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A EDUCAÇÃO ESCOLAR DO CAMPO À LUZ DO

MATERIALISMO HISTÓRICOi
José Luiz Zanellaii

1. Introdução

Os movimentos sociais do campo, no Brazil, na última década, vêem


empreendendo uma luta junto ao Estado para efetivar o que denominam de “educação
do campo”. O campo é tomado como um “lugar” específico, com necessidades
econômicas, sociais, políticas e culturais específicas. É a partir desse “lugar” particular
que os movimentos sociais reinvindicam uma “educação do campo”.
Com base no materialismo histórico e em defesa dos movimentos sociais
enquanto fração da classe que vive do trabalho, que luta na superação do modo de
produção capitalista, é que buscamos, neste texto, problematizariii o “campo” e a
“educação do campo”. Entendemos que a problematização coloca-se como uma
necessidade e uma contribuição para o debate em torno de qual escola pública interessa
a classe que vive do trabalho, tanto do campo quanto da cidade.
Sendo assim, indagamos? Qual a especificidade do campo em relação a
cidade? Campo e cidade não fariam parte de uma mesma realidade: o modo de produção
capitalista? Haveria uma “nova” organização do trabalho no campo capaz de ser a base
material para uma proposta alternativa de escola? Por que a denominação educação do
campo em vez de educação escolar? Na perspectiva do materialismo histórico, seria
possível uma educação escolar do campo?
Delimitaremos nossa relfexão, neste texto, para pontuar e apontar a
impossibilidade da defesa da “educação do campo” enquanto educação escolar no
método do materialimo histórico. Estruturamos o textoiv em três partes: na primeira,
faremos um breve diagnóstico do “projeto político e pedagógico da educação do
campo” com a finalidade de contextualizar a problemática a partir das reinvindicações
dos movimentos sociais; na segunda, apresentamos a tese do materialismo histórico com
ênfase ao método para mostrar como se coloca o campo em relação a cidade. E, na
última partev, abordaremos em que consiste o trabalho industrial como princípio
educativo da educação escolar para o materialismo histórico.

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Frisamos que as colocações aqui colocadas são uma primeira aproximação à
pesquisa sobre tais problemáticas. Trata-se, antes de tudo, de proceder em conformidade
com a “teoria da curvatura da vara”.

Assim como para se endereitar uma vara que se encontra torta não basta colocá-la na
posição correta mas, é necessário curvá-la do lado oposto, assim também, no embate
ideológico não basta enunciar a concepção correta para que os desvios sejam
corrigidos; é necessário abalar as certezas, desautorizar o senso comum. E para isso
nada melhor que demonstrar a falsidade daquilo que é tido como obviamente
verdadeiro demonstrando ao mesmo tempo a verdade daquilo que é tido como
obviamente falso” (Saviani, 1987, p. 63).

O objetivo é problematizar a possibilidade da educação escolar do campo,


explicitando, na medida do possível, suas contradições.

2. O problema da educação do campo na ótica dos movimentos sociais

Com base no artigo “Elementos para construção do projeto político e


pedagógico da educação do campo” de Roseli Salete Caldart, publicado na Revista
“Trabalho Necessário” e da obra Pedagogia do movimento sem terra: escola é mais do
que escola, da mesma autora, buscamos diagnosticar como se coloca o problema da
educação do campo para os movimentos sociais.
Em seu artigo, Caldart pontua que há a necessidade dos sujeitos da Educação
do Campo de “avançar na clareza teórica” desafiando-se a investigar permanentemente
a questão de origem: “o que é mesmo a Educação do Campo e quais são os seus
principais fundamentos?” (p. 2). Nota-se, aqui, a preocupação com a teoria. Por que essa
preocupação? Qual teoria? Essa observação é importante porque usualmente os
defensores da Educação do Campo, no Movimento Sem-Terra, tem relativizado e
secundarizado o papel da teoria. Mas, a autora, em seguida, esclarece:

O desafio teórico atual é o de construir o paradigma (contra-hegemônico) da


Educação do Campo: produzir teorias, construir, consolidar e disseminar nossas
concepções, ou seja, os conceitos, o modo de ver, as idéias que conformam uma
interpretação e uma tomada de posição diante da realidade que se constitui pela
relação entre campo e educação. Trata-se, ao mesmo tempo de socializar/quantificar a
compreensão do acúmulo teórico e prático que já temos, e de continuar a elaboração
e o planejamento dos próximos passos (Caldart, 2005, p. 2, grifos meus).

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A concepção de teoria aqui sinalizada parece ser a do método fenomenológico,
do pragmatismo e do ecletismo, ao mesmo tempo que se propõe ao desafio de construir
sua própria teoria enquanto expressão de uma práxis do movimento social.

A Pedagogia do Movimento põe em movimento a própria pedagogia, mobilizando e


incorporando em sua dinâmica (organicidade) diversas e combinadas matrizes
pedagógicas (...). Tal como na lavração que seus sujeitos fazem da terra, o MST
revolve, mistura e transforma diferentes componentes educativos, produzindo uma
síntese própria que não é original, mas também não é igual a nenhuma pedagogia já
proposta, se tomada em si mesma, exatamente porque a sua referência de sentido está
no Movimento (Caldart, 2000 p. 208).

