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oe [ vilén Flusser. 4 18a. Bienal de $:Paulo, exemplo de espaco-tempo novo. (Para "Spuren", Hamburgo.) “Exposigoes de quadros, (e objetos ditos "de arte" em geral), podem ser en- caradas de pelo menos dois angulos diferentes. Podem ser vistas como paredes contra as quais sao pénduradas superficies cobertas de tinta. Ou podem ‘eer vis~ tas cono recortes no espaso-tempo nos quais diversas intengoes para publiicar in formagoes se entre-cruzam. Sob o primeiro angulo,(0 Cléssico), a atensao sera concentrada sobre 0s quadros. Sob 0 segundo Angulo, (0 Novo), ser ela -conaen~ trada sobre o relacionamento entre os quadros, Para o primeiro Angulo, ‘o "autor" a ser submetido a andlise cr{tica serao os produtores dos quadros. Para o se- gundo angulo, a tarefa sera a de criticar o "autor" da exposigao, ja que foi ele quem produziu o espago-tenpo do inter-relacionamento. 0s dois angulos, por cer- to, se recobrem mutuamente. © olhar do primeiro Angulo deverd atravessar a expo- sigao para poder enfocar o quadro, e, ad atravessd-la, notara inevitavelmente a sua estrutura. © olhar do segundo Angulo esbarrara contra os quadros ao escruti- nar o campo relacional da exposisao que estara criticando. Mas, embora os dois Gngulos se recobram, sao incompat{veis um com o outro. Para o primeiro Angulo, © dado concrete da exposigao sao os quadres com sua objetividade dura, e os fios ihvisf{veis que relacionam os quandros entre si sao abstragéec de tal objetivida- ide. Para © segundo Angulo, o dado concreto da exposigao & 0 campo relacional por ela estabelecido, e os quadros indivguais nao passam de horizontes abjetivos, portanto abstratos, de tal concreticidade. = que o primeird Angulo, (0 Classico), assume a circunstancia enquanto conjunto de objetos, e o segundo, (0 Novo), a as= une enquanto conjunto de campos. Ora, © segundo Angulo, por ser 0 Novo, 6 ditt cil. # ditfeil assunir o campo magnético, e nao o ima e as limayihas de ferro, enquanto o dado concreto. A 18a. Bienal de $.Paulo tem a vantagem de facilitar © angulo Nove. Eis o motivo deste ensaio, Quem penetra o ed{ficio que abriga a 18a. Bienal durante o perfodo entre 4/10 0 15/12 de 85, esté eaindo da cidade de Séo Paulo para adentrar espago-tenpo @iferento. 0 paralelo con a Atenas cldssica se inpoe: @ como subir a acropole, deixando a polis com suas casas particulares ¢ suas pragas piblicas na planfcie profana, para penetrar o tenenos, 0 templo. Os antigos acreditavam que o espago sagrado, recortado do-espago profano da cidade, confere significado @ vida priva- dae polftica dos homens. 0s organizadores da Bienal participam de tal crenga. No entanto, 0 paralelo nao deve ser exagerado: Sao Paulo nao é Atenas, ¢ o final do século 20 nao evoea o sdeulo + a.C. Sao Paulo, cidade-monstro que eveca Detroit sentada sobre Lagos, despreza, por sas dimensoes e cua violéncia, o individuo hu~ mano, £0 final do século 20 ¢ um "fin de sidcle" c{nico e decepcionado: abando~ na com saudades o ségundo milénio do cristianismo, e adentra sem ilusdes 0 tercei~ ro milénio do donfnio amb{guo do homem sobre a natureza. § tal Sao Paulo, 6 tal "gin do siecle", que a Bicnal procura superar, afim de lhes conferir significado, 0 eaiffcio da Bienal faz parte de um conjunto de construgces de arquitetu- ra tida por avangada “nos anow 90, (culaus de cliente © video em varion eutiylo de conservagao ¢ abandono), localizudo om parquo chanado "Jbirapuora", palavra tupi- guarani esta, cujo propdsito é render honenagem a populagao indigena exterminada. Tal parque, outrora situado na periferia da cidade, hi decénios foi engolido por ela no seu crescimento canceroso planfcies e serras adentro, é atualmente facil- mente acess{vel & massa de milhares de visitantes, (cobretudo jovens), quo didria- Rente peranbulan pela Bional, individualente ou en grupos condusides por moni to- Fes. 0 clima & de festa: os visitantes energom da poluisio vieual, sonora e at~ mosférica, para tonar banho catartico de cores vivas, sone musicais ¢ ambiente impo. As paredes, as colunas e as escadarias