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O mito da imprensa nanica – II

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de novembro de 2011

Em segundo lugar, a denominação mesma de “imprensa nanica” é altamente


enganosa. A exposição montada pelo Instituto Vladimir Herzog para celebrar o
lançamento da sua série de DVDs auto-hagiográficos deu uma prova fisicamente
visível daquilo que as palavras dos entrevistados pareciam negar: o gigantismo da
mídia esquerdista no Brasil no tempo da ditadura. Só no exterior, foram cento e
doze jornais e revistas, mais cento e dez no Brasil – sem contar as publicações
acadêmicas e inumeráveis jornais de grêmios estudantis, praticamente todos de
esquerda, que multiplicariam esse número por dez ou vinte. Isso não é imprensa
nanica. É um império midiático de proporções colossais. Tentem fazer uma idéia
do custo global da operação, da extensão da mão-de-obra envolvida, da
quantidade enorme de exemplares produzidos. Quantos jornais e revistas
conservadores, de direita, surgiram no Brasil nos últimos vinte anos – período
equivalente ao do regime militar? Nenhum. Simplesmente não há dinheiro para
isso. Proponha uma publicação conservadora ou cristã a empresários brasileiros,
e eles daí por diante evitarão ser vistos em sua companhia. Se não existisse a
internet, onde se mantém um blog com cinqüenta reais por ano, a opinião
conservadora teria simplesmente desaparecido do território nacional.

Imprensa nanica? Eu sei o que é imprensa nanica. Minha amiga Anca Cernea, na
Romênia, tem uma bela coleção de jornais de oposição publicados ali e na
Polônia durante o regime comunista. São miseráveis folhetos mimeografados ou
pasquins de quatro páginas compostos com tipos móveis, impressos em
máquinas de fundo de quintal e distribuídos por mãos trêmulas, em vielas
escuras, longe da polícia.

Isso é imprensa nanica, isso é combate heróico contra uma ditadura. Nada dos
produtos de alta qualidade, desenhados por artistas de primeira ordem, impressos
nas mais importantes gráficas comerciais e vendidos em bancas, à vista de todo
mundo. É certo que muitos órgãos da imprensa esquerdista foram de curta
duração, mas outros permaneceram em circulação por muitos anos, não raro com
o sucesso espetacular de O Pasquim e Movimento. Também é verdade que
viviam sob a ameaça da censura, mas o mesmo acontecia com os jornais da
grande mídia. Nenhum “nanico” foi tão censurado quanto o Estadão e o Jornal da
Tarde: as notícias substituídas por versos de Camões, no primeiro, e por receitas
culinárias, no segundo, dariam para preencher muitas edições de Opiniãoou A
Voz Operária.

Quando pergunto pelas fontes de sustentação financeira da “mídia nanica”, há


dois erros crônicos que devem ser afastados desde logo. De um lado, a coisa
mais fácil do mundo é fazer chacota da expressão “ouro de Moscou”, para inibir
toda veleidade de investigar a interferência soviética na política nacional. De outro
lado, seria bobagem tentar explicar a mídia alternativa como um todo com base
na hipótese do dinheiro soviético. Vamos por partes.

O “ouro de Moscou” não era nem um pouco mitológico. Ladislav Bittman, o chefe
da inteligência soviética no Brasil em 1964, informou que, na ocasião, a agência já
tinha mais de cem jornalistas brasileiros na sua folha de pagamentos. É claro que
sem saber os nomes deles e sem averiguar como se desenvolveu sua relação
com o governo da URSS nas décadas seguintes, nada se pode compreender
realisticamente da história da mídia esquerdista no Brasil. Em 17 de fevereiro de
2001, em artigo publicado na revista Época, convoquei os jornalistas brasileiros a
entrevistar aquele agente e tirar o caso a limpo. O silêncio rancoroso com que a
sugestão foi recebida ainda ressoa nos meus ouvidos. Foi também em vão que
tentei persuadir empresários brasileiros a subsidiar um historiador russo – que
vivera no Brasil e dominava a língua portuguesa – a investigar o assunto nos
arquivos do Partido Comunista soviético, então abertos aos pesquisadores
estrangeiros. Pelas expressões em seus rostos, tive a impressão de que lhes
dissera alguma imoralidade.

