Você está na página 1de 17

NÓS OS HUMANOS,

SERES DA NATUREZA SERES DA CULTURA

Carlos Rodrigues Brandão

Recado para quem vá ler este escrito


Este documento assim como todos os desta série, é um antigo ou um novo texto que
algum dia eu escrevi. Em alguns casos pode ser o capítulo de um livro ainda vigente ou
já esgotado. Em outros, um artigo de revista de novos ou velhos tempos. Em outros
casos, um escrito nunca publicado e escrito para ser dialogado em encontros, simpósios
e equivalentes.
Alguns foram revistos e atualizados. Outros não. Alguns têm ao final uma bibliografia
completa, ou quase. Em outros ela está ausente.
Tal como todos os outros desta série, o propósito deste escrito não é em nada
acadêmico. Ele serve a estabelecer diálogos entre pessoas e seu uso é livre, isto é,
livremente co-responsável. Ele pode ser utilizado em diferentes situações. Pode ser
citado no todo ou em parte. Pode ser incorporado a outros escritos, desde que
lembrada a sua fonte.
Quem queira “entrar no texto” seja para torná-lo melhor, ou para co-participar dele
está também convidado a tanto. Seremos co-autores/as.
Lembro que boa parte de tudo o que escrevi como livros está colocado em LIVRO
LIVRE, no site: www.sitiodarosadosventos.com.br. Lá estão quase todos os meus livros
de antropologia, de educação e de literatura que, livres de direitos editoriais, podem
por igual serem livremente acessados, salvos, copiados, etc. Em
www.apartilhadavida.blogspot.com vários outros escritos meus podem também ser
livremente acessados.

É verdade: nem a cultura iletrada é a negação do homem,


nem a cultura letrada chegou a ser plenitude. Não há homem
absolutamente
Inculto: o homem “hominiza-se” expressando, dizendo o seu
mundo. Aí começam a história e a cultura.
Ernani Maria Fiori1

Este nosso escrito procura pensar algumas questoõ es fundamentais. Ao inveé s


de se preocupar com o: “como devemos ser, pensar ou agir?”, como em outros
escritos, ele faz as perguntas que infelizmente estaõ o sendo deixadas de lado na
pressa das respostas faé ceis e diretas em que nos vemos envolvidos. Afinal, “porque
somos como somos?” “Como e porque nos tornamos assim como somos?”. Assim, o
que vamos ler daqui em diante desafia voceê e eu aà aventura de ler e refletir sobre
nada menos do que aquilo que ao longo da trajetoé ria de um longo processo – e

1
Ernani Maria Fiori, filósofo gaúcho, esteve exilado com Paulo Freire. Esta pequena passagem é parte do prefácio
ao livro de Paulo Freire, já nosso conhecido de: Pedagogia do Oprimido. O título do prefácio de Fiori já enuncia
todo o conteúdo do livro: Aprender a dizer a sua palavra. Está na página 20 da 42ª edição do livro.
2

esperemos que interminaé vel - a que alguns estudiosos do fenoê meno humano daõ o o
nome de humanizaçaõ o ou hominizaçaõ o2.
Em outros escritos estivemos aà s voltas com perguntas e buscas de respostas
bastante atuais. Questoõ es ligadas ao presente e aà construçaõ o do futuro de nossas
vidas e de nossos lugares naturais e sociais da Vida. Chegou o momento de
mergulharmos em nosso proé prio passado e na esseê ncia de nosso proé prio ser, para
procurarmos algumas respostas a respeito do misteé rio de noé s mesmos. Este e
outros escritos desta seé rie deveraõ o nos levar por alguns momentos para um pouco
longe – mas naõ o tanto - da educaçaõ o e dos dilemas mais presentes e agudamente
atuais da pessoa humana.Viajemos ateé as eras em que os primeiros seres humanos
sequer sonhavam com algo que um dia os gregos chamariam de polis e, noé s, de
cidade. Deixemos-nos levar pelo voê o de outras cieê ncias e de outras perguntas, para
depois viajarmos de volta ao ponto desde onde começamos os nossos diaé logos ao
redor da pessoa e da educaçaõ o

1. Mãos que criam gestos, mentes que inventam palavras

Em algum tempo muito anterior aà nossa chegada no planeta Terra, jaé


existiam seres unicelulares, entre os vegetais primitivos e embrioõ es dos primeiros
animais. Aos poucos a natureza gerou, passo a passo, seres vivos unitaé ria e
organicamente mais complexos e diferenciados. E seres que assim foram se
tornando e transformando, porque, de espeé cie em espeé cie e na proé pria trajetoé ria da
evoluçaõ o de cada uma delas, desenvolveram formas cada vez mais flexíéveis, mais
diversas e mais elaboradas, de interagirem com o meio ambiente, com outros seres
vivos e com indivíéduos e coletividades de sua proé pria espeé cie.
Comparemos a solidaõ o das tartarugas no mar com a alegre e ruidosa
comunidade das araras. Comparemos depois um bando de araras com grupos de
gorilas, e algo do que nos importa aqui começaraé a fazer algum sentido. Os grandes
saé urios começaram a desaparecer quando a ecologia do planeta mudou. Pois desde
cedo a Vida decretou que iriam sobreviver os seres vivos mais mutaé veis e saé bios e
naõ o os mais fortes e encouraçados. Desde os primoé rdios da Vida na Terra, saber
conviver, saber criar unidades coletivas e conectivas de conviveê ncia, e saber
transformar-se e transformaé -las, foi o segredo da sobreviveê ncia. Falamos do passar
de muitos e muitos milhoõ es de homens. Para termos uma vaga ideé ia, os grandes
dinossauros que vemos nos filmes e com cujas reé plicas pequeninas as crianças
2
O fenômeno humano é justamente o nome de um dos livros mais importantes do século passado. Ele foi escrito por
um padre e paleontólogo francês, Pierre Teilhard de Chardin. “Paleontólogo” é o cientista que estudo, a partir de
fósseis e outros restos dos primeiros humanos, os primórdios de nossa própria presença na Terra. Enquanto os
arqueólogos buscam, através de escavações e demoradas pesquisas, os sinais de culturas que nos antecederam de
milhares de anos, os paleontólogos procuram nos restos encontrados do corpo e dos primeiros sinais da ação dos
homens no planeta, as nossas origens mais remotas antigas. Ver indicação de livros dele e sobre ele na bibliografia
ao final. Frei Betto escreveu dois livros sobre o pensamento de Teilhard de Chardin. Um é: Sinfonia universal – o
pensamento de Teilhard de Chardin (1997), e A obra do artista – uma visão holística do universo (2003)
3