Em nota de rodapé a autora reafirma que “O MST na verdade não segue uma
pedagogia: ele se constitui como sujeito pedagógico através de muitas pedagogias. E é
interessante como essa novidade incomoda aos próprios educadores sem-terra. Nos
cursos fatalmente vem esta pergunta: afinal, a gente segue Paulo Freire? (ou
Makarenko, ou Vigotsky...) (Idem, p. 208).
O fato é que o movimento de educação do campo busca produzir uma “tradição
pedagógica que tenha como referências o campo e as lutas sociais”. Para tal
empreendimento, é preciso dialogar, segundo Caldart, com a “tradição pedagógica
crítica”, nas suas três referências básicas: a) a tradição do pensamento pedagógico
socialista; b)a Pedagogia do Oprimido; c) Pedagogia do Movimento.
Enfatiza-se que é necessário fazer uma “síntese” das diversas teorias, pois,
segundo Stédile, “a pedagogia camponesa vai muito mais pelo exemplo do que pela
teoria”. Ou, nas palavras de Caldart: “Desde seu início o MST buscou um outro tipo de
relação com as teorias, valorizando muito os clássicos do pensamento, mas se
autorizando a fazer sínteses bastante livres de suas idéias, trabalhando bem mais
com a noção de continuadores de determinadas trajetórias ou experiências, do que de
discípulos de autores ou correntes de pensamento” (2000, p. 168, grifos meus).
Seria possível este diálogo síntese com teorias e filosofias tão diferentes?
Como, por exemplo, fazer a “síntese” entre o materialismo histórico (pensamento
pedagógico socialista) e o método fenomenológico existencial (Pedagogia do
Oprimido)? Esta síntese seria eclética de acordo com os interesses e necessidades do
Movimento Social?
Sobre o campo e sua relação com a cidade, afirma: “A Educação do Campo
defende a superação da antinomia rural e urbano e da visão predominante de que o

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moderno e mais avançado é sempre o urbano (...) campo e cidade vistos dentro do
princípio da igualdade social e da diversidade cultural” (p. 5). Portanto, prevalece uma
posição de que o campo é tão moderno quanto a cidade.
Sobre a escola, esta é compreendida antes de tudo como uma parte ou uma
extensão da “grande escola” que é o MST. Daí derivar a máxima de que escola é mais
do que escola e da necessidade de se ocupar a escola formal.

As vezes, o que mais entra em jogo é a postura diante da realidade, as convicções, os


valores, os comportamentos, a mística, o equilíbrio pessoal. Por isto também é que,
para o Movimento, estudo (no sentido de formação) não pode ser compreendido
apenas como produção do conhecimento, embora até possa considerar que este seja
um de seus princípais componentes ... Esta é uma reflexão que depois o MST buscará
levar à escola formal, problematizando concepções pedagógicas que reduzem o papel
da escola à socialização do conhecimento ou, ainda pior, ao repasse de conteúdos
(Caldart, 2000, pp. 137 e 138, grifos meus).

Parece esta claro a relativização do conteúdo – entendido como conhecimento


clássico, filosófico, cientificio. A Educação do Campo enfatizará as convicções, os
valores, os comportamentos, etc. compreendidos como formação humana no coletivo do
Movimento.
O princípio educativo da Educação do Campo é o trabalhovi, mas o trabalho do
Movimento Social. “É ele [Movimento] o sujeito educativo princípal do processo de
formação dos sem-terra, no sentido de que por ele passam as diferentes vivências
educativas de cada pessoa que o integra, seja em uma ocupação, um acampamento, um
assentamento, uma marcha, uma escola” (Caldart, 2000, p. 205).
Mas, ao mesmo tempo, há uma sinalização que a escola tem uma
especificidade. “Precisamos pensar em alguns aspectos princípais do que é o trabalho
específico da escola, ou quais as funções sociais que assume ou deve assumir” (p. 10).
Destaca como sendo a especificidade da escola os seguintes aspectos: socialização ou
vivências de relações sociais; construção de uma visão de mundo e cultivo de
identidades.
Também sinaliza para uma especificidade na formação de educadores, a qual
seria a Educação do Campo.
Verifica-se que há uma tendência de abertura da Educação do Campo para o
debate teórico, da necessidade de uma formação humana universal e de esta educação
estar articulada com o sistema nacional de educação.

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3. O campo no método do materialismo histórico

Tendo presente que “a Educação do Campo precisa recuperar toda uma


tradição pedagógica de valorização do trabalho como princípio educativo, de
compreensão do vínculo entre educação e produção ...” (Caldart, 2005, p. 8), então, faz-
se necessário explicitar qual a base teórico-metodológica dessa concepção. Pelo
exposto, tudo indica que esta base teórico-metodológica seja a do materialismo
histórico, tal como Marx e Engels o formularam.
Sendo assim, vamos a tese do materialismo histórico. Na obra A Ideologia
Alemã, Marx e Engels (1984) explicitam como a produção é a base da vida.

A primeira premissa de toda existência humana (...) e de toda a história [é a de que] os


homens tem de estar em condições de viver para poderem fazer história. Mas da vida
fazem parte sobretudo comer e beber, habitação, vestuário e ainda algumas outras
coisas. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios para a satisfação
destas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que este é um
ato histórico, uma condição fundamental de toda a História, que ainda hoje, tal como
há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para ao menos manter
os homens vivos (Idem, pp. 30 e 31).

Mas é no Prefácio da obra Para a Crítica da Economia Política, publicado em


1859, que a tese do materialismo histórico chega ao seu grau máximo de sistematização.

Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas,


necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que
correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura
jurídica, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo
de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e
espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário,
é o seu ser social que determina sua consciência (Marx, 1987, pp. 29-30).

Já antes de expor a tese do materialismo histórico, na mesma obra, Marx


mostra em que consiste o método. É clássica a exposição sobre “o método da economia
política”.

Assim, se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do todo,


e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a
conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações
cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples. Chegados a este
ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a
população, mas desta vez não com uma representação caótica de um todo, porém com
uma rica totalidade de determinações e relações diversas. (...)O concreto é concreto

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porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o
concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como
ponto de partida efetiva e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da
representação (Marx, 1987, pp. 16-17).

