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Biblioteca

pública:
do século XIX
para o XXI
Luís Milanesi
dossiê Computação em nuvem

RESUMO ABSTRACT

As bibliotecas públicas brasileiras estão Brazilian public libraries are poised be-
entre dois tempos: o seu próprio modelo, tween two eras: their own model, which
que remete ao século XIX, e a necessidade dates back to the 19th century, and the
de trazê-las para o século XXI. Enquanto o need to bring them up to the 21st century.
primeiro tempo deve ser superado, o se- While the first era is likely to be overcome,
gundo ainda deverá ser alcançado, como the latter is yet to be experienced, as it is a
desafio técnico e político-social. Enquanto social, political and technical challenge.
o primeiro oferece recursos conhecidos While the first offers accessible and known
e acessíveis, o segundo depende de de- resources, the latter hinges on decisions
cisões que ultrapassam o campo técnico. which go beyond technical competence.
As bases desse esboço ligam-se ao uso da The bases of this plan are linked to the use
tecnologia para preservar e fortalecer va- of technology to preserve and strengthen
lores da informação pública: democracia, values of public information: democracy,
diversidade e informação necessária e de diversity, and necessary and quality infor-
qualidade como base do desenvolvimen- mation as a foundation for the material and
to material e imaterial da nação. immaterial development of the country.

Palavras-chave: biblioteca pública, infor- Keywords: public library, information,


mação, democracia. democracy.
N
CENA BRASILEIRA

a praça central de quatro materiais que, em alguns formatos, LUÍS MILANESI


é professor titular
uma pequena cida- constituíram os acervos – de Nínive à Bi- da Escola de
de no inter ior do blioteca do Congresso em Washington ou à Comunicações
e Artes (ECA)
Brasil se pode ob- pequena biblioteca pública acima referida. da USP e autor de
servar, simultanea- Nesse longo período um invento, a im- Biblioteca (Ateliê).
mente, ações que prensa móvel de Gutenberg, criou, no século
re­p resent a m dois XV, um marco divisório na civilização huma-
tempos históricos: os séculos XIX e XXI. De na: a imprensa. Ela permitiu o revolucionário
um lado, a Biblioteca Pública Municipal e, barateamento dos livros, que substituíram os
num banco do jardim, um garoto com o seu códices, caríssimos, pois elaborados um a
tablet. Distância física: 15 metros; distância um, que em bibliotecas podiam permanecer
temporal: um século. acorrentados. O aumento da produção edi-
A prefeitura local é a responsável pelo torial propiciou a formação e multiplicação
acesso livre à Internet e também pela bibliote- das bibliotecas. Elas cresceram em número e
ca. Ela, nos últimos tempos, progressivamen- proliferaram pelo planeta, tendo o seu epicen-
te, perdeu seu público e, neste ano de 2013, tro no Velho Mundo. Estavam presentes em
está quase vazia. A sua conformação e a sua instituições de estudos, estabelecimentos reli-
organização espacial situam-se no padrão que giosos e, posteriormente, nas cidades por ini-
pouco mudou desde 1811, quando foi criada ciativa das administrações locais. A máxima
em Salvador a primeira biblioteca pública no expansão em quantidade e qualidade ocorreu
Brasil. Basicamente o cenário é o mesmo: no século XX nos Estados Unidos, onde, num
estantes com livros, mesas e, quase sempre, período, prevaleceu a ideia de que “abrir uma
uma divisória entre os livros e os seus leitores. biblioteca” seria igual a “fechar uma cadeia”.
A cena descrita é uma síntese metafórica
do corte profundo que separa a cultura em O CENÁRIO
dois tempos. O primeiro mostra milhares de PRÉ-INTERNET
anos de registro do pensamento e da sensi-
bilidade humanos em suportes físicos: table- A velocidade da informação esteve, por
tes de argila, papiro, pergaminho e papel, os séculos, atrelada à velocidade de locomoção