brincam, desapareceram do planeta mais ou menos a setenta milhoõ es de anos. Os


primeiros hominídeos teraõ o surgido na Terra apenas (sim “apenas” mesmo!) haé alo
entre sete ou, melhor ainda, cinco ou quatro milhoõ es de anos.
Hoje existe um jaé quase universal consenso cientíéfico de que, em boa
medida, foi devido a mudanças draé sticas dos ambientes originais da Terra, que
nossos ancestrais mais primitivos iniciaram em algum lugar do centro da AÁ frica
uma estranha, ainda naõ o inteiramente decifrada e irreversíével trajetoé ria. Os seres de
quem herdamos a vida e a histoé ria, aos poucos aprenderam a descer da segurança
das aé rvores para virem viver entre elas e o perigoso solo. Com o passar de um longo
tempo os nossos ancestrais entre o animal e o humano aprenderam a erguer-se
sobre as patas de traé s e a olharam de frente o sol e o horizonte. Assim, sabemos hoje
com uma quase inteira certeza, que somos herdeiros da ousadia do descer dos
galhos das altas aé rvores onde ficaram os outros primatas (os primeiros macacos),
para virmos habitar em grupos os solos da Terra. E somos herdeiros dos seres que
aprenderam a levantar o dorso, erguer a cabeça e andar em peé . Caminhando eretos
sobre o chaõ o em busca de alimento e de proteçaõ o, nossos primeiros ancestrais
souberam liberar as patas dianteiras que se transformaram em maõ os aptas a lidar
com as mateé rias da natureza. E, de geraçaõ o em geraçaõ o, entre as maõ os e o ceé rebro,
os nossos primitivos pais introduziram no mundo uma rara e quase ué nica forma de
possuir, de agir com e de sentir um corpo.
Na maõ o do homo o seu polegar começou a opor-se aos outros dedos de uma
palma aé gil e saé bia, para que desde entaõ o existissem entre os humanos os toques
sutis dos ofíécios do trabalho, da arte e do amor. E os estudiosos de nossas origens
concordam em que os primeiros homos aperfeiçoaram as maõ os, o rosto e a boca,
para realizarem formas originais e exclusivas do trabalho de lidar com o mundo naõ o
apenas adaptando-se a ele, como um cachorro ou um gorila, mas transformando-o 3.
Aprendemos a transformar coisas da natureza em objetos e, depois, em ferramentas
(objetos para fabricar objetos) de um mundo novo: o mundo da cultura.
Somos em quase tudo muito semelhantes aos chamados macacos
antropomorfos - os que possuem uma semelhança maior com os seres humanos -
como os gorilas, os orangotangos os chipanzeé s e, especialmente, uma espeé cie deles
chamada bonobos. Mas possuindo uma carga geneé tica em mais de 97% igual e uma
complexaõ o fíésica taõ o proé xima deles, no que eé essencial somos bastante diferentes. E
essa eé “toda” a diferença. E eé justamente nas integraçoõ es desta pequena imensa
diferença, que somos uma espeé cie ué nica aqui na Terra. Ouçamos por um momento o

3
Alguns livros ilustrados e de acesso mais fácil poderiam ser lembrados aqui: A origem da humanidade, de Gunther
Haaf (1982); A escalada do homem, de J. Bronowski (1983); A evolução da humanidade, de Richard E. Leakey
(1981); Origens, do mesmo autor ( 1980); O animal cultural, de Carlos París (2002). Podemos ver, ainda, de Serge
Moscovici, o intrigante e difícil Sociedade contra Natureza (1975). Recomendo especialmente o primeiro volume
de uma trilogia escrita por Marcos Arruda: Humanizar o infra-humano (2003)
4

que um astrofíésico (sim, isto mesmo) tem a nos dizer a respeito de noé s proé prios e de
nossa evoluçaõ o, ao final de um de seus mais belos e conhecidos livro: Cosmos4.

Por exemplo, consideremos nossas mãos. Temos cinco dedos, incluindo um


polegar em oposição. Eles nos servem muito. Penso que seríamos
igualmente bem servido com seis dedos, incluindo um polegar, ou quatro
dedos, incluindo um polegar, ou cinco dedos e dois polegares. (...) Temos
cinco dedos porque somos descendentes de um peixe devoniano que possuía
cinco falanges ou ossos em suas barbatanas. Se tivéssemos descendido de
um peixe com quatro ou seis falanges, teríamos quatro ou seis dedos em
cada mão e acharíamos perfeitamente natural.
...
Há vinte milhões de anos, nossos ancestrais viviam em árvores, descendo
mais tarde porque as florestas retrocederam durante a era glacial e foram
substituídas pelas savanas5. Não é muito bom estar bem adaptado á vida
nas árvores se não há muitas. Muitos primatas arbícolas pereceram com as
florestas. Poucos mantiveram uma existência precária no solo e
sobreviveram.
...
Após termos descido das árvores, evoluímos para uma postura ereta, nossas
mãos ficaram livres; possuímos uma visão binocular excelente – adquirimos
muitas pré-condições ara fazermos ferramentas. Existe agora uma
vantagem real na posse de um cérebro grande e na comunicação de
pensamentos cósmicos (...) Os seres mais inteligentes podem resolver
melhor os problemas, viver mais e deixar mais descendentes, até a invenção
das armas nucleares, a inteligência ajudou de forma definitiva a
sobrevivência. Em nossa história foi alguma horda de pequenos mamíferos
furiosos que se escondeu dos dinossauros, colonizou os topos das árvores e
mais tarde fugiu para o solo domesticando o fogo, inventou a escrita,
construiu observatórios e lançou veículos espaciais.

Vaé ateé um espelho e veja o seu rosto com outros olhos. Voceê eé o perfeito
retrato dos seres em que noé s, os humanos, nos transformamos. Veja bem. Em voceê ...
em noé s, os olhos estaõ o situados bem na frente do rosto. E eles enxergam uma soé
imagem em foco, de muito perto ateé muito longe. Apenas noé s vemos o mundo assim.
Nossos fraé geis olhos percebem uma extrema variedade de cores e de tons, para
muito aleé m das cores do arco-íéris. Alguns antropoé logos afirmam que os esquimoé s
4
Carl Sagan, Cosmos, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1984, ps. 282 a 284.
5
Devemos observar que esta opção da escolha de Carl Sagan não é universal. Outros estudiosos do passado remoto
da vida e das origens da vida humana na Terra acreditam que quando nossos ancestrais viviam sobre árvores no
interior de grandes florestas do centro da África, houve um momento em que o choque tectônico provocado pelo
encontro do que hoje em dia é a Índia com o continente asiático provocou uma severa variação geológica, climática
e botânica no continente africano, inclusive pelo surgimento da Cordilheira do Himalaia, que impediu que ventos
unidos chegassem até lá. Em muitos milhares de anos florestas transformaram-se em savanas e a vida nas árvores
tornou-se impraticável.
5