Este é o “método cientificamente exato” que, a partir da dialética materialista,


desvenda as leis do funcionamento do real natural e social, fazendo a análise do
concreto empírico ou do real concreto, para se chegar ao concreto pensado, síntese de
múltiplas determinações – relações entre o particular (mediações) e a totalidade. É a
reprodução ou o reflexo da lei do movimento da realidade no pensamento. Reprodução
que sempre é interpretada e analisada por um sujeito ativo e determinado socialmente.
É importante observar como Marx, em seu diálogo crítico com Hegel, vai
mostrando as relações entre o particular e o universal, o mais desenvolvido e o menos
desenvolvido. É assim que nasce a famosa “tese do macaco”.

A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada


de produção. As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua própria
articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as
formas de sociedades desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada,
e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão desenvolvendo tudo o que
fora antes indicado que toma assim toda a sua significação, etc. A anatomia do
homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies inferiores indica uma
forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a
forma superior (Marx, 1987, p. 20, grifos meus).

Segundo Marx, compreende-se o menos desenvolvido a partir do mais


desenvolvido, desde que o método seja o do materialismo histórico. Portanto, para
Marx, o “sujeito” da análise é a “sociedade burguesa moderna”. Afirma que é errado
começar pela renda da terra. “Nada parece mais natural, por exemplo, do que começar
pela renda da terra, pela propriedade fundiária, dado que está ligada à terra, fonte de
toda a produção e de todo o modo de ser, e por ela ligada à primeira forma de produção
de qualquer sociedade que atingiu um certo grau de estabilidade – à agricultura. Ora,
nada seria mais errado (Marx, 1987, p.21).
Em seguida, mostra como funciona o método na análise entre agricultura
(campo) e indústria (cidade, capital), tendo como sujeito de análise a sociedade
burguesa.

Na sociedade burguesa acontece o contrário. A agricultura transforma-se mais e


mais em simples ramos da indústria e é dominada completamente pelo capital. A
mesma coisa ocorre com a renda da terra. Em todas as formas em que domina a

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propriedade fundiária, a relação com a natureza é ainda preponderante. Naquelas que
domina o capital, o que prevalece é o elemento produzido social e historicamente. Não
se compreende a renda da terra sem o capital, entretanto compreende-se o
capital sem a renda da terra. O capital é a potência econômica da sociedade
burguesa, que domina tudo. Deve constituir o ponto inicial e o ponto final a ser
desenvolvido antes da propriedade da terra. Depois de considerar um e outro, deve-se
estudar sua relação recíproca (Marx, 1987, pp. 21 e 22, grifos meus).

Em se tratando da relação campo e cidade, o método do materialismo histórico


nos indica que é a cidade – enquanto locus da industrialização – o “lugar” em que se
expressa o desenvolvimento capitalista de forma mais desenvolvida, em relação ao
campo enquanto locus de formas menos desenvolvidas da industrialização e do capital.
Portanto, prefaciando Marx, poderíamos afirmar que não se compreende o campo sem a
cidade, entretanto compreende-se a cidade sem o campo.
Isto ocorre porque o capital, na sua forma histórica de desenvolvimento,
constituiu-se a partir da superação das relações de trabalho servis e artesanais. A
produção tornou-se um fenômeno urbano com um mercado constituído a partir das
cidades. Tanto é que a realidade, tanto do campo como da cidade, em sua totalidade,
passou a ser única: a do modo de produção capitalista.
Assim, o estudo cientifico do campo no método do materialismo histórico, só
pode ser feito a partir de sua determinação básica – o modo de produção capitalista.
Sendo que o capitalismo industrial é a forma mais desenvolvida de produção, a qual
incorpora pôr superação o capitalismo no campo como forma menos desenvolvida.
Sobre a relação campo e cidade no interior do modo de produção capitalista,
Saviani (1994), com base no método do materialismo histórico, faz as seguintes
considerações:

A palavra cidade traz sempre referência ao progresso, ao desenvolvimento, enquanto o


campo está sempre vinculado ao atraso, ao rústico, ao pouco desenvolvido. Se
levarmos em conta a etimologia das palavras, isto fica claro. Assim temos civilizado,
que vem de civitas – que é a palavra latina que designa cidade – da qual igualmente
deriva cidadão, que designa o habitante da cidade; mas também cidadão significa
sujeito de direitos e deveres, sujeito de direitos políticos. Político vem de pólis,
palavra grega que significa cidade, e daí derivam expressões como polido, sujeito bem
educado.
Se examinarmos as palavras originárias de campo, como por exemplo rus, palavra
latina que designa campo, temos então rústico, rude, para designar algo atrasado, não
desenvolvido. E se tomarmos a palavra agrós, que em grego significa campo, vamos
ter agreste, acre, que significa algo agressivo, que não tem boas maneiras, que não é
polido, que não é civilizado. Estas referências sugerem, então, uma contraposição

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entre uma sociedade baseada na cidade e na indústria, desenvolvida, por oposição uma
sociedade agrária baseada no campo, que sugere algo atrasado, pouco desenvolvido
(Saviani, 1994, pp. 156 e 157, grifos meus).