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dos seres humanos. Assim, se um estudio- sultado em que a criação e a manutenção


so da Idade Média tivesse conhecimento da de bibliotecas úteis são tarefas inviáveis. Os
existência de um manuscrito pelo qual se in- eventuais leitores espalhados por milhares de
teressasse, teria de se locomover durante dias municípios brasileiros deverão contentar-se
para chegar a ele. Com a proliferação das com o que existe na biblioteca municipal e,
obras impressas e das bibliotecas, tornou-se raramente, encontrar o que procuram.
mais fácil a obtenção do desejado – ainda que Os acervos impróprios – aqueles que não
fosse necessário saber em qual biblioteca en- se relacionam com o público ao qual se des-
contrar o texto procurado. A partir do sécu- tinam – foram criados em décadas, de forma
lo XX, foram criadas várias estratégias para fortuita, sem previsão, sem planejamento.
diminuir o tempo entre a necessidade mani- Como raramente existiram no orçamento dos
festa de informação e o atendimento. Como municípios recursos para compra de livros e
o tempo tem um custo, a disseminação de política continuada para tal, os impressos fo-
informação tornou-se um fenômeno econô- ram juntados aleatoriamente, ora provenien-
mico no qual a relação custo/benefício ocor- tes de doações governamentais desnecessá-
re pela precisão e velocidade do atendimento. rias, ora de faxinas domésticas. As doações
estaduais e federais, provavelmente, foram
Acervos precários as maiores provedoras de livros. Na área fe-
deral, o precursor foi o Instituto Nacional do
A produção bibliográfica, progressiva- Livro, criado em 1937 no Estado Novo. O
mente maior, não garantiu a existência de INL implantou uma prática que foi a síntese
bibliotecas de acesso público com acervos da política governamental para as bibliote-
satisfatórios. Nessas bibliotecas, a preca- cas: doação ocasional de livros. Os pacotes
riedade do acervo é crônica. O público tem com os mesmos livros eram remetidos para
interesse diversificado e não há correspon- bibliotecas diferentes e destinadas a públicos
dência entre esse desejo e as obras disponí- específicos. Nunca houve a preocupação de
veis. Quanto maior for a heterogeneidade do formar acervos básicos essenciais. O resul-
público, maior será a dificuldade de forma- tado disso foi a formação e a ampliação de
ção de acervo. As cidades, mesmo as meno- acervos de pouco interesse.
res, mostram uma diversidade sociocultural Essa precariedade de acervo foi um dos
complexa. Nelas habitam classes sociais fatores que levaram ao esvaziamento das
diferentes, grupos com escolaridade diver- bibliotecas municipais. Com a adaptação
sa, interesses múltiplos que se multiplicam delas, no período pré-Internet, à demanda
pelas faixas etárias. A possibilidade que tem estudantil e suas pesquisas, o acervo utili-
uma biblioteca municipal de oferecer acervo zável foi reduzido a poucos livros, quando
que atenda a interesses de adultos e crianças, não a uma enciclopédia. Esse rumo tomado
doutores, alfabetizados e analfabetos, operá- excluiu a ideia do acervo amplo para atender
rios, donas de casa, adolescentes e de outras a uma demanda heterogênea. Conformou-se
categorias é, estatisticamente, diminuta. à necessidade visível de atender ao público
Os dados do IBGE mostram que 73% dos real: crianças e adolescentes que deveriam,
municípios brasileiros têm até 20 mil habi- obrigatoriamente, fazer “pesquisa”. Ressalta-
tantes. Portanto, cerca de 4.050 cidades com -se que as bibliotecas públicas foram procu-
prefeituras, escolas e delegacias de polícia, radas pelos escolares em face da inexistên-
têm população urbana inferior a 15 mil ha- cia de bibliotecas nas escolas. As bibliotecas
bitantes agrupados em segmentos com perfis municipais, portanto, para que fossem reco-
diferentes. A esse quadro acrescentam-se os nhecidas como úteis, só deveriam manter o
recursos mínimos do orçamento municipal acervo necessário para atender aos escolares.
para a educação/cultura e se obtém um re- Dessa situação resultou o cenário de muitos