do edificio formam conjunto branco, bem iluminado, e acolhedor, o qual evita de ser labirfntico a despeito do seu ta- manho: quilometros de corredores. Ao percorrer os corredores, 0 visitante 4 segue caminos tragados, embora tais caminhos permitam desvios. Sao caminhos "conotativos": os passos do visitan- te os interpretam. H4 tres "nicleos" levemente tendticos, © varias "exposipses especiais" que podem ser visitadas individualmente. E h4 "eventos paralelos", sobretudo musicais, de danga e conferencias, que desviam a atengao do visitante dos caminhos tragados. © tamanho da Bienal faz com que o vieitante nao possa esgotar o repertéric proposto, mesmo se a visitar repetidas vezes. ora, tal ri- queza repertorial nao resulta em céos, porque é 0 proprio visitante quem organi- za, por seus passos, a sua experiéncia em informagao significativa. A Bienal & jogo cujae regras sao ofntese entre a intenpdo dos seus organizadores e a snteo-) gao do visitante. Tal s{ntese de intonsdes & posefvel, porque a Bional tem tena: "0 Homem @ a Vida" insignificante. Mas, dada a riqueza do repertério, e a elasticidade dos cami- Por cert © tema 6 t@o vaste a ponto de englobar tudo, e tornar-co nhos, o tema funciona: o visitante sai da Bienal com a vaga impressao de ter aprendido algo sobre o que soja o homem © sua vida nesta S.Paulo desumana, @ neste fim de século desiludido. E cada visitante ter& aprendido outro aspecto segundo a sua caminhada, © toma funciona pois, nao enquanto rétulo, mas en quanto flecha que indica a diregao a ser tomada. A grande maioria dos objetos expostes é telas cobertas de tinta, embora existam também objetos tridimensionais imdveis e méveis, © algunas imagens "i+ materiais", (eletromagnéticas), sobretudo na parte chamada "Videoarte" e "Entre Ciéncia e FicgZo", As telas cobertas de tinta sao "arte contemporanea", ou re~ trospectivas sobre arte recentemente passada. Ora: telas cobertas de tinta, se~ jam eflas contemporaneas ou recentes, sao produtos de técnica ultrapassada, (ar- tesanal), espocie de folclore, como o sao as mascaras bolivianas tanbém expos- tae. Toto 6 0 problena fundamental daa exposigies de pintura que pululan no eae mundo: mostram objetos tScnicamonte ultrapassados, sobretudo quando se querem de vanguarda. A Bienal escapa a tal armadilha: nao sao as telas em si que interessam ao visitante, mas o que interessa é 0 contexto no qual 520 inseridas. A propria obsoléncia da pintura enquanto técnica passa a ser informativa rola~ tYvamente ao tema "O Homem e a Vida". Aw novas imagens iucluldas na exposigio, (ointéiicus, computadas, video, hologramas), cao pobres se conparadas con as expostas nos espapos especializados nos Estados Unidos ou na Europa. Mas isto, longe de ser defeito, 3 vantagem. por- que a fungdo de tais imagens nao 6 a de oferecer ao visitante visto da cena esté- tica energente, mas visao do diffcil relacionamento atual entre imagens tradicio- nais © novas. © choque entre o refinamento das técnicas superadas e o prinitivis- mo das técnicas novas se torna ainda mais violento. Ao passar o visitante do inde cleo contempbraneo" pana “entre ciéncia e ficrao", vivenciard ele a anliguidade da passagem da atualidade para o futuro iminente e inevitdvel. Porque a pienal estabeleceu tensao dialéctica entre aubos. Sem divid 2 0 visitante, depois de ter deixado a Bienal, pode analizar a sua exporiencia intelectualmente. Pode afirmar ter sido ele exposto a mensagens pictéricas, (e musicais e verbais), provindas de nunerosos paizes incongruentes entre ci, (sobretudo de paizes latino-americanos e "desenvolvidos"), mensagens os- tas que se entrecruzam, ¢ que sho aitfcilmente réduz{veis ao denominador comum final do séoulo 20". E tal anSliae intelectual pode leva-lo a acreditar na de- coaposigie desesporada da culture hictérica, © ua aneaga de izrupezo de barhérie tecnicalizada, Nas tal analize estar& en contradicsa0 com a eua experiéneia con= crete, que & de alegria festiva, 0 visitante cai da Bienall com a sensagao de que esté surgindo um novo tipo de festividade: a que festeja, nao objetos e seus auto- res, mas 0 relacionamento entre objetos, e que foi ele préprio quem colaboron no estabelecimento de tal relacionamento. A Bienal foi organizada por equipe liderada por duas pessoas: Roberto Muylaert e Sheila Leirner. 