Para os defensores da Educação do Campo, as palavras de Saviani soam como


assustadoras e reafirmam exatamente o contrário do que se pretende enquanto defesa do
campo como “lugar desenvolvido” que requer uma “Educação do Campo”. Em Gramsci
encontramos também a mesma análise sobre o campo. “O campo para Gramsci
representa vida duríssima, estagnação histórica. Representa um trabalho ingrato que se
encerra na pura sobrevivência porque não alcança a mínima margem de sobre-trabalho
social, única forma possível para se obter a riqueza universal. O campo representa o
fechado regionalismo do dialeto e da relações sociais que impedem ao pobre trabalhador
a compreensão objetiva e universal da história” (Nosella, 1992, p. 9).
Hoje, na sociedade brasileira, o campo seria este lugar do atraso, do não
civilizado, da produção de subsistência e de um regionalismo fechado? Certamente que
não. Uma análise de historicização do campo, pôr mais limitada que seja, mostrará que
o campo, de modo geral, está integrado ao processo civilizatório do capitalismo,
inclusive com produção de sobre-trabalho. A questão a saber é: como se dá a relação
cidade e campo enquanto expressão da divisão do trabalho para a produção de
mercadorias num mercado mundial?
Antes, porém, voltemos ao Marx em sua obra O Capital, quando analisa a
indústria moderna e a agricultura.

A indústria moderna atua na agricultura mais revolucionariamente que em qualquer


outro setor, ao destruir o baluarte da velha sociedade, o camponês, substituindo-o pelo
trabalhador assalariado. As necessidades de transformação social e a oposição de
classes no campo são, assim, equiparadas às da cidade. Os métodos rotineiros e
irracionais da agricultura são substituídos pela aplicação consciente, tecnológica, da
ciência. O modo de produção capitalista completa a ruptura dos laços primitivos que,
no começo, uniam a agricultura e a manufatura. Mas, ao mesmo tempo, cria as
condições materiais para uma síntese nova, superior, para a união da agricultura e da
indústria, na base das estruturas que desenvolveram em mútua oposição (Marx, 1999,
p 570).

Aqui como em toda sua obra, Marx mostra como o modo de produção
capitalista é uma forma superior de sociedade que, para além de suas contradições
internas, expressa um desenvolvimento inédito na história da humanidade no domínio
do homem sobre a natureza. Trata-se da valorização e utilização do trabalho enquanto

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força produtiva que, para produzir excedente, exige o aperfeiçoamento dos meios de
produção. O aperfeiçoamento da divisão do trabalho desde a manufatura – a qual se
realiza de forma despótica na produção e de forma anárquica na divisão social do
trabalho nas trocas de mercadorias - possibilitou a burguesia desenvolver a ciência
como força produtiva que se incorpora aos instrumentos de trabalho.
A expressão desse desenvolvimento é a indústria que vai aos poucos tomando
conta de todas as atividades produtivas, inclusive às do campo.

A época moderna se caracteriza por um processo baseado na indústria e na cidade.


Neste sentido, diferentemente da Idade Média onde era a cidade que se subordinava ao
campo, a indústria à agricultura, na época moderna, inverte-se a relação e é o campo
que se subordina à cidade; é a agricultura que se subordina à indústria. Por isso, na
sociedade capitalista, a agricultura tende a assumir cada vez mais a forma da indústria,
tende a se mecanizar e adotar formas industriais e a se desenvolver segundo
determinados insumos, insumos esses que são produzidos segundo a forma industrial.
De outro lado, dado que a indústria é a base do desenvolvimento das cidades, a
sociedade moderna vai se caracterizar pela subordinação do campo à cidade ou,
dizendo de outra maneira, por uma crescente urbanização do campo. O próprio campo
passa a ser regido por relações do tipo urbano (Saviani, 1994, p. 154).

Parece-nos que aqui está a chave para compreendermos o movimento de busca


da Educação do Campo. Qual seria o problema do campo que demanda por
escolarização de sua população? Ou, noutras palavras, por que é necessário estudar –
escolarização – para realizar os trabalhos no campo? Ora, porque o capitalismo chegou
ao campo. Chegou através da divisão do trabalho, da industrialização e das
determinações do mercado. O campo urbanizou-se de certo modo. As condições
materiais da idustrialização estão, como diz Marx, produzindo uma síntese nova entre o
campo e a cidade. Ambos fazem parte de uma única totalidade: o desenvolvimento
industrial do capitalismo e seu mercado mundializado.
Lenin (1985) na obra O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, mostra
como as determinações da divisão do trabalho, na economia mercantil, alteraram a
relação campo e cidade, de tal forma que o campo é determinado pelo mercado urbano
industrial. Assim:

O processo fundamental de criação do mercado interno (ou seja, de desenvolvimento


da produção mercantil e do capitalismo) é a divisão social do trabalho. Esta consiste
em que diferentes tipos de transformação de matérias-primas (e de diferentes
operações que se realizam nessa transformação) se separam sucessivamente da
agricultura e constituem ramos independentes da indústria, trocando seus produtos
(agora convertidos em mercadorias) pelos produtos agricolas. Desse modo, a própria

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agricultura torna-se indústria (isto é, passa a produzir mercadorias) e também
nela o mesmo processo de industrialização se efetiva (Lenin, 1985, pp. 31 e 32,
grifos meus).

Em seguida, Lenin destaca que esta é “uma lei de toda a economia mercantil
em desenvolvimento e, sobretudo, da economia capitalista: a população industrial (...)
cresce mais rapidamente que a população agrícola, com o crescente deslocamento de
massas da agricultura para a indústria de transformação” (1985, p. 32)
É exatamente este processo - indústrialização da agricultura - que vem
ocorrendo no Brasil. Segundo Silva (1982), “... a agricultura se converteu
gradativamente num setor subordinado à indústria e por ela é transformada” (p. 46). A
criação de um mercado consumidor a partir das cidades fez com que se ampliasse a
divisão do trabalho e as especializações de produção e consumo.