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alunos, crianças e adolescentes: poucos e mil títulos que, multiplicado por 5.570 muni-
desatualizados livros e um número mínimo cípios, daria mais de 27 milhões de obras. Se
de adultos. Com a Internet disseminou-se a esse número de obras fosse adquirido, resul-
prática de copia-e-cola à guisa de pesquisa, taria em despesa que jamais seria coberta pe-
e isso motivou a atual e crescente debandada los governos municipais, estaduais e federal.
de escolares das bibliotecas. No entanto, todos os municípios brasileiros
teriam em suas bibliotecas Dom Casmurro
A organização local e outras obras essenciais. Como não basta
dispor de acervos, mesmo que sejam funda-
Acervos precários e desorganização qua- mentais, mas também ter profissionais aptos
se sempre estiveram juntos. As bibliotecas a torná-los úteis para a população, os gastos
públicas não dispunham e não dispõem de públicos iriam muito além da aquisição. Na
competência profissional para organizá-las. perspectiva atual, essa demanda e a exiguida-
As políticas públicas de cultura, setor onde de de recursos estariam muito além das pos-
quase sempre se alojam as bibliotecas, nunca síveis respostas dos órgãos governamentais.
deram prioridade à contratação de recursos Além desses números inibidores há ou-
humanos próprios à administração de biblio- tro componente impreciso e complexo: como
tecas públicas. Além disso, os salários pagos cada municipalidade desenha a sua política
pelas prefeituras são insuficientes para atrair cultural, não há como garantir que ela priorize
profissionais formados em instituições sedia- a biblioteca pública. De um modo geral, os
das em capitais ou cidades de grande porte. dirigentes municipais têm a expectativa de
Além disso, há escassez de competência pro- que o estado ou a União, de preferência am-
fissional especificamente voltada à informa- bos, encontrem as soluções para garantir a
ção pública. As instituições de ensino supe- existência de boas bibliotecas em cada cida-
rior que formam bibliotecários raramente se de. A maioria vê a biblioteca como um aces-
direcionam para esse campo – que vai muito sório prescindível – e o quadro atual mostra
além das habilidades técnicas convencionais. isso – em face de outras demandas muito
Essa falta foi um dos fatores determinantes mais compreensíveis para os prefeitos, verea-
da precariedade dos serviços oferecidos pe- dores e até mesmo pela população. Essa visão
las bibliotecas, inclusive a disponibilidade de construída numa sociedade com quatrocentos
acervos apropriados. E não há perspectiva, anos sem livros dificilmente será alterada nas
que não seja em longo prazo, de formar pro- próximas gestões municipais. Esperar que em
fissionais competentes para substituir o qua- cada cidade brasileira, isoladamente, possa
dro funcional provisório atual. Há, portanto, haver um movimento em busca da cultura/in-
um entrelaçamento de situações que leva o formação como alavancas do desenvolvimen-
Brasil a um descompasso com o tempo. O es- to leva à crença numa inflexão da trajetória
forço de superação a ser feito exige políticas desses quatro séculos. As mudanças poderão
culturais que transportem as bibliotecas do vir, mas não mediante o uso das ferramentas
século XIX para os centros de informação e tradicionais das bibliotecas. A biblioteca do
cultura como uma exigência do século XXI. século XXI pede alternativas.
Apesar de tentativas já feitas, é difícil
estabelecer qual seria o número mínimo de A ERA DO PAPEL
obras para atender a uma população de 10 mil E O INÍCIO DA
habitantes. Por “número mínimo” entende-se DIGITALIZAÇÃO
o conjunto de obras que possa cobrir os cam-
pos do conhecimento humano com ênfase nas O crescimento acelerado de publicações
áreas de maior interesse para o Brasil. Essa foi um dos fatores que impuseram limites às
coleção básica teria o número mínimo de 5 bibliotecas: não era possível manter coleções

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em permanente expansão sem a ocorrência dos suportes físicos; a documentação criou


