossegue e esclarece ainda mais a
questão:
Mas não vou cansar-te mais prosseguindo nesse assunto, pois não
creio que conseguisse deixar mais claro o que pretendo dizer sem
me estender enormemente. – Acrescentarei apenas mais uma fra-
se: diversas variedades de Ovelhas foram soltas ao mesmo tempo
nas Montanhas de Cumberland [Inglaterra], e o que se verifica é que
uma raça em particular sai-se tão melhor do que todas as demais,
que praticamente leva as outras a morrerem de inanição: eu diria,
nesse caso, que a seleção natural escolheu essa raça, e tendeu a
aperfeiçoá-la, ou teria tendido a formá-la primitivamente [...] (DAR-
WIN, 2000, p. 267).

É importante ressaltar que as ideias de Darwin — a teoria


da evolução das espécies e o conceito de seleção natural — cau-
saram grande polêmica no século 19, pois contrariava a ideia da
Criação de todas as criaturas por Deus e, especialmente, a ideia
de que o homem era a imagem e semelhança de seu criador tal
como consta na Sagrada Escritura (Bíblia). Ainda hoje existem
muitas controvérsias a respeito desta teoria, e temos a oposição
entre os que defendem o modelo explicativo da evolução (evo-
lucionistas) e os que acreditam na criação do homem por Deus
(criacionistas).
Mesmo diante deste cenário, foi graças à visão revolucio-
nária de Darwin que todo um novo ramo de pesquisa emergiu.
Embora exista o senso comum de que a afirmação “o ho-
mem nasceu do macaco” seja do naturalista inglês, vale salientar

68 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

que este entendimento é um pouco exagerado. Contudo, para a


teoria da evolução tanto o homem quanto o macaco parecem ter
evoluído de um ancestral comum. Em resumo, temos algumas
características semelhantes aos símios (como primos distantes),
mas somos uma espécie diferente.
Outro aspecto que vale ser observado é que as ideias de
Darwin foram apropriadas e adaptadas no próprio século 19
para explicar também a diferença entre as sociedades humanas.
No que ficou conhecido como evolucionismo social, a civilização
europeia foi colocada no auge do estágio evolutivo, e os demais
povos (leia-se não brancos) em estágios inferiores, como mostra
a obra do antropólogo norte-americano Lewis Henry Morgan, A
sociedade primitiva (1877). Esse discurso que afirmava que al-
gumas sociedades eram mais evoluídas que as outras foi ampla-
mente utilizado como uma das justificativas para a colonização e
exploração do continente africano, como veremos no decorrer
de nosso estudo sobre a História da África.

Surgimento do Homo sapiens sapiens


O gênero Homo surgiu por volta de quatro milhões de anos
e a sua versão moderna — Homo sapiens — entre 300 e 150 mil
anos aproximadamente, na África Oriental (mas especificamente
na atual Etiópia). Para entender melhor como chegamos ao gê-
nero Homo, veja sua ascendência.
Os primatas do gênero Australopithecus foram os ancestrais
do gênero Homo (que inclui os Homo habilis, Homo erectus, Homo
ergaster, Homo heidelbergensis, Homo sapiens idaltu, Homo
floresiensis, Homo neanderthalensis, e, por fim, Homo sapiens
sapiens). Antes dos Australopithecus, viveram os Ardipithecus,
a primeira criatura separada entre os símios e os hominídeos.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 69
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Entretanto, o Homo neanderthalensis surgiu na Europa e o Homo


Floresiensis na ilha de Flores (atual Indonésia), sendo que ambas
as espécies coexistiram com o homem moderno.
Veja no Quadro 1 o desenvolvimento humano no período
quaternário:
Quadro 1 Desenvolvimento humano no período Quaternário.

Área
Grupos Capacidade Estágio do
Geográfica Dentição
Taxonômicos Craniana Bipedalismo
de Ocupação
Australopithecus África (parte Muito
? Inicial
anamensis leste) pequena

Australopithecus África (parte Bípede/


420cm3 ?
afarensis (Lucy) leste) arbórea
Molar/caninos
Australopithecus África (parte
? e incisivos ?
aethiopicus leste)
pequenos
Caninos
pequenos em
Australopithecus África (parte
510-530 cm3 relação ao Bípede
boisei leste)
Australopithecus
aethiopicus
Molares e pré-
Australopithecus África (parte molares grandes
500-530 cm 3
Bípede
robustus sul) (menores que os
dois anteriores)
Possuía incisivos
maiores e área
molar menor que
Australopithecus África (parte os da linhagem Bípede
430-520 cm3
africanus sul) robusta: Primitivo
(A. aethiopicus,
A. boisei e A.
robustus).

70 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Área
Grupos Capacidade Estágio do
Geográfica Dentição
Taxonômicos Craniana Bipedalismo
de Ocupação
Molar menor do
África (parte que a linhagem Bípede
Homo habilis 750 cm 3
leste) robusta dos Avançado
australopitecinos
Surgiu na Dentição robusta
África e (área molar
Homo Maior do que ?
migrou para maior do que os
rudolphensis a Ásia H. habilis (?) incisivos)
Dentição
Surgiu na
posterior
Homo erectus Ásia e migrou 1000 cm 3
Bípede
menor do que
para a África
australopitecinos
Homo ergaster Áfric 1067 cm3 ? ?

Homo África – 1200 Europa:


África, Ásia e
heidelbergensis cm3 mandíbula ?
Europa
ou Homo sapiens Ásia – 1120 robusta e dentes
arcaico cm3 grandes

Os dentes da
mandíbula iam
Europa,
para frente para
Homo no Oriente
encaixar no
Médio e no 1520 cm3 Bípede
neanderthalensis maxilar superior
Uzbequistão
e os incisivos
(Ásia)
eram largos, com
raiz larga
Homo sapiens Surgimento: Arcada Bipedalismo
1400 cm3
sapiens África? Ásia? superciliar excelente
Fonte: CANTO, A. (1995, anexo).

Milhares de anos após o nosso surgimento, teve início um


movimento migratório constante que resultou, praticamente, na
ocupação de todas as regiões do mundo. Como você estudará
em outra obra (História da América I), estima-se que a ocupação
do continente americano — o último a ser habitado pelo homem
— teria acontecido entre 28 e 10 mil anos atrás.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 71
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Após estudarmos como aconteceu a ocupação humana na


Terra, podemos afirmar que, em um período relativamente cur-
to de tempo, o hominídeo totalmente ereto, sem pelos e com
um cérebro capaz de realizar atividades extremamente comple-
xas — como se comunicar por meio de uma língua, criar formas
complexas de sociedade e cultura — já tinha se espalhado com-
pletamente pelo planeta, do sul da África ao norte da Europa e
do leste da China a oeste do México.
Desse modo, como vimos brevemente, a História da África é
objeto comum a toda espécie humana, pois foi nesse continente
que nossos ancestrais mais longínquos e o próprio homem mo-
derno surgiram. O que faremos daqui em diante é continuar nossa
viagem pelo passado desse continente fantástico e conhecê-lo um
pouco melhor.
Para finalizar, você como um leitor e estudante atento deve
ter percebido que, ao falar sobre a origem temporal e geográ-
fica do homem, os vestígios que permitem afirmar que surgi-
mos na África foram e continuam a ser encontrados por todo o
continente.
Pois bem, convidamos você a continuar atento e aprofun-
dar seus conhecimentos sobre as divisões regionais desse mag-
nífico e instigante continente no Tópico Texto Complementar.

7. TEXTO COMPLEMENTAR
Os egípcios tinham em sua sociedade uma série de cerimô-
nias ritualísticas que simbolizavam a passagem dos vivos para o
mundo dos mortos.

72 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

O processo de mumificação, por exemplo, não servia ape-


nas para a preservação dos corpos dos falecidos, mas tinha uma
simbologia religiosa complexa e lírica.
Além disso, os egípcios desenvolveram vasta literatura
(como o Livro dos mortos) e rituais sobre o tema.
Neste texto, de autoria da historiadora e arqueóloga Mari-
na Buffa César (2009, p. 41-43), você poderá entender um pouco
mais sobre esses significados.

Mumificação: somente preservação do corpo?–––––––––––


A palavra múmia deriva do árabe mumya, que significa “betume”. No processo
final de mumificação era passada resina e a coloração do corpo ficava igual ao
do betume. Todavia, betume era raramente utilizado em múmias.
O processo de mumificação pode ocorrer de forma natural ou artificial. A mumi-
ficação natural se dá quando um indivíduo é enterrado em condições climáti-
cas contrastantes, como uma região polar, onde o fluxo de ar é suficiente para
a retirada da água dos corpos, ou em climas áridos e secos. A mumificação
artificial exige várias etapas de embalsamento do corpo [...].
A presença da mumificação natural pode ser vista em corpos, principalmente
do Período Pré-dinástico [5500-3500 a.C.]. As pessoas nessa época eram en-
terradas diretamente no solo, com uma trama de fios como proteção. O solo,
por ser muito árido e a temperatura elevada, faziam o processo de desidrata-
ção do corpo, onde posteriormente seria utilizado o Natrão. Em regiões áridas
essa desidratação era rápida, o que preservava a camada de pele.
As múmias naturais são caracterizadas pela aparência rígida e a presença
de pele fixada aos ossos, consequência de uma boa preservação do corpo. A
mumificação artificial começa no Pré-Dinástico e é aprimorada ao longo das
dinastias. Inicialmente, ela era destinada somente ao faraó e, depois de alguns
séculos, essa prática já estava democratizada para toda a sociedade.
Para uma melhor compreensão do porquê de se mumificar os mortos, é neces-
sário conhecer as partes abstratas das quais os egípcios acreditavam que as
pessoas eram compostas. O ser humano era constituído de cinco faculdades:
seu corpo, sua sombra, seu ka, seu ba, seu nome e aquele que era o poder, o
espírito perfeito chamado akh.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 73
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

O ka nascia juntamente com a pessoa, era chamado de duplo, porque ele


seguia o ser humano em todos os momentos de sua vida. Ele faz parte da
personalidade da pessoa. O ka era dado a um ser humanos pelo deus.
O faraó possuía ka real era o deus no rei, e a relação entre deuses, rei e o povo
(GORDON, 1996, p. 33). Ou seja, o faraó recebe sua força vital dos deuses e
age como mediador na distribuição para as pessoas.
O sustento do ka se fazia importante após a morte. É por isso que há rituais
e oferendas para ele. Quando a pessoa morria, acreditavam que ele então
habitaria a estátua-ka na capela dedicada a esse indivíduo, onde receberia as
oferendas e orações, mesmo que essas fossem só representadas. O ka preci-
sava dessas provisões para que ele pudesse continuar vivo.
No Capítulo 30 do Livro dos mortos há o trecho que diz “[...] você é o meu ka
que está em meu corpo [...]”, onde o morto faz alusão ao seu duplo, pedindo
para que esse o ajude a sair do julgamento de seu coração como um justificado
e assim adentrar ao Mundo Inferior. Essa frase mostra também que em todo o
momento o morto teve consciência de onde o ka residia.
O ba era uma manifestação do morto, que poderia habitar tanto o mundo ter-
reno como o Mundo dos Mortos. Ele fazia a ligação entre os dois mundos. A
preservação do corpo do morto resultaria na preservação tanto do ba quanto
do ka. Pois, o ba retorna todas as noites para a câmara funerária e assim ele
pode migrar durante o dia. Se o corpo não estivesse preservado para essas
duas faculdades habitarem, elas morreriam.
Sua representação era em forma de um pássaro com a cabeça humana. En-
tretanto, ele poderia assumir a forma que quisesse e há várias fórmulas fune-
rárias para assegurar essa transformação.
O Capítulo 89 do Livro dos mortos sugere em sua rubrica que seja feita uma
representação da ba em ouro e que essa seja colocada no peito da múmia.
Assim, asseguraria o retorno da ba ao corpo. O próprio título da fórmula já
deixa clara a sua função, fórmula de como fazer a alma se unir a seu corpo no
domínio dos mortos. Um trecho do capítulo diz: “[...] Deixa minha alma vir até
mim onde quer que esteja” (ANDREWS; FAULKNER, 1985, p. 84).
Ao morrer, a pessoa se unia ao seu ka, mas não ao seu ba porque esse era
dinâmico. Na iconografia funerária, há cenas em que o morto está realizando
algum ritual e o ka está atrás dele. Em alguns papiros que descrevem a pesa-
gem do coração, pode-se ver o ba ao lado esquerdo da balança aguardando o
resultado juntamente com o morto e seu ka.
O akh era chamado por Claude Traunecker (1995, p. 37) de espírito-akh e
eram espíritos luminosos que podiam ser temíveis. Não eram uma faculdade
como o ba e nem um estado como o ka, eram um poder ocasional perfeito. Ele
era o espírito do bem-aventurado e a união de sucesso do ka e do ba.

74 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

O Mundo Inferior ou Duat era limitado pelo corpo de Osíris, porque ele isola o
Duat do caos de Num e, nesse mundo, os mortos desempenhavam funções
semelhantes às de quando habitavam a vida terrena. O Campo dos Juncos
situa-se a leste e é uma localidade de passagem ligada ao Sol. O Campo das
Oferendas está a oeste e esse já é um local de estadia.
O Campo das Oferendas era reservado aos mAa-Xrw, que significa “justo de
voz”, “justificado” ou “triunfante”, ou seja, aquele que já havia passado pelo
julgamento do coração. Para eles a justificação era uma etapa decisiva para
que o morto não sofresse a sua segunda morte. A segunda morte é a definitiva
e nela a pessoa seria esquecida.

Processos de mumificação
No mundo ideal e simbólico egípcio, a mumificação era realizada em uma única
noite, a anterior ao sepultamento, ocorrendo no mesmo momento em que o cora-
ção do morto era pesado na sala do julgamento de Osíris. Todavia, hoje se sabe
que o processo de mumificação poderia levar em média 70 dias ou até muitos
meses. Os fatores que influenciavam este tempo poderia ser o preparo da múmia
e da tumba.
A mumificação artificial egípcia era necessária no momento em que as tumbas
se tornam superestruturas e não mais há o contato do corpo com as areias ári-
das e aquecidas do deserto que promoviam a conservação desses remanes-
centes. E, após uma série de tentativa e erros, os egípcios antigos perceberam
que a chave para essa preservação era a retirada dos fluidos corporais. Esse
processo pode ter vindo provavelmente da análise do processo de secagem
das carnes e peixes (COCKBURN, 1998, p. 18).
Não foram encontrados até hoje relatos completos de todos os passos para a
preparação de uma múmia. Há partes desse processo em papiros e paredes
de tumbas, assim como citações em rituais e oferendas. Mas nada que mostre
como era tratado o corpo físico. Portanto, para fazer uma reconstituição dos
métodos de mumificação, são utilizados textos de escritores como Heródo-
to e Diodoro, além das análises dos remanescentes físicos feitas por DNA,
compostos químicos na pele das múmias, tomografias computadorizadas e
arqueologia experimental.
O texto escrito por Heródoto no século cinco a.C. é reproduzido por todos os
autores que tratam dos processos de mumificação. O relato do escritor gre-
go diz que algumas pessoas eram apontadas pelas leis para exercerem essa
profissão. Quando o corpo de um morto era levado para eles, eles exibiam
aos amigos da pessoa morta diferentes modelos em madeira. O mais perfeito
deles assemelha-se a um cujo nome não poderá ser mencionado nesse con-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 75
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

texto (sabe-se que é Osíris). O segundo era inferior em execução e com preço
menor e o outro tinha qualidade ainda mais inferior. Após a demonstração eles
perguntavam com qual modelo o morto gostaria de ser representado. Quando
o preço era determinado, os embalsamadores começam seu trabalho. A des-
crição do processo de mumificação detalhado adiante se refere ao mais custo-
so, sempre lembrando que esse não era um processo técnico, envolvia muitos
rituais em cada estágio de seu preparo. Afinal, estava mumificando Osíris.
O corpo do morto era levado até a “Casa Boa” (pr-nfr), onde no local de embal-
samento começavam as etapas de dissecação do corpo. O primeiro passo era
a retirada do cérebro por meio do orifício nasal. Introduzia-se uma ferramenta
metálica e com ela fazia-se uma série de movimentos destinados a dissolução
do cérebro. Quando ele estava em estado mais líquido, era colocada uma es-
pécie de coletor nas narinas. Outro método para a retirada do cérebro era fazer
uma incisão na base do crânio. A cavidade craniana era lavada e preenchida
com resinas. Os olhos eram mantidos no lugar até a 22ª dinastia, quando es-
ses são substituídos por postiços ou por uma pasta vítrea.
A retirada dos demais órgãos era feita por meio de uma incisão no lado esquer-
do da cavidade abdominal do morto, de onde as vísceras e o intestino eram
descartados. Os outros órgãos eram lavados, drenados, recebendo substân-
cias aromáticas. Geralmente, eram envoltos em linho e guardados nos chama-
dos Vasos Canopos.
Os Vasos Canopos, a partir da 4ª dinastia, aparecem como parte da arqui-
tetura, em nichos das câmaras funerárias, em forma de caixas retangulares.
Na 5ª dinastia e depois ao longo do período faraônico eles aparecem em cai-
xas aos pés do caixão, porque as arcas que contêm esses vasos nunca se
afastam dos caixões. Isto pode ser visto em papiros, onde na procissão há o
caixão e logo atrás os canopos. No Novo Império as tampas eram feitas em
formato da cabeça dos quatro filhos de Hórus e cada uma abrigava um órgão
especificamente. Os deuses são Qebehsenuef, que possui a cabeça em forma
de falcão e abrigaria os intestinos; Duamutef, com a cabeça de chacal, onde
estaria o estômago; Hapy, com cabeça de babuíno, guardava os pulmões; e
Imset, com cabeça de homem e abrigaria o fígado. A 20ª dinastia caracteriza o
momento em que Anúbis aparece na parte de cima das caixas canópicas e os
quatro filhos de Hórus nas laterais. Contudo, esses vasos perdem a utilidade
na 21ª dinastia porque os órgãos passam a ser recolocados dentro da cavida-
de abdominal. Na 26ª dinastia há a retomada da tradição de utilizar os Vasos
Canopos e de utilizar nichos como na 4ª dinastia. No período que compreende
da 27ª a 30ª dinastias eles são guardados entre os pés da múmia e, no Período
Ptolomaico, são substituídos por arcas com um falcão na tampa, nas quais os
órgãos eram colocados.

76 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Na cavidade abdominal restava somente o coração. Não era prática comum retirá-
-lo e, caso isso acontecesse, ou ele era colocado novamente no tórax ou em seu
lugar era colocado um escaravelho-coração. O corpo era então lavado, óleos e
especiarias eram aplicados e, posteriormente, era coberto com Natrão. O Natrão
é uma substância salina composta de NaCL, Na2CO3 e NaP2SO4, usada para
acelerar o processo de retirada dos fluidos corporais que poderiam posteriormente
causar a decomposição do corpo. Após a secagem do indivíduo, havia a aplicação
de resinas para que esse pudesse ter elasticidade novamente e, com isso, dar
continuidade à mumificação. O abdômen era recheado com linho, flores, serragem
e outros materiais para que pudesse ser mantido o mais próximo possível do que
era em vida.

A Figura 4 (SMITH, 1914, p. 194) mostra as incisões que eram feitas no morto
tanto para a retirada dos órgãos quanto para a posterior colocação do material
que preenchia as cavidades. Com a ajuda das mãos ou alguma outra ferra-
menta, o embalsamador inseria linho, manteiga ou até mesmo lama na região
T e outro material na W, para que esse segurasse o enchimento da região
do pescoço. A localização da letra Y, que são as pernas, era preenchida pela
mesma incisão X. Em alguns casos era feita uma nova incisão para os pés.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 77
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Após esse procedimento, a cavidade abdominal (R, S, Q) era recheada e as


incisões fechadas.
Em seguida, várias resinas, unguentos, cera de abelha e perfumes eram apli-
cados, estando pronto para a colocação das tiras de linho. No meio dessas
tiras havia vários amuletos. Esse processo poderia levar até 15 dias para que
o corpo estivesse totalmente coberto com o linho porque em alguns casos os
dedos das mãos e dos pés eram primeiramente enrolados um por um. Logo
após o termino do preparo e a recitação de todas as orações, o morto era colo-
cado em seu caixão ou caixões e levado para a câmara funerária. Entretanto, a
múmia só iria para a câmara funerária caso o morto tivesse condições e status
social para possuir uma tumba. Senão, ela iria para a casa de seus familiares
e ficava guardada em armários na entrada das habitações.
O faraó depois de mumificado só poderia ser enterrado por outro governante,
fato sucessório que mostra que quando um faraó morre e está sofrendo o
processo de mumificação, o próximo governante era escolhido. Ao enterrar, o
faraó morto faz o mesmo ritual que Hórus ao sepultar Osíris, garantindo assim
a legitimidade do trono.
As escavações sob coordenação de G. A. Reisner, realizadas no plateau de
Giza, descobriram a tumba da rainha Heteperes, mulher de Snefru e mãe de
Khufu, na 4ª dinastia. O corpo não estava no sarcófago, mas uma descoberta
surpreendente seria feita. As vísceras foram encontradas em um recipiente de
alabastro e embebidas em uma substância salina contendo Natrão. O mais
interessante é que após 4500 anos a substância continuava aquosa e pre-
servando as vísceras. Nesse período eles já retiravam os órgãos da cavidade
abdominal. O desenvolvimento dos processos de mumificação foi rápido e, na
5ª dinastia, já há relatos de arqueólogos que diziam que as pessoas pareciam
estar dormindo (CÉSAR, 2009, p. 41-47).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Sugerimos que você procure responder, discutir e comen-
tar as questões a seguir que tratam da temática desenvolvida
nesta unidade.
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
você testar o seu desempenho. Se você encontrar dificuldades
em responder a essas questões, procure revisar os conteúdos es-

78 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

tudados para sanar as suas dúvidas. Esse é o momento ideal para


que você faça uma revisão desta unidade. Lembre-se de que, na
Educação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de
forma cooperativa e colaborativa; compartilhe, portanto, as suas
descobertas com os seus colegas.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Quais são as imagens que normalmente são associadas ao continente
africano?

2) Q
uem construiu essas imagens ao longo do tempo? Essas imagens têm
razão de existir? Justifique.

3) Q
uais são as divisões geográficas e políticas da África atual? Elas obede-
cem a quais critérios?

4) Que países integram as regiões divididas?

5) Q
uais as diferenças fundamentais entre a África do Norte (ou África Bran-
ca) e a África Subsaariana (ou África Negra)?

6) O
que é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)? Quais são os crité-
rios utilizados para definir o nível de desenvolvimento?

7) Q
uais são os elementos utilizados pela ciência ao afirmar que a África é o
berço da humanidade?

8) Analise a teoria da evolução das espécies e compare-a com o criacionismo.

9) A morte no Egito Antigo era encarada de que forma?

9. CONSIDERAÇÕES
Para fecharmos esta unidade, é importante entendermos
o movimento que faremos ao longo do estudo da obra História

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 79
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

da África. Começamos com a apresentação das atuais divisões


regionais do continente em sua pluralidade e, sobretudo, em ter-
mos políticos e econômicos.
Note que esta introdução teve o objetivo de mostrar o pro-
cesso histórico que levou a África a atingir os patamares atuais
e, sobretudo, entender que essa história é muito mais rica e dra-
mática do que imaginamos.
Depois disso, vimos que todos os seres humanos modernos
do planeta estão ligados ao continente africano, pois os estudos
mais recentes sobre a origem da nossa espécie marcam a região
oriental como sendo o local onde surgiram os homos sapiens e
de onde rapidamente se espalharam pelo planeta todo.
É importante que você aprofunde seus estudos sobre a
África atual e conheça em detalhes seus países e povos.
Bons estudos!

10. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 Mapas físico e político do continente africano. Disponível em: <http://www.
ibge.gov.br/mapas_ibge/>. Acesso em: 26 mar. 2012.
Figura 2 Mapa da África do Norte (ou África Setentrional). Disponível em: <http://
www.ibge.gov.br/mapas_ibge/>. Acesso em: 26 mar. 2012.
Figura 3 Sarcófago de Sha-amun-en-su. Disponível em: <www.museunacional.ufrj.br>.
Acesso em: 26 mar. 2012.
Figura 4 Mapa da África Ocidental. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/mapas_
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Figura 5 Mapa da África Central. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/mapas_
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80 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 1 – UM CONTINENTE CHAMADO ÁFRICA

Figura 6 Mapa da África Oriental. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/mapas_


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Figura 7 Mapa da África do Sul. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/mapas_
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Figura 8 Mapa do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do continente africano.
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Figura 9 Ardipithecus ramidus. Disponível em: <http://www.nhm.ac.uk/about-us/
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1985.
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© HISTÓRIA DA ÁFRICA 83
© HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 2
ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO
BRASIL

1. OBJETIVOS
• I dentificar e compreender a relação do Mundo Antigo
com a África.
• Reconhecer os principais povos africanos no período
pré-colonial.
• Apontar e refletir sobre as matrizes linguísticas e cultu-
rais africanas.
• Construir conhecimentos sobre a pluralidade e a hete-
rogeneidade cultural e étnica africana.
• Interpretar e compreender as influências dos povos afri-
canos na formação da cultura brasileira.
• Relacionar os principais debates historiográficos com
a participação das populações africanas na sociedade
brasileira.

2. CONTEÚDOS
• Famílias linguísticas africanas.
• Povos e etnias africanas.
• Cultura e religião africanas.

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UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

• F ormação da cultura brasileira.


• Negros no Brasil.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia a orientação a seguir:
1) Antes de iniciar os estudos, é importante conhecer
um pouco da biografia de autores, cujas ideias tam-
bém norteiam a aprendizagem dos conteúdos desta
unidade:

Gilberto de Mello Freyre


(Recife, 15 de março de 1900 – Recife, 18 de julho de
1987): foi um sociólogo, antropólogo, escritor e pintor
brasileiro, considerado um dos grandes nomes da His-
tória do Brasil (imagem e texto disponíveis em: <http://
www.releituras.com/gilbertofreyre_bio.asp>. Acesso
em: 20 ago. 2012).
Para saber mais sobre a vida e a obra deste historia-
dor social pernambucano, acesse: FUNDAÇÃO GIL-
BERTO FREYRE. Homepage. Disponível em: <http://
www.fgf.org.br/>. Acesso em: 20 ago. 2012.

Florestan Fernandes
(São Paulo, 22 de julho de 1920 – São Paulo, 10 de
agosto de 1995): foi um sociólogo e político brasileiro
(por duas vezes, deputado federal). Para mais informa-
ções biobibliográficas de Florestan Fernandes, consulte
o site mantido pela USP em homenagem ao sociólogo:
FLORESTAN FERNANDES VIDA & OBRA. Home page.
Disponível em: <http://www.sbd.fflch.usp.br/florestan/>.
Acesso em: 25 mar. 2010 (imagem e texto disponíveis
em: <http://www.algosobre.com.br/biografias/florestan-
-fernandes.html>. Acesso em: 13 ago. 2012).

86 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Olá! É uma satisfação prosseguir o estudo da História da
África. Nesta unidade, vamos continuar o processo de constru-
ção do conhecimento sobre esse magnífico continente.
Iniciaremos, portanto, nosso estudo com a descrição da
origem do nome África.
Desde o Mundo Antigo, a África, assim como o continen-
te americano, recebeu diversos nomes por habitantes de outras
localidades, e sua grafia e significado definiram-se no século 1º
d.C. — atribuídos por romanos.
Partindo desse ponto, conheceremos os grupos etnocultu-
rais e as famílias linguísticas que se desenvolveram no continen-
te no período entre o século 7º e o início da Idade Moderna, nos
séculos 15 e 16.
Vale salientar que o estudo das línguas nos permite vislum-
brar os povos que se desenvolveram e, sobretudo, povoaram, re-
povoaram e conquistaram o continente em sucessivos movimen-
tos históricos marcados pela formação de culturas complexas.
Além disso, vamos estudar a importância dos rios no de-
senvolvimento das populações e quebrar a ideia de que o con-
tinente africano é uma região “atrasada”, uma vez que em de-
terminados momentos históricos suas redes de comércio e as
técnicas de produção superavam as da Europa.
Veremos, ainda, como os povos africanos, cujos membros
foram trazidos compulsoriamente ao Brasil na condição de es-
cravos, influenciaram e ainda influenciam a cultura brasileira,
que se formou à medida que os povos passaram a habitar aqui,

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 87
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

desde os primórdios da colonização. Europeus, asiáticos, africa-


nos e nativos amalgamaram-se, formando um povo tipicamente
tropical, o “povo brasileiro”.
Nesta unidade, percorreremos dois caminhos:
• Primeiro: descrição das influências sociais, linguísticas e
culturais trazidas da África com os escravos;
• Segundo: apresentação de um dos principais debates
travados ao longo do século 20 na Sociologia Brasileira:
o lugar do negro na sociedade brasileira.
Para tanto, elegemos dois intelectuais que tiveram po-
sições opostas e construíram, cada um a seu modo, uma visão
sobre a participação e inserção de negros, mulatos e pardos em
nossa sociedade, desde o período colonial até praticamente o
fim do século 20:
• Gilberto Freyre (1900-1987).
• Florestan Fernandes (1920-1995).
É importante entender, desde já, que o debate entre esses
autores permanece vivo e incide sobre temas que ainda incomo-
dam nossa sociedade.
Em outras palavras, discussões sobre cotas raciais, precon-
ceito ou a natureza mais democrática de nossa sociedade em
relação às diversas etnias que habitam o Brasil são alguns dos
tópicos que foram levantados nos estudos e debates destes dois
autores.
Bons estudos!

88 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

5. ORIGEM DO NOME “ÁFRICA”


A relação do continente africano com outros continentes e
povos é muito antiga. Desde a Antiguidade, a civilização egípcia
já despertava interesse e fascínio nos povos europeus, especial-
mente entre gregos, em um primeiro momento, e romanos, até
os primeiros anos da Era Cristã.
A palavra que dá nome ao continente tem sua origem nes-
se período. Segundo Joseph Ki-Zerbo (1980), um dos historiado-
res nascidos na África de maior prestígio no século passado, os
gregos antigos e os egípcios chamavam a região de Líbia ou país
dos Lebu. Já os fenícios chamavam-na de “faraga, que exprime a
ideia de separação, de diáspora” (KI-ZERBO, 1980, p. 21).
No entanto, a origem que adotamos até hoje é romana.
África deriva do latim aprica, que significa ensolarado e que, por
sua vez, é um termo derivado da palavra grega apriké, “isento de
frio”.
Os gregos mantiveram contato com povos de diversas re-
giões da África, uma vez que, nos séculos 3º e 2º a.C., alguns livros
com descrições da Etiópia e de outras partes da África Oriental
foram escritos por intelectuais romanos (GIORDANI, 1985). Tam-
bém não podemos esquecer que a Macedônia, sob a liderança
de Alexandre, conquistou o Egito, por volta dessa época.
Como você pôde notar, a percepção dos povos antigos,
em geral, remontava a uma localidade de clima quente, espe-
cialmente ao delta do Rio Nilo, como uma região extremamente
fértil, sobretudo se atentarmos ao termo dos fenícios para o con-
tinente, Pharika (“região das frutas”).
A palavra África, segundo Ki-Zerbo, “teria vindo do nome
de um povo (berbere) situado ao sul de Cartago: os Afrig” (KI-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 89
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

-ZERBO, 1980, p. 21). Essa definição nos parece interessante,


uma vez que os romanos certamente tiveram contato com esse
povo ao longo das Guerras Púnicas quando enfrentou a cidade-
-Estado de Cartago.
Já a grafia Africa foi fixada pelos romanos e até o século
1º d.C. era usada apenas para definir o litoral norte africano. Foi
bem depois desse período que o termo “África” passou a ser o
que usamos para definir toda a região, do Egito à África do Sul.
Contudo, não foram apenas os povos da Antiguidade eu-
ropeia que tiveram contato ou que exerceram domínio sobre a
África do Norte. Os árabes, em seu processo de expansão terri-
torial e cultural durante os séculos 7º e 8º, ocuparam e tomaram
o Egito e as regiões adjacentes, como você poderá observar na
Figura 1.

Figura 1 Mapa da expansão do Império Árabe na África.

90 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Além disso, a cultura árabe, sobretudo sua religião, o isla-


mismo (como já estudamos na primeira unidade), marca profun-
damente toda região mediterrânea do continente até nossos dias.
Entretanto, a dominação árabe não alterou a denominação dada
à vasta região.
A historiadora Marina de Mello e Sousa (2007, p. 14), profes-
sora da disciplina História da África na Universidade de São Paulo,
descreve as bases religiosas e expansão do islamismo da seguinte
forma:
Maomé, que viveu entre Meca e Medina de 570 a 630 d.C., foi
fundador do islã, que significa submissão a deus, único e oni-
potente. No Mundo Moderno, o judaísmo, o cristianismo e o
islamismo são as três principais religiões monoteístas, isto é,
que preconizam a existência de um único deus, criador de to-
das as coisas. Elas se guiam por textos sagrados, estabelecidos
em momentos diferentes: a Torá, a Bíblia e o Alcorão. O islã
foi rapidamente difundido pela pregação de Maomé e seus se-
guidores, e, no século VIII, estava presente desde a Pérsia até
a Península Ibérica, passando por toda a Arábia, pelo Império
Turco e pelo norte da África.
A religião vinha acompanhada de maneiras de viver e de go-
vernar próprias do Mundo Árabe, chamadas de mulçumanas.
Segundo a religião islâmica, povos variados podem ser agrega-
dos em torno de uma comunidade de idéias e crenças capaz
de produzir uma unidade, chamada umma. Os cinco principais
deveres de todo adepto do islã são: a profissão de fé, isto é, a
declaração da crença em um só Deus e em Maomé como seu
profeta; a oração cinco vezes ao dia; o pagamento do imposto
religioso; o jejum no mês do Ramadã; e a peregrinação a Meca
pelo menos uma vez na vida.

Observe que, apesar da referida influência, a palavra árabe


Afriqiyah é uma tradução do termo cunhado pelos romanos e
mantém o mesmo significado, o que provavelmente sinaliza que

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 91
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

a definição latina (dos romanos) para o continente não apenas


perdurou, mas foi aceita praticamente por todas culturas dife-
rentes desde sua origem.
Entretanto, não podemos pensar que a História da África
se resuma apenas à história de povos dominados ou subjugados
o tempo inteiro.
Isso é importante porque, além da grande civilização egíp-
cia que se desenvolveu às margens do Nilo e que até hoje nos
fascina por suas técnicas de embalsamento (múmias) e de en-
genharia (as pirâmides), outros povos também desenvolveram
grande variedade de línguas e culturas. É sobre esses povos que
vamos nos debruçar a seguir!

6. POVOS DA ÁFRICA PRÉ-COLONIAL


Você já deve ter percebido, com o que estudamos até aqui,
que não podemos afirmar que o continente africano é um todo
homogêneo, embora a imagem que normalmente formamos nos
leve a pensar dessa forma.
Mas o que isso quer dizer?
Se hoje nós temos uma África islâmica ao norte e uma Áfri-
ca “inglesa” no extremo sul, ao longo da história não foi diferen-
te. A unidade continental africana não simboliza uma unidade
cultural. O angolano é muito diferente do etíope, que, por sua
vez, é diferente do ganês e do egípcio moderno.
Segundo Visentini (2014), atualmente a África é habitada
por cerca de um bilhão de pessoas. A maioria dessas pessoas
(60%) moram em zonas rurais, o restante (40%) compõe a po-
pulação urbana. A densidade populacional é de 30,6 habitantes

92 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

por Km². Porém, esse dado só pode ser levado em consideração


quando consideramos que a distribuição populacional é muito
irregular, uma vez que regiões desérticas são praticamente de-
sabitadas, enquanto que regiões às margens do Nilo são densa-
mente povoadas.
Assim, parece-nos simples considerar que estamos diante
de uma grande diversidade. Atualmente, definimos essa diversi-
dade como uma diversidade étnica, mas durante praticamente
todo o século 19 até a metade do século 20 o termo usado pela
historiografia, antropologia e outras áreas das ciências humanas
era raça (KI-ZERBO, 1980; LÉVI-STRAUSS, s/d).
Em termos mais simples, os distintos povos que vivem e
viveram no continente eram classificados de acordo com carac-
terísticas físicas “típicas da raça”, como o tamanho da cabeça e
do crânio.
Hoje, essa concepção de que existem raças diferentes en-
tre os seres humanos é preconceituosa, pois utilizava as descri-
ções físicas e as diferenças culturais para determinar raças que
eram consideradas “inferiores”. Já na segunda metade do século
20, especialmente nos estudos de antropólogos como o francês
Claude Lévi-Strauss (1997), a ideia de raça foi paulatinamente
abandonada até ser substituída pelo conceito de etnia. Hoje, a
ideia que predomina é a de que só existe uma raça: a humana.
Ao longo do tempo, sobretudo no período anterior às co-
lonizações europeias, alguns desses povos se destacaram. É im-
portante, no entanto, ter em mente que a classificação atual dos
povos do período pré-colonial se baseia especialmente em divi-
sões geográficas, linguísticas e culturais, não criando hierarquias
de inferioridade ou superioridade. Segundo o linguista senegalês
P. Diagne (1980, p. 249):

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 93
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

As classificações propostas para a África são muito freqüen-


temente geográficas em setores essenciais. Por esse motivo,
elas deixam de lado alguns fenômenos como migrações e im-
bricação [mistura de culturas] dos povos. [...] fazem referência
principalmente a denominações e agrupamentos topológicos e
geográficos. Eles estabelecem categorias como ‘oeste atlânti-
co’, ‘Níger-congo’, ‘senegalês-guineense’, ‘nigero-chádico’ etc.

O historiador Mário Curtis Giordani defende que sempre


houve pluralidade étnico-cultural no continente. Desde tempos
remotos, a África é povoada por povos de tonalidades de pele
diferente, sendo os negros a de maior proporção (GIORDANI,
1985, p. 25-50).
Segundo Visentini (2014), o norte do continente africano
foi dominado por povos caucasoides, de modo especial os ára-
bes e berberes – antigo povo nômade do Saara. Os caucasoides
constituem 25% da população da África, mas ocupam uma re-
gião rica e mais desenvolvida socialmente.
Ainda segundo Visentini (2014, p. 20)
Ao sul do Saara predominaram os povos negroides, cerca de
70% da população africana. Na África Meridional ainda existem
alguns elementos dos povos khoisan, os habitantes originais.
Os pigmeus concentram-se na bacia do Rio Congo e na Tanzâ-
nia. Agrupados principalmente na África Meridional vivem 5
milhões de brancos de origem europeia.

Em termos religiosos, as religiões mais difundidas no conti-


nente é o Cristianismo e o Islamismo, mas é importante ressaltar
que ambas não “naturais” do continente. Apenas 15% da popu-
lação africana ainda seguem religiões locais ou animistas. Com a
colonização moderna do continente africano, muitas tradições
culturais, religiosas e sociais foram ignoradas na formação dos
atuais estados africanos (como estudamos na unidade anterior).