Na mediada em que as propriedades se voltavam mais e mais para o mercado, houve


também uma transformação qualitativa interna a elas: houve uma especialização da
produção. Quer dizer, não eram mais fazendas no sentido genérico, que produziam
tudo, desde o arroz, o leite, até o café. Agora são fazendas de café, fazendas de leite,
fazendas de arroz, etc. [A própria produção agricola se especializou]. Os adubos são
produzidos pela indústria de adubos, parte dos animais de trabalho foram substituídos
pelas máquinas produzidas pela indústria de máquinas e equipamentos agricolas, e os
alimentos dos trabalhadores são comprados nas cidades” (Silva, 1982, p. 62).

De tal modo que “a própria agriocultura se industrializou, seja como


compradora de produtos industriais (principalmente insumos e meios de produção), seja
como produtora de matérias-primas para as atividades industriais” (Silva, 1982, p. 62).
Verifica-se, portanto, que a lei anunciada por Lenin – crescente
industrialização do campo e ampliação da população urbana – efetiva-se no Brasil. O
campo subordina-se ao capital e por ele é determinado. “A pequena produção está
inserida no capitalismo como parte dele mesmo (...) ao movimento de acumulação (...).
A ‘reprodução camponesa’ não se prende a nenhuma lógica própia, nem a nenhuma
superioridade técnica que lhe seja intrinseca, se não ao movimento do próprio capital,
que a recria de acordo com seus interesses” (Silva, 1982b, p. 131).
Sendo assim, o que é o campo e qual educação escolar demanda? Pelo exposto
acima, o campo é um lugar onde se produzem mercadorias através das diferentes
especializações do trabalho e, ao mesmo tempo, o campo é o comprador de mercadorias
industrializadas. A lógica de funcionamento do campo é a do desenvolvimento do
mercado capitalista. Portanto, para aqueles que permanecem no campo, faz-se

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necessário o conhecimento científico do capitalismo e do mercado, do conhecimento
técnico-científico da produção e de uma formação humana emancipatória. Trata-se do
conhecimeto da lei do devir social e natural. E esta lei do devir no mundo social é uma
só, a lei do desenvolvimento do modo de produção capitalista e suas contradições.

3. A impossibilidade da Educação Escolar do Campo

Entendemos que se formos coerente com o método do materialismo histórico,


teremos de mostrar a impossibilidade da educação escolar do campo. Primeiramente é
necessário esclarecer a diferença entre “educação do campo” e “educação escolar”. Esta
distinção é crucial, pois já nos coloca no centro do problema. A denominação “educação
do campo” traz em si uma concepção de que a educação da prática social é a base
princípal de todas as outras formas de educação, inclusive a escolar. A educação escolar
seria apenas “uma” das tantas outras formas de educação. Não se fala em
conhecimentos e muito menos de conhecimentos sistematizados (ciência), mas de
“saberes”.

Trata-se de saberes ligados ao mundo da cultura, incluindo os da arte e da estética,


saberes ligados ao mundo do trabalho, saberes ligados à dimensão da militância e da
luta social, e também aos saberes ligados ao mundo do conhecimento, ou específicos
dos processos de aprendizagem escolar: aprender a ler, a escreve, a gostar de ler e de
escrever, a construir conceitos, a ler cientificamente a realidade, a fazer pesquisa, a
tomar posição de diferentes idéias ... (Caldart, 2005, p. 13).

Em seguida a mesma autora mostra que estes saberes não são hierárquicos e
que todos somos detentores de saberes. “Trabalhar com diferentes saberes significa em
primeiro lugar não hierarquizá-los, nem considerar que eles são propriedade somente
dos educadores, ou dos educandos. Todos somos detentores de saberes, e é preciso
que o diálogo entre educadores e educandos permita a cada um ter consciência dos seus
saberes, além de ampliá-los e diversificá-los através da partilha e da produção coletiva
de novos saberes” (Caldart, 2005, p. 13, grifos meus).
Entende-se assim que a educação do campo visa o estudo e a práxis dos
“saberes”. Que todos os saberes são importantes, os quais podem e devem ser
construídos pelo diálogo. Que a escolha certa dos saberes pode “ajudar a construir novas
relações entre campo e cidade”.

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Ao contrário da educação do campo, a educação escolar parte do pressuposto
que a escola pública, enquanto instituição estatal, tem uma especificidade: a
socialização do conhecimento sistematizado. Aqui, o saber que interessa é o saber
elaborado enquanto expressão cientifica e dialética do movimento da realidade.
A escola pública é filha da sociedade moderna, urbana e industrializada. Nas
sociedades agricolas, por exemplo, não havia a necessidade da aquisição de
conhecimentos sitematizados para o trabalho. Aprendia-se com o próprio trabalho. Na
medida que a ciência se materializa no processo produtivo, surgem novas exigências
para o trabalho. Estas exigências são as da escrita, do contrato social, do direito positivo
e, sobretudo, do domínio da técnica no processo produtivo. Portanto, aqui destaca-se um
determinado saber que passa a ser força produtiva. Trata-se do saber cientifico e
tecnológico. De modo que “todo o desenvolvimento científico da Época Moderna se
dirigia ao domínio da natureza: sujeitar a natureza aos desígnios do homem, transformar
os conhecimentos em meios de produção material. E a indústria não é outra coisa senão
o processo pelo qual se incorpora a ciência, como potência material, no processo
produtivo” (Saviani, 1994, p. 156).
De modo que há um vínculo entre industrialização, urbanização e escola.
“Quanto mais avança o processo urbano-industrial, mais se desloca a exigência da
expansão escolar. Por aí é possível compreender exatamente por que esta sociedade
moderna e burguesa levanta a bandeira da escolarização universal, gratuita, obrigatória
e leiga. A escolaridade básica deve ser estendida a todos” ((Saviani, 1994, p. 156).
A escola como locus do saber sistematizado passou a ser a forma princípal de
educação. “Isto a tal ponto que a forma escolar passa a ser confundida com a educação
propriamente dita. Assim, hoje, quando pensamos em educação, automaticamente
pensamos em escola. É por isso que se levantam bandeiras em prol da educação, o que
está em causa é o problema escolar” (Saviani, 1994, p. 157).
Saviani caracteriza a educação escolar como a forma mais desenvolvida de
educação.