de prejuízos em relação ao acesso. Além dis- novas ferramentas para organizar o “caos bi-
so, poucos centros mundiais poderiam sus- bliográfico” e se valeu das microformas para
tentar financeiramente a atualização de suas multiplicar acervos em espaços mais reduzi-
bibliotecas. Esse impasse forçou a criação dos. A digitalização trouxe a possibilidade
de novos caminhos para tornar acessível a da redução física de acervos e o desafio de
informação procurada. organizar volumes progressivamente maio-
Dos esforços, principalmente do belga res de informação para torná-la utilizável.
Paulo Otlet (1868-1944), surgiu a documen- Neste início do século XXI, a perspectiva é
tação que, sendo uma evolução da bibliote- clara: os suportes físicos são superados, sen-
conomia, mostrou-se como um novo campo. do já criados no ambiente digital os textos,
Ainda, em 1966, quando foi criada a Escola as imagens e os sons. No âmbito do livro
de Comunicações Culturais, depois Comu- impresso em papel pode ser prognosticada a
nicações e Artes (ECA), a biblioteconomia digitalização de tudo que o homem produziu
e a documentação não cabiam num mesmo desde Gutenberg, agora armazenado na “nu-
departamento. Por isso foram criados dois. vem”. Até mesmo para preservar a memória
No ano seguinte, o bom senso reuniu-os num da produção humana, o objeto livro perma-
único departamento, o de Biblioteconomia e necerá como testemunho de um tempo, pre-
Documentação, como se fossem dois campos servado em espaços com luz, temperatura e
distintos. umidade controladas. No entanto, para uso,
Nesse início, a biblioteconomia estava progressivamente os livros deixam de ser
centrada na Classificação Decimal de Dewey objetos físicos e tornam-se digitais, armaze-
(criada em 1876) e no Anglo-American Ca- nados em computadores. Com isso abrem-se
taloguing Rules (primeira edição, 1967). A novas possibilidades de acesso e uso. A par-
documentação trouxe para a linha de fren- tir de um determinado momento, os suportes
te a Classificação Decimal Universal, deli- físicos deixarão de existir e a informação,
neada no final do século XIX, e três novos a comunicação e a criatividade humanas se
elementos que tornavam as seculares fichas expressarão por meio de recursos digitais.
catalográficas obsoletas: o microfilme, a
microficha e, logo a seguir, a utilização do As bibliotecas na nuvem
computador como ferramenta a serviço da
informação científica. O “como organizar” exige que se estabe-
A digitalização como fenômeno tecnoló- leçam regras, normas. Quanto mais diversi-
gico é da segunda metade do século XX. Ra- ficados e numerosos os objetos organizáveis,
pidamente evoluiu até se tornar equipamento mais complexas e extensas são as instruções
de uso pessoal e doméstico, permitindo con- para mantê-los na ordem desejada. Em sécu-
verter em arquivos digitais textos, imagens e los passados o isolamento entre as raras bi-
sons. Essa tecnologia concretizou o que era bliotecas levou a uma diversidade de normas.
o objetivo dos pioneiros documentalistas: di- Com a proliferação delas e o encurtamento
minuir grandes acervos de tal modo que o da distância entre uma e outra, a tendência
espaço físico deixasse de ser um problema re- foi a adoção de regras prontas já utilizadas
levante. Assim, bibliotecas gigantescas pude- anteriormente. Essa uniformização de regras
ram ser transferidas – de forma organizada – não só facilitava o trabalho dos bibliotecários
para dispositivos facilmente manipuláveis. como, mais tarde, mostrou-se imprescindí-
O surgimento da digitalização abriu vel para as atividades em cooperação. Se, em
um novo campo e novas perspectivas para séculos, a organização dos acervos marcou
a área da informação. A biblioteconomia divisões entre países e grupos, cada um con-
tradicional ficou circunscrita à organização siderando as suas regras e práticas as melho-

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res, o mesmo ocorre neste momento inicial disponível somente depois de um século da
de criação de bibliotecas digitais. Tais divi- publicação. Excluídos os clássicos, que são
sões, muitas vezes em conflitos no cenário de permanentes, todo o acervo de uma biblioteca
congressos internacionais, caracterizaram-se pública, fortemente centrada na contempora-
como barreiras à cooperação entre as partes. neidade, estaria sujeito à referida lei. Portan-
Se essas contendas pré-Internet duravam dé- to, a digitalização de um texto, som ou vídeo
cadas e eram vistas com clareza, na situação durante décadas só poderá ser efetuada com a
presente, na qual o processo produtivo com as explícita autorização do detentor dos direitos
ferramentas digitais é muito mais acelerado, autorais. Apesar das discussões que isso moti-
a percepção do desenvolvimento de produtos, va, não há muito a fazer, pois a lei é clara. No
suas similaridades e conflitos, exige atenção entanto, isso não encerra o assunto e não re-
redobrada daqueles que se dedicam ao es- solve os problemas. Ao contrário, abre outros.
tudo e à prática com bibliotecas na nuvem. A digitalização das obras de uma biblio-
Nos últimos dez anos, excluindo-se as teca de acesso público não tem o objetivo pri-
iniciativas de interesse claramente comercial meiro de preservá-las. E, progressivamente,
que atuam dentro das raias próprias da con- o acervo digitalizado suplantará em número
corrência, ações de universidades e de gran- as obras em papel e outros materiais. Nas
des bibliotecas apresentam e apregoam as bibliotecas tradicionais, o que se busca é a
qualidades de suas soluções. E, assim, uma circulação do acervo. O público tanto poderá
série de produtos é apresentada e mostrada consultá-lo no local ou fazer empréstimo de
como as melhores respostas para garantir ao obras. Na legislação atual isso não afeta ne-
usuário a busca precisa, rápida e segura. Essa nhum dispositivo da Lei do Direito Autoral.
proliferação tende a diminuir, porque falar a No entanto, se uma obra contemporânea for
mesma língua custa menos. Por isso a ten- digitalizada e ficar à disposição dos leitores,
dência é a da uniformização das normas, que isso poderá significar o acesso universal a
conduzirá à desejável associação entre plata- ela, afetando um elo da cadeia editorial: a
formas. O trabalho colaborativo será condi- distribuição.
ção imprescindível para que, na era digital, Essa e outras questões surgirão quando
não se tenha um novo “caos bibliográfico”. da efetiva implantação de uma biblioteca pú-
O fundamental a ser alcançado é a facili- blica digital. A cada nova situação de diver-
dade de acesso, permitindo a qualquer cidadão gência entre as partes interessadas na cadeia
encontrar o que deseja com precisão e rapidez. informativa, os especialistas na legislação do
direito do autor serão chamados.
OS ÓBICES É provável que a legislação atual, com as
JURÍDICOS mudanças ocorridas no âmbito da Internet,
seja alterada. Todos os esforços serão dire-
Quando são citadas as vantagens de aces- cionados para práticas que facilitem o acesso
so a bibliotecas digitais, de imediato, como público à informação.
entrave, é mencionada a Lei 9.610, de 1998,
conhecida como a Lei do Direito Autoral. POLÍTICAS DE LEITURA,
A velocidade das mudanças tecnológicas POLÍTICAS
tem sido maior do que a capacidade dos le- DE INFORMAÇÃO:
gisladores em aprovar leis e normas que se DIREITO DO CIDADÃO
aplicam a elas.
O domínio público de uma obra ocorre Os processos tecnológicos para a criação
depois de setenta anos da morte do autor. de uma biblioteca pública digital são conhe-
Esse é um princípio quase universal, signi- cidos e aplicáveis e, certamente, são menos
ficando que a maior parte das obras estará custosos que a biblioteca convencional. As