conseguem distinguir mais de quarenta tonalidades de gelo e neve. Foram talvez


esses olhos, progressivamente aptos ao olhar atento e aà concentraçaõ o, os que
começaram a preparar em noé s um ceé rebro humano adequado ao o salto do sinal (a
fumaça, “sinal de fogo”) ao signo (o desenho de uma fogueira em uma placa de
estrada) e dele ao símbolo (como a palavra “fogo” e a frase: “cuidado com o fogo”).
E, deles, aà s atividades do corpo e da mente decorrentes do fato de percebermos o
que vemos, pensarmos o que percebemos e refletirmos sobre o que pensamos. Noé s
nos criamos aos poucos como seres do pensamento, da sensibilidade, da reflexaõ o,
da memoé ria, da imaginaçaõ o, da antevisaõ o (o seu cachorro nunca se “preocupa com o
futuro”, como voceê ) e da comunicaçaõ o. E foi ao interagir tudo isto que os nossos
primeiros pais saltaram dos ruíédos do grunhir aà s palavras do dizer. A nossa
mandíébula, muito parecida originalmente com a dos macacos, perdeu aos poucos a
força da boca dos síémios e ganhou a fraé gil e sutil destreza que mais tarde iraé acolher
dois milagres humanos: o beijo e a fala.
Mais do que tudo, em nosso maravilhoso e delicado aparato biopsicoloé gico,
o ceé rebro humano, com o passar naõ o apenas de milhares, mas de milhoõ es de anos,
aprendeu dobrar e triplicar a nossa capacidade craniana. E ele naõ o apenas cresceu
muito, enquanto os ceé rebros de gorilas e chimpanzeé s estacionaram. Ele cresceu
tornando-se cada vez mais complexo e mais diferenciado. Cresceu criando espaços e
conexoõ es de bilhoõ es de sinapses atraveé s das quais fluem tanto os choros de um bebeê
quanto as teorias de um filoé sofo. E, assim, pouco a pouco nossas mentes
aprenderam a orientar e dirigir – sobretudo apoé s o salto humano da natureza aà
cultura – as suas proé prias transformaçoõ es. Transformaçoõ es em direçaõ o a uma
progressiva perda de saberes instintivos (nisso um cavalo ou um cachorro nos
superam de longe), em favor de um ganho crescente de aé reas e interaçoõ es cerebrais
que abrigam e desenvolvem quase tudo aquilo que, interagindo em nós e entre nós,
nos foi tornando seres humanos.
Podemos reunir essas mudanças que nos tornaram seres humanos atraveé s
de algumas palavras que fazem parte de nosso dia a dia. E elas povoam, com os
mesmos ou outros nomes, importantes e controvertidos conceitos das diversas
teorias das cieê ncias humanas e sociais. Elas jaé nos saõ o conhecidas de outros
cadernos, ma devem retornar aqui com um pouco mais de precisaõ o. O que deve ser
nunca esquecido, eé que somos quem somos naõ o somente porque desenvolvemos de
uma maneira muito especial cada um dos atributos da sequü eê ncia de atributos
humanos enumerados logo abaixo. Noé s nos tornamos quem somos porque
aprendemos a fazer “isto”, fazendo tudo o que eé nosso e existe em noé s, interagir
segundo padroõ es ué nicos de conexoõ es e de integraçoõ es.
E quais saõ o eles? Eles saõ o: a sensação (o saber do mundo e dos outros
percebendo relaçoõ es); o sentimento (o sentir, emocionar-se, fazer-se ser afetivo,
6

atribuindo sentido ao que se sente) 6; o saber (o conhecer, aprendendo a reaprender


e a criar e integrar conhecimentos); a sensibilidade (a interaçaõ o propriamente
humana entre sensaçoõ es, sentimentos e saberes); o significado (o saber atribuir e
compartir valores e sentidos de si-mesmo, da vida, do destino e do mundo); e,
enfim, a sociabilidade (nossa inevitaé vel vocaçaõ o de criamos, destruirmos,
transformarmos e recriarmos os grupos e os mundos sociais em que todos e cada
um noé s vivemos).
Hoje sabemos que as irreversíéveis transformaçoõ es do corpo humano naõ o
foram e nem seguem sendo um mero acontecimento bioloé gico causador de todos os
outros. Ao contraé rio, eé justamente porque os nossos ancestrais aprenderam a criar e
transformar modos de viver e conviver cada vez mais simboé licos, mais complexos e
mais flexíéveis, que eles fizeram evoluir, ao longo de mileê nios, a fisiologia e a
anatomia dos corpos dos primeiros hominídeos e dos seres que passaram da
experieê ncia deles aà s de nossa proé pria espeé cie.
A de um ser de quem somos herdeiros e que somos noé s mesmos. Um ser que
a si mesmo resolveu um dia denominar-se: homo sapiens sapiens7.

2. Tornar o viver um conviver: criar a cultura e fazer-se humano

E eé porque os seres humanos desenvolveram alternativas ué nicas de


comunicaçaõ o com o outro, de atribuiçaõ o de significados a si-mesmo e de criaçaõ o de
variantes muito especiais de vida-em-comum, que ao longo do tempo os nossos
corpos se alteraram para acolher o síémbolo, a fala, a experieê ncia do grupo humano e
a criaçaõ o de comunidades sociais. Formas de vida em comum situadas muito aleé m
das coletividades dos primatas, e mesmo dos macacos antropomorfos. Noé s nos
transformamos organicamente ateé o ponto em que nos tornamos criadores de
cultura. Mas quando ascendemos a ela, a proé pria cultura tornou-se um fator
essencial nas transformaçoõ es bioloé gicas de nossa espeé cie.
E – como jaé vimos e voltaremos a ver e a aprofundar em outros cadernos -
desde os primoé rdios de nossa presença no planeta, o ensino e a aprendizagem
tiveram em nosso vocaçaõ o de viver um lugar sempre inevitaé vel e central. Podemos
repetir agora. Naõ o somos humanos porque somos seres racionais e sociais8. Somos
6
Humberto Maturana, com quem nos encontramos em cadernos anteriores, prefere a palavra: emoção. E ela – a
emoção - irá nos estabelecer como animais humanizados, não pela razão ou pelo sermos “políticos”, como em
Aristóteles, mas por sermos seres regidos pela emoção. E por sermos seres em que a emoção essencial, como vimos
já, o amor. Nós iremos nos reencontrar com Maturana em outros momentos de nossos escritos.. Seus vários livros
traduzidos para o Português já foram e serão de novo lembrados. Por agora valeria a pena relembrar pelo menos um
deles, escrito junto com uma educadora também chilena, Sima Nisis de Rezepka: Formação humana e capacitação,
publicado pela Editora VOZES, de Petrópolis.
7
Mas que pelo menos Edgar Morin prefere denominar de homo sapiens demens (homem sábio e louco) devido ao
que somos no que fazemos, inclusive em nossa capacidade atual de destruir a própria vida na Terra e, assim, a nós
próprios. Vários de seus livros existem traduzidos para o Português.
8
Dois estudiosos aparentemente muito distantes um do outro poderiam nos ajudar a aprofundar estas idéias. Um
deles já foi lembrado aqui. É o biólogo e educador chileno Humberto Maturana. O outro é Clifford Geertz, o
antropólogo norte-americano que nos acompanhará daqui em diante. Recomendo a leitura de pelos menos os seis
7