94 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

A divisão das fronteiras, os territórios e as possessões jun-


taram povos diferentes dentro de uma mesma nação, formaram
novas sociedades e, consequentemente, novas culturas e novos
grupos linguísticos. As línguas europeias foram adotadas como
línguas oficiais das nações africanas no século 20, o que não sig-
nifica, porém, que as línguas pré-coloniais foram extintas. Para
entender melhor os grupos linguísticos da África, veja a Figura 2.
Desse modo, é válido observar que os historiadores e lin-
guistas dividem os povos em grandes línguas matrizes. Dentro
destes grandes grupos há subdivisões e, atualmente, as línguas
ocidentais são consideradas como um item de sua classificação.
Vamos conhecer a seguir algumas das línguas e povos da
África!
Para tanto, vamos nos apoiar em historiadores e estu-
diosos das línguas faladas pelo homem: Mário Curtis Giordani
(1985), Olderogge (1980), Diagne (1980) e Alberto da Costa e Sil-
va (1996).
Nesse momento, é provável que você esteja se perguntan-
do o porquê de conhecer as línguas faladas nesse continente e a
relação desse conteúdo com o estudo da História da África.
A resposta a essas questões está no fato de que as línguas
não dizem respeito apenas a uma simples forma de comunicação
entre as pessoas: as palavras, frases e expressões são dotadas
de significado histórico e mostram, a seu modo, como determi-
nados povos compreendem o mundo à sua volta e de que for-
ma eles constroem a realidade da qual fazem parte (cf. BERGER,
2000).
Segundo Joseph Ki-Zerbo (1980, p. 32):

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 95
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Os estudos lingüísticos demonstram que as rotas e os caminhos


das migrações, assim como a difusão de culturas materiais e
espirituais, são marcadas pela distribuição de palavras aparen-
tadas. Daí a importância da análise lingüística diacrônica e da
glotocronolgia para o historiador que deseja compreender a
dinâmica e o sentido da evolução.

Glotocronologia–––––––––––––––––––––––––––––––––––––
De acordo com o Dicionário Aurélio (2009), glotocronologia significa: “[De
glot(o)- + cronologia.] método que procura relacionar, por meio de técnicas es-
tatísticas, a percentagem de cognatos presentes em duas línguas com o tempo
em que ambas se originaram de uma única fonte. [Assim, se duas línguas têm
atualmente em comum 80% de cognatos, ambas devem ter começado a diver-
gir cerca de 7,4 séculos atrás, i. e., por volta do séc. XIII.]”.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Estudaremos, a seguir, as línguas faladas na África!

Línguas afro-asiáticas
O primeiro grupo que destacaremos é o tronco formado
pelos povos falantes das línguas afro-asiáticas, que está dividido
em cinco subgrupos e cuja língua se desenvolveu em grande par-
te no primeiro milênio da Era Cristã:
1) Berbere.
2) Egípcio Antigo (língua extinta).
3) Semítico.
4) Cuchítico (subdividido em cinco ramos: setentrional,
central, oriental, meridional e ocidental).
5) Chádico.
Observe que a comunidade dos povos falantes de línguas
afro-asiáticas não apresenta necessariamente uma unidade ét-
nica e cultural, embora suas línguas façam parte de uma matriz
comum.

96 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

As línguas afro-asiáticas desenvolveram-se na África do


Norte e em parte da África Oriental (veja a Figura 2). Atualmente,
a predominância linguística e cultural na África do Norte advém
do árabe e suas vertentes regionais: árabe líbio, árabe argelino,
árabe saariano, árabe egípcio etc.

Fonte: PACHECO, 2008, p. 48.


Figura 2 Mapa das línguas africanas.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 97
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Para entender melhor o que vem a ser matriz linguística,


responda a seguinte questão: o que o idioma português, o espa-
nhol, o italiano e o francês têm em comum?
Essas línguas têm no latim sua matriz linguística, ou seja,
elas se desenvolveram e evoluíram a partir do latim e, apesar da
diferença entre a cultura dos seus falantes, apresentam similari-
dades entre si.

Línguas níger-kordofanianas e os Bantos


A segunda matriz linguística, por sinal a maior e mais in-
fluente no continente, são as línguas níger-kordofanianas. Ela
tem duas grandes ramificações:
1) Níger-congo.
2) Banto.
Antes das colonizações do século 19, os povos falantes
dessa grande matriz viviam na África Ocidental, África Central,
em partes consideráveis da África Oriental e na maior parte da
África Meridional (região pintada de amarelo na Figura 2).
Contudo, é provável que você já tenha se atentado ao fato
de que essas línguas receberam pequenas e grandes diferencia-
ções dentre as comunidades falantes.
O Níger-congo, por exemplo, divide-se em outros cinco ra-
mos menores (CURTIS, 1985, p. 52): “oeste-atlântico, gur, kwa,
bunue-congo e adamaua oriental”.

Desenvolvimento dos povos que falam o Níger-congo–––––


Outra questão que precisa ser observada é a importância dos rios na cultura e
no desenvolvimento dos povos africanos pré-coloniais, pois as regiões ao re-

98 © HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

dor deles proviam água e terras férteis, além de formarem vastos lagos, como
no caso do Rio Nilo na África Oriental.
O Rio Nilo e o Rio Níger foram os que mais se destacaram desde a Antiguida-
de. O Nilo, que nasce no território do atual Burundi, corta os territórios de Egito,
Etiópia, Quênia, República Democrática do Congo, Ruanda, Sudão, Tanzânia
e Uganda e despeja suas águas ao norte do continente no Mar Mediterrâneo,
depois de percorrer cerca de 6.700 km em seu percurso. Já o Níger nasce nas
montanhas na fronteira entre a Guiné e Serra Leoa e percorre os territórios de
Benim, Guiné, Níger, Nigéria, Mali e deságua no golfo da Guiné. O seu delta
(observe a Figura 3) foi testemunha da presença de vários povos africanos
das línguas níger-kordofaniano, como os Bantos, Iorubas, Mali, ibo, ijan, entre
tantos outros.
Mário Curtis Giordani (1985, p. 35) faz uma descrição dos caminhos percorri-
dos pelo rio Níger:
O Níger percorre uma extensão de 4.200 quilômetros descrevendo uma extensa
e original curva. Suas nascentes situam-se na faixa montanhosa do Atlântico;
dirige-se para o Saara, atravessando entre Tombuctu e Burem uma zona subd-
sértica, diminuindo, então, seu caudal; volta-se, depois, para o Golfo da Guiné
onde forma um vasto delta. As inúmeras quedas d’água só possibilitam a nave-
gação em alguns trechos.

Figura 3 Rio Níger.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 99
UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Já a subdivisão Banto é uma das maiores e mais antigas


da região, além de ter dado origem a mais de mil dialetos locais.
O povo Banto, que dá nome a esse tropo linguístico, provém
de um processo de expansão do ocidente (Nigéria e Camarões – flo-
restas tropicais) para o centro, oriente e sul da África. Esta expansão
teve início em fins do século 7º e encontrou seu auge do século 8º
ao 10º.
Note que, quando falamos povo Banto, não estamos afir-
mando que este era composto por apenas uma etnia. Uma pos-
sível identidade Banto só é viável de ser delineada por razões
linguísticas, uma vez que a diversidade que foi adquirida ao lon-
go do tempo não nos permite descrever uma unidade coesa des-
se povo. Porém, com base no que a historiografia e a linguística
adotam como sentido explicativo, afirmamos que o povo Banto
era o maior grupo cultural e linguístico africano.
Os Bantos dominavam a metalurgia, a agricultura, a fabri-
cação tanto de tecidos quanto de cerâmicas e tinham em sua
organização sociopolítica uma estrutura hierarquizada, na qual o
poder se centrava na figura de seu rei.
Além disso, os Bantos não formaram um grande império
ou uma grande unidade política, mas sua cultura foi fundamen-
tal na formulação da cultura subsaariana.
O historiador e diplomata Alberto da Costa e Silva (1996),
em seu estudo sobre a África Pré-Colonial, descreve o processo
relativamente rápido da expansão dos povos Bantos.
Ele afirma que os Bantos viviam da terra, pesca e caça, e
em muitas ocasiões utilizavam as armas em sua expansão, pois
exploravam a região colonizada até o esgotamento dos recursos.
Com o aumento da população, eles dividiam-se e voltavam-se
novamente para o processo de expansão territorial.

100 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Ainda segundo Silva (1996, p. 209), a variação e a plurali-


dade que os Bantos adquiriram modificavam seus hábitos, trans-
formavam a sua maneira de nomear e descrever as coisas, bem
como alteravam a alimentação, pois “ao mudar de paisagem e
ao entrar em contato com culturas diferentes”, sua língua sofria
influências e, nesse processo, novas palavras foram criadas com
significados mais amplos e diversificados.
Após termos tido esse primeiro contato com as línguas, ve-
jamos a seguir outro assunto relacionado à África Pré-Colonial.

Reino do Congo, Iorubas e a indústria africana pré-colonial


Mais organizados em termos políticos que os povos Ban-
tos, o Reino do Congo ocupou uma região consideravelmente
menor.
Situado no sul da África Ocidental desde sua fundação no
início do século 15, os habitantes do reino dominavam, assim
como os Bantos, a agricultura, a metalurgia, a fabricação de teci-
dos e cerâmicas e o comércio de metais preciosos. Em 1482, esta-
beleceram redes importantes de comércios com os portugueses
e, antes disso, já comercializavam com outras regiões do conti-
nente, dentre as quais a pertencente ao litoral oriental do conti-
nente (THORNTON, 2004).
Vale salientar que o conhecimento dos povos africanos,
desde o século 11, sobre a forja de metais e a fabricação de te-
cidos era muito bem desenvolvido. Tanto que na metalurgia, por
exemplo, a qualidade do metal produzido pelos africanos era su-
perior em muitos casos ao produzido na Europa.
Quando os europeus, especialmente portugueses e espa-
nhóis em um primeiro momento, iniciaram seu processo de ex-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 101


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

pansão marítima (séculos 13-15) em direção ao Oriente (Índia)


e, consequentemente, aos territórios além-mar (Américas nos
séculos 15-16), eles fizeram da África um verdadeiro entreposto
comercial.
Isso não aconteceu apenas devido ao comércio de escra-
vos africanos, que teve início a partir do século 16, mas também
porque os europeus encontraram nas elites dos reinos povos im-
portantes e parceiros comerciais, o que deu origem à formação
de novas rotas de comércio.
Segundo o historiador inglês John Thornton (2004), as re-
des comerciais e a produção de produtos manufaturados afri-
canas não eram deficitárias nem inferiores se comparados com
o comércio e com os manufaturados europeus – especialmente
nos séculos 15, 16 e 17.
Os comerciantes da África tinham muito interesse no co-
mércio de vários gêneros, e a posição de importadores de produ-
tos em larga escala só se processa a partir do século 18, com o iní-
cio da indústria moderna pós-revolução. Segundo o historiador:
As comparações entre o comércio dos séculos XVI e XVII e dos
dias atuais, relacionando países industrializados com os menos
desenvolvidos, não têm embasamento. Embora muitos produ-
tos importados pela África desde 1650 fossem bens manufatu-
rados (como ferro ou tecido) e que muitas de suas exportações
fossem, na maioria, de produtos semimanufaturados (couro,
cobre e ouro, borracha, marfim e escravos), um exame minu-
cioso revela que a antiga manufatura africana era em muitos
casos capaz de prover as necessidades do continente.
Talvez um dos mais interessantes aspectos dos primórdios do
comércio atlântico tenha sido o fato da Europa só ter vendido à
África artigos que ela já produzia — fato com freqüência negli-
genciado nas análises comerciais. Isso diferencia de imediato o
período inicial [contatos em maior escala com europeus] com
os dias de hoje, pois agora a indústria doméstica africana não

102 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

produz nenhum dos produtos manufaturados importados dos


países desenvolvidos (THORNTON, 2004, p. 89).

Ainda em relação ao comércio entre africanos e europeus,


prossegue o historiador:
Em resumo, o comércio não se desenvolveu para atender as
carências da África ou mesmo para suprir uma produção de-
ficiente ou problemas de qualidade dos produtos africanos
manufaturados. Mais exatamente, o comércio da África com a
Europa foi em grande parte motivado pelo prestígio, modismo,
gostos diferentes e um desejo de variar — e essas motivações
extravagantes apoiavam-se em uma economia produtiva razoa-
velmente bem desenvolvida e um poder de compra considerá-
vel. O comércio atlântico da África não foi um simples anseio
para preencher necessidades básicas, e da parte dos africanos
o interesse em importar mercadorias não representou um cri-
tério de valor de suas carências ou ineficiências, mas, em vez
disso, foi uma medida de extensão de seu mercado doméstico
(THORNTON, 2004, p. 90).

Como se observa, os povos africanos, desde o século 11


até o século 17, apresentavam um relativo sucesso comercial in-
terno, com técnicas e produção apuradas para o período. Isso a
levou, nos primeiros séculos de contato mais sistemático com os
europeus (a partir do 15), especialmente nas regiões banhadas
pelo Atlântico, a uma posição não submissa e muito menos infe-
riorizada frente aos países do Velho Mundo.
No que concerne ao sucesso comercial e a uma estrutu-
ra política bem organizada, destacaram-se também os Iorubas,
pois, além de formarem vários reinos na região do delta do Rio
Níger, a partir do ano 1000 d.C., estabeleceram redes de cidades,
sendo o primeiro povo da África Negra a se organizar em tor-
no de urbes. A primeira cidade capital ou cidade-estado foi Ifé,
seguida por Oyó, Sabê, Idah, Ondô, Equiti, entre outras (SILVA,
1997).

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 103


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Já os reinos iorubas eram centrados em cidades capitais e


seus soberanos diziam-se filhos de Obá, sua divindade proteto-
ra. Nestes reinos, os comerciantes gozavam de grande prestígio
e influência, assim como no Reino do Congo e de outros povos
ocidentais da África.
Guarde bem esses povos: Bantos e Iorubas. Ambos tiveram
grande influência na formação da cultura brasileira, pois muitos
homens e mulheres que foram trazidos para o Brasil na condição
de escravos, a partir do século 16, pertenciam a esses povos, es-
pecialmente os Bantos de Angola.
O historiador Eduardo Silva (1997) estudou uma das figu-
ras mais emblemáticas do fim do Império no Brasil: Candido da
Fonseca Galvão, um ex-combatente da Guerra do Paraguai (1865-
1870) que se autoproclamou descendente dos reis iorubas e ado-
tou o nome D. Obá II d’África. O príncipe africano escrevia em jor-
nais e era um ferrenho defensor do fim da escravidão. Era tratado
pelos negros escravizados e libertos que viviam na Corte como
um verdadeiro nobre, sendo que em algumas ocasiões o próprio
Imperador D. Pedro II o recebeu com honrarias. O diplomata e his-
toriador Alberto da Costa e Silva, por sua vez, escreveu um ensaio
sobre a presença e a cultura dos escravos mulçumanos letrados
no Rio de Janeiro no século 19. Confira as referências ao término
desta unidade e amplie seus conhecimentos sobre estes assuntos!
Vale a pena!

Para mais informações, consulte as obras de Eduardo Silva e


Alberto da Costa e Silva indicadas nas referências no fim desta
unidade.

104 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Todavia, devemos ressaltar que, no que diz respeito aos


escravos, não sofremos apenas a influência dos Bantos e dos Io-
rubas, uma vez que no século 19 escravos provenientes do norte
da África foram trazidos para o País e, consequentemente, vie-
ram com eles a religião de Maomé e a própria língua árabe. No
entanto, ainda não chegou o momento de nos debruçarmos so-
bre a questão da escravidão, tema que será estudado nas próxi-
mas unidades.
Após este contato com algumas das matrizes linguísticas e
culturais do continente africano e com o desenvolvimento eco-
nômico anterior ao período colonial, voltamos nossa atenção no-
vamente ao estudo de dois outros grupos linguísticos, as línguas
Nilo-Saarianas e as línguas Côisan.

Línguas Nilo-Saarianas e as línguas Côisan


Como o próprio nome indica, as línguas Nilo-saarianas são
aquelas faladas pelos povos que habitam em torno do Rio Nilo
e mais duas línguas da família faladas a leste no Sudão (sudanês
oriental e ocidental).
Já as línguas Coisân desenvolveram-se historicamente no
sul, especialmente no território que compõe a atual África do
Sul. Sobre elas há uma questão séria, relacionada aos direitos
humanos e que continua a ser debatida até hoje.
Entre os povos Côisan (ou Khoisan), que habitam o sudeste
da África, por exemplo, é milenar a tradição de mutilar as mu-
lheres. Quando completam 16 anos, as mulheres têm seus cli-
tóris removidos de maneira praticamente artesanal. No século
19, os cientistas (naturalistas) ficaram curiosos sobre a peculia-
ridade anatômica das mulheres Côisan, pois elas apresentavam

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 105


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

seu órgão genital em proporções muito maiores que o de outras


mulheres do continente e das europeias. Segundo Catherine Co-
query-Vidrovitv (2004), os naturalistas não sabiam que as mulhe-
res eram mutiladas e acreditavam que essa diferença gritante de
tamanho genital fosse um traço genético, assim como os quadris
muito largos.
Muitas mulheres Côisan que foram levadas para a Europa
depois de sua morte tinham os corpos exibidos em museus e
em exposições científicas. A prática de mutilação ainda perma-
nece entre os povos Côisan que habitam regiões interioranas e
rurais. Porém, movimentos urbanos tentam acabar com a prática
milenar baseando-se nos direitos humanos e denunciando, com
apoio da ONU, a brutalidade contra o corpo feminino (COQUERY-
-VIDROVITV, 2004, p. 766).
Como você já pôde entender, a formação das diversas lín-
guas e dialetos está associada diretamente a uma multiplicidade
de povos, cada um com sua presença e ações humanas no tempo
e no espaço.
Além disso, devemos lembrar que o berço da humanidade
foi palco de uma multiplicidade de etnias ricas e diversificadas
em termos de crenças e religiosidades.
Desse modo, assim como nós elaboramos nossa mitologia
da criação do mundo e do universo no Ocidente, os povos africa-
nos também o fizeram ao longo do tempo.
Suas divindades se aproximavam das características huma-
nas e, geralmente, compunham um panteão politeísta. Ou seja,
foi uma tendência comum no primeiro e praticamente durante
todo o segundo milênio a crença em diversos deuses, que esta-
vam relacionados inúmeras vezes a fenômenos da natureza ou

106 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

a fatores geográficos — como mares, rios, montanhas etc. A ex-


ceção era o norte que, como já vimos, tinha base monoteísta
(crença em único deus, Alá).
Politicamente, esses povos se organizaram em reinos, ci-
dades-Estado (caso dos Iorubas) e também em tribos nômades.
Suas economias, em comparação com as europeias do mesmo
período, eram desenvolvidas com técnicas apuradas de metalur-
gia e produção de tecidos.
Outra questão que chama atenção é a escravidão. Quando
discutimos esse tema, a primeira imagem que nos vem à cabeça
são navios negreiros cruzando o Atlântico e dividindo, desde a
Europa até as Américas, povos e famílias na condição de escra-
vos. Não é mesmo?
Como você pode supor, essa imagem não é equivocada,
uma vez que condiz com movimentos que são claramente per-
ceptíveis na História. Mas é interessante termos em mente que
no continente africano, desde antes da chegada do europeu, já
existia escravidão.
Até aqui, estudamos os sistemas de crença, as línguas fa-
ladas e outras questões culturais dos povos africanos que tive-
ram influência no Brasil. Portanto, é provável que quando lemos
sobre os Orixás e mencionamos brevemente a escravidão, você
tenha sentido certa familiaridade. Antes de seguirmos nossos
estudos, analisando a íntima relação dos africanos com o Brasil,
vamos nos debruçar um pouco mais em alguns aspectos gerais
da cultura africana pré-colonial, de modo especial sobre o Islã.

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UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

7. ASPECTOS CULTURAIS PRÉ-COLONIAIS

O animismo e o Islã
O historiador Ki-Zerbo (1980), já muito mencionado por
nós, é preciso ao realizar uma leitura histórica da África a partir
de dentro, sem ser analisada pelos parâmetros europeus, algo
que até o momento ainda não foi feito de modo apropriado.
Com isso, concluímos que a história da cultura africana é ain-
da muito estudada por um ponto de vista externo, o que oculta
grande parte de sua história, ou simplesmente a julga com olhar
preconceituoso.
Temos obrigação de construir uma imagem do continen-
te africano, principalmente de seu período pré-colonial, que vá
além do “senso comum”, daquela que nos é transmitida em fil-
mes, séries e documentários e que nos mostram uma África mui-
to distante dos padrões culturais tidos como “civilizados”.
A primeira coisa a sabermos é os motivos pelos quais so-
mos constantemente “bombardeados” com imagens negativas
da África. Já pensaram nisso? Por que motivos sempre vemos
informações “ruins” sobre a África e sua cultura? A resposta é
muito simples: quanto mais descaracterizamos o continente,
mais fácil é aceitar sua dominação, a destruição de suas caracte-
rísticas mais valiosas.
Segundo Tylor (1958): “Cultura é o todo complexo que in-
clui conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quais
capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro
de uma sociedade”. Assim sendo, a cultura é tudo aquilo que
produzimos no interior de um grupo, seja produção material ou
imaterial. Revalorizar a cultura africana é descobrir e compreen-

108 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

der uma rica produção que foi deixada de lado ou ignorada ao


longo da história.
Um exemplo claro disso já fora mencionado no início de
nossos estudos. Conhecemos muito da História do Egito e da cul-
tura produzida. Contudo, pouco ou quase nada sabemos sobre
os impérios ou reinos africanos que foram tão importantes para
a difusão e manutenção de tradições culturais. Perguntamos:
quem já ouviu falar do Império de Gana? Sabemos como era or-
ganizado politicamente?
Quando nos propomos a estudar a História da África, é im-
portantíssimo ter conhecimento de todos esses povos, os quais
constituíram grandes reinos e impérios, como também tiveram
grande importância na construção do universo cultural africano.
Visentini (2014) afirma que o Egito constitui a base do pa-
trimônio cultural, filosófico e científico de todo o continente.
Esse mesmo autor considera que é incorreto pensarmos que a
África é um continente pobre e que pouco inovou em sua his-
tória. Isso porque, antes da colonização europeia, o continente
africano era dinâmico do ponto de vista de pesquisas e da cultu-
ra, fruto do dinamismo de seus reinos.
Se partiu do Egito a base cultural e filosófica dos africa-
nos, o Islã desempenhou papel igualmente importante. Segundo
Visentini (2014), desde o século 8 a África vivenciou um privile-
giado processo de produção cultural original. Isso se deve ao Im-
pério do Sudão, que incorporou a cultura e a religião islâmica à
cultura nativa do continente. Vemos aqui uma relação extrema-
mente harmoniosa entre as religiões e tradições africanas com a
religião islâmica.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 109


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Isso não é tão paradoxal quando levamos em conta a im-


portante afirmação que Visentini (2014) nos apresenta: o Islã foi
introduzido na África por africanos, ou seja, não se trata de uma
religião implantada a força ou oriunda de um povo conquistador,
mas, sim, de uma implantação pacífica feita por africanos que
tiveram contato com muçulmanos no Oriente Médio.
Ao mesmo tempo que se trata de uma dinâmica muito
interessante e até mesmo singular, a relação da África com re-
ligiões externas, como no caso do Islã, dificulta o estudo e o en-
tendimento da religiosidade mais “tradicional” do continente.
Em outras palavras, é muito complicado afirmamos o que era
natural da religiosidade africana e o que foi modificado a partir
da incorporação de elementos religiosos externos, principalmen-
te islâmicos e cristãos.
Ademais, é comum vermos referências às religiões africa-
nas com termos pejorativos e negativos, mesmo que pesquisas
antropológicas, sociológicas e históricas já tenham desmontado
diversos desses conceitos. O que nos interessa é saber que a di-
versidade religiosa no continente é tão grande quanto sua plura-
lidade étnica, social e cultural.
De comum, entre as religiões africanas, vê-se a intenção
de ligar o homem com alguma divindade, gênio, ancestral etc.
Segundo Visentini (2014), é justamente esse intuito de ligar o
homem com o mundo sobrenatural é o que perpassa todas as
tradições religiosas do continente, por mais distintas que pos-
sam parecer em uma primeira análise.
Você pode estar se perguntando agora: por que temos
que conhecer a realidade religiosa da África? Simples: porque
essa realidade se reflete na organização social e política do con-
tinente, organização essa que é bastante delicada. Ademais, vale
lembrar que por maior que tenha sido a penetração do Islã e

110 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

do Cristianismo no continente, ainda é perfeitamente possível


encontrarmos traços muito fortes das religiões tradicionais da
África.
Segundo Visentini (2014), as informações que temos so-
bre a religiosidade africana indica que se tratava de crenças com
intensa valorização à vida, o que demandava uma harmonia en-
tre os homens e entre eles e a natureza. Sobre essas crenças, a
maioria era ligada ao culto aos ancestrais, mas acreditavam em
um ser supremo de onde viriam todas as pessoas. Por esse ponto
de vista, todos os seres humanos deveriam ser respeitados.
Com a afirmação feita anteriormente, torna-se possível
compreendermos porque o Islã e o Cristianismo se expandiram
(e ainda se expandem) muito pelo continente africano, não é
mesmo? Visentini (2014) ressalta que as religiões africanas eram
tolerantes e asseguravam a harmonia social. Por isso, não seria
exagero dizer que a maioria dos povos africanos viram com bons
olhos a doutrina cristã e islâmica.
Na realidade, foi o Islã que mais causou impacto na Áfri-
ca pré-colonização. Segundo El Fasi (2010), a religião islâmica foi
responsável por profundas transformações sociais e econômicas
em todo norte da África e se espalhou pelo interior do continen-
te em um movimento relativamente rápido.
Como vimos, a expansão do Islã foi favorecida pelas estru-
turas religiosas dominantes na África, anteriores ao frágil cris-
tianismo implantado no norte de continente. Segundo Visentini
(2014), essa religião tradicional era o animismo, crença em um
deus criador de tudo, que colocou um espírito em todas as coi-
sas, animadas ou não. Fora isso, o animismo atribui grande va-
lor aos anciões e ancestrais. Consequentemente, temos a valo-
rização dos idosos, daqueles que detêm mais conhecimento e
experiência.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 111


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Essa religiosidade favoreceu a aceitação do Islã pela sua


crença monoteísta. Contudo, é importante sabermos que o ani-
mismo nunca foi extinto da África e continuou sendo muito pra-
ticado, mesmo após a dominação do Islã. Muitos africanos se-
guiam animistas e islâmicos, uma vez que não se sentiam traindo
os antigos ancestrais e, ao mesmo tempo convertidos, assegura-
vam a possibilidade de comercializar com outros povos. A impor-
tância do Islã na África será abordada mais detalhadamente no
tópico seguinte.

Traços gerais das sociedades pré-coloniais


É fundamental deixar claro que nossa intenção com esse
tópico não é esgotar o tema proposto, algo que se mostra impos-
sível dados o pluralismo e a complexidade da cultura africana.
Faremos apenas algumas considerações gerais sobre traços da
sociedade pré-colonial africana. Alguns aspectos já foram men-
cionados em tópicos anteriores, mas serão melhor aprofunda-
dos agora.
Segundo Ki-Zerbo (2010), o principal motor da sociedade
pré-colonial era a família patriarcal. Até mesmo os grandes rei-
nos tinham uma organização política e social muito bem estabe-
lecida a partir do núcleo familiar. Visentini (2014) atenta ainda
para a presença de castas ou categorias sociais que serviriam
para demarcar o pertencimento a uma determinada categoria
profissional.
Se estamos nos referindo a uma organização familiar, é im-
portante mencionarmos que se tratava de sociedades que em
sua maioria eram patriarcais, havendo algumas exceções de so-
ciedades matriarcais. Visentini (2014) salienta que, ao contrário
da maioria das sociedades ocidentais, nem sempre o herdeiro

112 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

natural do “líder” da comunidade assumiria seu lugar após a


morte do referido líder. Portanto, concluímos que o exercício de
autoridade não era hereditário no continente africano.
Mas como essa autoridade era exercida? Evidentemente
no interior das famílias, dos grupos profissionais e também nos
vilarejos. Se falamos em uma estrutura social fundamentada na
noção de família e de “família estendida”, não é de estranhar que
a maioria dos reinos ou impérios africanos fosse composto por
vilarejos de pequeno-médio porte. Em cada vilarejo era escolhi-
do um “chefe” que tinha por finalidade simplesmente represen-
tar os habitantes da comunidade junto às autoridades do reino.
Por fim, a África tinha uma importante distinção social
quando comparada à Europa, e essa distinção se dava pela no-
ção de posse. Vamos trabalhar esse assunto mais para frente,
quando falarmos sobre a escravidão, mas, desde já, vocês devem
ter consciência de que na África não havia a noção de posse da
terra, como era comum na Europa.
Segundo Visentini (2014), os africanos entendiam que a
terra pertencia a todos os homens, vivos, mortos e que ainda
nasceriam. Com essa concepção sobre a posse, aliada ainda a
necessidade de mão de obra para cultivar as terras, as socieda-
des africanas tinham como algo “comum” a posse do trabalho e
do trabalhador.
Assim, uma característica fundamental da construção so-
cial africana pré-colonização é a existência da escravidão, da pos-
se da mão de obra e não da terra. Tal conjuntura favoreceu a pos-
terior prática do tráfico de escravos que viria a marcar a relação
entre Europa-África a partir do século 15-16, dinâmica essa que
abordaremos mais profundamente ao longo da Unidade 3.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 113


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

8. GRANDES CIVILIZAÇÕES AFRICANAS DA


ANTIGUIDADE
Estudaremos nesse tópico algumas das grandes civiliza-
ções da Antiguidade Africana. Já passamos por alguns deles em
outros tópicos e agora serão melhor detalhados. Como futuros
historiadores, é imprescindível conhecermos a História da África
e suas civilizações antigas, a grandiosidade dessas civilizações e
a importância que elas tiveram na construção da multiculturali-
dade africana.
A primeira grande civilização africana, como vocês podem
deduzir, é o Egito. Segundo Visentini (2014), o desenvolvimento
egípcio foi favorecido pela sua estratégica posição de ligação en-
tre o continente africano, asiático e europeu. Fora isso, não se
pode ignorar que o solo do Egito sempre foi fértil, o que favore-
cia a produção de excedentes.
Segundo o referido autor:
[...] grupos, que até então viviam de forma dispersa e desor-
ganizada, sentiram a necessidade de organizar-se. As colheitas,
cada vez mais abundantes, aumentaram ainda mais o cresci-
mento demográfico. A demarcação das terras foi resultado
desse desenvolvimento, atividade na qual se ocupavam chefes,
sacerdotes e seus servidores. A medição dessa rica e fértil terra
fez surgir a agrimensura, e a profissão de escriba. Da mesma
forma, foram dados os primeiros passos em direção ao cálculo
e à escrita (VISENTINI, 2014, p. 34).

O trecho citado anteriormente nos oferece importantes


informações sobre a relevância do Egito para a história da hu-
manidade, uma vez que é graças à sua terra fértil que surge a
agrimensura e os escribas, tão importantes no Mundo Antigo.
A grande civilização egípcia também se destaca pela utilização e
manuseio de metais, incluindo metais nobres.

114 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

O território do Egito foi unificado por volta do ano 3100


a.C., o que favoreceu ainda mais a consolidação de sua impor-
tância para o Mundo Antigo, importância essa que é sentida até
nossos dias e que influencia nossa cultura. Com o passar dos
anos, o Egito foi alvo de diversas invasões e dominações. Con-
tudo, com algumas adaptações e muitas trocas de dinastias, o
poder dos faraós só se findou com a dominação romana.
Sobre os egípcios nós já tínhamos algum conhecimento
prévio, uma vez que é a sociedade africana mais estudada em
nossos colégios. Interessante notar que vários materiais didáti-
cos simplesmente ignoram que o Egito faz parte da antiguidade
africana e que fora essa civilização quem propiciou grande avan-
ço para a humanidade.
Porém, pouco ouvimos falar sobre a civilização Axum – lo-
calizada onde hoje está a Etiópia, Somália, parte do Sudão e da
Eritreia. Desenvolveu-se entre os séculos 1º e 5º d.C., relacionan-
do-se com um Império Romano já decadente e ainda um período
de forte expansão e consolidação do cristianismo. Sua população
era composta, em sua maioria, de negros, mas se tratava de uma
sociedade bastante miscigenada, posto sua localização próxima
ao Egito e aos árabes.
Axum era conhecida no Mundo Antigo devido sua intensa
produção de incenso e sua consequente exportação para grande
parte dos centros civilizados da Antiguidade. Sua riqueza e posi-
ção estratégica fizeram com que ela conquistasse reinos vizinhos
e se tornasse um império com grande controle de terras férteis,
como também ainda com importante função nas relações co-
merciais entre os impérios do Oriente com Roma.
Gana foi outro império de grande relevância na Antigui-
dade Africana. Não confundam a atual Gana com o Império da

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 115


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Antiguidade que dominou a África Ocidental por muitos séculos.


A maioria de sua população era constituída por negros, e havia
forte presença de muçulmanos entre sua população. Segundo
Visentini (2014), durante o período correspondente à Idade Mé-
dia Europeia, era o Império de Gana que comandava ou ao me-
nos tinha considerável influência no comércio transaariano.
O controle dessas rotas que perpassavam o Saara marcou
a riqueza de Gana, o qual passou a ser considerado um império
muito rico, dada a grande quantidade de ouro que possuíam por
meio das trocas e do comércio. O Reino de Gana, fundado por
volta do ano 300 d.C., transformou-se em um império por volta
dos anos 900 d.C., só encontrando seu fim em 1240, quando sua
capital foi destruída pelos Mali, sendo que esses últimos cons-
tituíram outro importante reino e, posteriormente, um império
com forte tradição cultural mulçumana.
Poderíamos aqui mencionar outros impérios, como o de
Benim, Songhai etc., mas o importante é sabermos que todos
eles tiveram sua consolidação e poder baseados no comércio,
justamente em uma época na qual o comércio era praticamente
inexistente na Europa ou ainda pouco desenvolvido. Esses impé-
rios tiveram seus momentos de ápice e declínios muito pareci-
dos com os impérios europeus e mundiais, mas sua importância
no continente africano é visível até nossos dias.
Vejamos agora a relação entre os povos africanos e a cons-
trução da cultura brasileira.

116 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

9. ÁFRICA NO BRASIL: POVOS AFRICANOS NA FOR-


MAÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA
Vimos no tópico anterior uma série de características das
sociedades africanas pré-colonização, incluindo suas grandes ci-
vilizações. Agora, vamos iniciar nossa reflexão sobre a relação
entre os povos africanos e a construção da cultura brasileira.
Para começar, leia a carta que Cândido da Fonseca Galvão Alfe-
res, Honorário do Exército Brasileiro e autoproclamado Príncipe
Obá II d’África (príncipe dos Iorubas), escreveu para Dom Pedro
II:

Carta a Dom Pedro II, 1882––––––––––––––––––––––––––––


Senhor,
Como súdito obediente e devotado servidor de Vossa Majestade Imperial, ve-
nho comunicar a Vossa Majestade Imperial que foi por Deus servido abençoar
o meu consórcio, concedendo-me um filho, que viu a luz no dia 22 do corrente,
e que trouxe o nome de Vicente Abiodun da Fonseca Galvão, e se eu for feliz
em chegar criá-lo e chegar a ser homem, como espero da Divina Providência,
terá Vossa Majestade Imperial n’ele um tão devotado servidor e tão obediente
súdito, quanto eu me honro e prezo ser. Comunico também a Vossa Majestade
Imperial que o dito meu filho vai receber o sacramento do batismo no dia 4 do
próximo mês de fevereiro, sendo seu Padrinho meu primo o Príncipe de Oyó,
que aqui chegou no vapor em que vieram suas Altezas os Senhores Conde
D’Eu e a Sereníssima Virtuosa Majestade Imperial, para fazer publicar pela im-
prensa o Manifesto que meus súditos africanos dirigem a todas as nações da
terra, especialmente aos povos de Oyó e Eubá, na África, reconhecendo meu
filho como Príncipe do referido Estado e meu herdeiro com o nome africano da
realeza a que pertence de Obá 3º.
Peço gentilmente perdão a Vossa Majestade Imperial por servir-me d’este
meio para fazer a comunicação e o pedido supra, em razão de achar-se Vossa
Majestade Imperial ausente d’esta cidade.
Deus conserve a preciosa saúde e a vida de Vossa Majestade, de Sua Ma-
jestade a Imperatriz e de toda a Família Imperial como todos os Brasileiros
havemos mister.
Sou, Senhor, com o mais profundo respeito De Vossa Majestade Imperial re-
verente e submisso súdito.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 117


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1882.


Cândido da Fonseca Galvão, Alferes Honorário do Exército Brasileiro, Príncipe
Obá 2º d’África (SILVA, 1997, p. 193).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Como você pode ver, essa carta se insere no contexto dos
grandes debates travados na sociedade brasileira nos últimos de-
cênios do século 19, debates esses que tratavam da escravidão,
já bastante combatida ao redor do mundo. Além disso, ela tam-
bém expressa uma forte identidade, desenvolvida no Brasil ao
longo do tempo, dos negros escravos com seus locais de origem.
Até a proclamação da República (1889), era comum encon-
trar em anúncios de jornal notícias sobre escravos fugidos, com
sua descrição física e local de origem. Assim, o local de origem do
escravo procurado era sempre identificado nos anúncios de re-
compensa: João Silva de nação nagô ou Miguel Esteves de nação
zulu, por exemplo.
Atente-se, porém, ao fato de que até o século 19 o termo
“nação” não simbolizava um país e seu povo, mas denominava
apenas o local de nascimento de uma pessoa. Para mais informa-
ções sobre esses anúncios e registros, recomendamos a leitura
da obra do historiador Gilberto Freyre (2000, 1969, 2000b), refe-
renciada ao término desta unidade.
Voltando ao excêntrico príncipe Dom Obá II D’África, é
importante saber que ele vivia na Corte e andava pelas ruas da
cidade trajando roupas europeias completas (casaco, chapéu,
bengala, botas etc.). Apesar de ser tratado pelas autoridades lo-
cais com certa chacota, era acolhido com respeito e honraria de
príncipe pelo povo, especialmente pelos africanos e seus des-
cendentes brasileiros.

118 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Dom Obá participou da vida pública brasileira no fim do


século 19 por meio da imprensa, na qual publicou artigos sobre
os benefícios da imigração de africanos na qualidade de traba-
lhadores livres e assalariados para o Brasil, além de textos nos
quais defendeu, sobretudo, o fim da escravidão.
Era o auge do movimento abolicionista no país: nomes
como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e Ângelo Agostini fo-
ram expoentes do movimento.
Os abolicionistas, como a própria palavra nos permite en-
tender, defendiam o fim da escravidão. Um dos principais argu-
mentos desses homens era de que a escravidão assolava e des-
truía o País, além de degradar os negros.
O tráfico de escravos no Brasil, algo que trataremos melhor
na próxima unidade, durou até 1850, quando foi assinada a Lei
Eusébio de Queiroz, que colocava fim à importação de mão de
obra escrava para o País, mas não acabava com a instituição da
escravidão.
O fim do tráfico negreiro provocou a realimentação da cul-
tura africana no território brasileiro, ou seja, à medida que os ne-
gros escravizados trazidos da África pararam de chegar do além-
-mar, houve uma ruptura com a cultura africana de forma direta,
mas não da cultura dos homens que viviam há gerações nas terras
brasileiras.
Essa cultura, diga-se de passagem, não era mais a cultura
africana que se opunha à cultura dos europeus e dos índios que
viviam em nosso território, mas fazia parte de uma cultura que
passou a ser desenvolvida no trópico desde que os primeiros po-
vos africanos — Iorubas, Bantos, congoleses, nagôs, zulus, entre
outros — chegaram ao Brasil. Não seria incorreto dizermos que

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 119


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

já se tratava de um sincretismo cultural, uma “mistura” da cultu-


ra africana com a cultura europeia e indígena.
As religiões afro-brasileiras, por exemplo, apresentam algu-
mas similaridades com a cultura religiosa africana. Elas utilizam
os terreiros como lugar do sagrado, e a cultura é transmitida, so-
bretudo, pela oralidade – não havendo um “livro sagrado”, como
a Bíblia no caso do cristianismo. Isso fica claro com a leitura do
texto da INTECAB (Instituto da Tradição e Cultura Afro-Brasileira):
A cultura do terreiro é transmitida através de um amplo con-
junto de textos orais. São transmitidos de geração a geração,
diretamente dos mais antigos aos mais jovens. Trata-se de cân-
ticos, invocações e nomes atributivos — os oriki -, textos mí-
ticos, textos ligados às diversas cerimônias, história de seres
ou animais naturais ou sobrenaturais, atividades rituais e de
acontecimentos que pela sua carga fantástica ou excepcional
transformaram-se em lendas ou parábolas.
Todos eles são instrumentos de comunicação e de aprendizado
de um complexo e dinâmico sistema cultural. Revivem e refor-
çam a existência viva desse sistema de conhecimentos e de re-
lações, normas de existência ou princípios básicos de convivên-
cia associativa. Transmitem valores éticos, religiosos e sociais
(MESTRE DIDI, 2010).