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políticas culturais, no Brasil, na prática nun- para bibliotecas públicas. A mais destacada
ca deram prioridade às bibliotecas públicas foi construída na Colômbia, a Lista Básica
e ao acesso à informação. O resultado desse de Libros para Bibliotecas Publicas, por ini-
descaso de décadas é o atual panorama de bi- ciativa e responsabilidade da Universidad de
bliotecas vistas como repartições municipais Antioquia, com 3.676 obras listadas, inclusi-
de pouco e decrescente uso. Elas, nominal- ve infantojuvenis. Essa e outras listas de obra
mente, existem em quase todos os municípios são úteis não apenas para formar acervos bá-
brasileiros. No entanto, a maioria delas não sicos de bibliotecas públicas, mas igualmente
se vincula às atividades culturais e nem mes- para a aferição da qualidade dos acervos já
mo à informação. A tendência é que se extin- existentes.
gam sem que haja decisões locais em busca A construção dessas listas é tarefa com-
da recriação de seu papel. Um dos motivos plexa, pois abarca todos os campos do co-
disso, talvez o principal, é a transferência da nhecimento e cada obra é escolhida a partir
tarefa de pesquisar para os sites de busca. de várias possibilidades. Para a formação do
A pergunta é elementar: o que substituirá as acervo básico brasileiro a ser digitalizado,
bibliotecas de livros e revistas impressos? Se prioritariamente, deverão ser consultados
estes podem ser digitalizados e arquivados, especialistas. Assim, para temas como, por
permanecendo íntegros nos computadores, a exemplo, “psicanálise”, “economia agrícola”,
resposta aponta para a nuvem. “preservação ambiental”, somente especialis-
Considerando-se apenas o acervo, a alter- tas, e sempre mais de um para cada tema, po-
nativa é a criação da biblioteca pública digital derão dizer quais são as obras essenciais. A
de livre e fácil acesso. Inclusive porque a nu- relação de assuntos dada pela Classificação
vem, sendo mais completa, é menos onerosa. Decimal de Dewey ou pela Classificação De-
cimal Universal é ampla e, necessariamente,
Criação da biblioteca atualizada anualmente. Isso pelo surgimen-
pública básica to não só de obras novas sobre assuntos já
existentes, mas também de obras sobre no-
A primeira pergunta que, inevitavel- vos assuntos. Mesmo aplicando o máximo
mente, é feita quando se discute a criação rigor, essas listas de prioridades, renováveis
de uma biblioteca/informação pública é re- periodicamente, serão incompletas e falhas.
lativa ao acervo: o que deve ser digitalizado Mesmo assim, imprescindíveis.
e organizado na nuvem, prioritariamente? Parte substancial da “biblioteca pública
Os critérios para a formação do acervo de digital brasileira” pertencerá ao campo da
uma biblioteca pública municipal, pelo me- literatura. De imediato, não será possível
nos teoricamente, são: 1) obras consideradas integrar no acervo digital todas as obras de
fundamentais pela importância artística, pelo todos os autores. O critério deverá ser dos
seu significado histórico, pelo conteúdo in- especialistas, que determinarão a ordem de
formativo; 2) textos que atendam a demandas digitalização. Além da escolha das obras, é
locais. Como foi visto, a formação de acervos imprescindível que seja indicada a edição
das bibliotecas públicas brasileiras raramen- que atenda aos objetivos de um acervo pú-
te segue esses determinantes, uma vez que blico de uso geral. Assim, entre a primeira
elas dependem de doações circunstanciais e edição de Dom Casmurro, de Machado de
eventuais aquisições sem critérios claros. Na Assis, que interessa aos especialistas, e uma
seleção de obras de um acervo digitalizado edição contemporânea, com a ortografia
deverá prevalecer o critério de qualidade de- atualizada, a opção deverá ser pela última.
terminado por especialistas. Além das obras mais representativas
São conhecidas algumas iniciativas vi- da história da literatura e do pensamento
sando estabelecer uma lista básica de textos brasileiros, também serão incluídos os re-