humanos e somos humanamente racionais (criadores de palavras e de ideé ias) e


sociais (criadores de comunidades) porque somos seres continuamente
aprendentes. Vamos retornar a este ponto, mais de uma vez!
Sabemos que da mesma maneira como as plantas e os outros animais,
somos corpos dotados da capacidade de reagirem ao nosso ambiente natural. Tal
como eles, aprendemos a nos locomovermos sobre a terra, as aé guas e os ares,
utilizando nosso proé prio corpo, ou artefatos que construíémos atraveé s da açaõ o deles
sobre mateé rias e energias do planeta, em funçaõ o de mensagens que captamos do
mundo atraveé s dos sentidos e atraveé s de atos por meio dos quais tanto uma bacteé ria
quanto um cavalo, e quanto noé s mesmos, deixamos a nossa marca de presença em
nosso mundo. Sim. Um colibri faz isto. Noé s tambeé m.
No entanto, entre todos os outros animais e noé s existe uma diferença
essencial. Com uma enorme variedade de viveê ncias deste nosso reconhecer os sinais
da Terra e da Vida e responder a eles das mais diversas e inesperadas maneiras, em
todos os seres vivos existem formas de uma conscieê ncia reflexa da relaçaõ o entre o
ser e o seu mundo. De um manacaé a um macaco, a vida sente atraveé s dos seus seres.
Eles sentem, eles percebem, eles lembram, eles sabem, eles agem. Noé s tambeé m. Mas
com uma originalidade bastante especial. Eles sentem, e agem. E noé s nos sentimos
sentindo, como muitos outros seres vivos tambeé m. Mas noé s nos pensamos sabendo,
e nos sabemos pensando. E sabemos que sentimos e nos sentimos tomados desta ou
daquela emoçaõ o, porque aprendemos a nos saber sabendo.
Passamos, assim, da conscieê ncia reflexa (perceber, sentir, saber e reagir)
que compartimos com outros seres da vida, aà conscieê ncia reflexiva, que acrescenta
um me e um mim a um eu.
Na ilha deserta o sol desmaia
Do alto do morro vê-se o mar.
Papagaio discute com jandaia
Se o homem foi feito pra voar9.

A curiosa quadra acima, provavelmente inventada por Tom Jobim, conteé m


um infantil e evidente absurdo e uma suspeita que afinal se confirmou. Papagaios
falam sons, mas naõ o palavras. E jamais discutem seja entre eles, seja com jandaias,
muito embora elas sejam tambeé m psitacíédeos, como as araras e os periquitos.
Leonardo da Vinci passou a vida invejando paé ssaros que sabiam desde cedo voar,
enquanto ele, um saé bio homem de seu tempo, caminhava lentamente pela terra. E
tentou por anos a fio construir uma maé quina com asas como as dos paé ssaros

primeiros artigos de seu livro: A interpretação das culturas (1989)


9
Esta curiosa quadra eu a encontrei numa página sem número do livro Ensaio poético Tom e Ana Jobim, com muitas
imagens e letras de músicas de Tom Jobim, ou de outros autores, musicadas por ele. O livro foi elaborado por Joel
Coaraci e foi publicado em 1987 pela Passaredo Produções, do Rio de Janeiro. Imagino que dada a ausência de
indicação de outro autor, ela seja de autoria de Tom Jobim, embora tenha um forte acento de quadra típica de
cantorios de cultura popular brasileira.
8

(depois, como as dos morcegos) para voar como eles. Nunca conseguiu. Muitos
outros tentaram a mesma coisa... e naõ o saíéram do chaõ o.
Entretanto ele via os paé ssaros que laé do alto talvez o vissem tambeé m. E
enquanto os paé ssaros viam e percebiam um homem, o homem que os via percebeu
os seus voê os, pensou sobre “aquilo”, imaginou-se voando, sentiu o desejo de voar,
pensou a maé quina voadora, desenhou-a no papel e a construiu. Ele fez o que voceê e
todos os seres humanos, cada um a seu modo, cada um de acordo com seus dons e a
sua vocaçaõ o, saberiam sentir, pensar e fazer. E um dia o homem construiu as
maé quinas com as quais, sem asas no corpo, mas fabricante de asas, ele começou a
voar.
Pois um paé ssaro voa com um par de asas. Noé s, com as asas de nossas
ideé ias e os voê os de nossa imaginaçaõ o. No momento exato de sua morte a pequenina
ave fecha os olhos, sente o coraçaõ o parar de bater, cai do galho, cessa de viver e volta
aà terra. Noé s, os seres humanos, diante da mesma morte nos cercamos de palavras, de
gestos, de ritos e de síémbolos. Lembramos uma vez ainda a vida vivida, falamos a
noé s mesmos, aos nossos familiares queridos e a um deus. Entre preces e prantos
dizemos despedidas e palavras de dor e de esperança. E ao cerrar os olhos, o quem
ou o queê de noé s deixa o corpo dado tambeé m aà terra e vai para onde? Porque? Em
nome de quem?
Livres, porque somos uma conscieê ncia que pensa e se pensa, somos a
aventura, a gloé ria e o terror de termos de viver dentro de treê s tempos: o passado, o
presente e o futuro. Vivemos o presente entre outros tempos, enquanto tudo o que
vive aà nossa volta contenta-se em viver um soé e instantaê neo presente. Por isso as
vacas comem capim, enquanto noé s nos alimentamos de folhas de alface, chocolates
(aà s vezes quando queremos nos compensar por uma frustraçaõ o), hoé stias
consagradas, panetones na Paé scoa e antidepressivos. Um animal vive cada momento
do presente momentaê neo e fugaz, vivido como se ele fosse sem fim. Suprema
felicidade! Em noé s, quantas vezes uma lembrança ruim de um passado distante nos
rouba o sono do presente! Mas em quantas outras vezes, em nome de um sonho de
um futuro velamos outras noites e noites lendo, pensando e estudando!
Uma outra diferença importante. Dentre toda a imensa variedade de seres
da teia da vida, somos a ué nica espeé cie que ao inveé s de transformar-se fisicamente
para adaptar-se ao mundo natural, começou a transformaé -lo de maneira motivada e
intencional, para adaptaé -lo a noé s. Castores fazem diques na aé gua. Formigas
constroem cidades debaixo da terra e abelhas realizam haé muitos milhoõ es de anos
colmeé ias que saõ o verdadeiros modelos de arquitetura. Mas em todos estes e outros
animais construtores, o fazer naõ o eé um criar. Ele eé uma extensaõ o instintiva das leis
de comportamento da espeé cie, impressas no corpo de cada indivíéduo que a ela
pertence.
9