A influência dos povos africanos se deu, dessa forma, em


vários aspectos de nossa sociabilidade, desde a questão religiosa
dos cultos e das religiões afro-brasileiras (umbanda, quimbanda,
candomblé, macumba, entre tantas outras) até a influência lin-
guística, passando pela influência alimentar, musical etc.
Com base nisso, podemos afirmar que o português fala-
do no Brasil tem influência direta dos idiomas da África, ou seja,
várias palavras que usamos cotidianamente têm suas origens
nos idiomas e dialetos africanos. Como observamos no decor-
rer deste estudo, palavras que utilizamos cotidianamente como

120 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

abóbora, zumbi, cachaça, bunda, minhoca, entre outras, têm sua


origem em idiomas africanos. Tais vocábulos foram ao longo dos
anos incorporados à nossa forma de dar nome às coisas (MELLO
E SOUZA, 2007, p. 219) e passaram a fazer parte do nosso idioma
oficial.
Como foi ressaltado no início desta unidade, a língua pos-
sui um papel importante na construção das culturas. Muitas das
palavras do português brasileiro, por exemplo, são de origem
africana e representam muito mais do que isso: banguela, qui-
tanda, quiabo, sacana, samba, entre outras, não são apenas pa-
lavras de dicionário, mas exprimem nossa cultura, as expressões
usadas em nossas piadas e conversas do dia a dia, os nomes de
alimentos e os hábitos praticados em nosso País desde o período
colonial, e sequer nos lembramos, ou talvez nem saibamos, de
que a origem desses vocábulos vem da África.
O samba nos dias de hoje é um símbolo de nossa expressão
cultural, um produto de exportação que ao mesmo tempo deno-
ta a nossa “brasilidade”, nosso ritmo, nossos gostos e até senti-
mentos mais íntimos. Pensemos nos sambas do mestre Cartola
(1908–1980) e logo percebemos que suas canções retratam toda
uma série de subjetivações em relação ao amor, ciúmes, inveja e
outras questões sentimentais da nossa vida cotidiana.
No Texto Complementar indicado ao final da unidade,
você estudará a emergência do samba na cidade de São Paulo e
a relação estabelecida entre esse estilo musical e os movimen-
tos pós-abolição e a ocupação urbana dos ex-escravos e seus
descendentes.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 121


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Para pesquisa e aprofundamento do conhecimento, acesse são


os sites das escolas de samba tanto do Rio de Janeiro quanto e
de São Paulo, que não demonstram apenas a expressão de um
estilo musical, mas também trazem em suas histórias movimen-
tos de resistência cultural, política e social. Visite também o site
oficial dedicado ao cantor: CARTOLA. Homepage. Disponível
em: <http://www.cartola.org.br/>. Acesso em: 25 mar. 2010.

O batuque, a capoeira e o rebolado são algumas das carac-


terísticas que desenvolvemos em nossa sociedade e que também
marcam nossa brasilidade, o modo como somos reconhecidos
no mundo todo, e todas essas características receberam influên-
cias da cultura africana (absorvida e remodelada em nosso País).
Atualmente, vivemos um período que valoriza e tenta en-
tender cada vez mais essas influências em nossa formação cul-
tural. Não é em vão que nesse exato momento você esteja se
dedicando ao estudo da História da África, pois o que estamos
fazendo em nossa sociedade como um todo é resgatar a histó-
ria de um continente que tem uma relação muito íntima com o
nosso e que ao longo da história foi constantemente esquecido
e ignorado.
Em cerca de 400 anos, a cultura dos povos africanos, euro-
peus e indígenas no Brasil tornou-se uma espécie híbrida, incor-
porando e reformulando nossas maneiras de viver, nosso modo
de ser, agir e se comportar socialmente.
Entretanto, essa valorização é recente e emergiu no co-
meço do século 20. Antes disso, a “cultura afro” era deixada de
lado, e a definição do Brasil e da cultura brasileira ignorava cons-
cientemente essa questão. Analisaremos esse tema, ainda nes-

122 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

te tópico, quando falarmos da democracia racial. Antes, porém,


cabe nos aprofundarmos um pouco mais nessa íntima relação
Brasil-África.

A conexão entre Brasil-África.


Temos que ter clareza de que a relação Brasil-África (ou,
porque não, África-Brasil) foi marcada pelos padrões do antigo
sistema colonial. Assim sendo, temos que lembrar que, na maior
parte dessa relação, o Brasil era colônia de Portugal, existindo
em função das necessidades que sua metrópole apresentava e
não de suas próprias.
Desde que Portugal iniciou a colonização, o Brasil foi estru-
turado naquilo que hoje chamaríamos de grandes latifúndios, e
a escassez de mão de obra favoreceu a vinda constante e maciça
de escravos Fora isso, como bem afirma Visentini (2014), a escra-
vidão favorecia a metrópole portuguesa ao viabilizar a manuten-
ção e entrepostos na costa da África.
Assim que chegavam ao Brasil, os escravos eram comer-
cializados no mercado por um valor que variava de 20 mil réis,
chegando até a 300 mil réis no século 19. Válido destacar que o
mercado privilegiava o escravo negro por esse ter maior conheci-
mento do processo produtivo. Isso fez com que os indígenas fos-
sem deixados em segundo plano no processo de escravidão, sen-
do utilizados em locais mais pobres e com menor produtividade.
Há muitas controvérsias sobre os grupos que vieram da
África para o Brasil. Segundo Visentini:
Independente das discussões dos especialistas, costuma-se
classificar os dois grandes grupos étnicos africanos no Brasil em
sudaneses e bantos. Os sudaneses, influenciados pela cultura
árabe, eram na maioria dos casos islamizados. Os principais

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 123


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

grupos étnicos que pertenciam aos sudaneses eram os iorubas


ou nagôs, jejes, minas, hauças, tapas e bornus. A presença dos
sudaneses foi maior na Bahia, embora antropólogos e historia-
dores procurem não minimizar a presença banta na região. Aos
bantos, que na África povoavam o sul do continente, perten-
ciam aos angolas, os congos ou cabindas e os benguelas. Esses
grupos predominaram no Rio de Janeiro e em Pernambuco (VI-
SENTINI, 2014, p. 53).

Essas informações dadas pelo autor nos deixa claro que


ocorreu um processo de miscigenação entre os grupos africanos.
Esse processo foi intensificado e era praticado conscientemente
pelos senhores de escravos, que viam na mistura entre grupos
uma forma de segurança, evitando a união imediata dos escra-
vos contra os seus “proprietários”. Assim, ocorreu uma quebra
das estruturas familiares dos africanos.
Evidentemente, com o contato entre europeus, ocorre
também a miscigenação entre brancos e negros, miscigenação
que veio a marcar a realidade social brasileira até nossos dias e
que atribui à nossa sociedade uma característica específica.
Há casos, não raros, de grupos de escravos que tentaram
se reorganizar no Brasil, trazendo de volta suas antigas estrutu-
ras sociais e familiares. Em Palmares, temos o exemplo mais níti-
do dessa intenção e se concretiza como a mais visível resistência
à escravidão.
Alguns escravos conseguiram regressar à África e, segundo
Visentini (2014), formaram comunidades de “africanos-brasilei-
ros”, cuja identidade cultural já não era estritamente africana,
mas, sim, oriunda de suas experiências no Brasil.
Onde queremos chegar com o levantamento desses da-
dos? Simples: a relação entre Brasil-África foi criada pela dinâmi-

124 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

ca da escravidão, mas foi além disso, construindo um verdadeiro


elo cultural, social e econômico que se manteve e foi ampliado
ao longo dos séculos e cujos resultados são visíveis ainda em
nossos dias.
Passemos agora à análise da construção da imagem do ne-
gro em nossa sociedade.

Democracia racial ou exclusão social? O lugar do negro na so-


ciedade brasileira nos debates histórico-sociológicos
Proclamada a Independência do Brasil em 1822, era hora
de definir o que era ser brasileiro.
Ao longo do século 19, a definição que encontramos, es-
pecialmente entre nossos intelectuais e políticos, era a de um
país que deveria ser branco e civilizado para atingir seu ideal. Ou
seja, era preciso termos o padrão europeu para alcançarmos o
desenvolvimento econômico e social.
Desse modo, o número elevado de negros e mestiços foi
encarado, até o começo do século 20, como um grande impedi-
mento ao desenvolvimento social e cultural do País.
A literatura romântica do século 19 afirmava que o brasi-
leiro era fruto da integração entre portugueses e índios, sendo
este último um elemento extremamente idealizado e retratado
como um herói, um bravo e nobre habitante da terra (CANDIDO,
2000). A obra O Guarani, de José de Alencar, é um exemplo dessa
literatura.
Diante disso, as discussões sobre os rumos que o País
deveria adotar para solucionar esse problema ganharam força
depois da proibição do tráfico negreiro (1850). Uma das solu-
ções encontradas foi a de promover a imigração cada vez maior

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 125


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

de europeus (alemães, italianos, suíços etc.) para que eles aju-


dassem no desenvolvimento do País e, consequentemente, no
“branqueando” do Brasil.
Muitos dos nossos homens de Ciências e Letras oitocentis-
tas acreditavam que, ao misturar o sangue dos brancos europeus
(tidos como pertencentes a uma raça superior) com o dos negros
e mestiços, o País se tornaria gradativamente um local de maio-
ria branca e, com isso, a civilização poderia se desenvolver de
forma plena entre nós.
Tal panorama só foi alterado no início do século 20, espe-
cificamente depois da Semana de Arte Moderna de São Paulo
em 1922 (veja Figura 4), que valorizou a capacidade brasileira de
misturar diferentes culturas.
Segundo nossos modernistas, essa capacidade transforma-
va o Brasil em um país de cultura extremamente plástica e capaz
de absorver diversas influências e transformá-las à sua maneira.
O negro, nessa ocasião, passou a ser incorporado à nossa forma-
ção social e histórica.

126 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Figura 4 Antropofagia, quadro da artista plástica Tarsila do Amaral exibido na Semana


de Arte Moderna.

Entretanto, ainda persistia entre nossos intelectuais a forte


ideia do branqueamento. Foi apenas em 1933 que esse pano-
rama se alterou radicalmente. Um dos principais responsáveis
por essa mudança de perspectiva foi o historiador pernambuca-
no Gilberto Freyre, que, ao publicar Casa-Grande & Senzala em
1933, inverteu as concepções correntes em relação à “maldição
dos mestiços e dos pretos”.
Casa-Grande & Senzala fundou um novo mito sobre a for-
mação da cultura brasileira: o fato de o brasileiro ser mestiço,

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 127


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

isto é, fruto da mistura de raças e culturas diferentes (português,


índio e negro escravo), não era um fator de atraso, mas de uma
sociedade pronta para o futuro que tendia a misturar os povos
cada vez mais.
O que Gilberto Freyre fez foi afirmar a um país de mestiços
que ser mestiço não era ruim, mas uma grande qualidade! Ao
mesmo tempo, ele afirmou para as autoridades políticas e inte-
lectuais que o País era capaz de se modernizar e até mesmo se
posicionar à frente dos demais pela sua miscigenação.
Para o autor, a relação entre senhores e escravos no Brasil
não foi antagônica a ponto de inviabilizar a existência de esta-
bilidade social. Pelo contrário, mesmo a relação bruta produ-
zida pela escravidão não impediu que a cultura africana exer-
cesse forte influência sobre a cultura desenvolvida na América
portuguesa.
No entanto, ao longo do século passado, a visão de Gilber-
to Freyre foi duramente contestada por outras interpretações do
Brasil, especialmente pelo sociólogo Florestan Fernandes.
Vale salientar que tanto Freyre quanto Florestan contribuí-
ram de maneira significativa para a compreensão e interpretação
do Brasil, desde suas origens mais remotas, como o período co-
lonial, até o período de modernização industrial enfrentado pelo
País no decorrer do século 20. Contudo, como é de domínio públi-
co, Freyre e Florestan analisaram o Brasil com olhares diametral-
mente opostos.
Gilberto Freyre olhava para o passado do Brasil com gran-
de otimismo. Amparado pela Antropologia sincrônica, descreveu
com riqueza de detalhes a formação da sociedade brasileira sob
o regime da família patriarcal. Para ele, a cultura negra produzida

128 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

nos trópicos é colocada em um lugar de destaque, pois suas múl-


tiplas influências demarcaram os caracteres do que viria a ser o
brasileiro. A relação entre negros, mulatos e brancos configurou
não apenas uma população de mestiços, mas também formou o
Brasil que conhecemos. O negro ocupou nos estudos de Gilberto
Freyre o papel de mediador das raças formadoras da nação (SIL-
VA, 2003).

Sobre o conceito de antropologia sincrônica, é importante con-


sultar o texto: MELLO, E. C. O “ovo de Colombo” gilbertiano. In:
FALCÃO, J.; ARAÚJO, R. M. B. (Orgs.). O imperador das idéias.
Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.

Com muito rigor, Florestan Fernandes, amparado no ma-


terialismo histórico de Karl Marx, tentava explicar o desenvol-
vimento socioeconômico do Brasil dentro da “ordem social
competitiva”. Para ele, o mulato e o negro sempre estiveram à
margem da sociedade.
No livro A integração do negro na sociedade de classes,
Fernandes (1964) realizou uma pesquisa para o concurso da ca-
deira de Sociologia 1, no início da década de 1960 – mais espe-
cificamente entre os anos de 1963-64, pesquisa na qual tomou
como objeto de análise a emergência dos negros e mulatos na
ordem social competitiva.
Em outras palavras, analisou como o elemento negro foi
inserido no capitalismo emergente da sociedade brasileira. Flo-
restan (1964; 1972) defrontou-se com o mito da democracia ra-
cial, inventado, segundo ele, pela elite “branca” e/ou “burgue-
sia” insurgente na ordem social competitiva.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 129


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

A citação a seguir ilustra a representação do mito da de-


mocracia racial para Florestan Fernandes. As ideias nela conti-
das inspiraram vários intelectuais que trabalharam o tema, tais
como os sociólogos Fernando Henrique Cardoso (ex-presidente
da República) e Otavio Ianni, e também aqueles que dirigiram
suas críticas a Gilberto Freyre, que defendeu, durante os anos de
1960, a tese de que o Brasil constituía uma “democracia racial”:
Admita-se, de passagem, que esse mito não nasceu de um
momento para o outro. Ele germinou longamente, aparecen-
do em todas as avaliações que pintavam o jugo escravo como
contendo ‘muito pouco fel’ e sendo suave, doce e cristãmente
humano. Todavia, tal mito não possuiria sentido na sociedade
escravocrata e senhorial. A própria legitimação da ordem social,
que aquela sociedade pressupunha, repelia a idéia de uma ‘de-
mocracia racial’. Que igualdade poderia haver entre o ‘senhor’,
o ‘escravo’ e o ‘liberto’? A ordenação das relações sociais exigia,
mesmo, a manifestação aberta, regular e irresistível do precon-
ceito e da discriminação raciais – ou para legitimar a ordem es-
tabelecida; ou para preservar as distâncias sociais em que ela se
assentava. [...] Imposto de cima para baixo, como algo essencial
à respeitabilidade do brasileiro, ao funcionamento normal das
instituições e ao equilíbrio da ordem nacional, aquele mito aca-
bou caracterizando a ‘ideologia racial brasileira’, perdendo-se
por completo as identificações que o confinavam à ideologia e
às técnicas de dominação de uma classe social. [...] Na medida
em que contribuía para resguardar as velhas elites da obrigação
de introduzir inovações efetivamente radicais e liberalizadoras
nas relações dos ‘brancos’ com os ‘negros’, ele auxiliou-as a
manter quase intacto o arcabouço em que se assentava a do-
minação tradicionalista e patrimonialista, base social da hege-
monia da camada senhorial, da autonomia da ‘raça branca’ e da
heteronomia da ‘raça negra’. Ao ligar-se a esse efeito, é evidente
que o mito da democracia racial assumiu importância específica
das forças de inércia social, que atuavam no sentido de garantir
a perpetuidade de esquemas de ordenação das relações sociais
herdadas do passado (FERNANDES, 1964, p. 228- 237).

130 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

A falsa impressão dada pela ausência de conflitos abertos


entre as raças no Brasil, que embasou o argumento de defesa da
democracia racial, não ocorreu por docilidade ou passividade do
negro e mulato, mas pela omissão do ‘branco’ ou das elites, que
não conseguiram consolidar de fato a ordem social competitiva.
Desse modo, a modernização capitalista ficou reservada apenas
a alguns setores específicos da sociedade brasileira.
Assim, permaneceram, de forma maciça, padrões de com-
portamento social arcaicos, ou seja, o negro foi mantido à mar-
gem do processo, cabendo a ele posição desprivilegiada na ordem
social competitiva (sociedade capitalista) (FERNANDES, 1964, p.
225).
Em 1977, Fernandes e Freyre trocaram farpas abertamente
no jornal O Globo: Freyre defendia que o Brasil era uma “demo-
cracia racial” e acusava Fernandes de arcaico-marxista. Fernan-
des, por sua vez, tratou com ironia essas afirmações, posto que
sempre defendeu que nossa sociedade era uma “sociedade de
brancos para brancos”. A matéria do jornal afirmava o seguinte:
Ao comentar as críticas feitas pelo sociólogo Gilberto Freyre aos
que chamou de ‘sociólogos arcaicos-marxistas’, o professor Flo-
restan Fernandes disse ontem que ‘não existe sequer democra-
cia para brancos poderosos, imagine-se para negros e mulatos’.
E acrescentou: – Ficaria muito alarmado se ele me elogiasse o
trabalho que se faz em São Paulo; quando nos critica nos home-
nageia (FREYRE apud FALCÃO; ARAÚJO, 2001, anexos).

O que podemos ver nessa matéria é que, na década de


1970, Freyre defendia a tese de que o Brasil constituía uma “de-
mocracia racial”. As críticas feitas a Freyre por ser um defensor
desse mito — ressalta-se que as críticas foram feitas na década
de 1970 e não no ano da publicação de Casa-Grande & Senzala,
em 1933 — têm procedência. Segue o artigo:

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 131


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Na sua exposição, no simpósio ‘Democracia e Política Social’


quinta-feira em Brasília, Freyre disse existir no Brasil uma de-
mocracia social e racial e, com base no trabalho de Martin Ges-
ter, correspondente no Brasil do jornal alemão ‘Frankfurter All-
gemeine Zeitung’, criticou a tese de Florestan Fernandes de que
a sociedade brasileira seria uma sociedade de ‘brancos para
brancos’. Freyre (que não identificou nominalmente Florestan,
preferindo chamá-lo de ‘talvez desvairado até mais marxista
militante do que paulista conhecedor do Brasil todo’) estendeu
sua crítica aos sociólogos paulistas em geral, afirmando ser ‘um
paradoxo que justamente em São Paulo floresçam sociólogos
arcaico-marxistas’. – As críticas dele são um elogio para o nosso
trabalho. Criticar é um direito dele e não nos preocupa – disse
Florestan ao tomar conhecimento dos ataques de Freyre (FLO-
RESTAN apud FALCÃO; ARAÚJO, 2001, anexos).

Note, porém, que Freyre é acusado injustamente de ter


defendido o mito da democracia racial em seu ensaio de estreia,
Casa-Grande & Senzala, em 1933.
Uma leitura atenta de Casa-Grande & Senzala nos revela que
o termo “democracia racial” não se encontra em nenhuma das 532
páginas do livro (dividas em cinco capítulos). E, ao que nos parece,
Freyre não faz uma história de uma possível natureza democráti-
ca da sociedade brasileira; pelo contrário, descreve as formas de
mando.
Desde o prefácio, o leitor é alertado sobre o poder que o
patriarca tem sobre a vida e a morte de seus dependentes (família
e escravos). No entanto, toda esta força não leva a um estado de
conflito nas relações entre seres humanos a ponto de a ordem
social estabelecida ser completamente vaporizada. Desse modo, a
sociedade brasileira constituiu-se de forma sui generis permitindo
— mesmo em um quadro de exploração explícita de um homem
pelo outro, como aconteceu na escravidão —, uma especificida-
de que deu caráter ao trópico, apesar dos vários antagonismos
existentes.

132 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

A insistente vinculação entre Casa-Grande & Senzala ao


mito da “democracia racial” se deu por uma leitura enviesada,
que acabou por atribuir tal ideia à obra.
As teses defendidas por Gilberto Freyre e Florestan Fer-
nandes, como observadas até aqui, partem de pontos diferen-
tes e chegam a resultados antagônicos. Contudo, os pensamen-
tos destes dois intelectuais marcaram de maneira exemplar um
grande debate que ocorreu não apenas na academia ou na uni-
versidade, mas também na sociedade, sobretudo nos meios de
comunicação — especialmente na imprensa periódica.
A História e a sua escrita — a Historiografia — avançaram
de modo considerável sobre as questões nas quais a escravidão, o
elemento negro e o mulato se colocam como principal objeto de
análise.
Para se ter uma ideia, a temática que mais desperta inte-
resse no Brasil e, consequentemente, tem o maior número de
trabalhos, é a escravidão.
Os paradigmas inaugurados por Freyre e Florestan ainda se
mantêm, de certa maneira, em voga, pois a Historiografia Con-
temporânea vem demonstrando que o problema da relação en-
tre negros, mulatos e brancos obedece a variações radicais de
região para região.
Contudo, a inserção de negros e mulatos na sociedade na
qualidade de cidadãos se apresenta, desde a época da abolição,
como um dos grandes problemas a serem enfrentados não só
como um objeto de análise, mas também como um dos proble-
mas socioeconômicos mais sérios e vitais para o desenvolvimen-
to de uma democracia social no Brasil.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 133


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Gilberto Freyre, nos últimos anos de sua vida, reconside-


rou suas afirmações sobre a democracia racial e apontou que
o negro e o mulato ficaram à margem (FREYRE, 1987), pois as
elites políticas brasileiras não atentaram para essa questão fun-
damental. Entretanto, apesar de abandonar a defesa da demo-
cracia racial, Gilberto Freyre não abandonou sua visão sobre a
constituição histórica da sociedade brasileira.
Como vimos até aqui, foi importante fazer o resgate desse
relevante debate sociológico no Brasil, uma vez que ele é signifi-
cante e atual.
Além disso, a partir desse debate, podemos pensar e re-
fletir sobre as considerações e soluções apresentadas por dois
importantes intelectuais brasileiros, e resgatar um passado re-
cente, no qual a discussão sobre o elemento negro foi duramen-
te travada.
Com isso, conseguiremos encontrar nossas próprias solu-
ções para a inclusão de negros, mulatos e da população pobre
em geral na sociedade que valoriza a pessoa humana.

10. TEXTO COMPLEMENTAR
No trecho a seguir, de autoria do antropólogo Edson Ro-
berto de Jesus, você conhecerá um pouco sobre a origem do
samba e sua inserção no espaço urbano da capital do Estado de
São Paulo, especialmente após a abolição da escravatura:

“BAMO SAMBÁ”––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Abolida a escravidão, outras organizações tomam corpo, como um aproveita-
mento da oportunidade de se organizar em conformidade com o grau de autono-
mia, liberdade e independência possibilitado pelo novo regime. Várias organiza-

134 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

ções são criadas, com caráter e organização inerentes às aspirações sociais dos
membros. Organizações informais destinadas apenas a promover a agregação
da população negra, que se reuniam regularmente para cantar, conversar, tocar
música, organizar bailes, viagens, levantar fundos etc., posteriormente desen-
cadearam processos de formação dos grupos de carnaval. Em sua maioria, tais
organizações tinham por recorte a sua concentração em atividades de lazer e
de recreação.
Imperceptível para a “nova” ordem urbana, a população negra, cujas conquis-
tas são tímidas, busca tornar sua história também história da cidade de São
Paulo. A história da população negra não está registrada nas faces dos edifí-
cios, nos viadutos, nos nomes internacionalizados das companhias de serviços
urbanos e das companhias teatrais. No entanto, essa população buscava ou-
tras formas de se manifestar e inscrever na cidade suas experiências.
Assim, além de marcar presença nos espaços urbanos da cidade concentrando-
-se em regiões que se tornavam autênticos territórios negros, onde podiam viver
de acordo com regras que eles próprios estabeleciam informalmente, abrindo
possibilidades para o exercício de suas práticas sociais e culturais, constitui-
-se uma leitura, ainda que diminuta e rarefeita, mas certamente diferenciada da
cidade, renovando seus trajetos e formas culturais, recriando suas práticas com
o fim de tentar sobreviver e de afirmar e reafirmar sua, ainda que precária, cida-
dania, elaborando, de modo modesto e criativo, novas formas de “manter vivas
suas tradições”.
Danças, cantos e músicas, independente de suas variações locais, provindas
do Batuque negro-africano, outrora comumente denominados por batuques,
passam, a partir do século 19, a ser conhecidos e denominados como Sam-
ba. Não obstante essa condição, o Batuque assumiu, nas diversas regiões do
país, feições diversas, próprias e bastante particulares.
Diverso, em São Paulo, o Batuque assumiu feitio, tempero e sabor peculiar,
elementos presentes em inúmeras abordagens narrativas que, apesar do ran-
ço racista e preconceituoso dos autores, trataram de registrar essas diversas
manifestações. Affonso A. de Freitas descreve que, por volta do final do século
19:
[...] o samba, amálgama das múltiplas danças regionais, da capoeira,
do lundu, do jongo, batucado em quase todas as fazendas e sítios do
Estado de São Paulo e fundamente desfigurado pelo perpassar do tem-
po e da civilização, é tudo quanto resta dos costumes característicos do
povo oprimido.
A pomba vuô; vuô, sentô
Arrebente o samba qu’eu já vô
Eh! Pomba! Eh!

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 135


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Eh! Pomba! Eh!


Serena, pomba, serena:
Não deixa de serená!
O sereno desta pomba
Lumeia que nem metá!
Eh! Pomba! Eh!
Eh! Pomba! Eh!
A pombinha vuô no chão
O amô no coração,
Eh! Pomba! Eh!
[...] Entoava no samba de há uns quarenta anos passados, o ébano
figurante, ao som ritmado dos tambaques, adufes e chocalhos, num
saracoteio infrene, em contorções grotescas, sem arte e sem estética,
lúbrico, torpemente lascivo no rebulir de quadris, que era o momento
calmo da dança, o ‘sereno da pomba’’, enquanto os parceiros, pretos
e pretas que o cercavam em círculo, agitados em permanente peneirar
de nádegas, repetiam na mesma toada, o estribilho. [...] Afinal já quase
exausto, a fronte gotejante de suor, entreparava o dançador em frente à
parceira que mais lhe agradara, desenvolvendo a dança em requebros
de desafio até a figurante distinguida pela preferência sair a terreiro. [...]
Então, entre os dois, desenvolvia-se um jogo de negaças amorosas que
se desdobrava, tardio às vezes, às vezes rápido, terminando invariavel-
mente em recíproca umbigada, lúbrica, lasciva, obscena [...].
Em meio aos debates, confrontos entre os batuqueiros das diversas cidades
por intermédio de versos improvisados, a dança, a música e o canto tomavam
corpo e tomavam o corpo. Mário Wagner Vieira da Cunha, relatando o que
ocorria nos barracões na Festa de São Bom Jesus de Pirapora, nota que no
desenvolvimento da performance
[...] os indivíduos mantêm o corpo um pouco curvado para a frente, e
a cabeça erguida com os olhos postos no além. As pernas, levemen-
te flexionadas, se realizavam no movimento da marcha, não havendo
elevações do tronco. Os braços conservam-se no geral retesados, es-
tando as mãos na altura dos ombros. A mais intensa e característica
movimentação é a dos quadris. Negras de ancas volumosas têm uma
habilidade inigualável em fazê-los girar em grandes círculos ou em
avançá-las e recuá-las.
Essa ‘’performance’’, atuação, interpretação, representação e desempenho, le-
vada a efeito no estado de São Paulo, tinha por centros importantes as cidades

136 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

de Capivari, Caçapava, Tietê, Laranjal Paulista, Porto Feliz, Piracicaba, Ara-


çaoiaba da Serra, Guaratinguetá, Cunha, Lorena, São Bom Jesus de Pirapora,
Jundiaí, Campinas, Guaxupé, Redenção da Serra, São Simão, Jacareí, Soro-
caba, Limeira, Rio Claro, São Pedro, Itu, Tatuí e São Carlos, dentre outras, e na
capital em função da migração da população negra dessa região. Também a
região litorânea, desde o século 17, registra a ocorrência do Batuque em diver-
sos engenhos de cana-de-açúcar na Ilha de São Vicente, também denominada
de Engenho do Governador, no entreposto de comércio de negros-escravos
localizado no povoado de Cubatão. Na cidade de Santos,
[...] houve até um Rei Batuqueiro, o famanaz Pai Felipe, que chefiava
o Quilombo da Vila Mathias, que ficava nas fraldas do Monte Serrat, e
que ficou famoso devido às batucadas que promovia [...]. Dizem até
que, durante os festejos da Abolição da Escravatura, Pai Felipe saiu
com sua gente pelas ruas da cidade, batucando com seus ‘tambaque’
e ‘adufos’, e que, junto do Largo do Carmo, formou uma grande roda
onde sambaram lado a lado com os brancos abolicionistas. [...] Existiam
também as famosas ‘batucadas’, cujas rodas se formavam lá no alto do
Monte Serrat e durante os festejos consagrados à Padroeira da Cidade
[...] onde se defrontavam os ‘bambas’ do samba ‘pesado’, da ‘pernada’.
Na capital do Estado de São Paulo, o Batuque irradiava-se pela cidade – Lar-
go de São Bento, Chafariz da Misericórdia, Igreja de São Benedito, Largo do
Rosário. Após a concessão oficial de licença para a realização de danças de
pretos ou danças de negros, a população negra, escrava e liberta, realizava
suas [...] danças e os cantores rompiam ao ruído seco do ‘reque-reque’, ao
som rouco e soturno dos ‘tambus’, das ‘puítas’ e dos urucungos que, com a
marimba solitária, formavam a coleção dos instrumentos africanos conhecidos
em nossa terra (JESUS, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

11. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Qual a origem do vocábulo “África”?

2) É possível estabelecer uma relação entre a denominação do continente


africano com a do americano?

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 137


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

3) Q
ual a relação dos povos europeus da Antiguidade com as culturas desen-
volvidas ao norte do continente africano?

4) O
que representou para os povos do norte africano a dominação
mulçumana?

5) C
omo definimos os diferentes povos que vivem na África e como eles
eram definidos no período que se estende do século 19 até metade do 20?

6) Q
uais são as bases que permitiram encarar a diferença entre os seres hu-
manos como questões puramente culturais em vez de raciais?

7) C
omo os povos africanos são estudados e divididos pela Historiografia
Contemporânea?

8) O que é uma língua matriz?

9) Analise a seguinte citação:


Os estudos linguísticos demonstram que as rotas e os caminhos das mi-
grações, assim como a difusão de culturas materiais e espirituais, são
marcadas pela distribuição de palavras aparentadas. Daí a importância da
análise linguística diacrônica e da glotocronologia para o historiador que
deseja compreender a dinâmica e o sentido da evolução (Disponível em
<http://www.irohin.org.br/onl/new.php?sec=news&id=790>. Acesso em:
06 abr. 2010).
Após analisá-la, responda: qual a importância dos estudos linguísticos
para o conhecimento histórico?

10) O que representam as diversas línguas e dialetos falados no continente


africano no período pré-colonial e nos dias de hoje?

11) Descreva os povos africanos que foram mencionados ao longo da unidade.

12) É necessário pesquisar mais para compreender a diversidade étnica do


continente africano? Por quê?

13) Mutilar mulheres é um costume antigo entre os Khoisans. Quais são seus
significados nos dias de hoje?

138 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

14) É possível estabelecer uma relação entre as divindades africanas com as


desenvolvidas por outros povos ao longo da história?

15) Em que medida essas divindades foram incorporadas na cultura brasileira?

16) Quais as influências mais significativas da cultura dos povos africanos na


formação da cultura brasileira?

17) Qual o lugar e o papel do negro escravo na sociedade brasileira oitocentista?

18) Quais leituras foram realizadas no século 20 sobre o papel de negros e


mulatos em nossa sociedade?

19) No Brasil existe uma democracia racial?

12. CONSIDERAÇÕES
Como estudamos nesta unidade, as línguas são mais que
simples formas de expressão, elas simbolizam parte de um gran-
de universo cultural desenvolvido no tempo e espaço pelas so-
ciedades humanas.
A forma como nomeamos as coisas, expressamos sentimen-
tos e construímos nossos sistemas de crenças (religiosa ou racio-
nal) traz muito sobre nós mesmos ou sobre os que são diferentes
de nós.
Nesta segunda unidade, pudemos investigar e aprender
sobre a grande diversidade cultural existente no continente afri-
cano. Seus quase incontáveis dialetos, etnias e suas maneiras
próprias de se relacionar com o mundo representam uma entre
muitas outras possibilidades de vida.
Em um segundo momento, estudamos sobre a influência
dos povos africanos em nossa sociedade e como a presença de

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 139


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

Iorubas, nagôs, congoleses, zulus, entre outros, na América con-


tribuíram de maneira singular na formação da cultura brasileira.
Finalmente, vimos que a participação dos negros foi ampla-
mente discutida na sociedade brasileira, especialmente no meio
acadêmico. Essas discussões servem como lastro para questões
do passado, presente e futuro de nossa sociedade.
Agora, é importante que você prossiga seus estudos com
dedicação, interagindo e contribuindo na construção do conheci-
mento sobre o vasto e rico continente africano. Até a Unidade 3!

13. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 Mapa da expansão do Império Árabe na África. Disponível em: <http://www.
historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=87>. Acesso em: 15 mar. 2012.
Figura 3 Rio Níger. Disponível em: <http://earth.google.com/intl/pt/>. Acesso em: 25
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Figura 4 Antropofagia, quadro da artista plástica Tarsila do Amaral exibido na
semana de arte moderna. Disponível em: <http://www.parana-online.com.br/
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Sites pesquisados
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<http://www.apcab.net/>. Acesso em: 25 mar. 2010.
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140 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

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Edition, 1922. Disponível em: <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/index.
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______. Entrevista: Gilberto Freyre – O anarquista construtivo. Veja [edição de
aniversário 35 anos], São Paulo, 24 de dez., 2003. Disponível em: <http://veja.abril.
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JESUS. E. R. “Bamo sambá”. Revista Histórica - Revista online do Arquivo Público do São
Paulo, n. 40, fev. 2010. Disponível em: <http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.
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RELEITURAS. Gilberto Freire. Disponível em: <http://www.releituras.com/
gilbertofreyre_bio.asp>. Acesso em: 15 mar. 2012.

14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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19. ed. São Paulo: Vozes, 2000.
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negra. In: FERRO, M. (Org.). O livro negro do colonialismo. Tradução de Joana Angélica
D’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
DALBY, D. Mapa lingüístico da África. In: KI-ZERBO, J. (Org.). História geral da África.
São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1980.
DIAGNE, P. História e lingüística. In: KI-ZERBO, J. (Org.). História geral da África. São
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FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa - conforme a nova
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142 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 2 – ÁFRICA, AFRICANOS E A ÁFRICA NO BRASIL

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Tradução de Marisa Rocha Motta. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 2004.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 143


© HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 3
ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA
ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS
COLONIZAÇÕES

1. OBJETIVOS
• A
pontar e compreender a relação dos povos africanos
com a cultura da escravidão.
• Reconhecer e refletir sobre o processo histórico que le-
vou à expansão marítima europeia e a sua relação com
a África.
• Identificar as principais discussões científicas sobre a
questão racial.
• Construir conhecimentos sobre as origens do discurso
científico moderno.

2. CONTEÚDOS
• E scravidão e escravismo na África.
• A relação existente entre a Europa e a África no período
da expansão marítima.
• História da ciência.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE

145
UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que


você leia as orientações a seguir:
1) Leia os livros indicados nas referências bibliográficas,
para que você amplie seus horizontes teóricos. Com-
pare com o material didático e discuta a unidade com
seus colegas e com o tutor.
2) Assista ao filme Amistad (Amistad). Direção de Steven
Spielberg. EUA, 1997.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Olá! Nesta unidade, daremos prosseguimento ao estudo
de História da África e investigaremos o desenvolvimento da re-
lação que a América e a Europa estabeleceram com a África a
partir das grandes navegações europeias.
A origem e o desenvolvimento da escravidão na África
serão o primeiro passo que daremos na construção do nosso
conhecimento.
A escravidão, como vimos na unidade anterior, era uma
prática comum entre os povos africanos. Mas foram os europeus
que iniciaram o tráfico em larga escala, ao redimensioná-lo e in-
seri-lo em uma dinâmica econômica e cultural.
Essa nova etapa da escravidão no mundo moderno está in-
timamente ligada à expansão europeia em direção ao Oriente,
especialmente à Índia, que ocorreu quase concomitante com o
processo de colonização das Américas.
A vinda forçada de membros de diversos povos africanos
na condição de escravos criou uma sociedade de tipos únicos no
continente americano.

146 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Entretanto, estudaremos também as justificativas utiliza-


das nos séculos iniciais da denominada Idade Moderna para a
expansão marítima e para a escravização dos negros africanos.
As bases para a escravidão extrapolam as questões econô-
micas, uma vez que também estavam ancoradas em justificati-
vas religiosas e culturais mais antigas do que imaginamos e que
dizem respeito até mesmo a considerar ou não o africano como
ser humano.
O preconceito contra os negros, que hoje é comumente
chamado de racismo, nas culturas ocidentais e árabes remetem
ao primeiro milênio e, em algumas ocasiões, encontravam seu
fundamento até mesmo em textos sagrados como a Bíblia.
Contudo, essa justificativa religiosa, que teve seu ápice de
influência entre os séculos 15 e 17, cedeu espaço para um novo
tipo de conhecimento do mundo, que passou a ser construído a
partir do século 18: o conhecimento científico.
Foi justamente no século 18, conhecido como o Século das
Luzes, que surgem as bases para um novo tipo de racismo — o
racismo científico —, que perduraria até a primeira metade do
século 20 e cujos efeitos são sentidos até hoje.
Como você percebeu, teremos um caminho interessante
daqui por diante. Desse modo, é importante que você se dedi-
que, participe de todas as atividades propostas e, sobretudo,
desfrute da satisfação que vem do aprendizado e da construção
do conhecimento.
Bons estudos!

5. ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 147


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Práticas do escravismo na África


A prática de submeter homens à condição de escravo não
é novidade na história humana. Gregos, romanos e egípcios pos-
suíam escravos em suas sociedades. Porém, a escravidão em lar-
ga escala que tinha o escravo como uma mercadoria é um fenô-
meno da Idade Moderna e, sobretudo, da dinâmica capitalista.
No Mundo Antigo, o escravo não era uma mercadoria. Na
Roma Antiga, por exemplo, os escravos gozavam de mobilidade
social e podiam, inclusive, ocupar postos de alta patente no exér-
cito. Já na Idade Moderna, o escravo era visto como um objeto,
uma mercadoria a ser vendida ou trocada livremente pelos se-
nhores. Ademais, a mobilidade social do escravo era muito res-
trita e/ou quase inexistente em alguns períodos.
Outra diferença fundamental da escravidão moderna é
que, diferentemente do Mundo Antigo, apenas homens e mu-
lheres negros foram escravizados. Assim, a grande fonte desse
contingente foi o continente africano. Portanto, não havia escra-
vidão por dívidas. Não tivemos brancos escravizados no mundo
moderno, apenas os negros – essa é uma marca importante para
entendermos esse processo de escravidão.
Contudo, a escravidão no continente não foi inventada ou
criada pelos europeus. O que, no entanto, não lhes tira o peso
das consequências da “instituição da escravidão”, uma vez que o
tráfico transatlântico de escravos deslocou cerca de 13 milhões
de pessoas ao longo de 400 anos, sendo que mais de dez por
cento (aproximadamente dois milhões) morreram na travessia
(GAUTIER, 2004, p. 664).
Desde o século 7º ocorria tráfico de escravos interno na
África, muitos dos escravos sendo levados para o norte do con-

148 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

tinente. A escravidão já fazia parte da estrutura socioeconômica


africana e também representava uma prática cultural corrente.
Segundo a historiadora francesa Arlette Gautier (2004, p. 665):
Bem antes de os europeus desembarcarem, o continente afri-
cano já conhecia a escravatura, embora nem todas as regiões
estivessem abrangidas. Ali, a escravidão apresentava uma série
de formas, desde as mais duras, próximas daquelas da Amé-
rica das plantações, até as mais suaves, que davam bastante
autonomia aos escravos e rapidamente os integravam numa
linhagem livre, até mesmo permitindo-lhes excepcionalmen-
te construir uma. Contudo, a privação de estatuto era radical
e provocava muitas resistências. O tráfico transaariano já de-
portava numerosos cativos através do deserto. Em sua grande
maioria, os escravos eram mulheres, o que geralmente é ex-
plicado pelo papel que lhes cabia de reprodutoras; mas eram
sobretudo suas qualidades de trabalhadoras e sua polivalência
que as tornavam súditos de escolha.

Ainda sobre o tema da importância da escravidão nas so-


ciedades africanas, segundo o historiador inglês John Thornton
(2004), os europeus ingressaram em um comércio já existente na
África e viram nele uma alternativa bastante interessante para
suprir necessidade de mão de obra sem custos para a produção
no novo mundo recém-descoberto.
Outra informação de que é preciso se ter clareza é a de, du-
rante a maior parte do tempo, o aprisionamento de outros povos
e a venda de homens e mulheres para os europeus, cujo destino
era predominantemente as Américas, foram praticados por africa-
nos que viviam e lucravam com o comércio de cativos.

Os traficantes africanos eram apoiados em muitos casos


pelas lideranças políticas locais e pelas próprias leis das socieda-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 149


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

des africanas, que reconheciam e legitimavam a instituição da


escravidão no continente.
De acordo com o autor:
[...] a escravidão era disseminada e inata na sociedade africana,
como era, naturalmente, o comércio de escravos. Os europeus
simplesmente entraram nesse mercado já existente, e os afri-
canos responderam ao aumento da demanda durante séculos
fornecendo mais escravos. O impacto demográfico, embora im-
portante, foi local e difícil de dissociar das perdas em razão de
lutas internas e do comércio de escravos no mercado doméstico
da África. De qualquer modo, os detentores do poder decisório
que permitiram que o comércio continuasse, fosse mercadores
ou líderes políticos, não sofreram as perdas de grande escala
e mantiveram suas transações. Por conseguinte, não se deve
aceitar a teoria de que eles foram compelidos sobre coerção ou
a tomar decisões irracionais.
Os fatos ocorridos em um período anterior a 1680 reforçaram
essa segunda posição. A escravidão era amplamente difundida
na África, e seu crescimento e desenvolvimento foi muito in-
dependente do Comércio Atlântico, exceto que, à medida que
esse comércio estimulou o comércio interno e seus desdobra-
mentos, ele também ocasionou a escravidão interna. Seu im-
pacto demográfico, no entanto, mesmo nos estágios iniciais foi
significativo, mas as pessoas prejudicadas não foram aquelas
que decidiram participar.
[...] O comércio de escravos (e o Comércio Atlântico em geral)
não pode ser visto como um “impacto” externo e funcionando
como uma espécie de fator autônomo na História da África. Em
vez disso, ele desenvolveu-se e foi organizado de forma racio-
nal pelas sociedades africanas que dela participaram, as quais
tinham completo controle sobre o mesmo, até que os escravos
embarcavam nos navios europeus para levá-los para as socieda-
des do Atlântico (THORNTON, 2004, p. 123-124).

150 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

A origem dessa escravidão, segundo o historiador, remete,


como já dissemos anteriormente, à questão da propriedade pri-
vada. Na África, o trabalho era a propriedade, enquanto na Euro-
pa era a terra. A posse de escravos se constitui na “propriedade
privada”, uma vez que a terra pertencia a todos.
Ao contrário da ideia que vincula a escravidão na África
a um subdesenvolvimento econômico, as origens — ou as pos-
síveis causas para a disseminação da escravidão no continente
africano em um período anterior e posterior à formação do gran-
de mercado atlântico de cativos — não se encontram no fato
[...] de a África ser uma região economicamente subdesenvol-
vida, onde o trabalho forçado não havia sido substituído pelo
trabalho livre. Na verdade, a escravidão estava enraizada em
estruturas legais e institucionais arraigadas das sociedades afri-
canas, e sua operacionalização diferia muito do modo pelo qual
subsistia nas sociedades européias.
A escravidão era difundida na África atlântica porque os escra-
vos eram a única forma de propriedade privada que produzia
rendimentos reconhecida nas leis africanas. Em contraste, nos
sistemas legais europeus a terra era a principal forma de pro-
priedade privada lucrativa, e a escravidão ocupava uma posição
relativamente inferior. De fato, a posse da terra era em geral
uma pré-condição na Europa para a utilização produtiva de es-
cravos, ao menos na agricultura. Em razão de sua característica
legal, a escravidão era de muitas maneiras equivalente funcio-
nal do relacionamento do proprietário da terra com seu arren-
datário na Europa e talvez igualmente disseminada (THORN-
TON, 2004, p. 124-125).

Expansão marítima e justificativas da escravidão


O processo que levou os europeus ao comércio com a Áfri-
ca emerge no momento da expansão marítima em direção ao
Oriente e, posteriormente, quando da ocupação e colonização

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 151


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

do continente americano. Porém, não podemos esquecer que,


antes das grandes navegações, a África já mantinha contato com
a Europa, por meio dos contatos com os muçulmanos no norte
do continente.
Foi justamente pelo domínio do Mediterrâneo pelos mu-
çulmanos que os Europeus tiveram a necessidade de se expandir
por outros meios, dando a volta na África, para encontrar rotas
alternativas de se chegar ao Oriente. Além dos muçulmanos, o
monopólio comercial dado pelos venezianos agravava a situa-
ção. Segundo Visentini:
A Europa, no final do século XIV, encontrava-se presa a seus
limites, sentindo a necessidade de se expandir. O comércio das
especiarias, monopolizado pelas cidades italianas, em especial
pelos venezianos, prejudicava o restante dos países do conti-
nente, pois os produtos eram vendidos a alto preço. A necessi-
dade de quebrar esse monopólio passou a ser uma questão de
sobrevivência para as economias monetárias (VISENTINI, 2014,
p. 41).

Assim, não há como negar que a expansão tenha sido im-


pulsionada principalmente por questões econômicas. Contudo,
é impossível concordar integralmente com Chaunu (1978) quan-
do considera que esse processo tenha ocorrido exclusivamente
por questões econômicas, pensamento que segue nitidamente
uma linha marxista, entendendo a expansão como fruto da pas-
sagem do feudalismo para o capitalismo.
Nessa interpretação sobre o passado, a expansão fazia par-
te de um projeto colonial europeu com finalidades econômicas.
Sobre essa questão, sugerimos que leia a primeira parte do livro
de Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do sistema co-
lonial (1777-1808).

152 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Estudos mais recentes, porém, descrevem o processo so-


bre outro viés, bem mais amplo e interessante. Nessa concep-
ção, a questão econômica está presente e tem sua importância,
mas não é a força motriz, pois não havia um único discurso nem
mesmo um plano preconcebido para a expansão (FRAGOSO; BI-
CALHO; GOUVÊA, 2001).
Segundo o historiador português António Manuel Hespa-
nha (2001), que estuda o caso de Portugal — Estado pioneiro no
processo —, havia uma série de discursos e razões que justifica-
vam a aventura no além-mar em direção ao Oriente e à América,
que iam das questões religiosas até o engrandecimento do rei.
Nas suas palavras:
O primeiro fato que deve ser realçado é a inexistência de um
modelo ou estratégia gerais para a expansão portuguesa. Exis-
tem, evidentemente, vários tópicos usados incidentalmente
no discurso colonial para justificar a expansão. Um deles era
a idéia de cruzada e de expansão da fé. Mas, a par dele, vinha
o do engrandecimento do rei ou das finalidades do comércio
metropolitano ou, mais tarde, de população. No entanto, esse
conglomerado não era harmônico, sendo que cada tópico le-
vava freqüentemente a políticas diferentes ou mesmo opostas
(HESPANHA, 2001, p. 169).

É fundamental entendermos o caso específico de Portugal,


uma vez que fora esse país o pioneiro das grandes navegações
e, consequentemente, o que primeiro marcou sua presença no
interior do continente africano.

As grandes navegações portuguesas


A expansão marítima portuguesa teve início com a con-
quista da cidade de Ceuta, localizada ao norte do continente afri-
cano, no ano de 1415, sob o comando do Infante Dom Henrique
de Avis. Segundo Visentini:

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 153


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

A conquista de Ceuta representou a abertura, para o Reino de


Portugal, das portas ao domínio do comércio que aquele por-
to exercia. Em 1434, os portugueses ultrapassaram o Cabo do
Bojador, na costa do Saara Ocidental. A partir de então, o avan-
ço lusitano para o sul seria permanente. Após seu regresso de
Ceuta, o Infante Dom Henrique fixou-se em Sagres, onde se de-
senvolveram novos métodos de navegar, desenharam-se cartas
e adaptaram-se navios (VISENTINI, 2014, p. 42).

Certamente, Dom Henrique encontrou em Celta conheci-


mento suficiente para transformar o desenvolvimento das técni-
cas de navegação existentes até então. Desse modo, a conquista
de Ceuta foi fundamental para o processo expansionista portu-
guês e também foi ponto-chave que definiu a História da África
na Idade Moderna.
A expansão portuguesa foi relativamente lenta, uma vez
que eram necessários alguns anos para que se obtivessem co-
nhecimentos necessários para o passo seguinte – no caso do
Cabo do Bojador, foram 15 anos de espera. A partir de 1460, já
tendo alcançado diversas ilhas e ter chegado a Serra Leoa, os
portugueses intensificaram o contato e as relações com os nati-
vos, já em uma clara situação de exploração da escravidão para
suprir necessidade de mão de obra.
Bartolomeu Dias, em 1488, dobra o Cabo da Boa Esperan-
ça. Observem que mais de 70 anos separam a conquista de Dom
Henrique do contorno do Cabo da Boa Esperança, feito que deu
aos portugueses a tão sonhada rota comercial com a Ásia. Mas
não sem resistência, uma vez que, segundo Visentini (2014),
Vasco da Gama, responsável por chegar até a Índia, enfrentou
hostilidades das populações locais e dos muçulmanos que con-
trolavam o Índico.

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UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Em 1492, Colombo, navegando em nome do rei de Castela


(atual Espanha), chega à América, o que torna os mercadores de
Castela os mais perigosos concorrentes dos portugueses. Contu-
do, o comércio asiático, nesse momento, era muito mais impor-
tante e interessante do que os territórios recém-descobertos.
O que importava era o ouro e as especiarias asiáticas; por essa
razão, Portugal seguiu criando entrepostos comerciais em toda
costa africana.
Na África Ocidental, Portugal se concentrou, por motivos
óbvios, na Costa do Ouro, atual Gana. Segundo Visentini (2014),
o estabelecimento de Portugal se deu como quase nenhuma re-
sistência por parte dos nativos, uma vez que se encontravam em
conflitos políticos internos. Portugal dominou a região até 1642,
quando a perdeu para os holandeses.
Na África Oriental, os portugueses estabeleceram contatos
com a Etiópia, um reino cristão que viu em Portugal um pode-
roso aliado contra o Império Turco-Otomano que se expandia.
Se Portugal demonstrou interesse nessa empreitada, teria nos
etíopes o apoio necessário para conquistarem e controlarem as
minas do Império Monomotapa. Assim, tanto etíopes como por-
tugueses tirariam vantagens na relação.
Contudo, por imperícia dos missionários jesuítas, os etío-
pes expulsaram os portugueses, pois viam que eles interferiam
em sua religiosidade. Este fechamento de portas dos Etíopes fez
com que Portugal não conseguisse controlar Monomotapa e per-
desse o predomínio da extração de ouro. Não se pode ignorar,
como atentou Visentini (2014), que Monomotapa contou com
auxílio decisivo dos muçulmanos contra os portugueses.
Fora essas regiões, Portugal controlava ainda a Costa dos
Escravos, atual Benim, onde tinham o principal entreposto de

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 155


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

escravos. Todo esse domínio português, mesmo com as fortes


contestações e batalhas em alguns pontos, fez com a Europa per-
cebesse a importância da África na conjuntura nova que se mol-
dava no mundo. Além do ouro, das especiarias e de ser um cam-
po propício para os missionários espalharem a fé, era da África
que viria a mão de obra que faria a modernidade e o capitalismo
funcionarem nos próximos séculos.
O poderoso Império Português na África ruiu nos séculos
seguintes, desafiado principalmente pela Holanda. Com a Com-
panhia Holandesa das Índias Orientais e a Companhia Holandesa
das Índias Ocidentais, os holandeses conquistaram muitos terri-
tórios de Portugal e estabeleceram uma certa hegemonia na rota
entre Europa-Ásia pelo Atlântico-Índico.
Como saldo final deste período, temos a parte costeira do
continente africano sendo disputada por reinos europeus em
prol da exploração comercial, seja de especiarias, seja de escra-
vos, comércio este que crescia e se expandia consideravelmente.

Legitimação da escravidão
Como vimos, não há uma única hipótese que explique os
motivos da expansão europeia, principalmente portuguesa na
África. Esses discursos diversos e com fundamentos diferentes
entre si também foram usados na legitimação da escravidão.
Em muitas ocasiões, a questão religiosa fundamentava, ou me-
lhor, dava legitimidade à escravização de homens e mulheres
africanos.
Em alguns casos, raros, mas existentes, padres jesuítas
(Cia. de Jesus) e de outras ordens religiosas católicas valiam-se
de interpretações da Bíblia para explicar por que os negros pode-

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UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

riam e deveriam ser escravizados. Eles baseavam-se na maldição


de Caim e seus descendentes para justificar a escravidão. Os ho-
mens da África eram negros porque haviam sofrido um castigo
divino e deveriam ser salvos pela cristandade.
No entanto, embora algumas passagens da Bíblia possam
ser interpretadas de forma preconceituosa, isso não significa
que o texto bíblico seja, de fato, preconceituoso. A historiadora
Catherine Coquery-Vidrovitch (2004) mostra que o texto da Bí-
blia não demonstra preconceito com a cor da pele, por exemplo.
A obra dessa historiadora é importante para podermos entender
bem essa dinâmica.
Além disso, também era difundida desde a Alta Idade Mé-
dia, especialmente pelos árabes, a ideia que associava os negros
a características negativas como “mau cheiro, fisionomia repul-
siva e sexualidade descontrolada”, que seriam “sinais exteriores
de selvageria ou debilidade” (COQUERY-VIDROVITCH, 2004, p.
750). Isso tudo também servia como justificativa para a escravi-
zação dos negros.
Na mesma linha de Hespanha, a historiadora Hebe Maria
Mattos (2001, p. 147-148) inverte a questão no que diz respeito
à justificativa do cativeiro. De acordo com a autora, a historiogra-
fia aponta que o discurso religioso que legitimava o comércio e a
própria instituição da escravidão era um disfarce para os motivos
mercantis.
[...] parece-me, portanto, que se equivocam os autores quan-
do tomam como deturpação dos valores básicos da cristanda-
de, forçada pelo primado da lógica mercantil, a construção de
justificativas religiosas para a expansão da ordem econômica e
social escravista na América portuguesa. Ao contrário, a possi-
bilidade do cativeiro do gentio americano ou africano foi antes
construção de quadros mentais e políticos, de fundo corporati-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 157


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

vo e religioso, possibilitadores daquela expansão, inclusive na


sua dimensão comercial. Conseguir cativos índios ou africanos,
o que significava tornar-se senhor de terras e escravos, afidal-
gando-se nas colônias, foi uma das grandes motivações a trazer
milhares de colonos portugueses para a aventura da conquista.

A questão religiosa também foi importante dentro do pró-


prio sistema escravista africano. Na África do Norte, por exem-
plo, escravizavam-se apenas os não mulçumanos, pois, segundo
o Alcorão, um islâmico não poderia escravizar o outro. Assim,
importavam escravos provenientes de povos que viviam no de-
serto ou na África Ocidental, os quais, por sua vez, eram levados
à condição de cativos por povos melhor organizados política e
economicamente.
Vale salientar, no entanto, que até o século 19, com ex-
ceção da Colônia do Cabo (atual África do Sul) e de Angola, os
europeus não colonizaram efetivamente o território africano.
Havia, sim, entrepostos comerciais localizados em larga escala
na porção da África banhada pelo Oceano Atlântico e, quando
muito, parcas fortalezas localizadas no interior do continente
que serviam também como pontos de comércio de produtos
africanos e de escravos, situação esta que só se alteraria no sé-
culo 19, com o imperialismo.
Como vimos, a escravidão era comum no interior do con-
tinente africano. Visentini (2014) considera que, durante sécu-
los, milhares de escravos foram levados do sul ao norte da África
pelo Saara. Desse modo, o tráfico interno de escravos pode ter
movimentado tanto ou mais pessoas como o tráfico atlântico –
cerca de 10 milhões de pessoas.

158 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Comércio Atlântico de escravos


Uma das principais correntes atuais sobre a escravidão
busca demonstrar que o processo de expansão e do trabalho
servil se insere na constituição de uma história lenta que formou
o chamado Mundo Atlântico. Esse mundo teria se desenvolvido
a partir das rotas do tráfico negreiro, das colonizações e dos ca-
minhos para o Oriente.
Em outras palavras, uma grande rede de comércio de espe-
ciarias e produtos manufaturados fundamentou a economia do
Atlântico Sul que interligava os continentes do mundo. Mas nada
superou o comércio de pessoas a serem usadas como escravos.
Nesse processo, entretanto, a primazia foi reservada às re-
cém-formadas nações europeias, que ficaram com a maior parte
do lucro proveniente das atividades comerciais. Porém, isso não
quer dizer que não houve participação (e até enriquecimento)
de homens de negócio e traficantes dos dois lados do Atlântico.
Como demonstra a historiadora gaúcha Helen Osório
(2001), foram formadas verdadeiras redes nas quais os brasilei-
ros (fluminenses em sua maioria) e africanos tiveram participa-
ção efetiva e decisiva.
O principal destino dos cativos eram as Américas, de norte
a sul. A escravidão de africanos foi durante muito tempo a prin-
cipal forma de organização do trabalho no continente desde os
primórdios da colonização no século 16.
Nos Estados Unidos e no Brasil, sua influência foi a mais
marcante e duradora, pois ambos os países aboliram o trabalho
compulsório e sem remuneração apenas no século 19. Nos Esta-
dos Unidos, o fim da escravidão veio após o fim da Guerra Civil
(ou Guerra de Secessão), que ocorreu entre 1861 e 1865.

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UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Já o Brasil foi o último país no ocidente a abolir o traba-


lho escravo. Esse processo se deu após forte oposição do movi-
mento abolicionista e da mobilização dos cativos que fugiam das
fazendas e dos ex-escravos que se organizavam para comprar a
liberdade dos outros.
Em Portugal, por sua vez, a proibição da entrada de novos
escravos data de 1761, e a liberdade dos filhos dos escravos nas-
cidos no reino foi decretada em 1773 pelo Marquês de Pombal
(MATTOS, 2001, p. 152).
Segundo Marina de Mello e Souza (2007, p. 148-149):
No início do século XIX, o que a França e a Inglaterra, os dois países
que estavam à frente da construção do moderno sistema capita-
lista, queriam da África eram basicamente matérias-primas e mer-
cados consumidores para os produtos que sua indústria produzia.
Na América, os escravos ainda eram a principal mercadoria nas
transações com a África, mas a pressão britânica acabou por impor
o fim desse tipo de comércio. Os brasileiros e os cubanos foram os
últimos a traficar escravos pelo Atlântico, uns em 1850, outros em
1866. Naquele século, os principais comerciantes de escravos na
Costa da mina e em Angola eram brasileiros e cubanos, seguidos
de portugueses e norte-americanos. Já os principais fornecedores
eram os reinos de Daomé, Oió, Cassanje, Matamba, Luba e outras
chefaturas Bantos, que atacavam seus vizinhos e cobravam tribu-
tos na forma de escravos, vendidos nas feiras do interior e nos por-
tos costeiros.
Ao longo dos mais de quatrocentos anos que o comércio de
escravos mobilizou alguns povos africanos e seus chefes, hou-
ve a criação de complexos mecanismos de aprisionamento
(especialmente por meio de guerras), de transporte, de troca,
de armazenamento e de taxação, garantindo uma oferta cons-
tante e crescente de escravos, a maior parte deles embarcados
pelo Atlântico. Quando este canal de escoamento foi fechado,
com proibições e interesse em comerciar outras mercadorias,
os escravos passaram a ser usados apenas dentro do próprio
continente.

160 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

O tráfico de escravos no continente africano foi abolido no


final do século 19, precisamente em 1884, na “Conferência de
Berlim” (tema que será estudado na Unidade 4).

Trajetos do tráfico negreiro


Na escravização, tornou-se uma prática comum a separa-
ção de famílias inteiras nas rotas do tráfico e a indistinção entre
membros de povos africanos diferentes.
Em outros termos, quando os africanos eram amontoados
em condições subumanas nos porões dos navios negreiros, eles
não eram separados em grau de parentesco ou com pessoas que
falavam a mesma língua e partilhavam dos mesmos laços cul-
turais. Bantos de Angola e da África Central, Iorubas, Berberes,
Congoleses e membros de tribos inimigas eram tratados apenas
como mercadorias e enviados juntos para uma terra, na qual
não entendiam a língua dos senhores e muito menos dos outros
escravos.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 161


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Fonte: ENCICLOPÉDIA DA HISTÓRIA DO BRASIL DIGITAL. [CD-ROM]. São Paulo: Digerati, s/d.
Figura 1 Principais rotas do tráfico negreiro (séculos 16 ao 19).

O trajeto era marcado por um número elevado de mortan-


dade. Os homens, mulheres e crianças eram trazidos nos porões
dos navios negreiros amontoados como se não fossem huma-
nos. A viagem era lenta, a comida e a higiene, parcas, e os casti-
gos, frequentes.
Os escravos eram transportados em navios de péssimas
condições, onde muitos morriam por causa do também trata-
mento que recebiam na viagem. Além disso, os navios negreiros
serviam de “elo” entre a África e o Brasil, uma vez que transpor-
tavam mensagens, informações etc.

162 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Em Língua Portuguesa, um dos poemas que melhor com-


pôs o cenário que envolveu o transporte de escravos foi O navio
negreiro, de Castro Alves. O quarto e o quinto canto de sua tragé-
dia marítima explicitam de maneira lírica os horrores dos navios.
Leia um excerto desse emblemático poema do poeta
romântico:

O Navio Negreiro – Tragédia no Mar––––––––––––––––––––

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho


Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas


Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...


E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 163


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Presa nos elos de uma só cadeia,


A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,


E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!...”

E ri-se a orquestra irônica, estridente...


E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

Senhor Deus dos desgraçados!


Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

164 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Quem são estes desgraçados


Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,


Onde a terra esposa a luz,
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...

São mulheres desgraçadas,


Como Agar o foi também,
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma – lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 165


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Lá nas areias infindas,


Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...


Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p’ra não mais s’erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,


A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

166 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Ontem plena liberdade,


A vontade por poder...
Hoje... cúm’lo de maldade,
Nem são livres pra morrer...
Prende-os a mesma corrente
– Férrea, lúgubre serpente –
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!


Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

(ALVES, C., Os Escravos, 1883)


––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Na África, as consequências da escravidão foram sentidas


na demografia, uma vez que inúmeros homens em idade eco-
nomicamente ativa eram trazidos nos navios negreiros para as
Américas (THORNTOM, 2004).
Porém, nem todas as regiões africanas foram efetivamente
afetadas pelo tráfico de escravos. Durante todo o processo de
tráfico atlântico, os europeus contaram com o apoio de africa-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 167


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

nos para obter escravos. Assim, alguns povos africanos não fo-
ram escravizados e até mesmo lucraram consideravelmente com
o processo em curso.
A costa oriental da África forneceu poucos escravos e num
curto período de tempo. A “África Branca” ao norte passou pra-
ticamente imune à escravidão atlântica. Dados mostram que,
ao longo de todo o período de tráfico atlântico de escravos, a
população da África Ocidental cresceu, inclusive ocorrendo um
desenvolvimento econômico e social nessa época.
A “África Negra”, ou subsaariana, foi de longe a mais afe-
tada pelo tráfico. A escravidão, tanto interna quanto externa,
desestruturou radicalmente a região, que passou a ser tomada
por constantes conflitos e revoltas. Os reinos subsaarianos nun-
ca mais se reestruturaram e ainda seriam novamente golpeados
pelo imperialismo no século 19.
Já nas Américas, a despeito da riqueza cultural trazida e
incorporada na formação de uma nova cultura, uma das conse-
quências mais marcantes é a questão do preconceito e da margi-
nalização econômica da maior parte dos afrodescendentes.
Nos Estados Unidos, a questão do preconceito é ainda la-
tente e tem na organização ilegal Ku Klux Klan (fundada em 1865)
um dos movimentos de maior intolerância da história. Além dis-
so, foi apenas nos anos de 1960 que os negros passaram a gozar
de uma condição mais igualitária em relação à população de ori-
gem branca, graças aos movimentos civis liderados por figuras
tão díspares como Martin Luther King e Malcolm X.
No Brasil, os afrodescendentes ainda vivem em situação
economicamente desigual e têm menos representantes na elite
política e econômica e no Ensino Superior.

168 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Como estudamos até aqui, a temática da escravidão envol-


ve uma série de questões históricas importantes, desde a partici-
pação efetiva das sociedades africanas no processo de escravização
dos negros até os inúmeros discursos que impulsionaram a expan-
são europeia que fundou as bases da economia moderna na qual
vivemos.
Passado esse primeiro momento, é hora de analisarmos
outro problema relevante: a transformação dos discursos em re-
lação à África e aos africanos, bem como o início do processo
que levaria à colonização de todo o continente pelas potências
europeias no fim do século 19.

6. A CIÊNCIA “DESCOBRE” A ÁFRICA


Na primeira parte desta unidade, vimos que a questão do
preconceito racial em relação aos negros teve vários fundamen-
tos, especialmente a argumentação religiosa.
Esse preconceito, que partiu dos europeus e povos árabes,
serviu também como justificativa para manter e aumentar o trá-
fico e a escravidão: no caso dos europeus, desde o século 15;
e muito antes disso, a partir do século 8º, no caso do Império
Árabe.
O século 18 ficou conhecido como o “Século das Luzes”,
no qual filósofos e outros intelectuais partiram da valorização da
razão e do conhecimento racional para transformar sua visão de
mundo.
Lideranças políticas e sociais na Europa e América do Nor-
te, inspiradas no ideário iluminista ao longo do século 18, pro-
moveram movimentos que derrubaram o Antigo Regime e, no
caso da América, proclamaram a independência das treze colô-
nias em 1776, formando os Estados Unidos da América.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 169


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Na questão política, foi a era da instauração dos governos


constitucionais e da chegada ao poder das elites urbanas, a alta
e baixa burguesia. O Iluminismo também foi o pai e a mãe dos
direitos humanos.
A ideia de liberdade (civil, econômica e política), igualdade
(jurídica) e fraternidade entre os homens se espalhou pela Eu-
ropa e pelas Américas. Esse conjunto de pensamentos esteve na
base do discurso antiescravista que emergiu em fins do século
18.
Uma das consequências mais importantes do pensamento
iluminista foi a emergência do discurso científico moderno.
A necessidade de explicar e compreender todas as leis que
regiam o universo impulsionou novas investidas dos homens da
Europa ao redor do mundo a fim de conhecer a natureza, domi-
ná-la e transformá-la em favor do homem.
Paradoxalmente, à medida que esse discurso científico se
desenvolvia nos séculos 18 e 19, surgia também um novo tipo de
preconceito — o racismo científico —, que lançou as bases para
ampliar a concepção de inferioridade dos povos negros africanos
em relação aos brancos europeus, levando a outros patamares a
justificativa da escravidão e colonização dos povos e territórios
africanos.

Classificar e nomear o mundo: projeto de conhecimento


europeu
Você já percebeu que todas as plantas e animais têm duas
nomeações, uma popular e outra científica?
Os nomes populares são dados em diversas línguas, já o
nome científico, obrigatoriamente em latim.

170 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

No início do século 18, mais especificamente em 1735, o


botânico sueco Carlos Lineu publicou sua célebre obra O sistema
da natureza. Nesse livro, foram lançadas as bases para o sistema
classificatório moderno (Taxonomia), que divide as espécies ve-
getais em Reinos, Filos etc.
Em outras palavras, o objetivo dos estudos de Lineu era
classificar os seres partindo de métodos científicos de forma ra-
cional e mais organizada possível, criando assim um sistema que
dividia as plantas conhecidas ou desconhecidas em quantidades
limitadas de famílias de acordo com seus sistemas reprodutivos.
Desse modo, era possível a qualquer estudioso encontrar
e classificar quaisquer formas de vida vegetal que encontrasse
(veja a Figura 2).

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 171


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Figura 2 Folha de rosto da edição de Viagens para o Interior da África: contendo uma
descrição das várias nações no espaço de seis milhas até o Rio Gâmbia (1738).

Esse método deu credibilidade a novas viagens de explo-


ração com fins de investigação e estudo do mundo, a partir da
segunda metade do século 18.
Os naturalistas, como geralmente eram chamados os cien-
tistas no período, partiram em direção aos quatro cantos do
mundo a fim de classificar e nomear todas as formas vivas e na-

172 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

turais do planeta. Foi inaugurada, assim, uma nova modalidade


de viagens e relatos: as expedições científicas (consulte algumas
narrativas de viagens disponíveis na Biblioteca Mundial Digital
da Unesco).
A historiadora norte-americana Mary Louise Pratt (1999)
afirma que as viagens científicas em direção aos interiores eram
elementos importantes do novo e ambicioso projeto de conhe-
cimento em História Natural dos europeus, que consistia em co-
nhecer, entender e nomear (classificar) o mundo todo.
Ainda segundo a historiadora, o discurso científico voltou-
-se especialmente para a descoberta dos interiores do continen-
te africano (Figura 3), com o objetivo de desbravá-lo para encon-
trar novas formas de vida vegetal e animal, descobrir novos vales
e compreender a topografia e hidrografia do continente.
Em fins do século 18, na Inglaterra, a Associação para a
Promoção da Descoberta das Áreas Interiores da África – ou As-
sociação Africana, abreviatura pela qual ficou mais conhecida
— foi fundada com objetivo de financiar viagens de exploração
científica à África.
Uma das intenções dessa e de outras associações seme-
lhantes que surgiam na Europa era preencher as lacunas dos ma-
pas e adquirir conhecimento, principalmente sobre o interior do
continente.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 173


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Figura 3 Mapa da Costa Ocidental da África, de Serra Leoa a Cabo Palmas, incluindo a
Colônia da Libéria (1830).

174 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Já no final do século 18, uma das questões que mais intri-


gava os europeus era saber se o Rio Níger se comunicava com o
Rio Congo e qual sua real extensão.
Em passagem do texto de Giordani (1985, p. 35-36), uma
importante questão foi colocada: a dificuldade de acesso ao
interior do continente africano e seu consequente isolamento
geográfico, embora fossem realizados intercâmbios nas regiões
litorâneas.
O isolamento geográfico do continente africano, protegido por
dois oceanos, um imenso deserto e um litoral inóspito, dificul-
tou a penetração de outros povos. Diaara sublinha esse isola-
mento e suas conseqüências: ‘Devido à sua natureza maciça e
seu relevo pesado, a África ficou isolada até uma época recente.
Com exceção da África do Norte, voltada para o Mundo Medi-
terrâneo, o continente permaneceu por séculos fora das rotas
do comércio. É certo que esse isolamento nunca foi completo;
mas exerceu grande influência sobre muitas sociedades que se
desenvolveram no isolamento geográfico’. [...] o Oceano Índico
‘sempre favoreceu o contato entre a África Oriental e o sul da
Ásia.’ Essas relações limitaram-se, entretanto, ao litoral, ‘pois
aos povos navegadores da Ásia interessava mais fazer comér-
cio do que colonizar o interior’. Quanto à parte do continente
banhada pelo Atlântico, é a partir do século XV que começa a
sofrer as conseqüências das grandes expedições marítimas
européias.

Em um trecho do discurso inaugural da Associação Africa-


na, podem-se ver claramente as intenções e os limites do conhe-
cimento sobre o continente africano em fins do século 18 (veja
a Figura 4):
Não obstante o progresso da descoberta nas costas e fronteiras
daquele rude continente (i.e., África), o mapa de seu interior
ainda não é mais que um extenso vazio, onde o geógrafo, com
base na autoridade de Leão, o africano, e do xerife de Edressi,
autor núbio, traça com mão hesitante uns poucos nomes de rios

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 175


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

inexplorados e de nebulosas nações [...]. Atentos a este proble-


ma e desejosos de resgatar esta era do peso da ignorância que,
em outros aspectos, é tão oposta a seu caráter, uns poucos in-
divíduos, profundamente convictos da praticidade e utilidade
de assim desenvolver o acerbo do conhecimento humano, ar-
quitetam uma Associação para a Promoção da descoberta das
regiões interiores da África (PRATT, 1999, p. 128).

Figura 4 Mapa da África de 1820, elaborado pelo cartógrafo e geógrafo francês Adrien
Hubert Brué (1786-1832).

176 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Além do desenvolvimento do conhecimento, a Associação


Africana também tinha interesses comerciais na África. Um dos
viajantes patrocinados pela associação, o inglês Mungo Park, pu-
blicou seu relato, no qual descreve os percalços e sucessos de
sua jornada pelo interior do continente.
Uma das descobertas que mais animou os membros da
Associação foi a de que o Rio Níger corria para o leste. Naquele
momento, devido à falta de maiores conhecimentos geográficos,
acreditava-se que esse importante rio africano se encontrava
com o Rio Nilo, o que facilitaria as rotas de comércio.
Em relato sobre as descobertas geográficas de Park e seus
possíveis desdobramentos econômicos, os membros da Associa-
ção afirmaram:
Uma porta foi aberta para toda nação mercantil entrar e comer-
ciar da extremidade ocidental à oriental da África [...]. Com as
devidas informações e emprenho do crédito britânico, é difícil
imaginar a extensão potencial a que pode chegar a demanda
pelas manufaturas de nosso país, por parte de países vastos e
populosos (PRATT, 1999, p. 133).

No que se refere ao povo do continente africano, especial-


mente os negros, o conhecimento desenvolvido na época das
luzes foi contraditório. Ao mesmo tempo que o conhecimento
filosófico e científico afirmava a igualdade entre os homens, cria-
va escalas que diferenciavam os homens entre si.
Como já estudamos, formulou-se a ideia de que os seres
humanos eram divididos em raças diferentes e de que a raça
branca seria superior a todas as outras — daí o uso do termo
“racismo científico”.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 177


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

História Natural e o racismo científico


Você se lembra do início do nosso estudo sobre História da
África, quando dissemos que nós, seres humanos, somos classi-
ficados como homo sapiens sapiens?
Essa classificação surgiu no século 18, e a autoria desse ter-
mo, que coloca o homem no reino animal, foi dada em 1758 pelo
pai da botânica moderna, Carlos Lineu.
Nessa nova formulação do conhecimento sobre o homem,
o homo sapiens foi dividido e escalonado em seis variedades de
raças — superiores e inferiores. Segundo Lineu (PRATT, 1999,
p. 68), essas variedades com suas respectivas características
seriam:
a. Homem selvagem: quadrúpede, mudo, peludo.
b. Americano: cor de cobre, colérico, ereto. Cabelo negro, liso,
espesso; narinas largas; semblante rude; barba rala; obs-
tinado, alegre, livre. Pinta-se com finas linhas vermelhas e
guia-se por costumes.
c. Europeu: claro, sanguíneo, musculoso; cabelo louro, casta-
nho, ondulado; olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo.
Coberto por vestes justas e governado por leis.
d. Asiático: escuro, melancólico, rígido; cabelos escuros; olhos
escuros; severo, orgulhoso, cobiçoso. Coberto por vesti-
mentas soltas. Governado por opiniões.
e. Africano: negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, cres-
pos; pele acetinada; nariz achatado, lábios túmidos; enge-
nhoso, indolente, negligente. Unta-se com gordura e é go-
vernado pelo capricho.

Como você pode ter notado, a primeira classificação do


homem colocava o europeu como o povo superior a todos os
outros.

178 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Essa categorização era extremamente comparativa, basea-


va-se, sobretudo, nos relatos dos viajantes e naturalistas, levan-
do em conta hábitos que eram considerados inferiores.
A única variedade que era governada por leis e por princí-
pios racionais era a do europeu, cujos costumes foram descritos
como nobres. Já o africano, segundo a visão do período, era go-
vernado pelo capricho, ou seja, era um povo sem lei levado pe-
los impulsos de maneira desordenada e com hábitos tidos como
repulsivos.
Sobre isso, o filósofo francês Michel Foucault, em entrevista
concedida em 1966, esclarece um ponto importante sobre a pos-
sibilidade que a nova visão de mundo dos séculos 18 e 19 abriu
para o estudo do homem, ou melhor, como a transformação da
própria maneira de elaborar o conhecimento transformou signi-
ficativamente a ideia que nós tínhamos sobre nós mesmos. Para
Foucault, essa ideia contemporânea do homem permitiu que ele
fosse ao mesmo tempo sujeito e objeto do conhecimento.
Em termos diferenciados, o homem passou a estudar o
próprio homem como um ser passível de ser compreendido por
meio da razão e da ciência. Nas palavras do filósofo:
[...] quando se olha ligeiramente as culturas dos séculos XVI,
XVII e XVIII, percebe-se que o homem não tem literalmente ne-
nhum lugar. A cultura é então ocupada por Deus, pelo mundo,
pela semelhança das coisas, pelas leis do espaço, e certamen-
te também pelo corpo, pelas paixões, pela imaginação. Mas o
homem mesmo é completamente ausente. Em As Palavras e
as Coisas, quis mostrar de quais peças e quais pedaços o ho-
mem foi composto no fim do século XVIII e início do XIX. Tentei
caracterizar a modernidade dessa figura, e o que me pareceu
importante era mostrar isso: não é tanto porque se teve um cui-
dado moral com o ser humano que se teve a idéia de conhecê-
-lo cientificamente, mas é pelo contrário porque construiu-se o

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 179


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

ser humano como objeto de um saber possível que em seguida


desenvolveram-se todos os temas morais do humanismo con-
temporâneo [...] (FOUCAULT, 1966, p. 8-9).