0 primeiro é emprezario, a cegunda é critica de artes Este dado & importante para quem quizer criticar o evento. Se agvonsideragses acina propostas s&o corretas, a Bienal ela propria, e nao 2s objetos que a compen concentra 0 interesse, Ora, a equipe lifderada por enprozario e erftica de arte _Produsiu o espapo-tempo a ser criticads. Bela o “autor! de tal obra aberta. £ contra a sua intengio que a intengao do visitante se choca para eriar a infor- maga "0 Homen ¢ a Vida". Se se trata, em tal inteng&o, de s{ntese entre monta- lidade empresarial, (formal, eétrutural, funcional), e mentalidade erftica, (valo~ rativa, temdtica, hunanista), isto caracter{stico da nova criatividade emergente. Por certo: nao ha necessdriamente contradicgao entre tais duas mentalidaden, e a famosa dicotomia "tecndorata-humanista” @ brutalmente simplificadora. wo entanto: Roberto Muylaert e Sheila Leirner, ao colaborarom om ongajamento criativo, se supe- raran mutuanente para nos fornecerom um modelo da criatividade futura. A Gpoca da criatividade individual, (do génio que produz em isolanento espiéndide grazas a sua intuigso mistoriosa), estd por encerrar-ce. Dada a nasca sobrehunana de informagoes ao nosso dispor, informapdes estas que devem sor proces- sadas para resuitaren en informaZo nova, toda eriaglo futura deve nececsdrianente ser obra de equipe munida de aparelhos. 0s laboratorion cient{ficos © 04 work- shops art{sticos sao disto exemplos. Mas a Bienal, considerada onquanto criagao, se da em nfvel diferente. i ela obra composta de obras, e o material com o qual trabalbam og gous autores & vompouto de autoren ue taiu obras. ‘Trutu-ue, na lox nal, de meta-obra produsida por meta-autores. Um paralelo biologico pode ilustrar tal meta-nfvel: o organisno enquanto individuo composto de Srgaoe exige critérios diferentes doo que analizam cada érgio individual, porque mio © mais a fungdo do orgao, mas 0 relacionamente entre eles, que interessa. Simplificando, eis o problema encarado pela equipe criadora da 18a. Bienal de S.Paulo: escolher obras individuais, englobé-las em contexto relacional, e fa~ er com que tal contexto informe o visitante de forma conotativa sobre "0 Homem @ a Vida". © contexto relacional 6 0 ponto central do problema. A escolha de obras passa a ser o input do contexto, © a informagao do visitante passa a cor Seu output, Ora, into implica o Snguto que chanel, na introdusiio a este ensaio, 0 Angulo nove. A escolha das obras nio se faz mais, como em exposigdes tradici | enais, segundo critérios adequados & prépria obra e seu autor, mas segundo cri- térios adequados ao contexto relacional a ser produzido. Ea informagac a ser ) Proposta ao visitante nio mais emanaré das obras, mas do relacionamento estabele- sido entre clas. A atenao se desvia da "fonte", do “enissor", para o "canal", © Nmediun, Je que "the mediun is the mecaage". Nco se trata mais, como no pas= ado, de oferecer ao artista espago para publicar sua mensagen, nem ao receptor oportunidade para absorver tal mensagen. Trata-se agora de criar um espago-tompo dentro do qual o artista § abcorvido, para permitir ao receptor elaborar aua pro- pria monsagen. 4 estrutura tradicionalsente discursiva, (o artista fala, o re ceptor escuta), cede lugar a estrutura dialogica, (os artistas falam ntre si | para darem a palavra final ac visitante). Criar tal espago-tempo dialégico 6 J problema de toda criatividade futura. Nao resta aivida: tal Angulo nove se choca contra valores estabelecidos- O artista escolhide para fazer parte do contexto motamindividual se sentir mani pulado, Jd que do seu ponto de vista, do“Angulo cldssico, a mensagem @a sua. E © receptor se sentira ultrajado, ja que sua atitude consumidora de mensagens © poo- ta em cheque pelo desaffo de produzir, ele prdéprio, a mensagem a ser recebida. No entanto: 0 clima festivo que cerca a ienal ameriza o choque. 