Quando os primeiros seres de quem descendemos viviam a esmo,


desvalidos e precariamente acampados na beira dos riachos, jaé os paé ssaros eram
construtores de saé bios e seguros ninhos. O tempo passou para eles e para noé s. Eles
seguem construindo naturalmente os mesmos ninhos, enquanto noé s inventamos
sobre todos os quadrantes da Terra uma variedade enorme de habitaçoõ es. E nos
ué ltimos anos ensaiamos no espaço sem ar e sem gravidade as primeiras moradias
fora do planeta. Um gaviaõ o alça voê o e vai de onde estaé ateé a proé xima aé rvore. Noé s que
fisicamente naõ o podemos voar, construíémos espaçonaves e começamos a sonhar
com desvelar com o conhecimento e, quem sabe um dia? Lançar-se na aventura de
viajar começar a habitar o Universo.
Retomemos de novo uma palavra jaé nossa conhecida. Podemos dar a esta
diferença entre o fazer reflexo dos animais e o criar reflexivo dos humanos, o nome
de cultura. A natureza (como a de uma pedra) eé o mundo de quem somos, e eé o
mundo em que nos eé dado viver. A cultura (como uma pedra polida e transformada
em um adorno ou em uma arma) eé todo o mundo que transformamos da natureza,
em noé s e para noé s.
Quando o Deus da Bíéblia disse aos seres vivos: “crescei e multiplicai-vos”,
eles e tambeé m noé s respondemos com a disseminaçaõ o natural deles e de noé s
mesmos. Quando ele disse: “habitai toda a Terra”, os animais responderam ocupando
nichos ecoloé gicos propíécios a cada espeé cie e adaptando-se a ele. Ou perdendo a
capacidade de adaptar-se, e desaparecendo da Vida e do planeta Terra. E os homens
responderam transformando os seus Mundos de Vida e a si mesmos. E aos poucos
povoaram todos os recantos da Terra, dos troé picos aos poé los, criando formas de
colher frutos das aé rvores e pescar peixes dos rios, e tambeé m de lavrar a terra,
construir moradias e dar aos seus frutos e aos peixes dos rios: nomes.
Nomes, palavras, síémbolos, ideé ias, pensamentos, lembranças, sentidos e
significados. Pois para a ave que pousa num galho, a aé rvore eé a sombra, o abrigo,
uma refereê ncia no espaço de seu mundo e o fruto de que ela se alimenta. Enquanto
para noé s, seres da natureza habitantes da cultura, uma aé rvore eé tudo isto e eé
bastante mais. Ela eé um nome, um feixe de síémbolos e de significados, uma
lembrança, uma tecnologia de cultivo e uma mateé ria de uso e proveito. Ela pode ser
tambeé m uma imagem carregada de afetos. Pode ser o objeto da tela de um pintor.
Pode um poema ou uma cançaõ o, assim como morada de um deus de uma religiaõ o, ou
mesmo ela proé pria uma divindade que por um instante divide com um povo
indíégena uma fraçaõ o de seu mundo.
Assim, de duas maneiras diversas e convergentes podemos entender a
criaçaõ o da cultura pelos seres humanos. Vamos dedicar aqui a cada uma delas
algumas palavras.
Em uma primeira direçaõ o a cultura eé e representa o processo do trabalho
e dos produtos do trabalho, na transformaçaõ o da natureza preé -existente, em um
10

mundo intencional e inteligentemente criado pela açaõ o humana. Trabalho, cieê ncias,
tecnologias - das mais arcaicas aà s mais atuais, das que praticam as nossas
sociedades indíégenas ateé as criadas mais recentemente pela empresa capitalista “de
ponta - eis aqui eixos e elos de processos e produtos da cultura humana em
continua interaçaõ o. A casa construíéda em qualquer lugar eé um produto do saber, do
labor e do trabalho humano atraveé s de um momento do socializar a natureza e criar
mundos de cultura10. E realizar isto atraveé s de processos culturais que envolvem as
mais diferentes tecnologias de relaçoõ es com forças, energias e mateé rias da natureza,
fundadas em princíépios de conhecimentos de diferentes saberes entre as artes e as
cieê ncias.
Hoje em dia tendemos cada vez mais a considerar a cultura naõ o tanto
como os produtos materiais da açaõ o dos homens sobre a natureza, mas como os
processos sociais, mentais e simboé licos atraveé s dos quais noé s estamos
continuamente criando, desconstruindo (para usar uma palavra da moda) e
recriando redes, teias e tramas de palavras e de ideé ias, de síémbolos e significados
com que construíémos os nossos diferentes mundos humanos. A cultura naõ o eé uma
coisa e nem um sistema de coisas. Naõ o eé um poder e nem uma forma de controle. Ela
eé , antes, um contexto, um acontecer da vida humana transformada naquilo que a
torna compreensíével e comunicaé vel para noé s mesmos e entre noé s mesmos.

Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria


símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder,
algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais,
os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto,
algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível - isto é,
descritos com densidade 11.

Ora, em uma outra direçaõ o, o mais importante trabalho da cultura eé


aquele que os seres humanos realizam sobre eles mesmos, ao mesmo tempo em que
agem sobre o seu meio ambiente, transformando-o. Somos aqui na Terra a ué nica
espeé cie de seres vivos que transcendeu o domíénio das leis bioloé gicas impressas
geneticamente sobre cada um e todos os participantes de um grupo de plantas ou de
animais. E seres de que as recentes e impressionantes descobertas da geneé tica teê m
desvelado misteé rios ateé haé pouco tempo impensaé veis. Para aleé m dos outros seres da
Vida, o homo sapiens sapiens foi obrigado a realizar a passagem diante da qual
10
A socialização da natureza possui aqui um sentido político. Mas um “político” em seu sentido mais ancestral. O
que lembra, pelo menos desde Aristóteles, o sermos nós, seres humanos, não somente habitantes de coletividades
naturais, como os macacos, mas criadores das comunidades sociais que constituímos e transformamos para viver. Ao
fazermos intencional e motivadamente uma pequena fogueira com alguns gravetos colhidos no chão da mata, nós
socializamos a natureza em pequena escala. Ao transformar uma floresta em uma cidade nós a socializamos em uma
grande (e não raro predatória) escala. O pão que você comeu nesta manhã e uma fração de natureza socializada pela
cultura. O fato de comê-lo à volta de uma mesa, conversando com as “pessoas da casa” (melhor do que diante da
televisão, assistindo ao “Jornal da Manhã”) é uma outra forma de socialização. É a que nos espera na segunda
dimensão da cultura.
11
Clifford Geertz, A interpretação das culturas
11