No século 19, a separação do homem em raças ganha mais


complexidade, pois a ciência da época passou a descrever as ca-
racterísticas físicas por meio de dissecações e utilizou os paradig-
mas estabelecidos no período.
Um ponto que merece menção se refere à prática de le-
var pessoas de diferentes cantos do mundo para serem exibidas
em feiras — as famosas exposições universais do século 19. Afri-
canos de diferentes regiões foram levados com essa finalidade
para centros como Paris, Londres, Madrid etc. (COQUERY-VIDRO-
VITCH, 2004, p. 768).
A ideia de superioridade branca (caucasiana) permaneceu
e foi acentuada ainda mais. Consequentemente, os negros conti-
nuaram a ser descritos como os que estavam no grau mais baixo
de desenvolvimento.
A teoria da evolução das espécies de Charles Darwin redi-
mensionou a questão, pois sua principal ideia, “a sobrevivência
do mais apto”, foi interpretada também na esfera social.
Com essa interpretação, o discurso civilizatório europeu,
especialmente o da desigualdade racial, teve sua legitimidade
reforçada, pois estava ancorado na ciência. De acordo com Ca-
therine Coquery-Vidrovitch (2004, p. 766):
O ponto de partida é o avanço científico de Charles Darwin, cuja
grande obra foi publicada em 1859. O subtítulo revela o espírito
da época: “A preservação das favorecidas na luta pela vida”. O
drama foi que, graças à onda de expansão colonial da segunda
parte do século, a revelação da seleção natural das espécies,
que envolve conquista, dominação e destruição, foi transposta
para o curto prazo pelos sociólogos darwinianos: na selva das

180 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

lutas de classe, nações e raças, tornava-se normal e justificado


não só que os vencedores dominassem os povos inferiores, mas
também que os eliminassem em benefício da sobrevivência da
espécie humana a longo prazo.

O cenário para uma nova etapa da relação da Europa com


a África ganhava contornos cada vez mais definidos e a história
do continente onde nossa espécie surgiu seria completamente
transformada nos processos de colonização do século 19 (tema
que será abordado na próxima unidade).

7. TEXTO COMPLEMENTAR
Observe este recorte de um jornal que circulava no Rio de
Janeiro no final dos anos de 1830 (Figura 5) e veja como as teo-
rias científicas sobre as raças humanas eram amplamente difun-
didas no Ocidente. Os africanos eram classificados como varie-
dade etiopiana (referente à Etiópia).
Além da Figura 5, você também encontrará a reprodução in-
tegral do texto. Contudo, tenha em mente que se trata de um texto
do primeiro quartel do século 19 e, sendo assim, as informações e
ideias defendidas eram tomadas como verdadeiras. É importante
realizar uma leitura crítica, porém, nós, historiadores, não podemos
julgar o passado. O mais importante não é «descobrir» a verdade
sobre o passado, mas entender o que era considerado verdadei-
ro. O texto selecionado é um bom exemplo para realizarmos esse
exercício.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 181


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Fonte: Gazeta dos domingos: revista enciclopédica semanal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Tipographia Americana, 1839, n. 2, p. 13.
Figura 5 Página do Jornal Gazeta dos Domingos (Rio de Janeiro, 13 janeiro de 1839)
sobre as teorias a respeito do homem.

182 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

História Natural–––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Sobre o homem
Disse também Deus: façamos o homem à nossa imagem, e semelhança, o
qual presida aos peixes do mar, às aves do céu, às bestas, e a todos os répteis
que se movem sobre a terra, e domine em toda a terra.
E criou Deus o homem à sua imagem: fez a imagem de Deus, e criou o macho
e a fêmea.
Deus os abençoou, e lhes disse: Crescei, e multiplicai-vos, e enchei a terra.
Genesis, Cap. 1º v. 26 a 28.

A distribuição geográfica de entes animados é um ramo da História Natural,


que somente nestes últimos anos tem atraído a atenção dos filósofos.
O célebre Blumenbach foi quem primeiramente generalizou os numerosos fa-
tos referentes à fisiologia do homem, e estabeleceu, com provas incontestá-
veis, que as suas variedades podem classificar-se debaixo de certos caracte-
rísticos de formação distintos uns dos outros tanto na sua organização física
como em sua distribuição geográfica.
Fosse por causa de prejuízos, ou pela dificuldade de percorrer toda a extensão
do vasto campo zoológico, pelo espírito de um único indivíduo, o certo é que a
geografia de entes animados tem jazido quase em total abandono.
Detalhes isolados, referentes a alguns países, classes, ou famílias, têm sido
analisados satisfatoriamente; porém, ainda falta quem generalizasse esses fa-
tos, tornando-os profícuos à descoberta das leis da criação.
A tarefa de averiguar a posição de algumas classes em um lugar ou país de-
terminado pode ser unicamente considerada como uma simples investigação
acerca de sua distribuição local; mas quando as nossas indagações saírem
destes apertados limites a fim de abranger maior porção do nosso globo, e
combinar a relação entre os seus animais com a de outras porções, entramos
desde esse momento, no assunto vastíssimo da distribuição geográfica.
As averiguações que dizem respeito à distribuição física adquirem um grau de
importância, quando não dirigidas ao mundo animal, maior de que o é quando
se destinam ao vegetal, por muito interessante que este seja; porque, não
somente achamos que o número de animais é incalculavelmente maior que o
das plantas, como também a sua posição natural, dependendo de uma multipli-
cidade de causas correntes, encontra-se ser mais distintamente caracterizada.
Iremos apresentando aos nossos leitores, em primeiro lugar, um esboço das
particularidades físicas do homem em todas as suas variedades. Daremos de-
pois breve notícia sobre as regiões habitadas pelas suas diferentes raças.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 183


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Variedade da raça humana


As variedades da raça humana, conforme a opinião do mais distinto anatomis-
ta do sistema comparativo, podem todas incluir-se em três divisões primárias,
entre as quais há exemplos simbólicos de notáveis subdivisões. Estas classifi-
cações o Barão Cuvier distingue pela forma seguinte:
1ª. A variedade branca ou Caucasiana.
2ª. A variedade cor de cobre, ou Mongoleana.
3ª. A variedade negra, ou Etiopiana.
A classificação proposta pelo célebre Blumenbach, posto que aparentemente
diversa, é, todavia, uma modificação da que estabeleceu Mr. Cuvier.
Mr. Blumenbach dividiu a classe etiopiana em 3 partes distintas – 1ª a Ameri-
cana; 2ª a Negra; 3ª a Malaia.
Mr. Cuvier individualiza essas raças adicionais; porém considera as suas pecu-
liaridades menos salientes que as de suas duas primeiras.
Vamos passar uma ligeira revista sobre as peculiaridades físicas e morais destes
grupos da nossa espécie, sem emitir opinião alguma a respeito da questão acima
referida.
A raça caucasiana é simbolicamente caracterizada pela pele branca, faces ro-
sadas, cabelo abundante, flexível, comprido, freqüentemente anelado e lau-
reado, muita barba, rosto pequeno, ovalado e comprido, com as feições muito
conspícuas, a testa espaçosa; o crânio grande e elevado; nariz fino; a boca
pequena.
Os sentimentos morais e capacidades intelectuais desta raça têm-se desenvolvi-
do até o auge de perfeição de que a natureza humana tem dado provas. As na-
ções mais civilizadas, tanto dos tempos antigos como modernos, tiveram a sua
nascença da raça Caucasiana, a qual, excetuando casos de resistência física
em ponto extraordinário, tem exercido o domínio sobre todas as mais raças. As
poderosíssimas nações da Antiguidade, e a força que lhe não cede em propor-
ção das modernas concentradas na Europa, provam evidentemente a primazia
desta raça em tudo que diz respeito à parte imaterial do homem, e no que o
constitui formidável para com seus semelhantes; enquanto que, a par da marcha
dos tempos, se nota um melhoramento progressivo em tudo que indica talento
e inteligência.
A raça caucasiana supõe-se, como se deduz deste nome, ter saído daquela
cordilheira de montanhas entre os Mares Negro e Cáspio.
Esta suposição coaduna-se com tudo que nos esclarece sobre o local da mo-
rada de nossos originais progenitores, e ainda mais se confirma pela razão de

184 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

serem os habitantes daquelas regiões, até o dia presente, os mais bem propor-
cionados e elegantes de todos os habitantes do mundo inteiro.
Dos Alpes Caucasianos várias ramificações desta raça divergem para todos os
lados como de um centro comum, cujas peculiaridades modificam-se, alteram-
-se, e finalmente apagam-se à proporção que se afastam do primitivo local de
sua origem.
Das subdivisões da raça caucasiana, a mais poderosa é a Pelásgica, que co-
bre a maior parte da Europa, e da Ásia Ocidental, em seus limites do norte,
enquanto ela se confunde com a mogoleana por meio dos habitantes da Fin-
lândia e Lapônia. Foi deste ramo que as poderosas nações da Grécia e Roma
tiveram as suas origens, as quais se seguiram as nações da moderna Europa.
O outro ramo é o da Síria, cuja direção é para o sul e abrange aquela parte da
Ásia que antigamente habitavam os assírios, caldeus, e os velhos egípcios.
O ramo indiano, que alguns julgaram ser o mesmo que o pelásgico, dirige-se
para o nascente, e se confunde entre as inferiores hordes do Indostão. O quarto
ramo é dos Sytheos ou Tártaros que povoaram as terras do norte da Ásia, e
deram origem àqueles povos vagabundos e bravios, que pela sua força física
de número devastaram e efetivamente deram cabo dos impérios preclaros da
Grécia e Roma. A inclinação itinerária e pastoril desta tribo tem contribuído a
conservação das suas peculiaridades desligadas de outras nações; menos, po-
rém, na Tartaria menor, onde este ramo da raça caucasiana se mistura com a
mongoleana.
Nos nossos números seguintes trataremos das outras raças e daremos de cada
uma a representação dos seus crânios, assim como temos feito aqui da raça
caucasiana.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) As práticas do escravismo se transformaram a partir do contato com os
europeus?

2) Como eram as práticas de escravismo no Mundo Antigo se comparadas à


escravidão moderna?

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 185


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

3) O
que era considerada propriedade privada na África e Europa no período
de intensificação do comércio de escravos?

4) O que permite aos historiadores a definição da ideia de um Mundo Atlântico?

5) É possível compreender o processo da expansão marítima a partir de um


único elemento explicativo?

6) Q
uais foram as justificativas iniciais dos europeus para a escravização de
homens, mulheres e crianças africanas?

7) C
omo se deu a prática do tráfico negreiro? De que forma a leitura de Cas-
tro Alves influencia até nossos dias a visão que temos desse processo?

8) E xplique a origem do preconceito racial na África. Quais foram os argu-


mentos utilizados? Quem são os responsáveis pelas primeiras descrições
pejorativas dos negros?

9) E m que medida o pensamento iluminista contribuiu na formulação do dis-


curso científico moderno?

10) O que foi o chamado “racismo científico”?

11) Qual o projeto europeu de conhecimento desenvolvido a partir do século 18?


Qual o impacto desse projeto no território africano?

12) Como o discurso científico moderno definiu e criou o homem?

13) Quais relações podem ser estabelecidas entre a expansão colonial e o dis-
curso científico?

14) Como as ideias desse discurso científico chegaram e foram veiculadas no


Brasil?

9. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, aprendemos que a escravidão na África não
foi uma prática imposta de fora para dentro do continente. Pelo
contrário, a cultura escravista no continente africano é anterior à

186 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

expansão marítima europeia. Essa expansão, por sua vez, gerou


um aumento considerável nas trocas comerciais e fundamentou
as bases para uma economia atlântica que, além das especiarias
e produtos coloniais, tinha no tráfico negreiro uma de suas prin-
cipais fontes de lucro.
Você pôde aprofundar também seu conhecimento sobre a
percepção da ciência europeia sobre os habitantes do continen-
te africano e a formulação de um discurso que colocava os africa-
nos pertencentes a uma raça inferior que precisava ser civilizada
— ideia que perduraria até o século 20.
Além disso, vimos que, nos processos históricos que envol-
vem a África, não é possível eleger apenas um elemento como o
fio condutor da história.
Em outras palavras, não podemos vincular a expansão ma-
rítima, a escravidão e a colonização do continente africano ape-
nas a questões econômicas.
Convido você a continuar participando das discussões e es-
tudos sobre a História da África. Até a próxima unidade!

10. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 2 Folha de rosto da edição de “Viagens para o Interior da África: Contendo
uma descrição das várias nações no espaço de seis milhas até o Rio Gâmbia” (1738).
Disponível em: <http://www.wdl.org/pt/item/650/>. Acesso em: 16 mar. 2012.
Figura 3 Mapa da Costa Ocidental da África, de Serra Leoa a Cabo Palmas, incluindo
a Colônia da Libéria (1830). Disponível em: <http://www.wdl.org/pt/item/149/>.
Acesso em: 16 mar. 2012.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 187


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

Figura 4 Mapa da África de 1820, elaborado pelo cartógrafo e geógrafo francês Adrien
Hubert Brué (1786-1832). Disponível em: <http://www.wdl.org/pt/item/55/zoom.
html>. Acesso em: 16 mar. 2012.

Sites pesquisados
ASHMUN, J. Mapa da Costa Ocidental da África, de Serra Leoa a Cabo Palmas, incluindo
a Colônia da Libéria. Disponível em: <http://www.wdl.org/pt/item/149/>. Acesso em:
16 mar. 2012.
BRUÉ, A. H. Mapa da África. Disponível em: <http://www.wdl.org/pt/item/55/zoom.
html>. Acesso em: 16 mar. 2012.
FOUCAULT, M. Dits et écrits. Disponível em: <http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/
foucault/>. Acesso em: 25 mar. 2010.
MOORE, F. Viagens para o interior da África: Contendo uma descrição das várias
nações no espaço de seis milhas até o Rio Gâmbia. Disponível em: <http://www.wdl.
org/pt/item/650/>. Acesso em: 16 mar. 2012.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOXER, C. R. O império marítimo português – 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
CHAUNU, P. Expansão européia: do século XIII ao XV. São Paulo: Pioneira, 1978.
COQUERY-VIDROVITV, C. O postulado da superioridade branca e da inferioridade
negra. In: FERRO, Marc (Org.). O livro negro do colonialismo. Tradução de Joana
Angélica D’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
FERRO, M. História das colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII ao
XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FOUCAULT, M. L’homme est-il mort? (entrevista com C. Bonnefoy). Arts et Loisirs, n. 38,
p. 15-21, jun. 1966. Traduzido de: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard,
1994, p. 540-544.
FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. F (Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
GAUTIER, A. Mulheres e colonialismo. In: FERRO, M. (Org.). O livro negro do
colonialismo. Tradução de Joana Angélica D’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

188 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 3 – ÁFRICA NO MUNDO MODERNO: DA ESCRAVIDÃO ÀS VÉSPERAS DAS COLONIZAÇÕES

GIORDANI, M. C. História da África anterior aos descobrimentos. Petrópolis: Vozes,


1985.
HESPANHA, A. M. A constituição do Império português. Revisão de alguns
enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. F. (Orgs.). O
antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
HILTON, R. (Org.). A transição do feudalismo para o capitalismo: um debate. 5. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2004.
MATTOS, H. M. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo
Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. F.
(Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do sistema colonial (1777-1808). São Paulo:
Hucitec, 1979.
OSÓRIO, H. As elites econômicas e a arrematação dos contratos reais: o exemplo
do Rio Grande do Sul (século XVIII). In: FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. F.
(Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
PRATT, M. L. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Tradução de
Jéxio Hernani B. Gutierre. Bauru: EdUSC, 1999.
SOUZA, M. M. África e Brasil africano. 2. ed. São Paulo: Ática, 2007.
THORNTON, J. A África e os africanos na formação do Mundo Atlântico (1400-1800).
Tradução de Marisa Rocha Motta. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 2004.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 189


© HISTÓRIA DA ÁFRICA
UNIDADE 4
COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/
INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS
19 E 20

1. OBJETIVOS
• Identificar e caracterizar o cenário europeu no período
do imperialismo do século 19.
• Reconhecer e discutir o processo e as consequências do
neocolonialismo na África nos séculos 19 e 20.
• Refletir sobre as questões políticas, econômicas e cultu-
rais da África durante a Era dos Impérios.
• Apontar e conhecer os focos de resistências e o panora-
ma africano no início do século 20.
• Estudar e interpretar os processos de independência na
África.

2. CONTEÚDOS
• R evolução Industrial e colonialismo.
• Teorias raciais, fé e civilização na partilha da África.
• Independências africanas.

191
UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Leia os livros indicados nas referências bibliográficas,
para que você amplie seus horizontes teóricos. Com-
pare-os com o material didático e discuta a unidade
com seus colegas e tutor.
2) Antes de iniciar os estudos, é importante conhecer
um pouco da biografia de alguns pensadores e pes-
quisadores, cujo pensamento também é utilizado
como referência para a aprendizagem dos conteúdos
desta unidade:

Leopoldo II
Leopoldo Luís Filipe Maria Vítor de Saxe-Coburgo-Gota
(9 de abril de 1835 – 17 de dezembro de 1909) foi Rei da
Bélgica de 1865 até sua morte, sucedendo ao pai, o Rei
Leopoldo I, ao trono da Bélgica. É lembrado como o fun-
dador do Estado Livre do Congo, projeto territorial belga
fundamentado na exploração do trabalho africano para a
extração de borracha e marfim, que conduziu mais tarde
à colônia do Congo Belga, hoje República Democrática
do Congo (imagem e texto disponíveis em: <http://educa-
terra.terra.com.br/voltaire/mundo/2002/09/06/001.htm>.
Acesso em: 25 mar. 2010).

192 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

James Monroe
Quinto presidente eleito dos Estados Unidos, cujo man-
dato se estendeu de 1817 a 1825. Seu nome é conhe-
cido na história pela doutrina criada em seu governo
(1823) — a doutrina Monroe —, que “teve como lema a
‘América para os Americanos’, numa referência à resis-
tência a qualquer tentativa de recuperação das colônias
americanas, que haviam conquistado sua independên-
cia [...]” (imagem disponível em: <http://surftofind.com/
jmonroe.jpg>. Acesso em: 25 mar. 2010. Texto disponí-
vel em: <http://educacao.uol.com.br/biografias/james-
-monroe.jhtm>. Acesso em: 16 mar. 2012).

Wolfgang A. K. Döpcke
Professor adjunto em História Contemporânea do Departamento de História da
Universidade de Brasília.

Manuel Jauará
Doutor em Sociologia e professor adjunto do Departamento de Ciências So-
ciais da Universidade Federal de São João del-Rei, Minas Gerais.

Charles André Joseph Marie de Gaulle


Nascido em 22 de Novembro de 1890, Lille; morto em
9 de Novembro de 1970, Colombey-les-Deux-Églises.
Foi um general, político e estadista francês que liderou
as Forças Francesas Livres durante a Segunda Guerra
Mundial. Mais tarde fundou a Quinta República Fran-
cesa em 1958 e foi seu primeiro Presidente de 1959
a 1969 (imagem disponível em: <http://www.politically-
concerned.org/index.php?id=65>. Texto disponível em:
<http://educacao.uol.com.br/biografias/charles-de-gaul-
le.jhtm>. Acesso em: 16 mar. 2012).

3) Recomendamos que você assista aos filmes indicados


a seguir, que tratam das questões abordadas nesta
unidade:

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 193


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

a) A batalha de Argel (La bataglia di Algeri). Direção: Gillo


Pontecorvo. Itália/Argélia, 1965.
b) A tribo de Macadam (Macadam tribu) Direção: José
Laplaine. Zaire/França, 1996.
c) África, minha África (Afrique, mon Afrique). Direção:
Idrissa Ouédraogo. França, 1994.
d) Casablanca (Casablanca). Direção: Michael Curtiz.
EUA, 1942.
e) Hotel Ruanda (Hotel Rwanda). Direção: Terry George.
EUA, Itália, África do Sul, 2004.
f) Indochina (Indochine). Direção: Régis Wargnier. Fran-
ça, 1992.
g) O poder de um jovem (The power of one). Direção:
John G. Avildsen EUA/França/Alemanha, 1992.
h) Paixão pela vida (Ya donia ya Gharani). Direção: Madgi
Ahmed Ali. Egito, 1995.
i) Sarafina! (Sarafina!) Direção: Darrell James Roodt.
África do Sul, 1992.
j) Um grito de liberdade (Cry Freedom). Direção: Richard
Attenborough. Inglaterra, 1987.
k) Zulu (Zulu). Direção: Cy Endfield. Inglaterra, 1964.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Olá! Esperamos que você tenha aproveitado todas as pos-
sibilidades que o estudo da História da África lhe proporcionou
até o momento. Agora, é importante que mantenha seu entu-
siasmo, ânimo e curiosidade, uma vez que ainda estudaremos
assuntos interessantes sobre o continente africano.

194 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Longe de esgotar o tema, teremos inúmeras possiblidades


de aprofundar nossos conhecimentos. E quem sabe o estudo que
fizemos até aqui não sirva de inspiração para você também con-
tribuir na formação e construção desse conhecimento? Como
futuro profissional de História, você terá todas as condições para
colaborar de maneira ímpar nessa caminhada.
Nesta unidade, aprofundaremos o estudo da relação esta-
belecida entre a Europa e a África.
No século 19, quase todo o continente fez parte do proces-
so de expansão do capitalismo industrial na qualidade de colônia.
Foi no período das colonizações do século 19 e nas inde-
pendências do século 20 que os Estados nacionais africanos se
formaram. Também devemos ressaltar que essas novas coloni-
zações ou neocolonialismo e suas consequências são sentidas
até nossos dias. Assim, todos os problemas atuais existentes no
continente encontram parte da sua razão de ser nesse processo.
Por esse motivo, além dos processos de colonização, estu-
daremos as independências dos países africanos.

5. DIVISÃO DA ÁFRICA PELOS IMPÉRIOS DA


EUROPA

Colonialismo e imperialismo: as bases do processo histórico


A história das colonizações é longínqua e remete-nos às
civilizações antigas, como a grega, a romana, a egípcia, a árabe
e a chinesa.
Como se sabe, todas as civilizações antigas ocupavam ou
conquistavam novos territórios e estabeleciam colônias.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 195


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Na Idade Moderna, foram os portugueses e os espanhóis


que iniciaram esse processo, seguidos pelos franceses e ingleses.
Como já estudamos, os europeus não foram os primeiros a
colonizarem a África, uma vez que os árabes já tinham ocupado
a região norte do continente do século 7º ao 9º.
Com exceção de Angola e da Colônia do Cabo (atual África
do Sul), as outras regiões foram mais entrepostos do que colô-
nias de fato.
Contudo, o cenário relatado muda ao longo do século 19,
pois o processo de colonização se intensifica, e a economia euro-
peia passa a ocupar um patamar diferente do assumido no mo-
mento das primeiras colonizações, promovidas a partir do século
16.
No século 19, teve início a consagração do capitalismo in-
dustrial, fruto direto da Revolução Industrial ocorrida na Ingla-
terra em meados do século 18.
Isso significa que, no século 19, a industrialização espa-
lhou-se por outros países da Europa (Figura 1) e nos Estados Uni-
dos. Esse processo foi denominado pelo historiador economista
inglês David Landes como o Período da Equiparação Tecnológica
e Industrial.
Em meados do século 19, outras economias do continente
europeu começaram a se igualar em crescimento anual com a
economia britânica.
Além disso, esse período foi marcado por um intenso de-
senvolvimento técnico-científico, especialmente no campo da
produção industrial, que passou a ser em maior escala e de for-
ma mais disseminada, levando a uma transformação da econo-
mia em escala mundial.

196 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Figura 1 Mapa político da Europa com nome dos rios.

A partir de 1850:
Foram anos de amadurecimento tecnológico, essencialmente
marcados pela elaboração, no continente, das inovações que
constituíram o cerne da Revolução Industrial e que tinham sido
desenvolvidas e disseminadas na Inglaterra uma ou mais gera-
ções antes. No setor têxtil, o filatório automático e o tear me-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 197


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

cânico substituíram a fiandeira automática e o tear manual. A


indústria siderúrgica consumou a mudança do combustível ve-
getal para o mineral. A máquina a vapor selou seu triunfo sobre
a roda d’água. A indústria química pesada estabeleceu-se firme-
mente, e as possibilidades técnicas do complexo sal-soda-ácido
foram exploradas segundo a orientação implícita no processo
de Leblanc. Por fim, a máquina difundiu-se com amplitude cada
vez maior – na fabricação de pregos no setor de cutelaria, na
estampagem de fôrmas metálicas pesadas, na confecção de
roupas, na fabricação de papel e em inúmeros outros campos
(LANDES, 2005, p. 205).

Observe que esse amadurecimento, por sua vez, não signi-


ficou estagnação da inovação tecnológica. Pelo contrário, as téc-
nicas e tecnologias empregadas na transformação de matérias-
-primas em produtos acabados não cessaram e continuam a se
transformar até nossos dias.
Os meios de transporte foram os que mais se desenvolveram,
especialmente as embarcações a vapor e as ferrovias — principal
meio de transporte do início do período industrial. Países como
França, Bélgica, Alemanha e o Reino Unido já tinham alguns milha-
res de quilômetros de ferrovias que cruzavam praticamente todo o
seu território.
As ferrovias por si só eram meios de transportes. Contu-
do, a ampliação das linhas férreas pelo continente europeu veio
acompanhada de uma nova prática comercial: a redução cres-
cente de barreiras protecionistas e o aumento da competição de
preços.
Com isso, abria-se caminho para um crescimento cada vez
maior da economia capitalista industrial. Isso também signifi-
cou o aumento das sociedades anônimas e a criação de grandes
companhias nacionais.

198 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Vale salientar que esse processo econômico é importante


para entendermos a nova forma de expansão europeia sobre o
continente africano.
Consequência de uma nova política e do aperfeiçoamento
do direito comercial e internacional, a redução das taxas alfan-
degárias contribuiu significativamente para a transformação da
economia europeia. Vejamos um registro sobre o tema:
Uma modificação do panorama político-jurídico da iniciativa
empresarial merece menção especial: a redução generalizada
das barreias do comércio internacional. Esta assumiu três for-
mas: (1) a eliminação ou redução das restrições e cobranças
de tributos sobre o tráfego em vias navegáveis internacionais,
como o Danúbio (1857), o Reno (1861), o Sheldt (1863), o baixo
Elba (1861), o alto Elba (1863 e 1870), o Sund dinamarquês e
os canais do Báltico e o mar do Norte (1857); (2) a simplificação
do conflito entre moedas, que era o equivalente monetário da
fragmentação política da Europa (o táler nacional alemão de
1857; o florim austríaco uniforme de 1858; o acordo monetário
latino, entre França, Bélgica, Suíça e Itália, em 1865); e, o mais
importante, (3) uma série de tratados comerciais que propor-
cionaram uma diminuição substancial das taxas alfandegárias
entre as principais nações industrializadas da Europa (Inglater-
ra-França, 1860; França-Bélgica; França-Prússia, 1862; por ex-
tensão, França-Zollverein, 1866; Prússia-Bélgica, 1863 e 1854;
Prússia-Inglaterra, 1865; Prússia-Itália, 1865, e muitos outros)
(LANDES, 2005, p. 210).

No entanto, mesmo com a redução dessas barreiras, dife-


rentemente dos nossos dias, não foi criada uma zona de livre
comércio.
Foi, portanto, nesta época que se desenvolveu o denomi-
nado capitalismo monopolista. Grupos de industriais uniam-se
para formar verdadeiros conglomerados de empresas com apoio
do Estado, e, sobretudo, do moderno sistema bancário.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 199


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Assim, os bancos foram fundamentais para capitalizar as


novas empreitadas dos Estados e das companhias privadas.
Todo este cenário financeiro, somado a uma prática de ex-
pansão e anexação de territórios fora do continente europeu —
como a partilha da Ásia, que teve início no fim do século 18 –,
levou também à partilha do continente africano.
Os Estados que detinham grande controle sobre as eco-
nomias no período, apoiados pelas elites, empreenderam ver-
dadeiras companhias comerciais na África. Empresas de nave-
gação e ferrovias, de extração de marfim e borracha, empresas
petroleiras e de outras matérias-primas estavam espalhadas no
continente. Além disso, os bancos investiam forte capital nessas
empresas ou emprestavam dinheiro para o Estado em seu pro-
jeto colonial.

Para ampliar seus conhecimentos sobre o movimento histórico


citado, especialmente em relação à divisão do território chinês
entre as potências europeias e os Estados Unidos, sugerimos
que você leia as páginas 524-596 da obra de Alain Peyrefitte, O
império imóvel, ou o choque dos mundos. Niterói (Casa Jorge,
1997).

O caso mais emblemático foi o do imperador belga Leopol-


do II, que, a partir de empréstimos em bancos belgas e alemães,
investiu capitais próprios em seu projeto colonial, culminando
na formação do Congo Belga (atual República Democrática do
Congo).
Segundo o historiador congolês Elikia M’Bokolo (2004), es-
ses empréstimos eram convertidos em ações da bolsa, pois os
homens que emprestavam dinheiro ao imperador ou investiam
capitais diretos na colônia queriam garantias contra uma possí-

200 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

vel intervenção do Estado. Dessa forma, as atividades econômi-


cas e empresárias empregadas por Leopoldo II no Congo Belga
estavam ancoradas nesse tipo de contrato. O próprio imperador,
por sua vez, era acionista de empreitadas de outros países, como
a dos alemães.
Nesta época, foi uma prática comum o Estado belga dar
concessões de exploração de serviços nas bacias do Rio Congo
ou mesmo permitir a exploração dos produtos da floresta equa-
torial, de onde se extraía a borracha.
De acordo com o historiador:
O personagem-chave desse dispositivo, Alex de Browne de Tiè-
ge, era, ao lado dos Rothschild, um dos principais banqueiros
credores de Leopoldo II, o que lhe devia, em 1894, mas de 2
milhões de francos belgas. Se o rei não pagasse, o banqueiro
receberia 16 milhões de hectares na bacia equatoriana. Quanto
ao ‘domínio da Coroa’, cujos textos constitutivos e relatórios de
atividades Leopoldo II teve o grande cuidado de dissimular e,
depois, queimar, este ocupava o sul da bacia, em torno do lago
Mai Ndombe (M’BOKOLO, 2004, p. 548).

Vale ressaltar que inúmeros historiadores, ao descreverem


esse novo processo de colonização, adotaram como conceito-
-chave o termo “Imperialismo” ou “neocolonialismo”.
O período que corresponde ao neocolonialismo, conforme
definição de Eric Hobsbawm em a Era dos Impérios, está situado
cronologicamente entre os anos de 1880 e 1914.
O historiador francês Marc Ferro, no livro História das co-
lonizações, divide a colonização em três fases distintas e comple-
mentares. Para ele:
A dominação dos colonizadores e suas conseqüências deram
origem a várias situações-tipo; algumas de suas características

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 201


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

conseguiram sobreviver parcialmente, até mesmo à descoloni-


zação. Assim, podemos distinguir:
– a colonização de tipo antigo, de tipo expansionista, num estágio
de livre concorrência do desenvolvimento capitalista. O caso da
Argélia, conquistada em 1830, figura como um de seus últimos
exemplos;
– a colonização de tipo novo, ligada à Revolução Industrial, que
se aplica à maioria das conquistas francesas posteriores a
1871, ao Marrocos, sobretudo, ainda que essas conquistas
envolvam outras considerações; igualmente desse tipo é a
política de expansão da Grã-Bretanha e da Alemanha na Áfri-
ca Oriental e na África do Sul etc.;
– o Imperialismo sem colonização, por exemplo, no Império Oto-
mano — a título provisório, como demonstra o caso do Egito em
1881. Ele se desenvolveu de modo mais puro — ou seja, sem a
idéia de instalar colonos — na América latina, onde a City lon-
drina reinava na Argentina e no Peru, antes de ceder o lugar aos
Estados Unidos. Esse Imperialismo sem bandeira sobreviveu aos
movimentos de independência da segunda metade do século XX
(FERRO, 1996, p. 38).

A denominada corrida colonialista, como mostra Ferro


(1996), começou em 1830 (Figura 2), quando a França iniciou o
processo de colonização da Argélia, que até então fazia parte da
soberania otomana.
A corrida colonialista marca o início do processo no qual as
práticas comerciais bilaterais dão lugar à ocupação territorial e à
exploração comercial dos recursos.

202 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Fonte: HERNANDES, 2008, p. 52.


Figura 2 Ocupação da África em 1830 no início da corrida colonialista.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 203


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Civilização, ciência, fé e algumas consequências


Como veremos, a colonização não se limitou apenas à
questão econômica, uma vez que havia também um forte discur-
so civilizatório que fundamentava esse processo.
Assim como existiram razões que justificavam a expansão
marítima no século 16 — no caso, a questão religiosa e o engran-
decimento do rei —, a expansão no século 19 também tinha seus
fundamentos.
Especialmente na segunda metade do século 19, a justifi-
cativa estava ancorada no fato de os colonizadores acreditarem
estar levando a civilização (cultura superior) às raças inferiores.
Ou seja, julgavam-se os únicos que poderiam tirar os negros de
seu governo irracional “guiado pelo capricho”.
O escritor francês Victor Hugo (1802-1865) deixou um re-
gistro que dá o tom desse discurso civilizatório:
Dois partidos a tomar: civilizar a população, colonizar o solo [...].
Civilizar a população? De acordo, mas que negócio [...]. Não é
somente fundir dois povos, é fundir duas raças [...] é aproximar
séculos; de um lado, o nosso, o século XIX, o da imprensa livre
e da plena civilização; de outro, o deles, o século pastoral e pa-
triarcal, homérico e bíblico. Que triplo abismo a transpor [...].
Aqueles homens se assemelham de outro modo perante Deus?
[...] Na vida, eles se repelem e se excluem, e um persegue o ou-
tro. Portanto, colonizar o solo [...]. Então, dirá alguém, de fato
é preciso ser um pouco bárbaro entre esses selvagens [...]. A
barbárie está na África, eu sei [...]. Não devemos ir buscá-la,
devemos destruí-la. Não viemos até aqui para trazer a África,
mas para levar-lhe a Europa (HUGO apud FERRO, 2004, p. 562).

204 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

O discurso religioso, por sua vez, também foi parte inte-


grante importante dos objetivos civilizatórios, pois tanto cató-
licos quanto protestantes organizaram missões evangelizadoras
no continente africano.
No século 19, a civilização que era defendida pelos euro-
peus como a raça superior também se pautava nos valores mo-
rais da fé cristã. Essa fé também se aliava à ciência, que ampliou
seus “horizontes” de ação e conhecimentos sobre outras regiões
do mundo.
A ciência “descobre” a África no século 18 e aprofunda
seus conhecimentos no século 19. Proliferam-se as viagens dos
naturalistas ao mesmo tempo que as teses racistas são constan-
temente ampliadas e renovadas.
As teses dos sociólogos e antropólogos darwinistas sobre o
evolucionismo social reforçavam a ideia de que apenas a Europa
poderia “salvar” a África do seu estado de barbárie e ignorância.
O racismo científico foi mote do processo das coloniza-
ções. São dois os casos mais emblemáticos: o de Ruanda e o da
África do Sul.
Estudaremos primeiro o caso de Ruanda (talvez o mais trá-
gico) e analisaremos o caso da África do Sul em outro momento.
No século 19, os belgas, baseados nos conhecimentos cien-
tíficos e nos critérios raciais da época, criaram uma forte divisão
interna na região colonizada ao estabelecer uma distinção entre
dois grupos étnicos:
1) O primeiro grupo era composto por uma minoria, os
Tútsis.
2) O segundo grupo era formado pela maioria, os Hútus.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 205


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Os homens e mulheres colocados entre os Tútsis eram os


que assumiam os cargos burocráticos e “participavam” das deci-
sões do governo, pois, segundo os critérios raciais vigentes, seus
traços físicos seriam de negros de melhor estirpe e, consequen-
temente, poderiam ajudar na missão civilizatória. Os Tútsis for-
maram uma espécie de aristocracia.
Já os Hútus eram os que serviriam apenas para o traba-
lho braçal e não poderiam compor os quadros da administração
local.
Mesmo após a independência do país, em 1962, essa divi-
são foi mantida e o preconceito racial, aparentemente dos bran-
cos com os negros, foi incorporado na subjetividade dos ruande-
ses: Tútsis e Hútus tinham “RGs” diferentes entre eles, embora
fossem membros do mesmo país.
Em meio a esta situação, uma grave crise política e econô-
mica abalou o país no início dos anos de 1990, culminando em
um grande genocídio no ano de 1994 (Figura 3).

Figura 3 Caveiras de vítimas do genocídio de Ruanda.

206 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Nesse período, a população tútsi não era composta so-


mente por homens abastados, uma vez que a maior parte desse
grupo vivia nas mesmas condições que o restante da população.
Desse modo, quando o presidente Juvénal Habyarimana
morreu em um atentado, as tensões seculares, somadas às con-
dições frágeis vivenciadas, explodiram. O resultado foi um dos
episódios mais trágicos de nossa história recente: o genocídio de
quase um milhão de pessoas, mortas e decapitadas à faca pelas
forças revoltosas comandadas por radicais.
Vimos até agora que as colonizações na África, como afir-
mou Marc Ferro, começaram no início do século 19 — caso da
Argélia. Mas, antes disso, holandeses e, depois deles, britânicos
colonizaram a Colônia do Cabo, e Portugal também firmava sua
posição de colonizador em Angola desde fins do século 18. No
entanto, foi apenas na segunda metade do século 19 que entra-
ram em cena outras potências na grande corrida para ocupar os
territórios africanos, o que acelerou o processo e o elevou a ou-
tro patamar: Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Inglaterra, Itá-
lia e Portugal foram os países que partilharam a África (Figura 4).

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 207


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Figura 4 Partilha da África.

A seguir, você pode conferir a relação entre os impérios e


as colônias:

208 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Quadro 1 Colonizações a partir de 1880.


COLONIZADOR REGIÕES COLONIZADAS (NOME DOS PAÍSES ATUAIS)
Alemanha Tanganica, Namíbia, Ruanda-Burundi
Congo Belga (República Democrática do Congo, antigo Zaire)
Bélgica
e Ruanda
Saara Ocidental, Guiné Espanhola (atual Guiné Equatorial),
Espanha Ilhas de Ferdinand Po, Coriseo, Elobey-Chico, Elobey-Grande
e Annobon (localizadas no golfo da Guiné)
Marrocos, Argélia, Tunísia, Guiné, Senegal, Daomé, Níger,
França Costa do Marfim, Mali, Gabão, Congo, Chade, República
Centro-Africana e Madagascar
Egito, Sudão (em parceria com o Egito), Rodésia, Uganda,
Inglaterra Quênia, Zanzibar, Somália, África Oriental Inglesa, Gâmbia,
Serra Leoa, Nigéria e Costa do Ouro
Itália Somália, Eritréia e Líbia
Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé
Portugal
e Príncipe
Fonte: Adaptado de Mackenzie (1994) e Ferro (2004).

Como você pôde notar, tanto a Libéria como a Etiópia não


foram colônias. Ou seja, apenas esses países permaneceram “li-
vres” em todo o continente.
A Libéria tem uma história interessante: foi fundada pelos
Estados Unidos, em 1822, para servir como “um lar” para os ex-
-escravos caso eles quisessem retornar à sua terra. Essa ação foi
liderada pela Sociedade Americana de Colonização (criada em
1816) para levar escravos libertos para a África, pois, durante a
presidência de James Monroe, havia uma corrente que acredita-
va que seria melhor se os libertos retornassem ao seu continente
de origem.
Outra corrente, porém, acreditava que os negros eram in-
capazes de se autogovernar e, portanto, não poderiam se adap-
tar ao sistema de trabalho livre assalariado.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 209


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Contudo, não foi por isso que o país não foi colonizado. Em
1847, a Libéria foi o primeiro país independente da África — se
considerarmos a forma moderna de um país, com Constituição e
separação entre os três poderes (executivo, legislativo e judiciá-
rio). Além disso, houve forte resistência tanto na Libéria quanto
na Etiópia contra o processo colonial.
Isso não quer dizer que não houve resistência em outras
localidades. Embora elas sempre tenham existido, as outras re-
voltas não obtiveram êxito no período auge do Imperialismo.
Assim, foi somente no século 20, após a 2ª Guerra Mun-
dial, que os países africanos se tornaram independentes.
Mais adiante voltaremos a esta questão.