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presentantes da produção de outros países. da obra acima referida, como deverá ser o
As obras contemporâneas constarão da procedimento de acordo com a lei? A digi-
lista básica, e novos títulos serão seleciona- talização só poderá ser realizada mediante
dos anualmente. Por isso, há a necessidade termo formal – isso parece claro. Já os pro-
de uma nova tarefa: a curadoria de acervos. cedimentos para o “empréstimo” não são
Se isso ficava a critério de milhares de se- claros. Como será o acesso? Poderá ser feito
lecionadores de obras para as bibliotecas mediante a utilização de dispositivos como
municipais existentes, agora, havendo uma o tablet, que será usado no âmbito (físico)
única biblioteca digital, a formação do acer- da biblioteca? Ou o tablet será emprestado?
vo público ficará a critério de especialistas. Ou o leitor inscrito baixará o texto em seu
Não se pode determinar qual seria o ta- próprio dispositivo por um período de tem-
manho de um acervo essencial para o Brasil. po previamente determinado? Restará fazer a
Mas pode ser fixado por outros critérios um escolha possível e que essa seja a melhor para
número para o acervo inicial, entre quatro e a disseminação de informação. É provável
cinco mil títulos (entre impressos e audiovisu- que em poucos anos essas questões possam
ais), que será ampliado constantemente. Com parecer descabidas. No entanto, no âmbito
o desenvolvimento das práticas de coopera- da cultura jurídica vigente, essas mudanças
ção entre bibliotecas digitais, será possível exigirão novos procedimentos e, talvez, mu-
incluir outras bibliotecas digitais. Isso permi- danças na legislação.
tirá que o jovem citado no início deste texto O terceiro desafio é a organização da
tenha acesso, de sua pequena cidade, a quais- nuvem. Na situação atual, cada biblioteca
quer obras da grande biblioteca universal. municipal tem a sua própria organização.
Parte menor delas, de alguma forma, segue
Aquisição de as regras e procedimentos tradicionais da
obra digitalizada biblioteconomia. A maioria segue critérios
próprios e toscos. A biblioteca pública di-
Ao se fazer um paralelo entre a biblioteca gital terá a sua organização, provavelmente,
de papel, que por vários séculos foi o regis- seguindo padrões internacionais já estabe-
tro e a fonte do conhecimento humano, e as lecidos. Cada leitor, independente de sua
novas possibilidades tecnológicas, algumas localização geográfica, escolaridade ou ní-
ações deverão ser, mais do que adaptadas, vel socioeconômico, chegará ao que deseja
recriadas. familiarizando-se com as ferramentas de
A seleção, mesmo sendo complexa, não acesso e busca.
difere dos critérios de formação tradicional
do acervo. O segundo passo – a aquisição – já Formas de acesso
conduz a interrogações. Tratando-se de livro
impresso, no ato da aquisição que um muni- O acesso – eis a grande barreira para a
cípio faz de Grande Sertão: Veredas, está obra digitalizada no Brasil. Os números refe-
incluído no pagamento o valor referente aos rentes à porcentagem de brasileiros que têm
direitos autorais devido aos herdeiros de João acesso à Internet são imprecisos. No entanto,
Guimarães Rosa. E o livro pode ser lido na pela frequência a lan houses e serviços gra-
biblioteca ou retirado pelo leitor. A Lei do tuitos de acesso à Internet, pelo número de
Direito Autoral exige que se pague uma vez assinantes de provedores, pela venda de equi-
no ato da compra, mas a leitura está liberada pamentos, pelo aumento do volume de com-
para todos os leitores – até o fim físico da obra. pras pela Internet, pode-se avaliar que cerca
Na biblioteca digital os textos de domí- de 50% da população, de alguma forma, tem
nio público serão incorporados e acessados acesso à internet (http://tobeguarany.com/in-
sem nenhum óbice legal. Mas, tratando-se ternet_no_brasil.php). É provável que, desse