Mas é claro que, no conjunto, a mídia esquerdista no período militar não


dependeu substancialmente da ajuda soviética. Suas fontes de dinheiro eram
múltiplas e heterogêneas, incluindo empresários e banqueiros locais, além de
verbas provenientes das organizações terroristas, de organismos internacionais e,
por baixo do pano, do próprio governo (Ênio Silveira, o maior editor comunista do
Brasil, criador da Revista Civilização Brasileira, que tão decisivo papel
desempenhou na reorientação estratégica dos movimentos de esquerda depois
do golpe de 1964, me confessou pouco antes de morrer que sua editora só
sobrevivera graças aos favores do general Golbery). A variedade dessas fontes
parece dar àquela indústria editorial os ares de produto espontâneo e anônimo da
sociedade, mas uma coisa é óbvia: sem uma imensa rede de conexões, apoios e
proteções, estendendo-se de Montevidéu a Moscou, de Paris a Nova York e de
Argel a Santiago do Chile, ninguém poderia ter inundado o espaço legente deste e
de outros países com uma massa de duzentos e vinte e dois jornais e revistas –
um feito digno do próprio Willi Münzenberg, o “Milionário Vermelho”. Essa rede
não tinha sua coesão assegurada senão pelas metas políticas comuns a todo o
movimento comunista internacional. Movimento que, àquela altura, se compunha
de muitas facções diversas e relativamente independentes, mas todas unidas, ao
menos nos instantes decisivos, contra o “inimigo comum”: o “imperialismo ianque”
e seus supostos “agentes no Terceiro Mundo”, entre os quais, evidentemente, os
militares latino-americanos.
A premissa básica da qual deve partir o estudo da mídia alternativa antimilitar no
Brasil é aquela que, num depoimento marcado por sinceridade inaudita, foi
colocada pelo sociólogo Herbert de Souza, o “Betinho”: o movimento
revolucionário é sempre e invariavelmente um fenômeno internacional. A unidade
da sua atuação no mundo é complexa e dialética, mas nem por isso menos real.
Sem o apoio do movimento comunista internacional, nada do que os jornalistas de
esquerda fizeram no Brasil e no exterior teria sido jamais possível. Nesse sentido,
suas ações não podem ser compreendidas no puro contexto local, isolado das
condições internacionais que as possibilitaram.

Ora, enquanto no Brasil os militantes da esquerda jornalística posavam como


defensores da democracia e das liberdades públicas, qual era a atividade
essencial desempenhada simultaneamente pela rede comunista que os apoiava e
protegia? Essa atividade pode ser resumida numa única palavra: matar. Durante
os anos da nossa ditadura militar, os governos comunistas mataram dois milhões
de pessoas no Camboja, 1,5 milhão na Revolução Cultural chinesa, meio milhão
na Etiópia, duzentos mil no Vietnã, outro tanto no Tibete, cem mil em Cuba, pelo
menos um milhão em vários países da África. E notem que isso foi depois do seu
período de maior violência genocida (anos 30 a 60). Como é possível que
cúmplices e beneficiários ideológicos de tanta maldade se sentissem
sinceramente escandalizados ante as mortes de trezentos e poucos militantes
armados que ao mesmo tempo faziam duzentas vítimas entre seus inimigos?
Quando se ouviu a imprensa “nanica” reclamar contra o que seus companheiros e
protetores internacionais faziam em quatro continentes? Mais se escreveu e se
falou no Brasil sobre a morte de Vladimir Herzog ou de Carlos Lamarca do que
sobre milhões de civis desarmados que ao mesmo tempo eram assassinados
pelos parceiros daqueles “combatentes pela democracia”.

Eis a razão pela qual a base econômico-social da “mídia alternativa” brasileira


jamais é sondada em profundidade por aqueles que professam, com hipocrisia
exemplar, fazer a reconstituição documental da sua história. Ela é uma caixa-preta
que, quando aberta, revela o que ninguém quer saber.

Derramar toneladas de lágrimas de crocodilo quando morre um terrorista, e ao


mesmo tempo negar às vítimas do comunismo um olhar de piedade, um minuto
de atenção, tal tem sido a atitude permanente com que a militância mais cruel e
assassina que já existiu consegue se fazer passar, ante o olhar das massas,
como vítima inocente da brutalidade alheia. A essa duplicidade moral acrescenta-
se uma astuta distribuição geográfica dos sentimentos fingidamente humanitários.
É inevitável que, operando em escala global, os comunistas levem vantagem em
alguns países e saiam perdendo em outros. Nestes últimos, tratam de encobrir as
pistas de suas conexões internacionais, de modo a bloquear toda comparação
entre os males que ali sofrem e os padecimentos muito maiores que, no mesmo
momento, estão impondo a outros povos, em outros lugares. Nossa “midia
alternativa” seguiu essa receita à risca, criando a imagem de uma esquerda
nacional isolada do universo, sem culpa pelo que seus patronos e cúmplices
faziam no resto do planeta. Restauradas as devidas comparações, sua presunção
de heroísmo e santidade revela seu verdadeiro rosto de farsa cínica e macabra.

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Em 25 de novembro de 2011 / Artigos


Tags: 2011, Brasil, Diário do Comércio, imprensa, regime militar, Romênia, URSS

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