Força e cultura da violência


Não é correto imaginar que as colonizações foram uma
obra exclusivamente militar. As batalhas de conquista, como
nos casos do Egito e do Congo Belga, foram travadas em muitas
ocasiões. Porém, as potências europeias não tinham um contin-
gente de tropas tão volumoso para controlar sozinhos, depois de
conquistado, o continente inteiro.
Conforme os historiadores ligados a instituições francesas
Yves Bénot (2004), Elikia M’Bokolo (2004), Marc Ferro (2004) e
Catherine Coquery-Vidrovitch (2004), os governos coloniais eram
comandados por europeus e africanos. No entanto, cabiam aos
europeus os cargos mais altos, tanto na administração quanto na
hierarquia militar.

210 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Bénot (2004), ao relatar o processo de descolonização da


África Francesa, mostra que os nativos africanos (denominados
indígenas no século 19) também participaram do jogo político
local.
Os ingleses adotaram a política de administradores e tro-
pas locais, como também aplicaram essa prática, por exemplo,
no Sudão, que era coadministrado pelo Egito. Já os franceses o
fizeram no Marrocos, que era oficialmente um protetorado.
Outra prática muito utilizada, especialmente pelos france-
ses nos séculos 19 e 20, foi a de deslocar jovens para outras re-
giões a fim de que pudessem servir nas tropas nativas. Homens
eram tirados do Congo, por exemplo, e levados a servir como
militares na Argélia e vice-versa.

O caso do exército anglo-egípcio no Sudão––––––––––––––

Figura 5 Sudão anglo-egípcio – Soldado em camelo das forças nativas do exército


britânico.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 211


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Esta fotografia do início do século XX, da Coleção de Frank e Frances Carpen-


ter da Biblioteca do Congresso [dos EUA], foi tirada no Sudão anglo-egípcio,
um “condomínio”, estabelecido em 1899 no qual a Grã-Bretanha e o Egito exer-
ciam a soberania conjunta. Em 1898, os britânicos e os egípcios uniram forças
para reconquistar o país, após uma revolta sudanesa contra o governo egípcio,
que fora estabelecido à força em 1821. A defesa do Sudão anglo-egípcio era
de responsabilidade do exército egípcio, que instalou vários regimentos no Su-
dão. O exército estava sob o comando do governador-geral, que foi nomeado
pelo Egito, por recomendação da Grã-Bretanha. Os governadores-gerais eram
funcionários da Grã-Bretanha, que efetivamente controlava o país. Aquilo que
ficou conhecido como o exército anglo-egípcio incluía batalhões tanto de egíp-
cios quanto de sudaneses (BIBLIOTECA DIGITAL MUNDIAL, 2010).
–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Além disso, incentivava-se a brutalidade contra as popu-
lações locais no campo e nas cidades. As polícias, responsáveis
pela manutenção da ordem e dos bons costumes, também re-
corriam constantemente a expedientes violentos.
Por essa razão, dava-se poder às pequenas elites armadas.
Porém, como não havia identidade entre eles e os povos contra
os quais agiam, verificava-se a incorporação e proliferação de
uma cultura violenta.
Essa percepção da exacerbação da violência parece ter
sido notada no continente africano desde os primeiros contatos
entre os europeus e os africanos.
Elikia M’Bokolo (2004) cita a seguir os massacres ocorri-
dos na África Central, por meio de textos de viajantes europeus
que recuperaram um relato da tradição oral dos povos de Angola
(produzido por volta de 1700) sobre o início dos contatos com os
portugueses.
Nossos pais viviam confortavelmente na planície de Lualaba.
Eles tinham vacas e culturas. Tinham salinas e bananeiras.
De repente, viram surgir um grande barco no mar grande.

212 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Esse barco tinha asas totalmente brancas, faiscantes como fa-


cas. Uns homens brancos saíram da água e disseram palavras
que ninguém entendia.
Nossos antepassados sentiram medo, disseram que aqueles
eram zumbis, almas que vagueiam.
Então os repeliram para o mar com revoadas de flechas. Mas
os zumbis cuspiram fogo com um barulho de trovão. Muitos
homens foram mortos, nossos antepassados fugiram.
Os notáveis e os adivinhos disseram que aqueles zumbis eram
os antigos possuidores da terra.
Nossos pais se retiraram, temendo o retorno do barco Ulungu.
O barco reapareceu. Os homens brancos pediam galinhas e
ovos. Eles davam tecidos e pérolas. Desde aquele tempo até
hoje, os brancos não nos trouxeram mais nada, a não ser guerras
e misérias, a mandioca e a maneira de cultivá-las (M’BOKOLO,
2004, p. 504).

Conferência/Tratado de Berlim
O processo do neocolonialismo gerou uma eminência de
conflitos de interesses e guerras prolongadas no seio do territó-
rio colonial.
As grandes potências do século 19, França e Inglaterra,
passaram a ter na segunda metade do século novas companhias:
a Alemanha e a Itália, recém-unificadas, e potências emergentes,
como a Bélgica. Foi justamente o surgimento de Alemanha e Itá-
lia que causaria o desequilíbrio nas nações europeias e a corrida
pela posse de territórios na África.
No fim de 1884, uma conferência mudaria o destino dos
povos africanos: a Conferência de Berlim, organizada pelo chan-
celer alemão Otto Von Bismarck (1815-1898). O objetivo dessa

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 213


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

conferência era criar as regras (políticas, militares e comerciais)


para partilhar a África entre as nações europeias.
Confira a seguir o preâmbulo da Ata da Conferência de Ber-
lim, redigida em fevereiro de 1885:
Querendo regular num espírito de boa compreensão mútua as
condições mais favoráveis ao desenvolvimento do comércio e
da civilização em certas regiões da África, e assegurar a todos os
povos as vantagens da livre navegação sobre os dois principais
rios africanos que se lançam no Oceano Atlântico; desejosos,
por outro lado, de prevenir os mal-entendidos e as contesta-
ções que poderiam originar, no futuro, as novas tomadas de
posse nas costas da África, e preocupados ao mesmo tempo
com os meios de crescimentos do bem-estar moral e material
das populações aborígines, resolveram sob convite que lhes
enviou o Governo Imperial Alemão, em concordância com o
Governo da República Francesa, reunir para este fim uma Con-
ferência em Berlim, nomeando para seus plenipotenciários [...]
(CASA DE HISTÓRIA, 2010).

Foram signatários da referida conferência: Grã-Bretanha,


França, Espanha, Itália, Bélgica, Portugal, Espanha, Holanda, Di-
namarca, Estados Unidos da América, Suécia, Áustria-Hungria,
Império Otomano, além da Alemanha, patrocinadora do evento
(MACKENZIE, 1994).
É importante observar que Portugal tinha pretensões
maiores. Seu projeto original era unir o território de Angola a
Moçambique sob seu único domínio e formar o que ficou conhe-
cido como “Mapa cor-de-rosa”. Mas os ingleses, que detinham o
controle sobre a colônia do Cabo e sobre os territórios presentes
no meio do Mapa cor-de-rosa, opuseram-se e ameaçaram ir à
guerra se Portugal levasse a ideia adiante (MACKENZIE, 1994).
É importante ressaltar que a Conferência de Berlim não
significou o fim do processo, muito menos seu começo, uma vez

214 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

que a ocupação dos territórios africanos pelas potências euro-


peias de norte a sul já vinha ocorrendo desde o início do século.
Em outras palavras, ferrovias, companhias de navegação,
extração de borracha, marfim, ferro, ouro e de produtos agríco-
las já estavam ocorrendo a todo vapor.

Conferência de Berlim – Capítulo II–––––––––––––––––––––


Na Conferência de Berlim foi regulado o fim definitivo do tráfico de escravos no
continente africano:

Capítulo II – Declaração sobre o tráfico de escravos


Artigo 9. Em conformidade com os princípios do direito dos indivíduos tal como
eles são reconhecidos pelas Potências signatárias, estando proibido o tráfico
dos escravos, e devendo igualmente as operações que, por mar ou por terra,
fornecerem escravos para o tráfico ser consideradas como proibidas, as Po-
tências que exercerem ou que vierem a exercer direitos de soberania ou uma
influência nos territórios que formam a bacia convencional do Congo declaram
que esses territórios não poderão servir nem de mercado nem de via de trân-
sito para o tráfico dos escravos de qualquer raça. Cada uma das Potências se
compromete a empregar todos os meios disponíveis para punir aqueles que
dele se ocupam.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Como você pôde observar no preâmbulo da ata da Con-
ferência de Berlim, o destino do continente africano foi traçado
de forma arbitrária. Povos, rivais há milênios, foram colocados
dentro de um mesmo território.
Segundo Visentini:
A conferência estabeleceu ainda as regras para a legitimidade
da dominação: a prova de ocupação definitiva e a declaração
de tais normas para possíveis contestação por outras potências
europeias e assinaturas de acordos. [...] Ao final da conferência,
a história e a política africanas passaram a ser definidas pela
diplomacia europeia (VISENTINI, 2014, p. 60).

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 215


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Exércitos de estrangeiros (formados por europeus e africa-


nos de outros povos e regiões), corpo policial, naturalistas, mis-
sionários, racismo, indústria e, especialmente, nação foram al-
gumas palavras que passaram a fazer parte da vida dos africanos
com mais intensidade depois da assinatura do Tratado de Berlim.
Entretanto, segundo o cientista político Wolfgang Döpcke
(1999), há uma supervalorização dada à Conferência de Berlim.
O imaginário popular (representado na Figura 6) e mesmo a his-
toriografia moderna afirmam que toda a partilha da África foi
decidida na Conferência.
A partilha do continente foi, portanto, um processo com-
plexo que envolveu as potências europeias e alguns setores das
elites políticas e administrativas africanas, com peso maior aos
primeiros.
Segundo Döpcke (1999, p. 82-83):
O que realmente foi decidido na Conferência de Berlim e qual a
sua relevância para a Partilha da África? A Conferência foi inau-
gurada por Bismarck no sábado, dia 15 de novembro de 1884,
e encerrou-se no dia 26 de fevereiro de 1885. As 15 nações
participantes, a maior parte delas sem interesses coloniais ou
comerciais na África, estavam representadas pelos seus embai-
xadores. A razão inicial da Conferência foi a recusa da França e
da Alemanha em reconhecerem o acordo anglo-português de
junho de 1884. Neste acordo, que foi precedido por uma dispu-
ta entre a França, Portugal e a Associação Internacional da Áfri-
ca do Rei Leopoldo II sobre a região do rio Congo e a sua foz, a
Inglaterra reconheceu as antigas e constantes reivindicações de
Portugal de exercer hegemonia histórica sobre a região do Con-
go. Por meio deste acordo, a Grã-Bretanha intencionava colocar
Portugal como barreira contra possíveis investidas coloniais de
outros Estados, sobretudo da França. Bismarck, profundamente
cético a respeito da idéia colonial e partidário do livre comércio
na África, viu na desavença entre a Inglaterra e a França uma

216 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

oportunidade de aproximação com a França. Embora ele tenha


aprovado um limitado engajamento alemão na África, ele pen-
sava exclusivamente na dimensão estratégica européia. Para
ele, as aquisições na África, assim como a Conferência, somen-
te serviam para impedir o surgimento de um campo inimigo na
Europa dirigido contra a Alemanha.

Figura 6 Charge de um jornal alemão sobre a Conferência de Berlim (1884-1885) /


Soldados britânicos ocupando o Egito.

Diante disso, novas tradições foram criadas dentro do con-


tinente africano, dentre as quais se destaca a ideia de nacionali-
dade, ou melhor, o desenvolvimento de um discurso que criava o
sentimento de pertença a uma nova nação.
Observe que, assim como ocorreu na Europa na primeira
metade do século 19, a África passou a viver no período do im-
perialismo uma reformulação na cultura do pertencimento e da

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 217


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

identidade. Os africanos passaram a se identificar, de maneira


gradual, com seus novos países, suas bandeiras e novas tradições
(HOBSBAWM; RANGER, 2002): morrer e viver pela pátria!
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A invenção dessas tradições incluía todos os rituais e hierarquias ocidentais.
Na Figura 7, observe dois soldados da Guiné espanhola devidamente farda-
dos, sendo que um deles fuma um cachimbo. Depois da imagem, você pode
conferir a introdução (em espanhol) de um livro sobre as colônias espanholas
na África. No texto, é possível ver claramente o discurso no início do século 20
sobre a questão da nação e a ideia de civilização propagada na Europa.

Figura 7 Soldados da Guiné Espanhola (atual Guiné Equatorial) em 1912 / Introdução


do livro intitulado Descrição geográfica e administração governamental e fundação
de colônias espanholas no Golfo da Guiné, de autoria de Luis Ramos Izquierdo y Vivar
publicado em 1912.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

218 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Divisão da África
Com o final da Conferência de Berlim e o estabelecimento
definitivo das regras que na prática organizavam a posse do con-
tinente africano pelos europeus, as grandes nações europeias
intensificaram seu domínio sobre a África.
Se por um lado os africanos começaram a resistir à domi-
nação assim que constaram que estavam perdendo a autonomia
política, econômica etc., os europeus iniciavam a exploração sis-
temática do continente. Segundo Visentini (2014),
Para isso, era necessário submeter territórios e populações,
reorganizar a produção, o sistema de propriedade e obrigar a
população ao trabalho orientado pelos novos objetivos e vo-
lumes de produtos. Esse imenso processo de expropriação da
economia, do tempo, da cultura e das condições de vida ori-
ginou rebeliões e resistências, principalmente nas sociedades
sem organização estatal. A anulação da soberania e a subor-
dinação das sociedades organizadas sob formas estatais foram
efetivadas através de guerras de conquista. A superioridade em
armamentos e meios de locomoção proporcionadas pela nova
tecnologia foi a garantia da vitória na repressão às resistências
e nas guerras (VISENTINI, 2014, p. 64).

Foram as armas produzidas pelas novas tecnologias advin-


das da revolução industrial que garantiram aos europeus a vi-
tória relativamente fácil na dominação de todo o continente. A
violência garantiu o sucesso europeu na África enquanto a diplo-
macia fez com que as potências resolvessem as pendências do
processo de dominação.
O resultado foi a criação de fronteiras artificiais que, como
já fora dito anteriormente, uniu em uma mesma unidade povos
historicamente rivais que passaram a ter que conviver sob uma
mesma bandeira e uma mesma lei político-administrativa. Estava

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 219


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

formado o cenário de conflitos que ainda hoje nos deparamos e


que aparentemente não há solução.
Os egípcios, desde 1808, viviam sob um regime de politicas
modernizadoras comandado por Mohamed Ali. Esse regime che-
gou a ameaçar o Império Turco-Otomano no final dos anos 30
do século 19. Nações europeias, em especial a Inglaterra, defen-
deram os interesses turcos e obrigaram Ali a recuar. Em pouco
tempo, os ingleses dominaram o Egito, deslocando a França.
A França conquistou a Argélia em 1830; no final do século
19, também a Tunísia. Tomaram ainda o Marrocos, na condição
de protetorado. Italianos, espanhóis e ingleses foram pegando
“partes” do continente, todos com dificuldades, principalmente
quando enfrentando povos islâmicos, como no Sudão. A Alema-
nha pegou territórios se aproveitando das disputas entre outras
potências.
Na virada do século 19 para o 20, praticamente todo o con-
tinente estava já sob o domínio das nações imperialistas euro-
peias. As disputas por territórios no continente africano foi um
dos fatores que conduziu o mundo para a Primeira Guerra Mun-
dial. As nações europeias recrutaram milhões de africanos para
o combate e milhares foram alocados na Europa.
As potências europeias desenvolveram dois tipos de domi-
nação no continente: dominação direta e indireta. Cabe a nós,
enquanto historiadores, distinguirmos entre essas duas formas
de governo, ambas não positivas para os africanos, mas que dei-
xaram marcas distintas.
Na dominação direta, não há organismos intermediários
nas províncias. O representante da autoridade imperial gover-
na a província com poderes executivos e legislativos. Os líderes

220 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

ou chefes nativos passam a ser funcionários imperiais. Não há


organizações intermediárias de legislação entre o governo impe-
rial e sua província – ignora-se completamente as leis e normas
nativas.
A dominação indireta se diferencia justamente pelo fato
das autoridades coloniais terem poderes dominantes, mas há
organismos intermediários para o relacionamento entre a nação
imperialista e os nativos. A relação entre a população ocorria por
meio dos próprios chefes nativos, o que na prática garantia a ma-
nutenção de certos direitos tradicionais.
A dominação, direta ou indireta, era exercida pelo estabele-
cimento de colônias ou protetorados. Colônias eram constituídas
por áreas que foram conquistadas e organizadas de acordo com
as necessidades das nações dominantes. O controle era exercido
por autoridades da metrópole que ainda contavam com apoio de
contingentes de homens nativos da colônia. Nesse caso, ficava a
critério da metrópole, ou das metrópoles, o estabelecimento de
fronteiras e a divisão das etnias de acordo com suas vontades.
Já protetorados eram formados por meios de acordos com
nações ou Estados africanos já existentes, sem uma conquista
militar, por exemplo. Teoricamente, os protetorados apresen-
tavam restrições às medidas arbitrárias da metrópole e ainda
mantinham estruturas políticas e sociais. Porém, tinham que ex-
tinguir as forças armadas e atribuíam à metrópole suas relações
diplomáticas.
Parece, à primeira vista, que o protetorado era mais ame-
no, não é mesmo? Na prática, não era bem assim, uma vez que
qualquer líder local que se mostrasse desfavorável a alguma me-
dida da metrópole era facilmente substituído. Caso houvesse a

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 221


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

quebra do acordo de protetorado, poderia haver uma interven-


ção militar.
Finalmente, é preciso reconhecer que todo processo de
colonização não foi aceito de livre e espontânea vontade pelos
povos do continente africano. Assim, focos de revolta foram tra-
vados durante todo o período, e conflitos violentos ou episódios
de segregação entre brancos e negros foram vivenciados.

6. DESCOLONIZAÇÕES/INDEPENDÊNCIAS AFRICA-
NAS: UMA HISTÓRIA DE LUTA E VIOLÊNCIA
A primeira questão importante a ser discutida refere-se ao
título desta unidade, a qual traz uma peculiaridade.
Como você deve ter notado, há duas palavras divididas por
uma barra: descolonizações/independências. Por que isso?
Durante muito tempo, o termo usado para descrever o
processo de formação dos Estados africanos e asiáticos, na se-
gunda metade do século 20, foi descrito como um processo de
descolonização.
Entretanto, essa denominação não faz jus ao período, pois
subentende-se que foi ideia exclusiva das potências europeias
acabar com as suas colonizações.
Observe que, quando usamos o termo “independências”,
a ideia que se tem é justamente oposta, pois implica que a pas-
sagem da administração não foi um presente concedido pelos
europeus aos territórios e povos colonizados.
Houve uma série de movimentos e revoltas locais que le-
varam ao processo de emancipação. Existiram, ainda, outros ele-

222 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

mentos que também influenciaram nas emancipações africanas,


como o discurso anticolonialista europeu (estudaremos adiante).
Na Unidade 1, estudamos a composição política e regional
da África em nossos dias. É interessante observar que alguns dos
países africanos modernos só conseguiram sua independência
em meados dos anos 1980 e, em alguns casos, a independência
só se consumou na década de 1990.
Da partilha da África às duas Guerras Mundiais (1914-1919
e 1939-1945) — apesar deste breve período —, um longo trajeto
foi estabelecido entre os povos africanos e a nova realidade so-
cial e política do continente africano como um todo.
O movimento colonial foi baseado na força militar, no capi-
tal, na ciência e na fé.
Em outras palavras, os europeus pretendiam levar a sua
civilização às sociedades que eles julgavam inferiores e primiti-
vas. Além disso, o processo de colonização contou com apoio das
próprias elites locais em todo o período.
Manuel Jauará, em conferência realizada durante o XXV
Simpósio Nacional de História, afirma que
Administração indireta, na época colonial, integrava os chefes
tradicionais que continuavam dirigindo a sua sociedade só que
agora executando as determinações do governador geral. Na
administração direta o governador geral controlava, com a co-
laboração dos seus auxiliares, todo o território colonial direta-
mente. Talvez por isso a sociedade colonial na África Negra se
encontrava estratificada em cinco camadas sociais bem diferen-
ciadas e vistos como agentes da ocidentalização: elites letradas,
plantadores ricos, os comerciantes e pequenos empresários e,
enfim, os trabalhadores assalariados, organizados ou não em
agrupamentos profissionais (JAUARÁ, 2009).

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UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

De acordo com Jauará, são essas novas camadas sociais


formadas no Período Colonial que vão constituir um importante
foco na luta pela emancipação. Nas suas palavras:
Por terem interesses em comuns, essas camadas sociais ten-
dem a aliar-se para provocar, por reação a tomada de consciên-
cia para defesa dos seus interesses. Juntos tentavam tirar o má-
ximo de vantagem proporcionada pelo progresso na produção,
na circulação de bens, nas escolas e outros. Mas, muitas das
vezes seus interesses eram contrariados pelo poder colonial.
Assim se esboçava os contornos da tomada de consciência po-
lítica por parte da burguesia burocrática, da burguesia econô-
mica e dos trabalhadores assalariados organizados. A situação
colonial orientava essa dinâmica de duas maneiras: freando o
processo de formação das classes sociais e provocando, a partir
do momento em que se expressa e organiza a reivindicação de
autonomia, uma “frente” de oposição que limita e supera o an-
tagonismo entre as classes e elege, a partir daquele momento,
um novo adversário, o poder colonial. O fim da colonização e
a independência passam a ser eixo aglutinador em torno dos
quais todos os emancipacionistas se organizam. Assim, os in-
teresses de grupos seriam superados por interesse coletivos,
que era a luta pela emancipação, ou independência (JAUARÁ,
2009).

É importante observar que não foram apenas os abastados


que se levantaram contra o domínio colonial. Várias etnias em-
preenderam forte resistência às forças e à cultura europeia no
auge do período imperialismo. Um dos casos mais marcantes foi
o dos Zulus, povo que vive até nossos dias no atual território da
África do Sul e Botsuana e que, antes da colonização, detinha um
império organizado (KI-ZERBO, 1980).
Além dos Zulus, outras etnias também se insurgiram con-
tra o domínio colonial (Figura 8).

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UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Como você pôde observar, todas as áreas cinza da Figura 8


representam focos de revolta.
Elika M’Kbolo (2004) monta um quadro interessante des-
sas revoltas das colônias na África Negra, durante o período do
imperialismo.
Note que essas revoltas foram generalizadas, o que mostra
que o processo de colonização não foi aceito com passividade,
apesar da aceitação, ou melhor, da adaptação das elites africa-
nas à nova situação colonial.

Fonte: M’BOKOLO (2004, anexos).


Figura 8 Mapa dos principais focos de revolta colonial no século 20.

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UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Vejamos no Quadro 2 as principais revoltas nas colônias


africanas:

Quadro 2 Principais insurreições e revoltas na África Negra na


era do imperialismo (séculos 19-20).
ANO POVO E REGIÃO
1881 Insurreição dos Mahdi no Sudão
1885 Insurreição dos Baúles na Costa do Marfim (1881-1892)
1887 Captura e deportação de Jaja na Nigéria
1889-1891 Sublevação contra os portugueses em Moçambique
1892 Béhanzin contra os franceses no Daomé (Benim)
1893 Guerra Anglo-Ndebele na Rodésia do Sul (Zimbábue)
1895 Franceses tornam-se donos de Madagascar
1896 Guerra de independência da Rodésia do Sul
1897 Reino de Nupe (Nigéria) em guerra contra os ingleses
1898 Nova sublevação dos Mahdi no Sudão
1899 Insurreição nas Somálias
1900 Revolta ashanti na Costa do Ouro (Gana)
1903 Revolta dos azande e mandja na África Central
Insurreição do sudeste malgaxe
1904
Tanganica, insurreição dos Maji-Maji (Tanzânia)
Revolta zulu na província do Natal
1905
Revolta dos Hererós no sudoeste da África (Namíbia)
1908 Insurreição na Costa do Marfim
1909-1914 “Pacificação” da Costa do Marfim
1911-1915 Movimento Ovampo no sul de Angola
1912 Sublevação em Camarões
1911-1917 Resistência dos Tútsis e Hútus em Ruanda e Urundi (Burundi)
1914-1918 Revolta dos Holli e Somba no Daomé e no Togo

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UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

ANO POVO E REGIÃO


Revolta dos Baya em Ubangui-Chari (futura República Centro-
1927-1931
Africana)
1931 Revolta Urundi (Burundi) e dos Pende no Congo Belga
Fonte: M’BOKOLO (2004, p. 538).

Para compreender melhor o nome e a localização dos povos


insurgentes, consulte o Mapa das Línguas Africanas (Figura 2),
na Unidade 2.

O que transformou consideravelmente as relações entre as


colônias africanas e as metrópoles foram as duas Guerras Mun-
diais. De modo especial, a Segunda Guerra Mundial, que alte-
rou drasticamente a divisão de forças no mundo. No auge dos
conflitos, que também se estenderam ao norte do continente
africano, as metrópoles buscaram contingente e auxílio em suas
colônias.
Esta ajuda deveria ser retribuída com privilégios e melhor
situação de vida aos colonizados. Entretanto, de acordo com
Marc Ferro (2004, p. 575):
Uma vez, duas vezes — em 1914 e em 1939 —, a metrópole
recorreu ao império para sua defesa. Mais ou menos claramen-
te, entendia-se que os colonizados, em troca de seu sacrifício,
veriam reconhecidos seus direitos, individuais ou coletivos. Tais
promessas não foram cumpridas, e pode-se considerar que a
expansão dos movimentos de libertação, depois de 1918 e de
1945, deve a isso uma parte de seu ímpeto, de sua cólera.

Como você pôde notar, os desdobramentos das duas guer-


ras foram fundamentais para a emancipação dos territórios afri-
canos. Após a Primeira Grande Guerra, o mundo presenciou uma

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UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

grande crise econômica global — a crise de 1929 — e, depois da


Segunda Guerra Mundial, o discurso civilizador europeu perdeu
força, assim como os regimes autoritários na Europa.
Um paralelo importante deve ser feito entre a Segunda
Guerra Mundial e o processo de colonização e manutenção dos
territórios africanos.
O poeta antilhano Aimé Césaire (apud FERRO, 1996) afirma
que o que mais escandalizou a Europa durante a Segunda Guerra
Mundial não foi necessariamente a guerra, mas as atitudes dos
exércitos de Hitler, que aplicavam contra os europeus as mesmas
práticas que estes adotavam em suas colônias na África.
Os campos de concentração e os extermínios em massa
eram práticas adotadas contra os insurgentes das colônias e era
inadmissível sua aplicação contra os iguais.
Os franceses, por exemplo, depois da Segunda Guerra ado-
taram uma ação para intimidação dos insurgentes que não era
muito diferente dos métodos dos nazistas. Quando eram iden-
tificados polos de resistência e revolta, o exército derrotava um
desses polos e utilizava os corpos dos mortos como exemplo
para os outros grupos insurgentes.
Normalmente, eles pilhavam os corpos e os colocavam em
aviões. Ao sobrevoar as outras regiões que manifestavam forte
impulso anticolonial, eles arremessavam os mortos ao solo para
desmobilizar os revoltosos. Isso aconteceu na Argélia, Congo,
Marrocos, Madagascar e em colônias e possessões de outras po-
tências europeias (BÉNOT, 2004).
Além de toda a resistência da população e das elites africa-
nas, a opinião pública europeia passou a repudiar paulatinamen-
te o discurso colonialista.

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UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Assim, mesmo com a defesa ferrenha dos governos, duran-


te a Guerra Fria, para manter suas colônias na África e na Ásia,
fortes movimentos emancipacionistas e anticolonialistas passa-
ram a ganhar cada vez mais força, sobretudo nos anos de 1950-
1960 — período no qual a maior parte dos Estados Africanos
conquistou sua independência.
O discurso civilizatório deu lugar ao discurso da alterida-
de e o conceito de superioridade ocidental já não se sustentava
mais. Economicamente, as colônias representavam grandes gas-
tos com pouco retorno financeiro.
Para entender o contexto geral desta situação, leia o dis-
curso do presidente Charles de Gaulle.

Discurso do presidente Charles


de Gaulle sobre a situação da Argélia–––––––––––––––––––
Mais vale, para França, uma Argélia argelina no seio da Comunidade do que
uma Argélia francesa no seio da França, que nos achataria para sempre! A
manutenção dos departamentos argelinos da França, que nos custaria não só
um grave prejuízo moral no mundo, mas também um esforço ruinoso! Seria o
tonel das Danaides! Se a Argélia permanecesse francesa, deveríamos asse-
gurar aos argelinos o mesmo padrão de vida dos franceses, o que está fora
de alcance. Se eles se destacarem da França, deverão contentar-se com um
nível de vida muito inferior; pelo menos, não mais poderão acusar a França por
isso, e terão uma satisfação de dignidade, a de receber o direito de governar-
-se a si mesmos.
A colonização sempre acarretou despesas de soberania. Mas hoje, ademais,
ela acarreta despesas gigantescas de nivelamento econômico e social. Tor-
nou-se, para a metrópole, não mais uma fonte de riqueza, mas uma causa de
empobrecimento e de atraso.
Quando nós nos instalamos na Argélia, como nas outras colônias, tínhamos a
perspectiva de explorar matérias-primas que dormiam até então, de desenvol-
ver culturas em pântanos ou em planaltos áridos. Podíamos esperar um lucro
muito superior ao custo da instalação. Naquela época, o atrativo do ganho era

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 229


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

mascarado pela proclamação de um papel que nos apresentavam como um


nobre dever. Nós levávamos a civilização.
Mas, desde a primeira guerra e, sobretudo, desde a segunda, os custos de
administração se agravavam. As exigências dos indígenas para seu progresso
social se elevaram; e isso é perfeitamente natural. O lucro deixou de compen-
sar os custos. A missão civilizadora, que no início não passava de um pretexto,
tornou-se a única justificação para o prosseguimento da colonização. Mas, já
que ela custa tão caro, por que mantê-la, se a maioria da população não o
quer? (GAULLE apud BÉNOT, 2004, p. 622-623).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Esses discursos anticolonialistas, somados ao desejo de
emancipação das autoridades e sociedades africanas, levaram a
um estado de coisas no qual o fim dos processos coloniais se
tornou praticamente inevitável.
A modernização de algumas dessas sociedades, quase ex-
clusivamente em centros urbanos do continente, criou uma série
de novas situações.
Movimentos sindicais, estudantis e associações diversas
foram gerando aos poucos inquietações nas colônias africanas
diante dos seus colonizadores.
O discurso dos colonos, como você bem observou no re-
lato de Charles de Gaulle, não conseguia mais sustentar diante
das sociedades europeias a ideia de que levavam a civilização a
povos bárbaros e primitivos.
Uma nova formulação social emergiu no pós-guerra, e esta
não concebia o domínio direto e violento em outros territórios.
Nos Estados Unidos da América, os movimentos pelos di-
reitos civis — que queriam garantir condições de igualdade entre
negros e brancos — e as manifestações contra as guerras (como
a do Vietnã) são alguns exemplos das práticas que contribuíram
para a alteração dos discursos do Ocidente em relação aos pobres
e colonizados.

230 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Soma-se a isso a forte projeção de lideranças políticas de


colônias, como as de Mahatma Gandhi na Índia, as revoltas dos
monges budistas tibetanos contra a dominação chinesa e as lu-
tas locais, como as da África do Sul, contra o fim da segregação
social.
Note que todos esses elementos transformaram o mundo
atual, e a ideia de superioridade racial deu lugar a um pensamen-
to de uma única raça que apresenta diferenças culturais que, por
sua vez, não prejudicam a espécie dos homo sapiens sapiens,
mas contribuem para seu engrandecimento na diversidade.
Entretanto, esse processo é lento, carregado por perma-
nências. Tanto que alguns países africanos só se tornaram inde-
pendentes no início dos anos 1990 e alguns regimes de segre-
gação social e racial só se encerraram no fim da mesma década.
Vejamos, a seguir, o Quadro 3, que é das independências
das nações africanas, elaborado a partir dos textos selecionados
por Marc Ferro (2004) e das informações adquiridas nos sites das
embaixadas:

Quadro 3 Independências das nações africanas.


PAÍS COLONIZADOR ANO DA INDEPENDÊNCIA
Libéria EUA 1847
África do Sul Grã-Bretanha 1910/1961
Egito Grã-Bretanha 1922
Líbia Itália 1951
Condomínio (Grã-
Sudão 1956
Bretanha e Egito)
Marrocos França 1956
Tunísia França 1956
Gana Grã-Bretanha 1957

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UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

PAÍS COLONIZADOR ANO DA INDEPENDÊNCIA


Guiné França 1958
Camarões França 1960
Togo França 1960
Senegal França 1960
Madagascar França 1960
1960 — juntou-se à
Somalilândia Britânica Grã-Bretanha Somália Italiana e formou
a atual Somália
Somália Italiana Itália 1960
Benin França 1960
Níger França 1960
Burkina Faso França 1960
Costa do Marfim França 1960
Chade França 1960
Congo França 1960
Gabão França 1960
Mali França 1960
Nigéria França 1960
Mauritânia Grã-Bretanha 1960
Serra Leoa Grã-Bretanha 1961
Burundi Bélgica 1962
Ruanda Bélgica 1962
Argélia França 1962
Uganda Grã-Bretanha 1962
Zamzibar Grã-Bretanha 1963
Malawi Grã-Bretanha 1964
Zâmbia Grã-Bretanha 1964
Gâmbia Grã-Bretanha 1965
Rodésia Grã-Bretanha 1965 (atual Zimbábue)
Botsuana Grã-Bretanha 1966
Lesoto Grã-Bretanha 1966

232 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

PAÍS COLONIZADOR ANO DA INDEPENDÊNCIA


Maurício Grã-Bretanha 1968
Suazilândia Grã-Bretanha 1968
Guiné Equatorial Espanha 1968
Guiné-Bissau Portugal 1973
Moçambique Portugal 1975
Cabo Verde Portugal 1975
São Tomé e Príncipe Portugal 1975
Angola Portugal 1975
Seicheles Grã-Bretanha 1976
Djibuti França 1977
Namíbia África do Sul 1990
Djibuti Etiópia 1993
Fonte: adaptado de FERRO (2004).

Como você pode observar, a maior parte das independên-


cias/descolonizações ocorreu nos anos 60 e 70 do século 20.
Segundo Visentini (2014), quanto à sua forma, de modo
geral, o processo de independência/descolonização seguiu qua-
tro modelos. O primeiro deles era um sistema de acordo entre
a metrópole e sua colônia, no qual gradativamente a metrópole
ia restituindo a autonomia de suas colônias, entregando o po-
der à uma elite local que, na prática, tinha papel importante du-
rante o processo de dominação e manteria seus vínculos com a
metrópole.
Em um segundo modelo, a metrópole exploraria conflitos
internos em suas colônias a fim de assegurar a transição para a
independência do modo como lhes fosse mais favorável ou me-
nos danoso. No terceiro modo, a independência ocorria após
a metrópole ter sido derrotada por uma guerrilha local. Nesse
caso específico, estamos diante de uma independência por meio
de um conflito metrópole-colônia.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 233


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

O último modelo abrange as independências que ocorre-


ram após a metrópole apoiar uma facção conservadora durante
a guerra civil local. Na vitória ou derrota dessa facção, o poder já
não seria mais mantido pela metrópole. Observem que também
nesse caso não haveria um conflito direto da colônia com sua
metrópole
Dos processos de independência das nações africanas,
destacamos a independência da Argélia, em 1962. O processo
teve início em 1954, quando os argelinos se rebelaram contra
a França. Após oito anos de conflitos, a França não aguentou o
desgaste e cedeu a independência à sua colônia. Segundo Visen-
tini (2014), a independência da Argélia estimulou outros povos
da chamada África Negra a lutar por sua independência.
Foi a partir do final dos anos 50, com o fato de a guerra na
Argélia já ter demonstrado sinais de não ter uma solução, alia-
do ainda à perda do Suez, em 1956, que as potências europeias
perceberam que, para se manterem relevantes no mundo e ter
influência no continente africano, era preciso uma nova estraté-
gia. Com isso, os europeus passaram a apoiar lideranças locais
– muitas vezes aliados europeus – em prol de uma gradativa e
pacifica independência.
O ano-chave de todo esse processo foi 1960, que hoje é
chamado pelos historiadores de Ano Africano. Foi nesse ano que
a maioria dos países africanos se tornaram independentes, natu-
ralmente dentro da proposta pacífica e organizada pelas antigas
metrópoles. Esse processo fez com que as nações recém-surgi-
das fossem comandadas pela elite africana, muitas vezes com-
posta por nativos que eram antigos funcionários das metrópoles.
Esse fato possibilitou o surgimento de ditaduras no con-
tinente africano, posto que essas lideranças tinham interesse

234 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

em manter o poder a todo custo e eram econômica e militar-


mente financiados pelos europeus, fato que contribuiu para a
instalação de diversas guerras civis em algumas das nações
recém-independentes.
Como visto, podemos dizer que a composição atual das na-
ções africanas independentes é relativamente recente, e o longo
processo que levou à formação desses novos países ainda deixa
marcas profundas no continente.
Antigas formas de separação entre uma população consi-
derada superior e outra inferior ainda perduraram no continente
praticamente até o fim do século 20. O caso mais emblemático
foi o apartheid sul-africano.

7. TEXTOS COMPLEMENTARES
No texto a seguir, o historiador francês Alain Peyrefitte faz
um balanço da “questão das colonizações”. Alguns desses pontos
são polêmicos, mas nos levam a indagar certos clichês e posições
sobre o processo colonizador e um de seus desdobramentos: a
problemática do desenvolvimento e subdesenvolvimento.
Portanto, sugerimos que você o leia com olhar crítico e
pesquise mais sobre o assunto para entender suas implicações:

A QUESTÃO DAS COLONIZAÇÕES–––––––––––––––––––––


Ora, o fosso que separa os países “desenvolvidos” dos países pudicamente
chamados “em vias de desenvolvimento” foi cavado durante um período ínfimo
no que se refere à duração da existência humana. No momento da irrupção
dos navegadores ocidentais, as mais primitivas das povoações da América do
Sul ou da África Equatorial haviam chegado ao nível das populações da Euro-
pa dois mil anos antes de nossa era; os chineses tinham atingido um patamar
comparável ao da França de Luís XIV. As defasagens podem ser facilmente
explicadas por circunstâncias geográficas ou históricas, que estimularam uns

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 235


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

e tornaram outros mais lentos, provocaram o isolamento destes, a irritação da-


queles. Trinta e cinco séculos de diferença com relação a três milhões e meio
de anos: o milionésimo da existência do homem. Nada que possa justificar o
sentimento de uma superioridade racial do homem branco sobre o homem de
cor.

A contradição colonial
Essa fé quase messiânica do Ocidente em si mesmo coloca-o em plena contra-
dição. Posiciona-se como adversário dos seus próprios princípios universalis-
tas, compartilhados por toda a Europa, e que a revolução Francesa cristalizou
na França. Nega a liberdade, a igualdade e a fraternidade às populações que
submete à sua dominação. Essa contradição é tão profunda que o Ocidente
acabou por odiar a si próprio por ter sido colonizador. No momento em que,
ao descolonizar, deveria sentir-se novamente em harmonia com seu gênio, ele
se flagelou.
Por seu lado, como poderiam os países dominados não se chocarem diante
da brutalidade com a qual o Ocidente devastara suas tradições? São orgulho-
sos, e com razão: um povo que não tem orgulho de si mesmo perde o prazer
de viver. Principalmente se for, como na Índia ou na China, o centro de uma
civilização antiga e refinada. A revolta dos povos do Terceiro Mundo contra o
Ocidente era uma reação sadia: a rejeição de uma dominação estrangeira que
negara sua identidade. Para qualquer povo que tenha os meios de formar uma
nação, a independência não tem preço. Mas em virtude de a necessidade de
independência ter suas raízes em profundezas passionais, a descolonização
provocou uma explosão de idéias falsas.
Os marxistas ou “marxizantes” conseguiram convencer não apenas o Mundo
Socialista e o Terceiro Mundo, que não queriam outra coisa senão acreditar ne-
les, como também a intelligentsia do Ocidente: o desenvolvimento dos países
colonizadores e o subdesenvolvimento dos colonizados seriam o resultado da
pilhagem dos segundos pelos primeiros. Esquece-se de que a miséria do Ter-
ceiro Mundo preexiste à colonização — e sobreviveu a ela, ou, mais freqüente-
mente, renasce depois dela. O subdesenvolvimento, que deveríamos chamar
de não-desenvolvimento, é um fenômeno permanente e universal.
Desde que o homem apareceu na Terra, a ignorância, as epidemias, a sujei-
ção — escravidão, submissão das mulheres, dependência de um grupo com
relação a outro —, a subnutrição, o medo da doença, da fome e da guerra, são
o lote comum da espécie. Não é o subdesenvolvimento que é um escândalo, o
desenvolvimento é que é um milagre — e muito recente.
[...]