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número, a maioria seja de crianças e ado- mento da cultura de transparência na admi-


lescentes, a parte da população que aderiu nistração pública; V – desenvolvimento do
com mais facilidade e entusiasmo às novas controle social da administração pública”.
tecnologias de informação.
Para leitura de texto, o dispositivo mais E no artigo 9o detalha:
utilizado é o tablet. Ele permite a leitura
de livros, revistas e jornais, bem como ou- “O acesso a informações públicas será as-
vir música e ver vídeo de forma prática e segurado mediante: I – criação de serviço
confortável. Ele aparece em salas de aula, e de informações ao cidadão, nos órgãos e
cada vez mais como substituto de caderno de entidades do poder público, em local com
anotação. Funciona também como biblioteca condições apropriadas para: a) atender e
portátil, uma vez que pode arquivar centenas orientar o público quanto ao acesso a infor-
de livros. O barateamento progressivo desse mações; b) informar sobre a tramitação de
equipamento, fator de aumento das vendas, documentos nas suas respectivas unidades;
indica que os preços terão baixas mais acen- c) protocolizar documentos e requerimentos
tuadas. A Índia produz tablets e vende-os a de acesso a informações; e II – realização de
estudantes pelo preço médio de um livro bra- audiências ou consultas públicas, incentivo à
sileiro: R$ 40,00. participação popular ou a outras formas de
Esse quadro sugere que os planos de in- divulgação”.
cremento à leitura e difusão dos livros deve-
rão incluir recursos para dotar as bibliote- A partir dessas determinações e enten-
cas municipais de tablets. Elas, mesmo não dendo as bibliotecas municipais como servi-
dispondo de acervo físico, terão essas portas ços de informação à coletividade que serve,
pelas quais será possível ter acesso a todo o a lei abre novas perspectivas de sua atuação.
acervo digitalizado e disponível. Se isso, na atual condição dos acervos pú-
blicos, parece inviável, na amplitude que
Lei de Acesso os processos digitais possibilitam, a inclu-
à Informação são dessa ordem de serviço é não só viável,
mas necessária. E como a lei “dispõe sobre
Uma nova perspectiva para as bibliotecas os procedimentos a serem observados pela
municipais, entendidas como serviços de in- União, Estados, Distrito Federal e Municí-
formação pública, foi dada pela Lei Federal pios”, a biblioteca digital pública seria a por-
no 12.527, assinada em 18 de novembro de ta de entrada para o cidadão conhecer o que
2011. O seu artigo 3o deixa claros os obje- a lei lhe faculta.
tivos da lei:
NOVAS
“Os procedimentos previstos nesta Lei des- PERSPECTIVAS
tinam-se a assegurar o direito fundamental PARA A BIBLIOTECA
de acesso à informação e devem ser execu- PÚBLICA
tados em conformidade com os princípios
básicos da administração pública e com Para alguns, a biblioteca tradicional nun-
as seguintes diretrizes: I – observância da ca vai acabar (como se pensava a respeito do
publicidade como preceito geral e do sigilo nitrato de prata). Para outros, ela desapare-
como exceção; II – divulgação de informa- cerá como um órgão que perdeu a função e
ções de interesse público, independentemen- é eliminado; ou se extingue por atrofia. Da
te de solicitações; III – utilização de meios mesma forma que a fotografia não desapa-
de comunicação viabilizados pela tecnologia receu, mas se aperfeiçoou com os recursos
da informação; IV – fomento ao desenvolvi- digitais, com a biblioteca pública ocorrerá