0 artista e 0 visi- tante se sentem convidados a participarem de festa, durante a qual ambos cao ele- vados a novo nfvel de cooperagio criativas Ora, criar tal espago-tempo festive que seja meta-nivel para didlogo en~ tre enissor e receptor de mensagem art{stica é tarefa quase imposs{vel em socie= dades ditas "desenvolvidas", Em tais sociedades, 0s emissores sao por denais ene capsulados, ¢ os receptores por demais saciados. 0 lugar e o tempo pura criar tal aventura &, idealmente, S.Paulo dos anos 80. Porque 6 suficientemente inte= grado na sua gpoca para poder servir de foco do didlogo, ¢ suficientemonte zar- ginal com relapio aos centros geogr4ficos produtores de infornagio para poder servir de meta-plataforma, §. Paulo dos anos 80 pode pois servir de tranpolim para saltarmos do nivel dos objetos artisticos para o n{vel da criatividade ar- tistica por didlogo intersubjetivo. Wer-se aproveitado da oportunidade que $.Paulo dos anos 80 oferece nao iminui om nada o mérito criador da equipe organizadora do evento. pelo contra~ rio: Sheila Leirnor e Roberto Muylaert couberam transformar tal oportunidade em modelo para outros espacos-tenpos a serem futuranente abertos. E isto sobretudo en dois sentidos. 0 gigantiono que caracteriza S.Paulo, (e 0 Brasil em geral), foi traneformado, criativamente, de quantidade em qualidade, E a festividade latente na cultura brasileira foi transformada, criativamente, de alienagao on participagao ativa. Mais de setecentos artistas ¢ praticanente incontdveis obras participan do evento. Sob os critérios cldssicos, adequados as obras, tal quantidade pa- rece fruto de indiscriminagao irresponsavel. i impensavel que om dois anos, (no perfodo entre as Bienais), setecentos autores tenham contribuido para a cri- pao de algo novo. Sob os critérios novos, no entanto, adequados ao relaciona- mento entre as obras, a quantidade se justifica. Porque nao torna mais amplo torna-o mais denso. E tal ealto de quantidade em qualidade, © campo relaciona tal adensamento da estrutura gragas ao aumento do repertorio, caracteriza a nova mentalidade, quo chamarei de "informatica" por falta de termo mais adequado. A nova festividade que se manifesta na Bienal merece ser chamada "1vidica", no sentido de tratar-se de jogo proposto pela equipe criadora, jogo este no qual participa 0 visitante pelo seu perambular por entre as pegas do jogo. com efei~ to: a0 andar pelo espago-tempo da Bien, o visitante esté dando lances. #0 cli ma existencial que o pervade é compardvel ao que caracteriza jogos funcional~ mente complexos, o xadrez por exemplo. Ora, tal clima 1idico festive, tao conhe- cido na cultura brasileira por fenomenos cono 0 sao o carnaval e o futebol, mas desta vez elevado ao nivel da conciéncia critica, se assemBtha muito ac clima que os antigos chanavam de "sacralidade". De maneira que o argumento que con~ para a 18a. Bienal de S.Paulo com a acrépole de Atenas pode aqui ser retomado. Sheila Leirner ¢ Roberto Muylaert, com sua equipe, conseguiram recortar, do eo- pago profane de S.Paulo, ¢ do tempo profano do séeuto 20, um temenos, um espago- tempo cacro, enbora, por corto, en n{vel de conciencia inteiramente diferente da ateniense. H neste sentido sobretudo que o atual evento em S.Paulo pode servir de modelo para os observadores er{ticamente desconfiados, mas curiosamente fas~ cinados do dito “Primeiro mundot}. Algo de novo esté acontecendo 1% na pen{nsula sulamericana longfnqua, e o novo 6, nao teenicamente, mas existencialmente novo. A Bienal ndo nos mostra novas técnicas para fazermos arte, mas mostra-nos nova atitude com relagao a técnicas"BaX8B? E isto nao tedrica-, mas concretamente. Devemos estudar o evento com toda atengad erftica, nao apenas porque o evento o merece, mae sobretudo porque necessitamos de modelos, se quizermos superar nossa crise. A 18a. Bienal & um dos raros exemplos para a inversdo do fluxo de infor- nagoes que se dirige do norte rumo ao sul: € ela fonte de informapdo que flui do sul runo ao norte. Tomemos nota disto.

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