236 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Naturalmente, o irrompimento de uma civilização avançada desestabilizou e


finalmente destruiu, do interior, as sociedades de costumes. Mas não se deve
idealizá-la retrospectivamente. Na China, tanto quanto nas sociedades primi-
tivas da África, da Ásia, da América ou da Oceania, terríveis flagelos precede-
ram a irrupção ocidental: a escassez, a lepra, a malária, a mortalidade infantil,
a mutilação das mulheres, sem falar canibalismo [...] nada disso é consecutivo,
mas anterior à colonização. Tudo isso a colonização fez recuar.
O colonizador não trouxe a miséria ao colonizado, mas uma submissão, insu-
portável e debilitante com o correr do tempo. Aqui reencontramos a contradi-
ção: essa submissão não era melhor meio de transmitir idéias que impulsiona-
ram o Ocidente. Não era pela colonização que Ocidente poderia introduzir sua
“civilização” — mas pelo que fundamentava essa civilização: a liberdade e o
intercâmbio (PEYREFITTE, 1997, p. 588-590).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
No excerto a seguir, o historiador Diego Barbosa da Silva
(2009) discorre sobre as atuais dificuldades encontradas no en-
sino escolar formal dos países africanos, sobretudo pela questão
linguística, e expõe os problemas que a adoção das línguas euro-
peias como idiomas oficiais traz:

Encontros e confrontos
linguísticos: o local e o global na África–––––––––––––––––
A política linguística de um país é fundamental para o seu desenvolvimento,
porém, questionamos qual seria a melhor política a ser adotada num continen-
te assolado por guerras, miséria e desigualdade socioeconômica. A maioria
dos países africanos optou por uma política exoglóssica que, décadas depois,
tem se mostrado ineficaz ao desenvolver o continente, sobretudo na educação.
Segundo Ayo Bamgbose, “a erradicação do analfabetismo na África depende do
uso de línguas africanas como meio de instrução no primeiro e segundo níveis do
processo de escolaridade formal” (RODRIGUES, 2005, p. 173). O linguista nige-
riano mostra a importância da implantação de uma política endoglóssica. Línguas
maternas são “um veículo de integração social e participação política em todo o
continente africano” (RODRIGUES, 2005, p. 163). A utilização de uma língua euro-
peia no ensino afasta o aluno e é a maior responsável pelas altas taxas de evasão
e reprovação nas escolas.
A Unesco também defende a utilização de línguas maternas no ensino primá-
rio, porém a adoção de tais medidas esbarram nas dificuldades econômicas da
África, como a escassez de escolas, de professores capacitados e de material

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 237


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

didático. Sem mencionar que a maioria das línguas africanas necessitariam


de alguma medida do Estado para se desenvolveram, para se adequarem à
realidade atual e poderem representar o mundo de hoje.
Ao debater sobre política linguística na África, muitos discutem a necessidade
de ter uma língua oficial europeia, como única possibilidade de manter as fron-
teiras do novo país e questionam se não era uma forma de continuidade da co-
lonização. No entanto, experiências como a tanzaniana, e mais precisamente
como a indonésia e a turca, comprovam a existência de outra alternativa. Para
romper com o colonialismo, a Indonésia criou uma língua, o bahasa, formado
a partir do malaio com léxicos das demais línguas indonésias, do holandês da
ex-metrópole e das outras línguas europeias. Já a Turquia, para afirmar sua
identidade, aproveitou influências árabes e persas para construir um idioma
turco, após a queda e divisão do Império Otomano em 1922. Tais medidas,
antropofágicas, nos mostram outras possibilidades daquelas praticadas pela
maioria das nações africanas atuais, porém exige planejamento linguístico e
investimentos estatais.
Mas, mesmo assim, a respeito desse planejamento, Mariani alerta que
os sujeitos são tomados pela(s) língua(s) em confronto, estão inscritos, em um
território que se constrói discursivamente nessa heterogeneidade lingüística.
Por mais que as políticas de línguas visem administrar os conflitos, nenhum
planejamento garante um controle total (MARIANI, 2008, p. 74).
Quanto à questão de continuidade do colonialismo, se analisarmos a utiliza-
ção de línguas de origem europeia dentro de um contexto de dependência
econômica, concluiremos que elas podem ser entendidas como uma forma de
continuidade da colonização. Entretanto, se as analisarmos em um contexto de
ressignificação do seu valor simbólico, incluindo ideias como o plurilinguismo,
pregado pelas organizações francófonas e lusófonas, perceberemos uma rup-
tura clara do colonialismo, em que, por exemplo, a língua francesa, hoje, não
pertença apenas à França, mas a todos os países da francofonia, assim como
o português dentro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Quando um Estado africano não apresenta uma política linguística eficaz, ocor-
re, principalmente para aqueles indivíduos que não dominam a língua euro-
peia, uma desassociação de dois mundos, dois universos, que se distanciam:
de um lado o universo local, do cotidiano dessas pessoas, da língua materna,
do outro, o universo das grandes cidades, do mundo globalizado e da língua
europeia internacional. Como consequência desse fato, temos a manutenção
e mesmo aumento da desigualdade social na África, marginalizando muitos
africanos e africanas e privando-os de uma participação política e cidadã.

238 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Assim, caímos num ciclo vicioso, em que “a política lingüística é um instru-


mento de poder, que acaba por reter esse mesmo poder nas mãos das elites”
(KÜPER, 2003, p. 95).
Para reverter tal questão, Wolfgang Küper (2003, p. 90) propõe uma atuação
do Estado e da comunidade internacional para criar e promover um diálogo,
uma conexão entre o conhecimento local produzido e o conhecimento de ou-
tros contextos. E também uma participação plural e democrática nas tomadas
de decisão, a respeito da política linguística. Acrescentamos a urgência ne-
cessária de políticas linguísticas que desenvolvam o bilinguismo/ trilinguismo
individual (a língua materna, a língua franca/nacional e a língua europeia) que
seria um importante instrumento de conexão desses contextos, o local e o glo-
bal, dentro de um ambiente nacional plurilinguista de convivência.
Entretanto, não podemos deixar de mencionar, nos últimos anos, o crescimento
de uma atuação política, em vários países, em prol de uma política linguística
genuinamente africana, como, por exemplo, a proposta da nova constituição
do Zimbábue em 2000, a adoção do berbere como língua oficial na Argélia em
2002, a adoção do suaíle como língua oficial de Uganda em 2005, a reforma
educacional de 2007 em Gana, o desenvolvimento de diversos projetos pilotos
de ensino de língua materna no ensino primário, no Togo, Senegal, Mali, Níger
e Nigéria, o aumento da consciência da importância das línguas nacionais para
os países africanos. Essa preocupação está presente, hoje, em quase todos
os países do continente. Lembramos também como medida para se buscar
soluções concretas para essa dicotomia (local/global), a criação da Academia
Africana das Línguas (ACALAN) em 2001 e as ações da Unesco como a Con-
ferência Intergovernamental sobre Políticas linguísticas na África (HARARE,
1997), a Conferência “Contra Todos os Obstáculos: Línguas e Literaturas Afri-
canas no Século XXI” (ASMARA, 2000) e a Declaração da Unesco “Educação
em um Mundo Multilíngüe” (2003). Porém, tais medidas acabam tendo como
barreira a escassez de recursos.
Num Mundo Globalizado de hoje, onde as distâncias diminuem, dezenas de
línguas desaparecem e com elas uma visão cultural única de ordenar o cos-
mos. Abiola Irele nos ensina que
os africanos são ambivalentes em relação à Europa, sendo ao mesmo tempo
ressentidos devido à alienação causada pelo colonialismo e incuravelmente
contaminados pela modernidade européia e pela cultura ocidental (RODRI-
GUES, 2005, p. 165).
Segundo a Unesco, metade das mais de seis mil línguas existentes hoje são
faladas por menos de dez mil pessoas e correm o risco de extinção nas próxi-
mas décadas (THE UNESCO COURIER, 2000). (SILVA, 2009)
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 239


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Quais as relações estabelecidas ao longo do tempo entre os povos euro-
peus e africanos? Explique a transformação dessas relações a partir do
século 19.

2) Como o cenário econômico e político europeu estava configurado no século


19?

3) Do ponto de vista estritamente econômico, qual o interesse dos estrangei-


ros no continente africano?

4) Como os historiadores definiram o período de ocupação do território afri-


cano pelas potências europeias?

5) D
e acordo com o historiador francês Marc Ferro, quais tipos de coloniza-
ção se desenvolveram na África?

6) Qual o papel da ciência e da fé na conquista da África?

7) Tútsis e Hútus foram separados dentro da mesma sociedade a partir de


quais critérios? Entre as consequências vividas pelas recorrências do pas-
sado, como Ruanda se situa na história recente?

8) Desenhe um mapa da partilha da África.

9) É possível estabelecer uma relação entre o país Libéria e o processo de


tráfico e escravidão de africanos para as Américas?

10) Como se deu a partilha da África? Qual o papel das elites locais nesse
processo?

11) Quais práticas administrativas foram adotadas nos governos coloniais?

12) O que permite afirmar que uma cultura da violência foi incentivada na
África colonial?

240 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

13) O que foi o Tratado de Berlim? Quais foram seus impactos?

14) Como o nacionalismo foi construído no continente africano?

15) Descolonização ou independência? Qual a diferença entre os dois termos?

16) Segundo Manuel Jauará, novas camadas sociais ligadas diretamente aos
europeus tomaram a linha de frente nos processos emancipacionistas.
Explique.

17) Qual o papel das diversas populações africanas no processo de emancipação?

18) Estabeleça a relação entre as duas Guerras Mundiais com o processo de


descolonização/independência dos países africanos.

19) Como a Europa e os europeus passaram a enxergar a existência das colô-


nias na segunda metade do século 20?

9. CONSIDERAÇÕES
Com as independências dos países africanos, fechamos
mais um ciclo do estudo da obra História da África.
Começamos nossa trajetória estudando a composição geo-
política atual da África.
Debruçamo-nos sobre as origens de nossa espécie e a teo-
ria científica que mudou nossa percepção de mundo, sobretudo
a que serviu como um dos suportes para a colonização dos po-
vos africanos. Por serem múltiplos, esses povos desenvolveram
uma complexidade e variedade de línguas, ritos e culturas que
foram espalhadas pelo mundo após a imigração forçada pela
escravidão.
Compreendemos que o trabalho cativo encontrou lugar em
nossa história desde períodos longínquos em diversas regiões do
globo, inclusive na própria África.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 241


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Entretanto, na época moderna, a escravidão ganhou ares


mercantis, e sua expansão simbolizou uma nova forma de orga-
nização da vida econômica e cultural (o capitalismo).
A velocidade da transformação na economia e cultura cien-
tífica foi semelhante à do motor a vapor usado nas locomotivas,
cortando montanhas, e embarcações, navegando pelos rios.
A ganância e uma missão civilizadora foram adotadas pelo
Ocidente como sua força motriz.
Desse modo, a África, tida como lar de selvagens e seres
inferiores, foi desbravada de norte a sul, e sua população, sub-
metida ao julgo colonial. O estado de miséria e pobreza que já
existia no continente foi intensificado e espalhou-se, durante o
processo de colonização, como “fogo em palha seca”.
Os impérios prosperaram durante certo tempo, até o mo-
mento em que as revoltas e insurreições populares ligadas à
transformação do discurso dos colonizadores encerraram esse
longo processo.
Por fim, o panorama mundial se transformou.
Atualmente, o discurso da intolerância religiosa, cultural e
racial (supremacia branca) deu lugar a uma nova concepção, que
valoriza a diferença.
O discurso predominante no Ocidente prega que precisa-
mos nos colocar no lugar do outro. Com essa atitude, passamos
a valorizar as culturas tidas como minoritárias e marginais.
Note que essa é a razão pela qual nos debruçamos sobre a
história de um continente que tem muito a nos ensinar e ao qual,
de alguma forma, estamos todos ligados.

242 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

Na próxima unidade, vamos nos dedicar ao estudo do mo-


vimento histórico sul-africano, o apartheid. Além disso, vamos
conhecer e refletir sobre a trajetória do homem que virou sím-
bolo da luta pela igualdade no continente africano e no mundo,
Nelson Mandela.
O estudo da História da África continua!

10. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 Mapa político da Europa com nome dos rios. Disponível em: <http://www.
guiageo-europa.com/mapas/europa.htm>. Acesso em: 20 mar. 2012.
Figura 3 Caveiras de vítimas do genocídio de Ruanda. Disponível em: <http://
pt.wikipedia.org/wiki/Genoc%C3%ADdio_em_Ruanda>. Acesso em: 20 mar. 2012.
Figura 4 Partilha da África. Disponível em: <http://www.culturabrasil.pro.br/imagens/
partilhadaafrica.jpg>. Acesso em: 20 mar. 2012.
Figura 5 Sudão anglo-egípcio - soldado em camelo das forças nativas do exército
britânico. Disponível em: <http://www.wdl.org/pt/item/574/?&r=MiddleEastNorthA
frica&a=-8000&b=2009&view_type=gallery>. Acesso em: 20 mar. 2012.
Figura 6 Charge de um jornal alemão sobre a Conferência de Berlim (1884-1885) /
Soldados britânicos ocupando o Egito. Disponível em: <http://www.casadehistoria.
com.br/africa_docs/conf_berlim.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2010.
Figura 7 Descrição geográfica e administração governamental e fundação de colônias
espanholas no Golfo da Guiné. Disponível em: <http://www.wdl.org/pt/item/2425/>.
Acesso em: 25 mar. 2010.

Sites pesquisados
BIBLIOTECA DIGITAL MUNDIAL. Homepage. Disponível em: <http://www.wdl.org/
pt/>. Acesso em: 20 mar. 2012.
CARPINTEIRO, F. G. (Fotógrafo). Sudão anglo-egípcio - soldado em camelo das forças
nativas do exército britânico. Disponível em: <http://www.wdl.org/pt/item/574/?&r
=MiddleEastNorthAfrica&a=8000&b=2009&view_type=gallery>. Acesso em: 20 mar.
2012.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 243


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

CASA DE HISTÓRIA. Homepage. Disponível em: <http://www.casadehistoria.com.br/


africa_docs/conf_berlim.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2010.
CULTURA BRASIL. Homepage. Disponível em: <http://www.culturabrasil.pro.br/
imagens/partilhadaafrica.jpg>. Acesso em: 25 mar. 2010.
EDUCA TERRA. O estado livre do Congo. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.
br/voltaire/mundo/2002/09/06/001.htm>. Acesso em: 20 mar. 2012.
GUIA GEOGRÁFICO. Homepage. Disponível em: <http://www.guiageo-europa.com/
mapas/europa.htm>. Acesso em: 20 mar. 2012.
NEWTON-MIRANDA. Ata da Conferência de Berlim - 1885. Disponível em: <http://
newton-miranda.blogspot.com/2008/09/ata-da-conferncia-de-berlim-1885.html>.
Acesso em: 20 mar. 2012.
RAMOS IZQUIERDO Y VIVAR, L. Descrição geográfica e administração governamental e
fundação de colônias espanholas no Golfo Da Guiné. Disponível em: <http://www.wdl.
org/pt/item/2425/>. Acesso em: 20 mar. 2012.
RECANTO DAS LETRAS. Resenhas. Disponível em: <http://recantodasletras.uol.com.
br/resenhas/1464954>. Acesso em: 25 mar. 2010.
RENOUARD, G. As missões católicas e do Oeste Africano, Congo e Oubangi. Disponível
em: <http://www.wdl.org/pt/item/2530/>. Acesso em: 20 mar. 2012.
THE UNESCO COURIER. UNESCO, abr. 2000. Disponível em: <http://www.unesco.org/
courier/2000_04/uk/index.htm>. Acesso em: 25 mar. 2010.
UOL EDUCAÇÃO. James Monroe. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/
biografias/ult1789u7.jhtm>. Acesso em: 20 mar. 2012.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÉNOT, Y. A descolonização da África francesa (1943-1962). In: FERRO, M. (Org.). O
livro negro do colonialismo. Tradução de Joana Angélica D’Ávila Melo. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2004.
COQUERY-VIDROVITV, C. O postulado da superioridade branca e da inferioridade
negra. In: FERRO, M. (Org.). O livro negro do colonialismo. Tradução de Joana Angélica
D’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
DÖPCKE, W. A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África
Negra. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 42, n. 1, p. 77-109, jun.
1999.

244 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

FERRO, M. História das colonizações. Das conquistas às independências, séculos XIII ao


XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
______. (Org.). O livro negro do colonialismo. Tradução de Joana Angélica D’Ávila Melo.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
GAUTIER, A. Mulheres e colonialismo. In: FERRO, M. (Org.). O livro negro do
colonialismo. Tradução de Joana Angélica D’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
HERNANDES, L. M. G. L. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. 2. ed.
rev. São Paulo: Selo Negro, 2008.
HOBSBAWM, E. J.; RANGER, T. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
JAUARÁ, M. A construção do Estado moderno na África lusófona. Anais do XXV
Simpósio Nacional de História. [CD-ROM]. Fortaleza: ANPUH, 2009.
KI-ZERBO, J. Introdução geral. In: ______. (Org.). História geral da África. São Paulo:
Ática; Paris: Unesco, 1980.
KÜPER, W. The necessity of introducing mother tongues in education systems of
developing countries. In: OUANE, A. (Org.). Towards a multilingual culture of education.
Hamburgo: Unesco Institute for Education, 2003.
LANDES, D. S. Prometeu desacorrentado: transformação tecnológica e desenvolvimento
industrial na Europa ocidental, de 1759 até os dias de hoje. Rio de Janeiro: Elsevier,
2005.
M’BOKOLO, E. África Central: o tempo dos massacres. In: FERRO, M. (Org.). O livro
negro do colonialismo. Tradução de Joana Angélica D’Ávila Melo. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2004.
MACKENZIE, J. M. A partilha da África (1880-1900). São Paulo: Ática, 1994.
MAHUMANE, P. A. “Somos uma identidade própria”: percorrendo as trilhas de uma
identidade Tsonga criada. As múltiplas identificações no contexto urbano do bairro
Luís Cabral em Maputo. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) –
Universidade Federal da Bahia, 2007.
MARIANI, B. Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações
plurilíngües, Gragoatá, n. 24, 1˚semenstre 2008. Niterói: Eduff, 2008.
PEYREFITTE, A. O império imóvel, ou o choque dos mundos. Niterói: Casa Jorge
Editorial, 1997.
PRATT, M. L. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução de
Jéxio Hernani B. Gutierre. Bauru: EDUSC, 1999.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 245


UNIDADE 4 – COLONIZAÇÕES E DESCOLONIZAÇÕES/ INDEPENDÊNCIAS NA ÁFRICA: SÉCULOS 19 E 20

RODRIGUES, A. L. Dominação e resistência na África: a questão linguística, Gragoatá,


n. 19, 2º semestre 2005. Niterói: Eduff, 2005.
SILVA, D. B. Encontros e confrontos linguísticos: o local e o global na África. Anais do
XXV Simpósio Nacional de História. [CD-ROM]. Fortaleza: ANPUH, 2009.

246 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5
ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID
AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS
CONTEMPORÂNEOS

1. OBJETIVOS
• Identificar e compreender as raízes históricas do
apartheid.
• Entender a história da segregação social na África Aus-
tral e relacionar esse processo com o longo período das
colonizações.
• Refletir sobre as questões políticas, econômicas e cultu-
rais da África no período contemporâneo.
• Apontar e entender os impactos da AIDS no continente
africano em nossos dias.

2. CONTEÚDOS
• Apartheid.
• Economia, sociedade, política e os impactos da AIDS no
continente africano.
• A África hoje.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE

247
UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que


você leia as orientações a seguir:
1) Leia os livros indicados nas referências bibliográficas,
para que você amplie seus horizontes teóricos. Com-
pare com o material didático e discuta a unidade com
seus colegas e tutor.
2) Antes de iniciar os estudos, é importante conhecer um
pouco da biografia de uma personalidade marcante
da história africana e de uma estudiosa cujos pensa-
mentos também são utilizados como referência para a
aprendizagem dos conteúdos desta unidade:

Nelson Rolihlahla Mandela


Importante líder político da África do Sul, que lutou contra o sistema de apar-
theid no país. Nasceu em 18 de julho de 1918 na cidade de Qunu (África do
Sul). Mandela, formado em Direito, foi presidente da
África do Sul entre os anos de 1994 e 1999. [...] Durante
toda a década de 1950, foi um dos principais membros
do movimento anti-apartheid. Participou da divulgação
da Carta da liberdade, em 1955, documento pelo qual
defendiam um programa para o fim do regime segre-
gacionista. [...] Em 1993, Nelson Mandela e o presiden-
te Frederik de Klerk dividiram o Prêmio Nobel da Paz,
pelos esforços em acabar com a segregação racial na
África do Sul. [...] recebeu diversas homenagens e con-
gratulações internacionais pelo reconhecimento de sua
vida de luta pelos direitos sociais (imagem e texto dis-
poníveis em: <http://www.suapesquisa.com/biografias/
nelson_mandela.htm>. Acesso em: 21 mar. 2012).

Viviane de Oliveira Barbosa


Graduada em História e mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Gra-
duação em Estudos Étnicos e Africanos (PÓS-AFRO) no Centro de Estudos
Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

248 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

3) Recomendamos que você assista aos filmes indicados


a seguir, que tratam das questões abordadas nesta
unidade:
a) Mandela (Mandela) Direção: Philip Saville. Inglater-
ra, 1987.
b) Mandela (Mandela). Direção: Angus Gibson. EUA,
1996 (Documentário).
c) More than just a game. Direção: Junaid Ahmed.
África do Sul, 2007 (Documentário). Documentário
que trata sobre os prisioneiros políticos da segunda
metade do século 20, bem como sobre a maneira
que eles formaram ligas extremamente organizadas
de futebol dentro das prisões.
d) Invictus (Invictus). Direção: Clint Eastwood. EUA,
2009.
e) Distrito 9 (Distitric 9). Direção: Neill Blomkamp.
Nova Zelândia, África do Sul, 2009.
4) Para mais informações sobre o apartheid, consulte o
texto As práticas do Apartheid, de Elikia M’Bokolo, e o
site da Embaixada da África do Sul no Brasil.
5) Para aprofundar seus conhecimentos sobre os dados
socioeconômico dos países do continente africano e
de outros lugares do mundo, consulte o portal IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) — Paí-
ses. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/paise-
sat/>. Acesso em: 22 mar. 2012.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 249


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Olá! Como vimos até aqui, a África Moderna foi definida
pelas relações estabelecidas pelos povos locais com os povos de
outros continentes, especialmente os europeus.
Nesta unidade, vamos conhecer a história do apartheid na
África do Sul, um regime de segregação racial que separava bran-
cos e negros, o qual perdurou quase até o fim do século 20:

Apartheid––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
De acordo com a definição do Dicionário Aurélio, apartheid é uma palavra de
origem africânder que significa: “sistema oficial de segregação racial que era
praticado na África do Sul privilegiando a minoria branca” (FERREIRA, 2009).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Estudaremos, em seguida, um personagem-chave que
participou do fim desse processo histórico: Nelson Mandela, ex-
-presidente da África do Sul e ganhador do prêmio Nobel da Paz.
Além dessa importante figura histórica, vamos nos debru-
çar sobre um tema que incomoda autoridades africanas e inter-
nacionais: a epidemia de AIDS e os números alarmantes de pes-
soas infectadas.
Trataremos, também, dos dados socioeconômicos, como
o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que, como já estu-
damos na primeira unidade, é um dos mais baixos do planeta.
Veremos que a situação é tão grave que em alguns países, como
a Suazilândia, a expectativa de vida não chega aos quarenta anos
de idade, tanto para homens quanto para mulheres.
Prepare-se para aprender mais sobre o continente africano
e bons estudos!

250 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

5. APARTHEID: DA SEGREGAÇÃO SOCIAL A NELSON


MANDELA
Construção histórica do apartheid
Em 1652, o primeiro navio da Companhia Holandesa das
Índias Orientais chegou ao que anos mais tarde viria a ser a Ci-
dade do Cabo. Desde então, inúmeros acontecimentos políti-
cos, econômicos e sociais mudaram a trajetória do país que se
tornaria a atual África do Sul, um dos mais ricos do continente
africano.
A África do Sul tem inúmeras particularidades para com os
demais países do continente. Em especial, destaca-se a presen-
ça marcante de brancos que chegam a ser maioria em algumas
regiões. Isso se deve ao fato de que desde a chegada do primei-
ro navio, em 1652, houve o estabelecimento de um entreposto
comercial onde os holandeses que permaneciam ali buscavam a
condição de colonos.
Como vimos, e é bom recordar, a colonização efetiva da
África pelos europeus só ocorre no século 19, ou seja, a atual
República da África do Sul já era colonizada 200 anos antes o que
propiciou a presença de sul-africanos brancos.
Quando os holandeses começaram a se fixar na região,
ela já era habitada pelos khoisans e bantos. Segundo Visentini
(2014):
À medida que os holandeses iam ultrapassando os limites do
porto do Cabo, dominavam as terras e exploravam o trabalho
dos khoisan. Em meio à relativa tranquilidade do século XVIII,
foi-se formando o grupo boer (“camponês”, em holandês). Es-
ses, movendo-se para o interior do continente com suas carro-
ças e rebanhos, vão deixando de ser europeus e passam a se
considerar “africanos”, isto é, a considerar a África a sua terra
(VISENTINI, 2014, p. 61).

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 251


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

A formação desse grupo de europeus-africanos, chamado


de Bôer, é fundamental para entendermos a existência do apar-
theid. Os bôeres escravizavam os khoisans e proibiam casamen-
tos mistos, algo que não impediu a miscigenação. Os miscigena-
dos formavam o grupo chamado de grikuas e ocupavam posição
intermediária. Desse modo, estrutura-se uma sociedade basea-
da em critérios raciais, na qual a posse da terra e dos meios de
produção eram permitidas apenas aos brancos.
A situação se alteraria ainda no final do século 18 com a fa-
lência da Companhia das Índias Orientais. Desse modo, a região
ficou sem um efetivo domínio europeu até a Revolução Francesa,
quando foi anexada pela Inglaterra, em 1806. Os ingleses passa-
ram a firmar alianças com os chefes negros locais, a fim de evitar
uma disputa militar, algo que desagradou os bôeres.
A situação se agravou ainda mais com a Lei da Igualdade
Racial, de 1833, quando os bôeres migraram para o nordeste
de onde hoje é a República da África do Sul. Segundo Visentini
(2014), nessa região fundaram o Estado Livre de Orange (1852)
e a República do Transvaal, ambos Estados com leis baseadas na
discriminação racial.
Para agravar ainda mais a relação Inglaterra-Bôer, desco-
briu-se jazidas de diamantes e minas de ouro em território do-
minado por Bôeres, o que possibilitou o enriquecimento dos
bôeres e desagradou os ingleses, o que desencadeou a guerra
anglo-bôer na virada do século 19 para o século 20.
Os ingleses venceram o conflito, em 1902, mas o mesmo
serviu para fortalecer o nacionalismo bôer. Em 1910, a Inglater-
ra estabeleceu o domínio sobre a África do Sul, em uma aliança
com os bôeres e consagrou o princípio da segregação racial, que
a partir de 1948 fora chamado de apartheid.

252 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

Por esse regime, os negros, que compunham 75% da popu-


lação, teriam direito a apenas 7% das terras do país (as piores ter-
ras), além de estarem privados do direito ao voto. Desse modo,
os brancos, que compunham apenas cerca de 10% da população,
detinham 93% das terras, sendo as mais produtivas e rentáveis.
Fora isso, os negros não poderiam trabalhar com os bran-
cos, tampouco se casar com eles. A situação de vida era deplorá-
vel e só se agravou com o passar dos anos e com o endurecimen-
to do regime de segregação racial.
O Partido Nacionalista, inspirado em algumas ideologias da
Alemanha de Hitler, começou a empregar uma política de desen-
volvimento separado entre brancos e negros a fim de “garantir
a segurança da raça branca e da civilização cristã” (M’BOKOLO,
2004, p. 540).
Na unidade anterior, vimos que o processo de coloniza-
ção e condução das colônias tinha como uma de suas bases o
racismo científico. Nessa ocasião, foi descrito o caso de Ruan-
da — um conflito étnico entre Tútsis e Hútus que deixou mais
de um milhão de mortes. Tanto o apartheid quanto o genocídio
ruandês foram reflexos de mais de um século de discursos, am-
parados na ciência, que afirmavam a inferioridade dos negros e
a superioridade dos brancos.
Além disso, as cidades tinham zonas definidas (distritos)
que dividiam a população negra da branca de origem europeia.
Para um negro passar por um dos distritos dos “brancos”, ele
precisava de um “passe livre” (free pass), concedido apenas aos
que realizavam trabalhos braçais e de baixa remuneração.
Para contextualizarmos estes conhecimentos, vejamos a
seguir o relato citado por Elikia M’Bokolo acerca das impressões

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 253


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

de um membro do povo Zulu (um dos povos que ocupavam a


África do Sul antes das colonizações) e a separação existente en-
tre os homens, anterior inclusive ao apartheid:
[...] em seguida, os costumes dos europeus penetraram no país
e destruíram tudo o que nos dava prazer, lamenta-se o zulu. O
branco traz o cristianismo e ensina a leitura e a escrita. Ele pre-
ga a ordem na vida cotidiana e trava combate contra as doen-
ças. Conhece e faz mil coisas que impressionam, e a pessoa se
aproxima delas com paixão e ao preço de sacrifícios. Todavia,
ele permanece como o senhor, difunde a opressão. Ele é tíbio
que só ‘ama da boca pra fora’, o fugidio que se esquece de você
amanhã, se não precisar mais de você. É o injusto cuja boca pro-
fere facilmente a mentira, o ímpio que espanca anciãos diante
dos filhos e dos subordinados deles. Mas, em contraposição,
uma vida prolongada de atividade, mesmo pouco satisfatória,
em contato com os brancos traz para as naturezas mais nobres
o desenvolvimento de forças benéficas [...]. [...] Mais tarde, os
hábitos dos europeus penetraram no país; tudo o que nos dava
prazer foi aniquilado, tudo o que mais amávamos porque o tí-
nhamos aprendido de nossos pais. Os europeus nos dispersa-
ram por toda a parte, afirmando: ‘Vocês fazem seus bois pasta-
rem em nossas fazendas’. Eles discutiam sobre isso com nossos
pais, os anciãos do povo. Nós vimos alguns, convocados a partir
para servir os europeus; eles serviam porque nós vivíamos na
fazenda. Se uma família não tinha filhos, devia dar um boi a
cada ano. Outros se arranjavam mais agradavelmente, não ti-
nham nada a pagar, mas deviam vigiar as ovelhas ou o gado dos
europeus. Quem se recusasse a fazer isso era espancado, por
mais velho que fosse. Muito nos surpreenderia, a nós, crian-
ças, isso de ver um homem idoso, que já trazia o círculo sobre
a cabeça, ser surrado pelos europeus. Isso nos surpreenderia
porque nós ignorávamos que um homem idoso pudesse ser
surrado por outro homem. Aliás não era admitido que se ba-
tesse num adulto em nossa presença, porque éramos jovens. E
quando um europeu surrava alguém, ele não se detinha, fazia-o
cair ao chão. Nós, que ainda éramos crianças, nós nos espantá-
vamos ao ver um homem idoso, que já trazia o círculo sobre a

254 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

cabeça, caído no chão de tal modo que o sangue lhe escorria


das narinas e que seus olhos e seu rosto inchavam. Assim se
acabou o tempo de nosso crescimento, o tempo durante o qual
nós gozávamos livremente a vida. Eles foram dispersados de
kraal em kraal, todos os da geração precedente que estavam
em condições de prestar serviço no kraal (palavra africânder
que deriva da palavra portuguesa curral e mantêm o mesmo
significado) (M’BOKOLO, 2004, p. 542).

Como você pôde notar no que foi dito até aqui, a ordena-
ção jurídica que deu origem ao apartheid é anterior à chegada
do Partido Nacionalista ao poder.
Ou seja, uma série de atos legais foram adotados com o
objetivo de privilegiar a população de origem europeia em detri-
mento da população sul-africana nativa.
O primeiro ato legal praticado foi o Mines and works act,
assinado em 1911, que distinguiu os operários brancos dos ne-
gros instalando a “barra de cor”. Desse modo, os brancos foram
protegidos por uma legislação que os colocava mais próximos
dos patrões, enquanto aos negros foi reservado o trabalho nas
indústrias e nas minas em funções mal remuneradas e de pouca
qualificação (M’BOKOLO, 2004, p. 544).
Como visto anteriormente, os atos políticos dos ingleses,
em parceria com os bôeres, preparam o terreno para a implan-
tação do apartheid, prática que foi desenvolvida na África do Sul
devido à sua particularidade no processo de colonização.
Dois anos depois de assumir o poder, em 1950, o Partido
Nacionalista instituiu o Population registration act, que passou a
classificar todas as populações em grupos raciais com base em
critérios científicos. Dessa forma, estava finalizada a separação

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 255


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

definitiva da população, que privilegiava a minoria com todo o


poder político e o controle pleno das atividades econômicas.
É importante ressaltar que essa finalização foi resultado da
radicalização dos discursos do Partido Nacionalista, que prega-
va abertamente a segregação e defendia o projeto de uma nova
África do Sul branca (M’BOKOLO, 2004).
O regime de segregação de maior duração no mundo mo-
derno durou até 1990, quando Nelson Mandela se tornou presi-
dente da África do Sul e pôs fim ao regime. Contudo, os diversos
problemas socioeconômicos e culturais perduram até hoje e re-
fletem os efeitos desse longo processo de separação.
Como vimos nas unidades anteriores, os atos dos europeus
nunca foram aceitos com docilidade pelos habitantes da África,
uma vez que sempre houve movimentos de resistência políticos
e sociais.
De forma similar, o caso do apartheid não foi diferente. A
população segregada insurgiu-se em diversos momentos, tanto
de maneira pacífica pelas vias legais quanto de maneira explosi-
va e conflituosa.
Nessas lutas, foi o líder político Nelson Mandela quem
mais se destacou, o qual estudaremos a seguir.

Mandela: do prisioneiro político ao vencedor do prêmio Nobel


da Paz
A história da África do Sul, desde o início das colonizações
(ainda no século 17) até o início do século 21, mistura-se à histó-
ria de um homem: Nelson Mandela.

256 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

Em outras palavras, é impossível dissociar Nelson Mandela


da luta pelo fim do apartheid — um capítulo de guerras e discri-
minação na África do Sul.
Se relembrarmos a história sofrida de séculos de escravi-
dão e discriminação pela qual passou os negros africanos, a vida
de um homem como esse, que agiu em busca de melhorar esta
realidade, valerá a pena ser conhecida!
Nelson Mandela nasceu em 18 de julho de 1918. Em sua
vida, passou 28 anos em uma prisão separada dos outros prisio-
neiros políticos. Foi o primeiro presidente negro da África do Sul
e ficou no comando do país de 1990 a 1994. Pelos seus atos em
favor dos direitos humanos, foi agraciado em 1993 com o prêmio
Nobel da Paz.
Antes de ser libertado de maneira triunfal e gloriosa da pri-
são nos braços do povo, Mandela foi um dos principais ativistas
contra o regime de segregação social e racial sul-africano. Em sua
juventude, também foi um dos principais líderes de movimentos
que uniam estudantes, trabalhadores e outras lideranças locais.
Durante sua presidência, sua luta foi para amenizar o gran-
de abismo entre brancos e negros sul-africanos e, especialmen-
te, tentar fundar novamente a nação, baseando-se em princípios
de tolerância e humanitarismo.
Nos anos de 1980, um forte movimento internacional foi
organizado em favor da libertação do líder político. Esse movi-
mento ficou conhecido como Free Mandela!
Diante disso, um enorme anseio tomou conta da África do
Sul no período próximo à libertação de Mandela, uma vez que a
libertação do líder simbolizava não apenas a liberdade de um in-
divíduo, mas o fim de todo o período no qual negros e brancos

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 257


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

estavam separados por uma política do Estado e, especialmente,


por questões culturais que se desenvolveram historicamente (Fi-
gura 1).

Figura 1 Foto retirada no dia da libertação de Nelson Mandela: “Mandela será libertado
hoje”, essa era a manchete do jornal City Press, erguido diante de uma grande multidão
que esperava por esse momento.

É importante termos em mente que, na história do apar-


theid, além de Mandela, inúmeros homens foram presos por re-
sistir ou se rebelar contra o regime.
Em 1950, o governo sul-africano proclamou o Public safety
act e o Criminal act, que, segundo M’Bokolo (2004, p. 548):
[...] permitiam proclamar o estado de emergência, suspender
as liberdades públicas e condenar todo o indivíduo que trans-
gredisse as leis e ajudasse, de qualquer maneira que fosse, os
movimentos de resistência.

258 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

O processo do apartheid foi, ao lado das lutas pela inde-


pendência e dos casos extremos como o de Ruanda, um desdo-
bramento do processo histórico que teve início no final do século
19 e incorporou preconceitos, preceitos e modelos de civilização
que se chocaram ao longo do tempo.
Desde esta época, as sociedades africanas enfrentam
grandes problemas que ainda não foram resolvidos ou ameni-
zados, apesar dos avanços promovidos contra o fim da segrega-
ção e a favor de maior participação popular em alguns países do
continente.
Até hoje, males como a subnutrição e a disseminação de
doenças atingem um nível considerável de mortalidade. Dentre
os problemas, um dos que mais se destacam é a transmissão em
larga escala da AIDS. A seguir, estudaremos essa questão e os
impactos causados por ela nas sociedades africanas.

6. IMPACTOS DA AIDS NO CONTINENTE AFRICANO


O continente africano teve, em vários momentos, os olhos
do restante do mundo sempre voltados para si. Foi assim no apo-
geu da civilização egípcia, no início das colonizações ocidentais,
no tráfico dos escravos em navios negreiros, na história do apar-
theid, na beleza de suas florestas e desertos, na fauna e flora
tropicais e na miséria que assola seus países em suas diversas
regiões.
Outra peculiaridade do continente, que atualmente preo-
cupa chefes de estado internacionais, é o número de ocorrências
da AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome, ou Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida) apresentado pelos seus países.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 259


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

A AIDS é uma doença infectocontagiosa que teve seu pri-


meiro caso comprovado justamente na África, em 1959. Para
entender melhor esta deficiência do sistema imunológico, leia a
informação a seguir:

“O que é a AIDS? –––––––––––––––––––––––––––––––––––


AIDS é a sigla em inglês para Acquired Immunodeficiency Syndrome ou, para
nós, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Recebeu o nome AIDS, imu-
nodeficiência adquirida, para diferenciá-la de imunodeficiências de outras ori-
gens. É definida como síndrome, pois não tem uma manifestação única, carac-
teriza-se pelo aparecimento de várias doenças sucessivas e/ou simultâneas,
devido ao enfraquecimento das defesas do organismo. Estas doenças que
surgem em decorrência da deficiência imunitária do indivíduo são chamadas
doenças oportunistas e representam a principal causa de óbito em aidéticos.
É esta fase do espectro da infecção pelo HIV em que se instalam as doenças
oportunistas caracteriza clinicamente a AIDS.
As doenças oportunistas que se desenvolvem na AIDS são geralmente
de origem infecciosa, porém várias neoplasias também são consideradas
oportunistas.
Infecções oportunistas podem ser causadas por microrganismos não patogê-
nicos, ou seja, que usualmente não são capazes de desencadear doença em
pessoas com sistema imune normal. Os microrganismos sabidamente pato-
gênicos também produzem infecções oportunistas. Porém, nesta situação, as
infecções assumem um caráter de mais grave ou agressivo que o habitual em
pessoas imunocompetentes. As doenças oportunistas associadas à AIDS são
várias, podendo ser causadas por vírus, bactérias, protozoários, fungos e cer-
tas neoplasias. As mais comuns são:
• Vírus: Citomegalovirose, herpes simples, Leucoencafalopatia Multifocal
Progressiva;
• Bactérias: Micobacterioses (tuberculose e complexo Mycobacterium avium-
-intracellulare), Pneumonias, Salmonelose;
• Fungos: Pneumocistose, Candidíase, Criptococose, Histoplasmose;
• Protozoários: Toxoplasmose, Criptosporidiose, Isosporíase;
• Neoplasias: sarcoma de Kaposi, linfomas não-Hodgkin, neoplasias intrae-
pitelial anal e cervical. É importante assinalar que o câncer de colo do útero
compõe o elenco de doenças que pontuam a definição de caso de AIDS em
mulher.