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o mesmo. A sua função básica – prestar in- acervo, programando palestras, exposições,
formações necessárias à coletividade – per- exibição de filmes, recitais... Essa prática
manece e, com os novos recursos, poderá ser situa-se entre os três verbos que formam a
incrementada. trilogia essencial das bibliotecas públicas: in-
A digitalização do acervo permite a for- formar, discutir a informação e criar novas
mação e a organização únicas para todos os informações. Enquanto o primeiro verbo traz
municípios brasileiros. Mas isso não implica as informações demandadas ou propostas, o
a eliminação das características de cada ci- segundo as discute. Exemplo: exibição de
dade. Como nas bibliotecas tradicionais dos um filme com recursos digitais seguida de
municípios há um espaço reservado para a debate sobre ele. O terceiro verbo, “criar”,
inclusão de materiais referentes à cidade, o é o que dá o sentido maior das atividades
mesmo deverá ocorrer no plano digital. As- de informação e de ação cultural: encontrar
sim, cada cidade fará o levantamento dos respostas, descobrir soluções, enfim, criar
documentos que lhe são pertinentes: obras novas informações, que envolvam atividades
sobre o município e suas personalidades, de interesse social direto ou a elaboração de
coleções de revistas e jornais antigos, fo- discursos poéticos que se concretizam com
tos, depoimentos gravados, filmes e outros a música, textos, sons, corpo e voz. Nesse
materiais que formam a sua memória. Esses sentido, as bibliotecas públicas, reunindo e
documentos serão digitalizados e colocados disseminando as informações, criando pro-
à disposição de estudantes e outros interes- gramas que envolvem a pessoa participativa,
sados na história da cidade. estão juntando informação e cultura numa
Além das informações da memória dos relação dialética, seminal, para produzir,
municípios, deverá ser construído o conjunto num movimento contínuo, as respostas, sem-
das informações locais de interesse coletivo. pre provisórias, que a coletividade busca para
Como os órgãos públicos são regidos pelas a superação de seus limites.
mesmas leis e decretos, o que se aplica a um Nesse sentido, mesmo com toda tecno-
deles será aplicado aos demais com os ajustes logia e virtualidades, as bibliotecas munici-
necessários. Nesse âmbito, serão incluídas as pais continuarão como espaços físicos e com
várias faces da administração, notadamente horários delimitados. Isso ocorrerá porque
as que mais se vinculam aos interesses pú- elas serão os locais das atividades correspon-
blicos, como o orçamento municipal e sua dentes aos verbos “discutir” e “criar” – que
execução. Da mesma forma, aplica-se ao Le- pedem espaço e tempo –, ao contrário do “in-
gislativo a necessidade de transparência e de formar”, que prescinde deles. No entanto, a
acompanhamento de suas atividades. configuração física da biblioteca tradicional
Em síntese, a biblioteca digital brasileira será alterada substancialmente. Nela o espa-
caracteriza-se como um acervo básico orga- ço destinado ao acervo sempre foi o mais
nizado, atualizado permanentemente e ofe- amplo, quando não, praticamente, o único.
recido por entidade governamental a todos Como não há previsão de armazenamento
os municípios brasileiros. No entanto, per- físico de acervo, novos espaços deverão ser
manecem os desafios locais de informação propostos.
que abrangem um vasto arco – do que diz Há, ainda, uma possibilidade de ação que
respeito aos direitos básicos do cidadão à só as novas tecnologias permitem: a expan-
ação cultural. são de terminais para outros ambientes da
Exemplo disso é a programação cultural cidade. Por meio de painéis interativos po-
que as cidades realizam. Nos municípios derão ser levadas informações de interesse
maiores, com bibliotecas mais consolidadas público a quaisquer cidadãos em qualquer
como serviço público, elas, normalmente, lugar. Da mesma forma, os serviços da bi-
desenvolvem atividades além do acesso ao blioteca poderão ser oferecidos remotamen-

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dossiê Computação em nuvem

te a quaisquer instituições, notadamente as custo/benefício plenamente favorável às no-


de ensino. Durante uma aula, o acervo da vas possibilidades. Assim, o jovem da cena
biblioteca digital, principalmente de vídeos, inicial da biblioteca poderá frequentá-la para
poderá ser acessado. usufruir de suas atividades, e a biblioteca,
Novos estudos deverão ser desenvolvidos, aparentemente sem função, terá caminhos de
mas, com a disponibilidade da tecnologia já expansão, saindo de suas quatro paredes e se
existente, os benefícios tornarão a relação expandindo para toda a cidade.

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