Se a educação escolar é a forma dominante na sociedade atual, compreende-se por que


as demais formas de educação, ainda que subsistam na sociedade moderna, passam
para um plano secundário, se subordinam à escola e são aferidas a partir da escola.
Ocorre aqui com a questão escolar o mesmo fenômeno que Marx descreveu com
relação à economia, ou seja, trata-se de compreender as formas menos desenvolvidas a
partir das mais desenvolvidas e não o contrário. É nesse sentido que é possível

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compreender a educação a partir da escola e não o contrário. As formas não escolares
de educação têm que ser compreendidas a partir da escola, que é a forma desenvolvida
de educação. Este é o fenômeno que observamos hoje em dia, a tal ponto que, quando
falamos em escola, temos que fazer a referência sempre pela via negativa: educação
não escolar, educação não formal, informal. O critério para entender as demais é a
forma escolar ((Saviani, 1994, p. 157).

Mas, qual educação escolar? A sociedade capitalista é uma sociedade de


classes sociais com interesses antagônicos. E “a contradição entre as classes marca a
questão educacional e o papel da escola”( (Saviani, 1994, p. 159). A burguesia, desde o
início da industrialização, vê-se obrigada, pelo próprio desenvolvimento das forças
produtivas, a oferecer educação escolar aos trabalhadores. Mas esta educação escolar
será aquela que vai ministrar uma instrução em “doses homeopáticas”, ou seja, um
conhecimento “mínimo” capaz apenas de qualificar o trabalhador para o exercício
técnico de sua profissão.
Há uma tendência em curso, via escola pública, de negação do ensino. E, a
negação do ensino está vinculada a negação da ciência. Assiste-se, assim, no âmbito da
educação escolar, um paradoxo ou uma contradição com a base de desenvolvimento da
“sociedade informática”. Na base da “sociedade informáticavii”, segundo Schaff, “a
ciência assumirá o papel de força produtiva (...). A ciência é hoje um instrumento de
produção cuja importância é crescente e cada vez mais determinante para o progresso
em geral” (1990, pp. 43 e 45). Ou, nas palavras de Hobsbawn: “... o século XX foi
aquele em que a ciência transformou tanto o mundo quanto o nosso conhecimento dele”
(1995: 510).
Além da ciência ser uma “força produtiva” cooptada pelo capital, verefica-se
que na “sociedade informática” há uma tendência crescente da dimensão do “trabalho
imaterial”. Segundo Lojkine, com base na revolução tecnológica em curso, exige-se do
homem, no trabalho, “funções muito mais abstratas, muito mais intelectuais” (1990,
p.18). Antunes (1999) também assinala que há um “processo de intelectualização do
trabalho manual”, ainda que de forma contraditória com a desqualificação do trabalho
precarizado. E, que há uma “...maior inter-relação, maior interpenetração, entre as
atividades produtivas e as improdutivas, entre as atividades fabris e as de serviços,
entre atividades laborativas e as atividades de concepção, entre produção e
conhecimento cientifico, que se expandem fortemente no mundo do capital e de seu
sistema produtivo” (Antunes, 2000, p. 134). Do mesmo modo, Saviani destaca que na

13
sociedade moderna, o “saber é força produtiva. A sociedade converte a ciência em
potência material” (1994, p. 160). E, para finalizar, verificamos cada vez mais a
materialização da tese gramsciana no mundo atual: “Todas as atividades práticas se
tornaram tão complexas [de tal forma que] as ciências se mesclaram (...) à vida”
(Gramsci, 1991b, p. 117).
Sendo assim, a quem interessa negar o ensino da ciência na escola pública?
Qual ensino interessa a classe trabalhadora para sua emancipação social? Coloca-se
aqui a contradição da burguesia quanto ao controle do ensino da ciência à classe
trabalhadora.

O trabalhador não pode ter meio de produção, não pode deter o saber, ele também não
pode produzir, porque para transformar a matéria precisa dominar algum tipo de
saber. Sim, é preciso, mas ‘em doses homeopáticas’, apenas aquele mínimo para
poder operar a produção. (...) É dessa forma que se contorna a contradição. O
trabalhador domina algum tipo de saber, mas não aquele saber que é força produtiva,
porque a produção moderna coletivizou o trabalho e isso implica em conhecimento do
conjunto do processo, conhecimento esse que é privativo dos grupos dirigentes
(Saviani, 1994, p. 161).