pararam ateé mesmo os macacos mais semelhantes a noé s. Que passagem? Qual salto?
O de havermos aprendido a criar um mundo de relacionamentos entre pessoas e de
interaçoõ es entre grupos de pessoas fundado, tambeé m, em regras sociais.
Ateé os pequeninos animais de vida social mais complexa e elaborada,
como as abelhas e os cupins, e mesmo entre os animais que associam uma vida
social complexa a uma plasticidade de inteligeê ncia e de comportamento interativo
muito expressiva, todos eles vivem a experieê ncia do coletivo seguindo gramaé ticas
inteiramente naturais de controle de impulsos e de condutas.
Mas noé s fomos um pouco aleé m. Somos uma espeé cie ué nica de criadores de
diferentes estilos de vida, de padroõ es de conduta, de sistemas de valores, preceitos e
princíépios, de regras de comportamento, de coé digos de conduta, de gramaé ticas de
relacionamentos e de categorias diferenciais de identidades.
E, assim sendo, somos, os humanos, universais criadores de contos,
cantos, mitos, poemas, ideé ias, ideologias, eé ticas e religioõ es. Sistemas de saber,
sentimento e sentido, com o que continuamente estamos nos dizemos e declarando:
quem somos e quem naõ o somos; quem saõ o os outros que naõ o saõ o ”noé s”; como se
deve ser e comportar diante de cada outro de nossos cíérculos de vida; como cada
categoria de indivíéduo natural (como o “macho” e a “feê mea”), transformados
culturalmente em categorias de sujeitos sociais (como “homem” e “mulher”,
“marido” e “esposa”, “maõ e” e “filha”, “jovem” e “anciaõ o”, “nativo” e “estrangeiro”)
devem se reconhecer e se relacionar.
A passagem cultural da lei para a regra representa o traê nsito do domíénio
animal da natureza para a cultura. Os animais se acasalam segundo os seus desejos,
regidos pela “lei da espeé cie”. Homens e mulheres se buscam, se encontram, se amam,
casam, transam e geram filhos, vendo e vivendo os seus desejos transformados em
síémbolos e em significados de suas culturas. Em experieê ncias pessoais pensadas e
vividas como iniciativas e rotinas culturais de acordo com os seus sistemas de
valores e submetidos a princíépios e coé digos de relaçoõ es pelos quais os indivíéduos se
transformam em pessoas. Quando a mulher amada se transforma em esposa; o fruto
do amor em filho e a cumplicidade estabelecida de “tudo isto” em uma famíélia. Em
algo aleé m: em uma rede de parentes, em uma fraçaõ o de aldeia, em uma “metade” de
uma tribo, em um momento de uma naçaõ o, no sentido de uma identidade, o culto de
uma feé , a partilha de uma visaõ o do mundo.
Enfim, seja como uma resposta coletiva aà s necessidades biopsicoloé gicas
do indivíéduo e da espeé cie, tal como se alimentar, sobreviver ao frio e aà noite, dar
sentido ao temor da morte e aà alma, amar, parir e criar filhos; seja como uma
exigeê ncia interposta aos homens pela proé pria vida social, que de algum modo os
antecede e os faz serem humanos, o fato eé que inevitavelmente a dimensaõ o humana
da existeê ncia inaugura no mundo uma constante e crescente tensaõ o. E qual eé ela? EÁ a
tensaõ o entre o dado e o criado, entre o cru e o cozido, entre a lei natural que rege a
12

vida coletiva de um bando de orangotangos e a regra social que, ao lado das forças
da natureza, regulou pela primeira vez a vida social de um grupo de hominíédeos de
quem herdamos a vida e o dilema de termos de pensar infinitamente a vida que
construíémos e que vivemos.
A cultura eé e estaé , assim, presente tanto nos atos e nos fatos atraveé s dos
quais noé s nos apropriamos do mundo natural e o transformamos em um mundo
humano, quanto estaé viva e presente nos gestos e nos feitos com que nos criamos a
noé s proé prios, ao transitarmos de organismos bioloé gicos a sujeitos sociais. E ao
realizarmos “isto”, criando socialmente os nossos proé prios mundos. E construíé-los
atraveé s tanto do trabalho das maõ os que transformam o fruto de uma planta na
farinha e no paõ o, quanto dos padroõ es de conduta que prescrevem quem, em que
situaçoõ es, a que horas do dia, atraveé s de que gestos e na companhia de quem, pode
ou deve comer... o paõ o.
Isto eé o mesmo que dizer que ao mesmo tempo em que produzimos
materialmente as condiçoõ es naturais de nossa sobreviveê ncia como pessoas,
comunidade e espeé cie, recriamos a cada momento as condiçoõ es sociais e simboé licas
do exercíécio da experieê ncia interativa do tornar a sobreviveê ncia uma viveê ncia. E
tornar a viveê ncia uma conviveê ncia dotada de valores, de síémbolos, de saberes,
sentidos e de significados. Eis porque, em termos bastante atuais, falamos que a
cultura estaé mais no queê e no como noé s nos dizemos palavras, ideé ias, síémbolos e
mensagens entre noé s, para noé s e a nosso respeito, do que no que noé s fazemos em
nosso mundo, ao nos organizarmos socialmente para viver nele e transformaé -lo.
E agora chegamos ao ponto em que nos defrontamos com um belo e
original sentido da ideé ia de nossa liberdade. Ao levarmos a vida do reflexo aà reflexaõ o
e do conhecimento aà conscieê ncia, noé s acrescentamos ao mundo o dom gratuito do
espíérito. Com ele, noé s nos tornamos senhores do sentido e criadores de uma vida
regida naõ o pelo sinal e pelo instinto, como entre nossos irmaõ os animais, mas pelo
síémbolo e pelo sentimento.
Somos uma espeé cie ué nica que ao longo de toda a histoé ria da humanidade
- e tambeé m em cada pequenino momento da vida cotidiana - estamos a todo o
tempo criando e recriando as teias e as tramas de síémbolos e de significados atraveé s
dos quais, para muito aleé m dos simples atos dos trabalhos da sobreviveê ncia
bioloé gica, noé s buscamos sem cessar respostas aà s nossas perguntas. E estabelecemos
sentidos ora mais efeê meros, ora mais duradouros para as nossas vidas. E
consagramos valores e princíépios para a nossa mué ltipla conviveê ncia em cada escala
de nossa vida do dia-a-dia. E tambeé m para a longa, sinuosa e aà s vezes terríével
trajetoé ria da histoé ria de uma cidade, de uma naçaõ o, de toda a humanidade. E nos
impomos coé digos e gramaé ticas de preceitos e regras para podermos viver no ué nico
mundo que nos eé possíével: uma sociedade humana e as suas vaé rias culturas.
13