260 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

Entre outros transtornos, a AIDS traz graves problemas psicológicos e sociais.


Seu controle e tratamento envolvem a ingestão de 20 a 30 comprimidos por dia
em horários diversos, consomem altas somas em dinheiro e produz um des-
gaste humano muito grande no indivíduo doente e sua família (UNESP, 2012).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Desde seu surgimento na África, na década de 1950, a AIDS
atingiu o Haiti e a Europa, chegou à América e disseminou-se
pelo planeta.
Inicialmente, a AIDS era conhecida como a doença dos “5
H”. Em 1982, acreditava-se que a moléstia era quase uma exclu-
sividade de homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos
(usuários de heroína injetável) e hookers (profissionais do sexo em
inglês).
Atualmente, estima-se que a AIDS irá matar 70 milhões de
pessoas nos próximos vinte anos, sem escolher sexo, orientação
sexual e idade. Veja a seguir alguns dados sobre essa questão:

Sumário Global da Epidemia de AIDS ––––––––––––––––––

Dezembro 2008
Número de pessoas vivas com HIV em 2008:
Total — 33.4 milhões [31.1 milhões — 35.8 milhões]*;
Adultos — 31.3 milhões [29.2 milhões — 33.7 milhões];
Mulheres — 15.7 milhões [14.2 milhões — 17.2 milhões];
Crianças menores de 15 anos — 2.1 milhões [1.2 milhões — 2.9 milhões].
Pessoas que contraíram o vírus em 2008:
Total — 2.7 milhões [2.4 milhões — 3.0 milhões];
Adultos — 2.3 milhões [2.0 milhões — 2.5 milhões];
Crianças menores de 15 anos — 430 000 [240 000 — 610 000].
AIDS – mortes relatadas em 2008:
Total — 2.0 milhões [1.7 milhões — 2.4 milhões];

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 261


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Adultos — 1.7 milhões [1.4 milhões — 2.1 milhões];


Crianças menores de 15 anos - 280 000 [150 000 — 410 000].
*Números entre chaves representam a margem de erro (UNAIDS, 2012, p. 6).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Note que os números relacionados à doença foram — e
continuam sendo — tão alarmantes que, em 2002, foi criado o
Fundo Global para o Combate à AIDS, Tuberculose e Malária,
com o objetivo de captar e distribuir recursos, especialmente,
para países subdesenvolvidos.
É válido ressaltar que, junto à AIDS, a tuberculose e a ma-
lária formam o trio de doenças infectocontagiosas mais letais do
mundo.
No caso específico da África, o continente é, sem sombra
de dúvida, a região do planeta mais afetada pela AIDS e onde os
órgãos internacionais mais abandonam a população infectada.
Dados da OMS (Organização Mundial de Saúde) apontam
que atualmente dois terços dos africanos possuem o vírus HIV.
As condições culturais, sociais e econômicas são fatores deter-
minantes para o elevado número de africanos infectados com o
vírus. Estima-se que apenas 5% da população do continente têm
acesso ao tratamento da doença.
Outro fator determinante refere-se ao compromisso de
autoridades locais, internacionais e da indústria privada na dis-
seminação de informações e políticas educacionais preventivas e
medicinais.
Como você pode supor, as pessoas em países em desen-
volvimento são altamente vulneráveis ao HIV. Isso decorre de
alguns fatores estimados:

262 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

1) a dificuldade de acesso às informações escritas por


parte dos analfabetos;
2) os elevados índices de prostituição nesses países;
3) a cultura poligâmica existente em várias regiões da
África, que predispõe sua população a uma maior ex-
posição ao contágio do vírus.
Para entender melhor esta cultura poligâmica, leia o texto
a seguir:

Breve descrição sobre a origem


da cultura poligâmica no continente africano––––––––––––
Poder casar com várias mulheres era sinal de prestígio: quanto mais poderoso
um chefe, mais mulheres ele tinha. E isso valia tanto para as regiões islamiza-
das como para as que mantinham as tradições locais. Entre os mulçumanos o
modelo dos haréns, que reuniam todas as mulheres do sultão, a maioria delas
escravas, deve ter influenciado os grandes chefes africanos. Para um homem
receber uma mulher, tinha de dar à sua família um dote, como se assim estivesse
comprando daquele grupo à capacidade de trabalho e de reprodução de um dos
seus membros.
Para os europeus que se relacionavam com as sociedades africanas, a poliga-
mia era algo a ser combatido, ligado a formas de viver atrasadas e condenado
pela religião. Para os africanos, quanto mais mulheres pudessem ter, mais am-
plos seriam os laços de solidariedade e fidelidade, pois os casamentos garan-
tiam alianças entre os grupos. E aquele que possuísse muitas mulheres, além
de ter laços com diversas linhagens, teria uma descendência maior, nascida de
suas várias mulheres. Quanto mais pessoas um chefe tivesse sob sua depen-
dência e proteção, mais sólida seria sua posição e maior, seu prestígio. O poder
era medido, acima de tudo, pela quantidade de pessoas subordinadas a um
chefe (SOUZA, 2007, p. 32).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O respeito a tradições culturais também aumenta a vulne-
rabilidade individual ao HIV no continente. Por exemplo, certas
sociedades têm a prática obrigatória dos homens herdarem a
viúva do irmão falecido; as virgens, quando atingem a puberda-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 263


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

de, são forçadas a praticar sexo com um homem mascarado; da


mesma forma, a desigualdade educacional entre homens e mu-
lheres no continente contribui para essa submissão.
A lenda de que um portador do HIV pode se curar ao vio-
lentar uma virgem também está arraigada na cultura africana em
certas regiões. Oficialmente, ocorrem 50 mil estupros por ano no
país, e há estimativas de que esse número já supere um milhão
de casos.
Outro fator de grande relevância para a elevada dissemi-
nação da doença é a pobreza. A miséria em que vivem as popu-
lações em algumas de suas regiões faz da África um continente
extremamente vulnerável à epidemia do vírus.
A África Austral, por exemplo, é uma das regiões mais po-
bres do mundo. A maioria de sua população — 191 milhões de
africanos — vive abaixo da linha da pobreza e é analfabeta. Está
concentrada principalmente na zona rural e não têm acesso à
energia elétrica e a saneamento básico.
Em Botsuana, país pertencente a esta região, 25% de
sua população total estão infectadas com o vírus. Os números
tornam-se ainda mais dramáticos quando nos deparamos com
outra estatística: mais de 42% das mulheres grávidas da cidade
Francistown, uma das maiores de Botsuana, deparam-se com a
doença ao fazerem o exame pré-natal. Nessas condições, o vírus
pode ser transmitido aos filhos no parto ou mesmo por meio do
aleitamento materno.
Do ponto de vista econômico, a migração impulsionada
pela ideia de uma vida melhor em regiões mais prósperas do
continente também contribui para o alto índice de infectados na
África.

264 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

Cerca de um milhão de pessoas na África do Sul — reco-


nhecida internacionalmente por suas minas de ouro e diamantes
— são imigrantes ilegais e, por isso, não procuram atendimento
médico e são mais propensos a pagar ou ganhar por sexo. Ao
retornar para suas casas, esses mineiros acabam disseminando o
vírus entre suas mulheres e namoradas, a quilômetros de distân-
cia e mesmo em outras regiões.
Sobre a história da descoberta dos diamantes no país, um
dos mais ricos, prósperos e desenvolvidos no continente, leia a
seguir o texto retirado da página oficial da Embaixada da Repú-
blica da África do Sul no Brasil:

A Descoberta do ouro e do diamante–––––––––––––––––––


Dizem que em 1866, o jovem Erasmus Jacobs estava brincando na fazenda
de seu pai, perto de Hopetown, quando achou uma linda pedra. Um vizinho
quis comprá-la, mas a família não achou que a pedra tivesse valor e acabou
dando-a, em vez de vendê-la. A linda pedra de Erasmus era o diamante “Eure-
ka”, de 21,25 quilates, que causou a corrida do diamante em Kimberley. Três
anos depois, o mesmo vizinho teve sorte novamente, mas dessa vez ele achou
uma pedra maior, com 83,5 quilates, que mais tarde foi chamada de “Estrela
da África do Sul”.
Os diamantes foram encontrados em fazendas da região. O processo de es-
cavação deu origem ao Kimberley Big Hole. Mais de 50 mil pessoas vieram do
mundo todo em busca da preciosidade. As condições de vida eram horríveis,
mas toda vez que a área parecia estéril, alguém encontrava outra mina vulcâ-
nica cheia de diamantes.
A propriedade dos diamantes foi motivo de brigas litigiosas. Conhecidas como
Griqualand West, as minas foram reivindicadas pelo povo Khoina, que há 70
anos habitava o local. Como as minas estavam nas fronteiras, os governos do
estado de Orange Free, da República Sul-Africana e de Cape Colony também
queriam uma parte da riqueza. Quando os britânicos chegaram em 1880 e
simplesmente anexaram a área, todos discordaram. Kimberley, considerada o
centro da indústria de diamantes, foi dominada por nomes como Cecil Rhodes,
Charles Rudd e Barney Barnato, que juntos trabalharam para criar um podero-
so cartel, que mais tarde foi consolidado e deu origem à De Beers Consolida-
ted Mines. Hoje, sob o comando do grupo Oppenheimers, a De Beers domina
o mercado mundial de diamantes” (ÁFRICA DO SUL, 2012).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 265


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

A doença, no entanto, não é discriminatória e atinge tam-


bém os ricos. A África do Sul encontra-se, junto a todo o con-
tinente, no rol dos números alarmantes de pessoas infectadas
com a AIDS.
Cerca de 2,9 milhões de sul-africanos estão contaminados
pela doença e, em pouco mais de dez anos, cerca de 360.000
pessoas já foram vitimadas pelo vírus. Esses números referem-
-se principalmente à população negra e pobre do país, mas
não deixam de ser menos preocupantes frente a estatísticas e
comparações.
Dados da OMS demonstram com clareza a situação deli-
cada da África do Sul diante do número de infectados pela AIDS:
pelo menos um em cada 10 casos mundiais constatados da doen-
ça refere-se a um sul-africano.
Alguns dados populacionais e econômicos do país talvez
possam nos ajudar a refletir de forma mais criteriosa sobre a real
situação sul-africana de infectados com HIV.
Dados censitários de 2000 apontam que a África do Sul
tem cerca de 40,4 milhões de habitantes, sendo que 53% de sua
população vivem na zona urbana.
Além disso, o índice de analfabetismo é de 14,9%, a taxa de
fecundidade, de 3,25 filhos por mulher; seu IDH, de 0,69.
Em termos econômicos, o PIB (Produto Interno Bruto) da
África do Sul é do montante de 133,5 bilhões de dólares distribuí-
dos em 3.310 dólares de renda per capita. Cerca de 64% desse
total provêm do setor de serviços; 32%, da atividade industrial; e
apenas 4%, da agropecuária.

266 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

Calcula-se, no entanto, que daqui a uma década este PIB


será 17% menor que o atual em consequência dos danos causa-
dos pela AIDS na frágil economia do país.
Nelson Mandela, então presidente da África do Sul, decla-
rou em 1997:
A severidade do impacto econômico da doença está diretamen-
te relacionada com o fato de que muitas pessoas infectadas
estão no pico dos grupos etários produtivos e reprodutivos. A
AIDS mata de quem a sociedade depende para produzir alimen-
tação, trabalhar nas minas e fábricas, dirigir escolas e hospitais
e governar nações e países (MANDELA apud ÁFRICA DO SUL,
2012).

Os estragos causados pelo HIV no continente africano são


comparados ao de uma devastação 100 vezes maior que o total
de mortos contabilizados na Guerra do Vietnã. De acordo com
dados da UNAIDS (Joint United Nations Programme on HIV/AIDS,
ou seja, o Programa das Nações Unidas para HIV/AIDS), cerca de
22 milhões de africanos morrerão nos próximos dez anos vítimas
da doença.
No caso da África Subsaariana, os dados da UNAIDS são
enfáticos. Do total de aidéticos em 2008 no planeta, 67% esta-
vam localizados nesta região do continente africano. Em relação
às crianças, 91% do total mundial de infectadas são meninos e
meninas dessa região. Dos novos casos contabilizados mundial-
mente da doença, 68% correspondem ao número de novos in-
fectados na África Subsaariana.
Alguns dados compilados pela UNAIDS na África Subsaa-
riana chegam a ser estarrecedores. Na Suazilândia, a expectativa
de vida caiu mais que 50% devido à doença e não passa dos 37
anos de idade.

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 267


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

A AIDS é popularmente chamada de iyoyo no continente


africano, palavra que traduzida para o português significa “aque-
la coisa”. Diante de um quadro de total falta de informação e de
políticas públicas de saúde, pouco resta aos africanos além de
definharem em meio a febres e infecções, diante de uma doença
que para eles soa tão misteriosa.
Somente a mudança de comportamento e uma maciça in-
tervenção internacional somada a parcerias com governos locais
poderiam mudar a realidade atual deste quadro da AIDS no con-
tinente africano. Uganda é um dos poucos países onde existem
políticas públicas de informação e tratamento da doença.
Em matéria publicada na revista Seleções Reader’s Digest
em janeiro de 2004, o sucesso de Uganda, de acordo com o en-
tão presidente do país, Yoweri Museveni, baseou-se no tripé:
abstinência, fidelidade e camisinha.
De acordo com a UNAIDS, a distribuição de medicamentos
no combate ao vírus em Uganda foi também uma medida gover-
namental bem-sucedida. O índice de mortalidade de pessoas in-
fectadas reduziu 95%, e o de crianças órfãs, 93% (UNAIDS, 2012,
p. 14).
Como você pode observar, os males ocasionados pela
doença, aliados à falta de políticas públicas voltadas à prevenção
e ao tratamento dos casos de AIDS, têm sido um dos grandes
entraves para o desenvolvimento social e humano do continente
africano.
Talvez o exemplo de Uganda seja um pequeno respiro em
um grande afogamento. Mas mesmo assim ainda é um fio de
esperança que pode acalentar ou servir de exemplo para as co-
munidades locais acabarem com a doença.

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UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

7. TEXTOS COMPLEMENTARES
No excerto a seguir, da historiadora Viviane de Oliveira Bar-
bosa, você poderá conhecer as mobilizações sociais e políticas de
mulheres que vivem nas zonas rurais da África do Sul e os pro-
blemas recorrentes enfrentados nas relações de gênero no país:

Gênero, identidades e mobilização na África do Sul–––––––


O RWM1 foi organizado no final dos anos 1980 através da mobilização de mu-
lheres que perderam suas terras “ancestrais” por ocasião do apartheid (1948-
1994). De fato, “a perda da posse da terra” teria sido “a base fundamental do
regime colonial e do apartheid na África do Sul” (MNGXITAMA, 2002, p. 96). Na
província de KwaZulu-Natal2, o processo de exclusão da terra se deu de modo
particular. Reivindicações pelo acesso a terra e por políticas voltadas para o
uso sustentável de recursos naturais constituíram as principais características
das mobilizações. Nas décadas de 1970 e 1980, houve levantes generalizados
contra o apartheid em toda a África do Sul, muitos dos quais organizados con-
tra a política de remoção de comunidades negras de suas terras cujo argumen-
to era o da eliminação das “manchas negras” de áreas agricultáveis do país3.
Historicamente, as políticas econômico-estatais dirigidas ao meio rural sul-
-africano, guiadas por economistas, empresários e governantes, foram acom-
panhadas pela obliteração simbólica ou pela tentativa de exclusão efetiva dos
sujeitos sociais diretamente envolvidos com os trabalhos do campo. Neste
contexto, a dimensão do gênero das relações sociais parece ter tido implica-
ções e significados profundos. Ainda que atingidas pela violência, mulheres
rurais elaboraram estratégias e se organizaram de maneira ousada, inteligente
e criativa.
Inspirado em muitas reivindicações e em contato com lutas sociais mais espe-
cíficas, foi organizado um movimento de mulheres rurais que reunia em sua
pauta questões como igualdade de gênero e direito das mulheres, acesso a
terra e melhoria nas condições habitacionais e de infraestrutura, políticas vol-
tadas para saúde e direitos reprodutivos, acesso à educação e discussões em
torno do trabalho e do bem-estar social. Essas demandas contrariavam os
planos estatais, especialmente os de reforma agrária, e as interfaces destes
planos com práticas costumeiras, que produziriam na África do Sul uma situa-
ção na qual às mulheres era negado o direito a terra. Nesse sentido, a conso-
lidação do RWM consiste numa ação política e numa crítica aberta ao caráter

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 269


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

predominantemente masculino dos conselhos locais, nos quais as mulheres


eram excluídas ou subrepresentadas.
Tudo indica que o processo histórico de luta pelo acesso e direito a terra foi in-
terpretado pelas mulheres rurais a partir de suas próprias perspectivas, criando
categorias próprias para rememorar suas vivências, isto é, o tempo e a história
foram reelaborados desde suas experiências cotidianas de vida. As múltiplas
formas de violência, particularmente o estupro, constituem elemento funda-
mental das condições históricas que levaram ao surgimento do RWM.
Conflitos, tensões e negociações tecidos em torno das relações de gênero são
elementos estruturantes da constituição deste movimento. Não à toa, as iden-
tidades de mulheres rurais sul-africanas se relacionam diretamente com os
múltiplos usos e enfrentamentos do gênero, especialmente nas suas relações
com seus maridos e/ou companheiros. Entretanto, as conquistas de mulheres
rurais no âmbito público nem sempre vieram acompanhadas de transforma-
ções nas relações familiares. Há mulheres que ainda sofrem violência domés-
tica, principalmente estupro e espancamento. Mesmo após a implantação da
Constituição sul-africana de 1996, são ainda comuns tentativas de expulsão de
mulheres das suas terras por parentes de seus maridos/companheiros.
Sem dúvida, algumas questões permanecem fundamentais para o RWM, como
a independência econômica e política das mulheres rurais face aos parentes e
maridos/companheiros, o ato de recusarem o segundo casamento (geralmente
ocorrido em caso de viuvez, em que a mulher deve cumprir perante a comuni-
dade a função de se casar com o cunhado) e a problemática da feminização
do vírus da AIDS4.
As ideias sobre gênero, raça e classe social, mais do que moldarem as expe-
riências dessas mulheres, foram reinterpretadas por elas. As identidades de
mulheres rurais sul-africanas foram acionadas durante os conflitos coletivos
num campo de compreensões partilhadas. Possivelmente, das atividades fre-
quentemente realizadas em grupo por elas derivaram sociedades de assistên-
cia mútua, formas originais de organização, como as que levaram ao proces-
so de surgimento do RWM. Mas embora este movimento seja historicamente
construído enquanto uma organização de mulheres rurais, algo que unificaria
diferentes agentes sociais num único corpo, ele deve ser visto como espaço
de conflitos e ambiguidades. As mulheres estão posicionadas desigualmente
dentro do RWM. Algumas, por exemplo, estão mais próximas das redes polí-
ticas nacionais e internacionais5, ao passo que outras continuam mais ligadas
às suas comunidades rurais locais, com pouca oportunidade de atuação fora
destes espaços, e ao contexto da organização institucional do movimento, sig-
nificativamente dependentes de suas líderes.
Desde sua fundação, o RWM tem se projetado para além das fronteiras geo-
gráficas oficiais estatais, rompendo com fronteiras regionais e constituindo-se

270 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

em um movimento que se pensa a partir do espaço rural e se fundamenta em


critérios de gênero, étnico-raciais e de classe. Ora, hoje constitui lugar-comum
a ideia de que as identidades não surgem no isolamento, mas são resultado
de interações. São contrastivas e essencialmente relacionais, já que implicam
na relação do mesmo e do outro. As desigualdades estruturadas em torno das
diferenças de gênero podem ser produzidas e reproduzidas nos meios rurais
(PORTELLA et al., 2004). De fato, um dos canais por meio dos quais se tornam
políticas as tensões e contradições do meio rural é a politização da “opressão
de gênero e, com isso, tornam-se mais complexas as relações de poder, antes
restritas ao conteúdo de classe” (BUARQUE, 2003, p. 3).
Se são complexas as identidades produzidas desde o lugar das diferenças de
gênero, não menos o são aquelas baseadas em critérios fenotípicos. A iden-
tidade étnico-racial, assim como a de gênero, enraíza-se em uma diferença
física notável. Assim, trata-se de considerar processos de construções identitá-
rias, salientando-se o caráter sociocultural, historicamente processado, de uma
determinada autoidentificação. Como lembra Stuart Hall (2003), a identidade
é um lugar que se assume, uma costura de posição e contexto, e não uma
essência ou substância a ser examinada. A identidade negra é também um
processo de construção moderna que oscila entre contextos locais e globais
(GILROY, 2001). A etnicidade, como se poderia argumentar a partir do caso do
RWM, pode ser invocada como uma origem e uma cultura comuns, e também
pode ser mobilizada como forma de reivindicação cultural, relacionando-se a
protestos eminentemente políticos (CUNHA, 1986).
Não menos complexos que as identidades de gênero e étnico-racial são os
laços construídos a partir de solidariedades de grupo e classe social. Se classe
se forma quando pessoas que compartilham de experiências comuns (her-
dadas ou partilhadas) articulam uma identidade que coaduna com seus in-
teresses entre si e, em geral, contra outros interesses que diferem dos seus
(MOTTA, 1999, p. 195), as mulheres rurais aqui enfocadas constituem grupos
sociais. Thompson (2001, p. 260-1) sugere que classe não pode ser tomada
como uma categoria estática. Classe deve ser interpretada como “uma cate-
goria histórica descritiva de pessoas numa relação no decurso do tempo e
das maneiras pelas quais se tornam conscientes de suas relações, como se
separam, unem e entram em conflito, formam instituições e transmitem valores
de modo classista”. Sendo assim, “classe é uma formação tão ‘econômica’
quanto ‘cultural’”.
Mais do que definir, a priori, classe, cor/ “raça” ou sexo/gênero como catego-
ria fundamental, é preciso notar as implicações cotidianas desses contextos
condicionais para os diferentes sujeitos sociais. Não se deve esquecer que
os conceitos são frequentemente fraturados pelos períodos históricos e pelos
contextos sociais. Observando as experiências de mulheres rurais sul-africa-

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 271


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

nas, vê-se que nenhum daqueles contextos condicionais é temporal e/ou es-
pacialmente absoluto, isto é, nenhum deles é sempre, e em todo lugar, e do
mesmo modo, acionado, seu ativamento depende de cada situação em que os
sujeitos se encontram e com as quais eles se deparam.

1
Rural Women’s Movement.
2
Situada na costa leste da África do Sul, esta província costuma aparecer na
dianteira das listas que apresentam os piores índices de desenvolvimento hu-
mano e os maiores índices de pobreza na África do Sul.
3
Em 1983, por exemplo, um grupo de protesto às leis do apartheid, denomina-
do Black Sash, fundou o Transvaal Rural Action Committee (TRAC) Este comi-
tê, em contato com outros grupos sociais da África do Sul, decidiu apoiar reivin-
dicações de grupos locais. Desse processo, foi redigida a Carta das Mulheres
(Women’s Carter), uma atitude contestatória às leis costumeiras vigentes na
África do Sul, entendidas como cerceamento da cidadania feminina.
4
Segundo relatórios do RWM, a violência sexual contra mulheres antes da
Constituição de 1996 era recorrente e tinha relação com a infecção de mu-
lheres rurais pelo HIV/AIDS. Mulheres do movimento afirmam que a prática
de alguns homens que estupravam mulheres para consumarem o casamento
contribuiu para a feminização da doença. Deborah Posel (2006, p. 40) mostra
que, no pós-apartheid, a AIDS se impôs como um grande problema na África
do Sul e que KwaZulu-Natal apresenta um dos maiores índices de contamina-
ção pelo vírus.
5
Há que se considerar intelectuais, e setores e instituições ligados ao governo
e a diferentes denominações religiosas tiveram participação ativa na constitui-
ção do RWM.
(BARBOSA, 2009)
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Tendo em vista o que estudamos até aqui, é importante
fazermos uma reflexão sobre o lugar do ensino de História da
África.
Para isso, vejamos o excerto do texto da professora de his-
tória Maria Luzinete Dantas Lima. Ela faz um breve balanço sobre
as condições relacionadas à História da África e como a lei que
torna obrigatório o ensino desta disciplina foi aprovada:

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UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

Lei 10.639/03: obrigatoriedade do ensino


de História da África e Afro-brasileira na educação básica–
Durante muito tempo, pouca ou nenhuma atenção foi dada à história da Áfri-
ca e dos africanos no Brasil. Isso aconteceu devido às ideias preconcebidas
sobre o continente africano, disseminadas principalmente pelos europeus nos
séculos XVIII e XIX. No entanto, a construção do Brasil está indissoluvelmente
ligada a esse continente, por meio das culturas trazidas para essa margem
do Atlântico pelos milhões de escravos que para cá foram enviados através
do tráfico. Entre 1549 e 1850, o “Trato dos viventes”, como definiu Luis Felipe
Alencastro, foi uma atividade legal e tão ou mais lucrativa do que a produção
agrícola. Proibido em 1850, continuou em menor intensidade até 1855, ano do
último desembarque que se tem notícia.
Quanto à quantidade exata de africanos escravizados aqui no Brasil não há da-
dos precisos, pois não havia registros de todos os desembarques em todos os
portos da América portuguesa. Tudo o que existe são estimativas, projeções,
feitas a partir de dados incompletos. Assim, encontramos alguns estudiosos
afirmando que chegaram cerca de 3.500.000 e outros, como Alberto da Costa
e Silva, afirmando que foram por volta de 4.600.000. Mas o que parece con-
senso é a ideia de que o Brasil recebeu algo em torno de 40% de todo o fluxo
de escravos africanos trazidos para as Américas.
A informação mais difundida nos livros didáticos sobre a utilização desse imen-
so contingente de pessoas escravizadas é o trabalho nos engenhos de açúcar
e nas lavouras de café. Porém, é apenas uma parte da realidade. Os africanos
que aqui chegaram participaram de todas as atividades produtivas. Toda a
economia da América portuguesa e, depois, do Brasil Imperial estava baseada
na escravidão e no tráfico. As plantações e os engenhos, a pecuária, os trans-
portes, a mineração, o comércio, no interior e nas cidades, em todas as ativi-
dades a escravidão africana estava presente. Maria José de Andrade (1988),
que estudou a respeito da mão de obra escrava em Salvador, comprovou que
os escravos prestavam serviços em todas as atividades necessárias à vida
urbana, tais como: alfaiate, carpinteiro, empalhador, ourives, sapateiro, ser-
rador e em estabelecimentos comerciais, como armazéns, trapiches, boticas,
açougues. Mesmo estando nas cidades, ainda desempenhava atividades nas
pequenas lavouras de roça e quintais, criação e pesca. Também prestavam
serviços como carregadores de cadeiras, de cargas, canoeiro, marinheiro, em-
barcadiço de navio. Nos serviços domésticos, exerciam atividades de copeiras,
lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras e amas de leite.
Eles faziam de tudo. Isso certamente deu aos escravos urbanos uma visão de
mundo mais ampla, inclusive fazendo-os explorar as possibilidades de alforria

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 273


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

individual e mobilidade ocupacional. Além disso deu-lhes consciência de sua


força e de sua capacidade para criar uma sociedade livre do comando dos
brancos (REIS, 2003, p. 351).
Mas os africanos não foram apenas vítimas passivas dos horrores da escra-
vidão. Utilizaram várias formas para se libertar da sua condição de escravo.
Em várias regiões do Brasil, assim como em outras regiões escravistas do
mundo, os escravos frequentemente brigavam e conseguiam obter dos senho-
res o direito a um pedaço de terra para sua subsistência e até vender algum
excedente da produção. É a chamada “brecha camponesa” discutida por Reis.
Essa reivindicação escrava podia interessar aos senhores como fator de redu-
ção dos custos de manutenção da escravaria ou como estratégia de controle
social, mas seu tamanho, medido quer em tempo de trabalho, quer em espaço
cultivado, era sempre motivo para muitas discussões.
Quando a negociação falhava ou nem chegava a se realizar por intransigência
do senhor ou impaciência dos escravos, abriam-se os caminhos da ruptura. A
fuga era um deles, aliás, a forma mais comum de resistência escrava no Brasil
colonial, que levava à formação contínua e generalizada de comunidades de fu-
gitivos, que recebiam variadas denominações: mocambos, ladeiras, magotes ou
quilombos. Tanto que quando se fala em quilombos o imaginário do brasileiro se
reporta ao conceito emitido pelo Conselho Ultramarino em 1740, que dizia o: “[...]
toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada,
ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles” são
consideradas quilombos, portanto focos de resistência. Motivos para fugas não
faltavam: abusos físicos, separação de entes queridos por venda ou transferên-
cia inaceitáveis ou o simplesmente pelo prazer de experimentar a liberdade. Ou-
tras vezes, os escravos escapavam já com intenção de voltar, depois de pregar
um susto no senhor e, assim, marcar um espaço de negociação de negociação
no conflito. Mas a fuga para a liberdade não era tarefa fácil. O grande obstáculo
era a própria sociedade escravista, sua forma de ser e estar, sua percepção de
realidade, seus valores. Assim, toda e qualquer tentativa de fuga era terrivelmen-
te combatida.
Em 1888, o Brasil finalmente aboliu a escravidão negra. Depois da abolição,
embora não tenha sido imposta nenhuma forma de segregação, os ex-escravos
ficaram totalmente marginalizados, não lhes sendo possível conseguir trabalho
para atender as suas necessidades mínimas de sobrevivência. Para piorar a
situação, o governo brasileiro, na segunda metade do século XIX, estimulou
a imigração europeia numa tentativa visível de “branquear” a população bra-
sileira. Assim, milhões de imigrantes entraram no Brasil nas últimas décadas
do século XIX e início do século XX. Essa força de trabalho foi utilizada tanto
na agricultura quanto na indústria que estava começando a ser implantada nas
mais importantes cidades brasileiras. Os afrodescendentes ficaram à margem.

274 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

A partir de 1930, alguns intelectuais brasileiros passaram a discutir sobre al-


gum tipo de identidade nacional. Nesse contexto, o sociólogo Gilberto Freyre
desenvolve o conceito chamado de “Democracia Racial”, defendendo a teoria
de que o povo brasileiro convivia bem e pacificamente com todas as raças.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a Unesco organizou uma pesquisa sobre
essa suposta democracia racial brasileira com o objetivo de ajudar a resol-
ver problemas de discriminação racial em outras partes do mundo e chegou
à conclusão de que no Brasil existia racismo, preconceito e discriminação,
mas essas práticas eram camufladas pelo mito da democracia que havia sido
implantado.
No período de ditadura militar, nas décadas de 1960 e 1970, as liberdades foram
suprimidas, e os termos raças e cor caíram no mais completo esquecimento.
No final dos anos 1970, os movimentos sociais foram se reorganizando, entre
eles o grupo intitulado “Movimento Negro”, que tinha a intenção de combater
a discriminação racial no Brasil. Com a volta do governo democrático a partir
de 1985, a questão racial voltou a ser discutida, sendo conquistados vários
avanços sociais com a Constituição de 1988. Em seu artigo 68, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, a nova constituição garantiu a pro-
priedade da terra aos moradores das áreas supracitadas. Nesse contexto, o
conceito de quilombo foi ampliado e ressignificado, podendo ser definido como
comunidades negras rurais, habitadas por descendentes de africanos escra-
vizados, que mantêm laços de parentescos; vivem, em sua maioria, de cultu-
ras de subsistência, em terras doadas, compradas ou ocupadas secularmente
pelo grupo; que valorizam as tradições culturais dos antepassados, recriando-
-as no presente, possuem uma história comum e têm normas de pertencimento
explícitas, com consciência de sua identidade. No entanto, verifica-se haver
desconhecimento dessa realidade por parte da maioria dos estudantes de to-
dos os níveis escolares e da sociedade em geral.
O Movimento Negro é o nome genérico dado ao conjunto dos diversos mo-
vimentos sociais afro-brasileiros, particularmente aqueles surgidos a partir
da redemocratização pós-Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro e em
São Paulo.
Em 2003, foi criada uma Lei Federal, alterando a Lei 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para
incluir no Currículo Oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”.
O texto da lei dizia o seguinte:
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte
Lei:

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 275


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

Art. 1o A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar


acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, ofi-
ciais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cul-
tura Afro-brasileira.
§ 1˚ O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo in-
cluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros
no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2˚ Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira se-
rão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas
áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3˚ (VETADO)”
“Art. 79-A. (VETADO)”
“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia
Nacional da Consciência Negra’.”
Art. 2˚ Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182˚ da Independência e 115˚ da
República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque

A lei foi instituída, porém não chegou a ser amplamente debatida, o que prova-
velmente justifica a sua não abrangência. Descendentes de índios, sentindo-se
prejudicados, visto que a legislação instituída era voltada exclusivamente para
os descendentes de escravos africanos, pressionaram o Congresso Nacional,
e a lei sofreu nova modificação, passando a contemplar os indígenas.
Na íntegra, a nova lei diz:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte
Lei:
Art. 1˚ O art. 26-A da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa
a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino
médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e
cultura afro-brasileira e indígena.

276 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

§ 1˚ O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diver-


sos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da
população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos po-
vos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro
e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas con-
tribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história
do Brasil.
§ 2˚ Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos
povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currí-
culo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura
e história brasileiras.” (NR)
Art. 2˚ Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120o da
República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad (LIMA, 2009).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Os processos de independência trouxeram prosperidade aos povos africa-
nos, que passaram então a se autogovernar?

2) Releia o texto de apoio da Unidade 4 (“A questão das colonizações”, nos


Textos Complementares) e reflita sobre as afirmações do historiador fran-
cês Alain Peyrefitte. Você concorda com elas? Caso discorde, em quais
pontos e por quê?

3) Q
ual a relação mais óbvia que pode ser estabelecida entre a segregação
racial na África do Sul e os longos anos de colonização?

4) Em que medida o discurso científico se subjetivou entre os bôeres?

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 277


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

5) Como o apartheid se institucionalizou na África do Sul? Elabore uma linha


do tempo e descreva a transformação jurídica sul-africana que permitiu a
adoção de políticas públicas raciais.

6) Por que Nelson Mandela foi preso? O que ele reivindicava? Qual o papel
desse personagem na história do mundo contemporâneo?

7) Parece óbvio, mas não custa perguntar: você sabe o que é a AIDS? Quais
são as principais formas de contágio e transmissão?

8) Quais os impactos da doença no continente africano atualmente?

9) P
or que a doença se espalha com tanta facilidade no continente? Há po-
líticas públicas em alguns países africanos de prevenção e tratamento da
doença?

10) Como resolver a questão da AIDS na África?

11) Segundo Nelson Mandela, qual o impacto da doença no continente?

12) Quais são os outros problemas que a África enfrenta hoje?

13) Por que ensinar História da África? De onde partiu a iniciativa para tornar
obrigatório o ensino da história desse continente e das populações trazi-
das como escravos ao longo de aproximadamente 350 anos?

9. CONSIDERAÇÕES
Como estudamos até aqui, as visões construídas ao longo
dos séculos 18, 19 e 20 a respeito da diferença entre os homens
— na afirmação da superioridade de um povo em relação aos ou-
tros — tiveram reflexos trágicos em todo o continente africano.
A África do Sul, palco do apartheid, viu essas visões se
tornarem políticas de Estado e também forte instrumento de
repressão.

278 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

No estudo da primeira parte desta unidade, ao analisar-


mos um dos países africanos mais desenvolvidos, percebemos
que sua história é carregada por uma série de feridas que ainda
estão abertas.
Além disso, a questão da AIDS deixa clara a situação frágil
em que se encontra o continente africano: preso entre as tradi-
ções do passado e um processo civilizador incompleto, que não
respeita as diferenças e quer impor normas incompreensíveis às
populações milenares do continente.
É importante resgatarmos a história de um continente que
tem uma relação tão próxima com o nosso: muito do que somos
está ligado aos anos de intercâmbio forçado com as populações
africanas.
Observe que é importante fazermos esse resgate, pois se
trata de uma oportunidade de compreendermos o presente desse
continente e as dificuldades encontradas nele: tanto por estar à
margem dos grandes centros financeiros e comerciais do mundo
moderno quanto pelas resistências e costumes que, de certa ma-
neira, contribuem para a proliferação de doenças letais como o
AIDS.
Isso, no entanto, não quer dizer que esses costumes se-
jam errados ou inferiores, apenas diferentes. É na diferença que
aprendemos muito sobre os outros e nós mesmos, mas a inquie-
tação com a identificação clara de um problema que rói o conti-
nente por dentro não pode passar despercebida.
Fica a reflexão!

© HISTÓRIA DA ÁFRICA 279


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

10. E-REFERÊNCIAS

Figura
Figura 1 Foto retirada no dia da libertação de Nelson Mandela. Disponível em: <http://
www.panafa.net/blog/wpcontent/uploads/2010/01/mandela_walks_free_2.jpg>.
Acesso em: 25 mar. 2010.

Sites pesquisados
EMBAIXADORA DA REPÚBLICA DA ÁFRICA DO SUL. Homepage. Disponível em: <http://
www.africadosul.org.br/?pg=inicio>. Acesso em: 23 mar. 2012.
IBGE. Países @. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/paisesat/>. Acesso em: 23 mar.
2012.
MANDELA, N. R. Homepage. Disponível em: <http://www.anc.org.za/people/mandela.
html>. Acesso em: 25 mar. 2010.
SENADO FEDERAL. Lei n. 3.353 – de 13 de maio de 1888. Disponível em: <http://legis.
senado.gov.br/mate-pdf/8065.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2012.
SUA PESQUISA. Nelson Mandela. Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/
biografias/nelson_mandela.htm>. Acesso em: 23 mar. 2012.
UNAIDS. Homepage. Disponível em: <www.unaids.org>. Acesso em: 23 mar. 2012.
UNESP. O que é a Aids. Disponível em: <http://www.faac.unesp.br/pesquisa/nos/
olho_vivo/aids/o_que_aids.htm>. Acesso em: 23 mar. 2012.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCASTRO, L. F. O trato dos viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul – séculos
XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BARBOSA, V. O. Gênero, identidades e mobilização na África do Sul. In: XXV SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA. Fortaleza. Anais.... [CD-ROM]. Fortaleza: ANPUH, 2009.
FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa – conforme a nova
ortografia. São Paulo: Positivo, 2009 [CD-ROM].
FERRO, M. História das colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII ao
XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

280 © HISTÓRIA DA ÁFRICA


UNIDADE 5 – ÁFRICA HOJE: DO APARTHEID AOS DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEOS

______. (Org.). O livro negro do colonialismo. Tradução de Joana Angélica D’Ávila Melo.
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