Com estas considerações entendemos que a educação do campo, enquanto


negação da especificidade da escola como socialização do saber sistematizado e, da
negação da educação escolar como a forma principal e mais desenvolvida de educação,
acaba contribuindo com o interesse da burguesia, qual seja, o da negação do ensino das
ciências. E este conhecimento sistematizado é a base da revolução da sociedade
informática. O não acesso ou a secundarização destes conhecimentos, na escola,
significa marginalizar as futuras gerações ao ingresso da sociedade tecnológica e
informática.
Quando os movimentos sociais reinvindicam uma educação do campo, partem
do pressuposto que existe uma realidade do campo. Mas, que seria esta realidade? Se
adminitirmos que existem diferentes realidades e que cada uma dessas realidades
possuem problemas específicos, então, somos conduzidos a defender uma escola e uma
pedagogia para cada uma dessas realidades.
Para o materialismo histórico, a realidade, na sua essência, não é particular,
subjetiva, fragmentada e descontínua. Ao contrário, pressupõe-se que o mundo
fenomênico, natural e social, é uma totalidade estruturada que se cria, se transforma e
esta em movimento. O pressuposto é o de que há uma lógica racional intrínsica à

14
essência dos fenômenos. “O homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve
necessariamente possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível
de ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, ‘coisa em si’, e de que existe
uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente”
(Kosik, 1995, pp. 16 e 17). A essência a ser conhecida é a “lei do devir”, ou seja, a lei
do movimento. A lei do devir é “universal e necessária sem ser ‘eterna’ e ‘imutável’.
Dessas leis universais, devemos diferenciar as leis particulares, as ‘constâncias’ fisicas
relativas (como, por exemplo, a de que a água ferve a 100º)” (Levebre, 1995, p. 187).
Portanto, o que vivenciamos e vemos na prática social é o mundo da
cotidianidade, ou seja, é o mundo da “pseudoconcreticidade”, da aparência. Os
fenômenos estão envoltos no cotidiano de tal forma que são tomados pela consciência
comum (“práxis fetichizada, práxis pragmática”) como evidentes, regulares, imediatos,
independentes e com naturalidade (Kosik, 1995). “O mundo da pseudoconcreticidade é
um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O
fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no
fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e
aspectos” (Kosik, 1995, p. 15).
O fenômeno, tal como se manifesta, é um “claro-escuro”, ou seja, é uma
aparência que não se revela imediatamente ao sujeito cognoscente. O que aparece como
sendo concreto (realidade) é, na verdade, a manifestação do empírico visto como uma
representação fetichizada da realidade.
Tendo por pressuposto que a realidade possui uma essência enquanto totalidade
constituída de uma lógica racional que é a lei do devir que contém em si a lei do
particular que é a lei cientifica, coloca-se o problema: como podemos conhecer a
realidade na sua essência? Seria possível conhecer esta realidade universal, necessária,
dialética e objetiva através da construção de conhecimentos, do aprender a aprender ou
da afirmação de que todos somos detentores de “saberes”? A resposta é não.
O conhecimento da essência da realidade somente é possível mediante a
pesquisa cientifica e filosófica (materialismo histórico). “... Se os homem apreendessem
imediatamente as conexões, para que serviria a ciência? (...) Toda ciência seria
supérflua se a forma fenomênica e a essência coincindissem diretamente”(Marx, apud
Kosik, 1995, p. 17). Ou, nas palavras do próprio Kosik: “Como a essência – ao contrário

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dos fenômenos – não se manifesta diretamente, e desde que o fundamento oculto das
coisas deve ser descoberto mediante uma atividade particular, tem de existir a ciência e
a filosofia. Se a aparência fenomênica e a essência das coisas coincindissem
diretamente, a ciência e a filosofia seriam inúteis” (Kosik, 1995, p. 17, grifos meus).
Essa questão da pesquisa no ensino tem sido um dos eixos das metodologias de
ensino da Educação do Campo. Tais metodologias de ensino defendem a pesquisa
porque partem do pressuposto de que a educação escolar não tem uma especificidade;
que a educação escolar é uma formação humana ampla, em que todos os conhecimentos
são importantes e relevantes. O conhecimento cientifico e a filosofia sistematizada são
relativizados e colocados em pé de igualdade com os outros conhecimentos. Ao negar a
especificidade do conhecimento escolar, qual seja, a do ensino das ciências na
perspectiva da filosofia da práxis, então, a pesquisa é possível, uma vez que não há um
compromisso com a verdade do real natural e social. O conhecimento seria sempre uma
construção do sujeito e, como tal, seria sempre válido; portanto, qualquer conhecimento
é significativo.
Por esta razão Saviani denomina essas pesquisas de pseudopesquisas. A
verdadeira pesquisa é aquela que desvenda a essência do real, na busca da verdade e,
para tal, pressupõe o domínio teórico-metodológico.

Considerações finais

Para o materialismo histórico a realidade é uma totalidade em movimento e o


conhecimento da essência dessa realidade natural e social (capitalismo) é uma tarefa da
pesquisa científica-filosófica. A essência é a lei do devir que possui em suas
particularidades as leis cientificas. Estas leis, uma vez desveladas pela pesquisa,
expressam a concretude da realidade. É o concreto pensado, o conceito. O conceito,
necessita ser constantemente historicizado para dar conta do movimento da realidade.
E o conceito não é nem do campo e nem da cidade. É a lei do desenvolvimento
do modo de produção capitalista e da natureza como um todo. O conceito faz parte de
uma teoria, o materialismo histórico.
No materialismo histórico, a especificidade da educação escolar é o ensino do
conceito. Isto não significa que o conceito tenha que ser ensinado dogmaticamente, sem
questionamentos. Porém, antes de questionar o conceito há a necessidade de conhecê-lo.

16
E, conhecer o conceito como síntese de múltiplas determinações é conhecer o
funcionamento dialético do movimento do real. Como o movimento do real é mais
complexo e mais amplo que o conceito, professores e alunos, podem, por um processo
de reflexão filosófica (reflexão radical, rigorosa e de conjunto), avaliar em que medida
aquele(s) conceito(s) responde(m) as problemáticas particulares, locais e estruturais de
nosso tempo.
Enfim, as considerações expostas neste texto, antes de serem contrárias a
educação escolar do campo, sinalizam para que possamos encontrar, no momento
histórico atual, a forma escolar mais adequada para a formação de nossos intelectuais,
enquanto intelectuais orgânicos de nossa classe, que na concepção gramsciana somos,
de certo modo, todos nós.
Nosella (1992) assim sintetiza a luta de Gramsci sobre a função histórica
negativa dos intelectuais tradicionais na opressão aos camponeses:

As massas camponesas não produziram seus próprios intelectuais orgânicos, apenas


ofereceram seus filhos e seus intelectos para escolas que os formavam técnica ou
ideológicamente alheios aos seus interesses. Após formados, esses intelectuais
tradicionais (grandes, intermediários e pequenos) estão ética e intelectualmente
ligados ao capital, neutralizando politicamente o homem do campo no sentido deste
não poder tomar consiciência histórica e se manter afastado e hostil ao proletariado
operário e revolucionário. Gramsci quer analisar como isso ocorreu (Nosella, 1992, p.
110).