3. Cultura, aprendizagem, educação

Retornemos a uma vocaçaõ o humana jaé lembrada linhas acima. Uma


vocaçaõ o que vai aos poucos ganhando a sua verdadeira relevaê ncia entre os
pensadores do ser humano e de seus mundos sociais: o aprender, a aprendizagem.
Uma outra diferença importante nos separa dos outros seres da vida.
Comparemos de novo um cachorrinho receé m-nascido e uma criancinha com apenas
algumas poucas horas de vida fora do corpo de sua maõ e. Em ambos um semelhante
processo de “acontecimentos” estaraé em processo acelerado, mais do que
imaginamos. Ao mesmo tempo em que, ao longo de poucos dias e meses,
modificaçoõ es corporais estaraõ o ocorrendo depressa – talvez mais no cachorrinho do
que na criança – algumas alteraçoõ es internas, mas observaé veis no comportamento,
estaraõ o tambeé m se processando. Com uma agora enorme diferença. No seu
“primeiro aniversaé rio” o cachorro jaé seraé um pequeno jovem. Livre bem cedo dos
cuidados maternos – ele naõ o precisa de um pai e provavelmente naõ o saberaé quem eé
ele – o pequeno caõ o estaraé quase inteiramente apto a viver a plenitude de
comportamentos que se espera de um animal de sua espeé cie (um cachorro) e de sua
raça (um caõ o labrador). Um pouco mais adiante, jaé com dois anos de vida, eé provaé vel
que ele seja um animal “completo”, um ser “cachorralmente” acabado. Claro, ele
poderaé seguir ainda aprendendo, sobretudo se os seus donos forem atentos ao seu
treinamento. Poderaé mesmo ser enviado para uma “escola de treinamento de caõ es, e
voltaraé de laé bastante mais adestrado. Isto eé : um animal, um caõ o, preparado para
reproduzir de maneira adequada os comportamentos desejados pelos seus donos e
impressos no seu modo de ser pelo seu treinador. Com um pouco mais de tempo ele
seraé um animal de fato acabado. Dificilmente aprenderaé algo mais aleé m do que jaé
sabe, muito embora possa, na medida em que cresce e envelhece, tornar-se um caõ o
mais esperto, mais matreiro, mais sabido e mesmo mais... “saé bio”. Nele um
acabamento do aprender se completa por inteiro e cedo.
Mas durante o correr deste tempo, a criancinha mal teraé passado de um
“bebeê ”, de um”neneé m”, a uma criancinha. Um pequenino ser inteiramente fraé gil,
dependente e, sobretudo, aprendente. Quando o animal jaé estaé “educado” e acabado,
na formaçaõ o de sua desejada vocaçaõ o (um animal de estimaçaõ o, um caõ o de guarda,
um caõ o pastor, etc.), mal o pequenino ser humano estaraé iniciando a sua formaçaõ o.
Anos de esforço, de mué ltiplo e diferenciado aprendizado, de instruçaõ o, de educaçaõ o,
de formaçaõ o, a esperam. E, bem mais do que isto: ela seraé , mesmo quando adulta,
mesmo quando jaé um avoê de seus netos, um ser sempre inacabado. Sempre
aprendente.
Nossas universidades e outros centros de ensino abrem agora –
felizmente, jaé era bem o tempo! – vagas e cursos para estudantes de terceira idade.
Recentemente a Universidade de Saõ o Paulo acolheu em um dos seus cursos de
14

engenharia, um estudante de 82 anos. Um pedreiro aposentado que “agora sim” ia


realizar um sonho de vida: “ser engenheiro”. O tio de minha esposa, um professor
falecido aos 107 anos, tocava flauta. Todos os seis irmaõ os foram mué sicos. Aos 78
perdeu alguns dentes e jaé naõ o podia mais fazer bem a “embocadura” para tocar a
flauta. Naõ o teve dué vidas: começou a aprender a tocar violino. E uma outra flauta nos
espea algumas linhas abaixo. Somos seres permanentemente inacabados. Somos
seres em quem nunca se esgota o naõ o-saber e, portanto, a vocaçaõ o de aprender.
Paulo Freire lembra isto em uma de suas entrevistas. Vejam como ele
associa a sua esperança na educaçaõ o, aà inconclusaõ o do ser humano.

Edney Silvestre – O senhor é idealista, sonhador, o senhor tem esperança?

Paulo Freire – Claro. E comigo é uma coisa muito interessante,


precisamente pela forma, pela maneira ou pela razão como eu entendo a
esperança na existência humana. Há pessoas que me consideram um
sonhador e eu o sou, mas não maluco. Há outros que me consideram um
idealista. Para mim não. Para mim a esperança faz parte disso que
chamamos de natureza humana. No fundo, é algo que constitui social e
historicamente nossa experiência, no mundo com os outros. E porque isso?
Eu estou absolutamente convencido de que a inconclusão, o indeterminado é
uma característica da experiência vital: onde há vida, há inacabamento. Mas
em termos de experiência existencial, que é a nossa, o inacabamento
continua, nós somos tão inacabados quanto as árvores, os animais todos... 12

Observem bem que ateé aqui Paulo Freire parece estar afirmando o oposto
do que afirmei acima. Tanto o pequenino cachorro quando a criancinha vivem e
viveraõ o destinos regidos pelo inacabamento. Pelo imprevisíével mesmo, pois isto faz
parte da proé pria natureza mais íéntima da vida. Sim, em boa medida isto eé
verdadeiro. A aé rvore que voceê tem em seu quintal, ou na sua calada, nunca eé a
mesma em duas manhaõ s seguidas. Nem mesmo em dois momentos seguintes. Ao
longo dos instantes e no variar das estaçoõ es do ano, ela eé sempre a mesma e outra.
Haé um tempo dos galhos secos, um tempo da reposiçaõ o das folhas, um tempo do
surgimento das flores, um tempo da maturaçaõ o dos frutos. E este ciclo vital iraé se
repetir ao longo dos aos. Ateé mesmo depois de “morta”, ela continua “viva”. Sua
mateé ria vegetal e mineral retornaraé aà terra. Ela que de terra se nutriu, morta
transforma-se na terra de onde veio. D algum modo revive nas aé rvores que
nasceram de suas sementes. Mas mesmo que isto naõ o aconteça, reviveraé no unir-se aà
mateé ria e aà energia da Terra e da Vida que tornaraõ o possíével a existeê ncia de outras
vidas: de outras aé rvores, de outros animais, de outras pessoas, como voceê .
Logo a seguir, na mesma entrevista, Paulo prossegue o seu pensamento e
chega ao momento de uma distinçaõ o importante para noé s. Prossigamos.

12
Paulo Freire Pedagogia da tolerância, livro de artigos depoimento e entrevistas organizado por Ana Maria Araújo
Freire. Foi publicado pela Editora da UNESP, de São Paulo, em 2004. Está na página 324.
15

Edney Silvestre – o senhor está chamando de inacabamento a continuidade.


Paulo Freire – Exato. E pela incompletude do ser mesmo. Mas acontece que
ao nível do homem e da mulher, tornamo-nos capazes de, em certo momento
dessa experiência histórica do próprio inacabamento, nos conhecer como
inacabados. A minha tese é a seguinte: um ser inacabado, que se sabe porém
inacabado, necessariamente se insere num permanente processo de procura.
A educação é esse processo13.