Eís aí o desafio da escola que queremos: formar os intelectuais orgânicos da


classe trabalhadora do campo e da cidade.

Referências Bibliográficas

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Centralidade do Mundo do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora
da Universidade Estadual de Campinas, 1999.
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trabalho. 3ª ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.
CALDART, Roseli Salete. Elementos para construção do projeto político e pedagógico
da educação do campo. In: Trabalho Necessário. Revista Eletrônica do NEDDATE, V.
2. Rio de Janeiro, ano 2005, http://www.uff.br/trabalhonecessário, obtido em
02/02/2005.

17
CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do movimento sem terra: escola é mais do que
escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. 8ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1991 b.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2a ed. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1995.
LEFEBVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1995.
LENIN, Vladimir Ilich. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia: o processo de
formação do mercado interno para a grande indústria. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
LOJKINE, Jean. A classe operária em mutações. Belo Horizonte: Oficina de Livros,
1990.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Moraes,
1984.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Martins
Fontes, 1987.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. 17. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999. Livro 1. v. 1 e 2.
NOSELLA, Paolo. A escola de Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1992.
SAVIANI, Dermeval. Educação: Do Senso Comum à Consciência Filosófica.
Campinas, São Paulo: Autores Associados, 1996.
SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. São Paulo: Cortez Editora, 1987.
SAVIANI, Dermeval. O trabalho como princípio educativo frente as novas tecnologias.
In: FERRETI, Celso João .../et al./ (org.). Novas tecnologias, trabalho e educação: um
debate multidisciplinar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
SCHAFF, Adam. A sociedade informática: as conseqüências sociais da Segunda
revolução industrial. São Paulo: Brasiliense, 1990.
SILVA, José Graziano da. Estrutura fundiária e relações de produção. In: SILVA, José
Graziano da. A modernização dolorosa. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1982.
i
O presente artigo é o resultado parcial do Projeto de Pesquisa “A educação escolar do campo à luz da
Filosofia Marxista, cadastrado junto a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Unioeste, protocolo
10943/2004, com vigência até abril de 2006, por nós coordenado.
ii
Professor de Filosofia da Educação dos Cursos de Pedagogia e Pedagogia do Campo da Unioeste,
Campus de Francisco Beltrão-Pr. Membro do Grupo de Pesquisa “Sociedade, Trabalho e Educação”.
iii
Em que consiste um problema? Ao responder a esta questão, Saviani (1996) demonstra que a verdadeira
essência do problema é a “necessidade”. “Uma questão, em si, não caracteriza o problema, nem mesmo
aquela cuja resposta é desconhecida; mas uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita
conhecer, eis aí um problema” (Saviani, 1996, p. 14).
iv
Esta estrutura de texto nasceu de uma fala que realizamos no Evento: Seminário de Experiências
Educativas e Formação de Educadoras e Educadores do Campo, realizado nos dias 24 e 25 de fevereiro
de 2005 na Unioeste – Campus de Franscioco Beltrão – Francisco Beltrão-Pr.
v
Esta última parte encontra-se em elaboração. Trata-se de mostrar, através de Gramsci, porque o trabalho
industrial é o princípio educativo da educação escolar na perspectiva do materialismo histórico. Com isso,
estaríamos fazendo o contra-ponto a “educação do campo” que toma o trabalho do campo como princípio
educativo.

18
vi
Na obra “Pedagogia do movimento sem terra: escola é mais do que escola” Caldart é enfática em
defender o “Movimento Social” como princípio educativo. Já no artigo “Elementos para construção do
projeto político e pedagógico da educação do campo”, escrito alguns anos após a obra acima citada, a
autora toma “o trabalho” como princípio educativo. Esta mudança sinaliza, em nosso entender, um
avanço na Pedagogia do Movimento e uma aproximação ao materialismo histórico.
vii
Segundo SCHAFF (1990) estamos vivendo uma “segunda revolução industrial”. Nesta segunda
revolução industrial não é somente a força física do homem que é ampliada e substituída, mas, sobretudo,
sua capacidade intelectual. “A segunda revolução, que estamos assistindo agora, consiste em que as
capacidades intelectuais do homem são ampliadas e inclusive substituídas por autômatos, que eliminam
com êxito crescente o trabalho humano na produção e nos serviços” (p. 22). Esta “segunda revolução
industrial” consiste em três revoluções simultâneas: “a revolução microeletrônica e a revolução técnico
industrial a ela associada (...); a revolução na microbiologia com sua componente resultante, a engenharia
genética (...) e a revolução energética” (p. 21 a 23). Revoluções estas, que, para Schaff, caracterizam uma
“nova” sociedade dentro da sociedade capitalista. Trata-se da “sociedade informática” assim definida:
“quando falamos de sociedade informática referimo-nos a uma sociedade em que todas as esferas da vida
pública estarão cobertas por processos informatizados e por algum tipo de inteligência artificial, que terá
relação com computadores de gerações subseqüentes” (p. 49).

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