Lembrei linhas acima que noé s somos quem somos porque somos seres
aprendentes. Somos seres vivos dependentes de estarmos a todo o tempo de nossas
vidas – e naõ o apenas durante algumas “fases” dela – aprendendo e reaprendendo.
Somos pessoas humanas porque dependemos inteiramente dos outros e de nossas
interaçoõ es afetivas e significativas com eles para aprendermos. Para aprendermos a
saber naõ o apenas algumas habilidades da espeé cie, como os animais. Somos humanos
porque precisamos estar continuamente em relaçaõ o com os outros –desde o ué tero
materno – para passarmos de indivíduos naturais a pessoas sociais.
Amebas sequer precisam de genitores para se multiplicarem. Partem-se
ao meio e de uma velha nascem duas jovens. Tartarugas precisam de um par de
macho e feê mea para serem um dia os ovos de que nasceraõ o tartaruguinhas. Mas elas
de modo algum naõ o precisam da presença de suas maõ es para saíérem dos ovos e da
areia prontas para a vida. Paé ssaros necessitam, antes e depois do ovo, da presença
acalentadora e protetora da maõ e, ou do par de pais, para completarem por algum
tempo e por sobre a biologia do corpo, aquilo que eé o saber da espeé cie e se
individualiza em cada um deles. Lobos naõ o dispensam o conviver durante um tempo
bastante alongado com os pais e, depois, com a comunidade da alcateé ia, para se
socializarem completamente. Macacos, bem mais ainda. Eles aprendem com os pais
e com outros de seus bandos, por um tempo bastante maior. E entre eles posiçoõ es do
corpo, como o amamentar e o olhar de frente a cria, gestos interativos, jogos
expressivos, pequenos ritos e cuidados afetivos que os aproximam muito de noé s
mesmo.
E noé s, os estranhos seres humanos?
Noé s somos o extremo da experieê ncia em que a vida de um indivíéduo
precisa aprender, interativa, social e culturalmente, para tornar-se um ser pessoal,
uma pessoa. E, para aleé m de sua peculiar e ué nica individualidade, uma pessoa eé
tambeé m a cultura de uma gente, de um povo, de uma famíélia, realizada na vida e na
experieê ncia ué nica de um algueé m como... voceê .
Somos porque aprendemos. E aprendemos de muitas maneiras, em
muitas situaçoõ es e em diferences formas de interaçoõ es. E a educaçaõ o possui na
criaçaõ o e recriaçaõ o da vida humana, um lugar bastante mais essencial do que em

13
Paulo Feire, op. Cit. Página 325. A fala de Paulo Freire respondendo à pergunta prossegue, mas a interrompi
justamente no momento em eu ele fala sobre a educação.
16

geral imaginamos. Na verdade, como seres inteiramente dependentes de processos


culturais de socializaçaõ o - de transformaçaõ o de um indivíéduo em uma pessoa -
somos e seremos sempre a educaçaõ o que criamos e que criaremos, para que ela
continuamente nos recrie. A noé s e aos nossos filhos.
Naõ o fabricamos mundos socializados da natureza, transformados em
mundos de cultura, apenas porque pensamos, refletimos e sabemos. Criamos o que
fazemos porque nos socializamos em uma cultura. Porque nos instruíémos, como os
lobos e os macacos, e de algum modo tambeé m porque nos capacitamos como eles,
em seus limites. Mas nos criamos a noé s mesmos e aos nossos mundos, porque, para
aleé m dos animais, aprendemos e reaprendemos enquanto nos formamos. E noé s nos
formamos enquanto, para aleé m da simples instrumentalizaçaõ o ou da capacitaçaõ o
para viver e para fazer, noé s nos educamos para conviver e para criar.
E porque somos educados e criamos mundos onde estamos
continuamente nos ensinando-e-aprendendo, aprendemos a saber pensar
reflexivamente, antes de fazermos o que criamos. Pois, como vimos jaé , de uma
maneira ué nica na Terra somos seres que antes de criarem com os materiais da terra
as suas casas, noé s as criamos no chaõ o de nossas mentes.
Falamos aqui o tempo todo sobre noé s mesmos enquanto seres que saltam,
que emergem do mundo da natureza (do qual jamais saem), para o mundo da
cultura. Falei de trabalho, de transformaçaõ o, de síémbolo e de significado. De mito e
de rito. E eé com um belo mito, com uma pequenina e inesperada estoé ria que noé s bem
poderíéamos concluir as parte. Temos o costume de imaginar que vivemos hoje em
dia em um mundo regido pela razaõ o e pela cieê ncia. E em boa medida isto eé
verdadeiro. Mas basta observarmos o “sucesso de bilheteria”de filmes como “O
Senhor dos Aneé is”, ou “Harry Potter”, para descobrirmos o poder do mito em nossos
mundos e nossos dias. E o que dizer de nossas crianças e nossos jovens que em
pleno seé culo XXI se vestem de princesas e gastam longas horas do dia aà s voltas com
“games” que saõ o tanto mais fascinantes quanto mais “fantaé sticos” isto eé , mais
“míéticos”.
Concluamos este momento de nosso escrito com um dos mais belos mitos,
um pequeno poema e prosa, na verdade, escrito em um livro recente de Frei Betto? E
este eé o momento de uma outra flauta aparecer.

A FLAUTA DE PRATA

Luana revirou toda casa, chamou aos gritos. Em


vão.O menino evaporara. Eis que, nariz no vidro
da porta da cozinha, deu com os olhos cinco
palmos acima da mangueira espraiada no
quintal: Vilongo pairava no ar, como se sentado
17

num colchão de vento, e tocava em paz sua


flauta de prata.
O menino escorregou pelos galhos da mangueira
aos chamados da mãe. Desculpou-se,
oferecendo-lhe u’a manga.
Luana rasgou a casca, chupou a fruta e o caroço
se partiu: dentro havia uma cidade14.

livros e artigos que poderiam ser lidos com proveito

Arruda, Marcos
Humanizar o infra-humano – a formação do ser humano integral
2003, Editora VOZES, Petroé polis

Betto, Frei
Sinfonia pastoral – a cosmovisão de Teilhard de Chardin
1997, Editora AÁ tica, Saõ o Paulo

Betto, Frei
Obra do artista – uma visão holística do universo
2003, Editora AÁ tica, Saõ o Paulo

Brandaõ o, Carlos Rodrigues


A educação como cultura
2001, Editora Mercado das Letras, Campinas

Moscovici, Serge
Sociedade contra natureza
1975, Editora Vozes, Petroé polis

14
Frei Betto, A arte de semear estrelas, Editora Rocco, do Rio de Janeiro, em 2007. Está na página 91.

Você também pode gostar