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Depressão ao
longo da história
Thaís Rabanea de Souza
Acioly Luiz Tavares de Lacerda

INTRODUÇÃO cional, consolidada com as contribuições


de Sócrates (Atenas, 469 a.C.-399 a.C.),
O termo depressão é relativamente novo viabilizou a transferência do entendimen-
na história, tendo sido usado pela primei- to da doença do âmbito divino para a na-
ra vez em 1680, para designar um esta- tureza, inaugurando, assim, o modo cien-
do de desânimo ou perda de interesse. Em tífico de pensar.
1750, Samuel Johnson incorporou o ter-
mo ao dicionário. O desenvolvimento do
conceito de depressão emergiu com o de- ANTIGUIDADE E IDADE MÉDIA
clínio das crenças mágicas e supersticio-
sas que fundamentavam o entendimento Atribui-se a Hipócrates (Cós, 460 a.C.-370
dos transtornos mentais até então. Desse a.C.) e seus seguidores a diferenciação en-
modo, a história do conceito de depressão tre medicina e filosofia, bem como a tran-
tal como o concebemos na atualidade tem sição da explicação da doença centra-
seu início no século XVII. Entretanto, sua da em termos sobrenaturais para termos
origem pode ser inferida a partir das men- científicos e, ainda, a superação da teo-
ções de alterações de humor ao longo da ria cardiocêntrica de Aristóteles (Estagira,
história, sobretudo nas referências ao es- 384 a.C.-Atenas, 322 a.C.), a qual consi-
tado conhecido como melancolia.1 derava o coração como o centro das emo-
As primeiras descrições de estados ções humanas, descrevendo o cérebro co-
de alteração do humor podem ser encon- mo o “centro” das funções mentais e, por-
tradas nas escrituras bíblicas e na mito- tanto, de suas patologias. Com base no
logia. A visão pré-socrática do homem, conceito dos quatro fluidos – bile, fleug-
compartilhada de modo geral por gre- ma, sangue e bile negra –, Hipócrates de-
gos, hebreus, egípcios, babilônios e per- senvolveu seu entendimento das doenças
sas, compreendia o adoecimento físico e como manifestação de um desequilíbrio
mental a partir de uma narrativa mítica entre esses fluidos e também seu mode-
e religiosa, atribuindo a uma entidade di- lo dos quatro humores – colérico, fleug-
vina a etiologia de todos os males. A pas- mático, sanguíneo e melancólico –, que,
sagem da narrativa mítica ao discurso ra- segundo ele, explicariam a regulação das

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emoções e a formação do caráter dos in- vo provocaria as doenças. Galeno prefe-


divíduos. Fundamentado nesse modelo, ria utilizar o termo humor melancólico, ou
Hipócrates formulou a primeira classifi- sangue melancólico, a bile negra e susten-
cação nosológica dos transtornos mentais tava que o humor, ou o sangue melancó-
registrada na história: descreveu e no- lico, poderia ocorrer em diferentes partes
meou a melancolia, a mania e a paranoia. do corpo e, portanto, não estaria restrito
A etimologia do termo melancolia – me- ao cérebro, como postulado por Hipócra-
lan significa negro, e cholis, bile –, revela tes. Galeno classificou a melancolia em
a visão de Hipócrates: o quadro clínico da três tipos, com base na localização do cor-
melancolia – em que se observava aversão po onde supostamente estaria concentra-
à comida, falta de ânimo, inquietação, ir- do o desequilíbrio: no cérebro, na corren-
ritabilidade, medo ou tristeza que perdu- te sanguínea ou no estômago. Enfatiza-
ravam por longo período – seria resultan- va, ainda, que, embora cada caso tenha
te de uma intoxicação do cérebro pela bi- as suas especificidades, o medo e a falta
le negra. Hipócrates diferencia, ainda, a de ânimo eram os sintomas cardinais. Na
doença melancolia da personalidade me- época, os tratamentos indicados eram o
lancólica.2 uso de plantas medicinais como helébo-
Em sua obra Problemata, Aristóteles ro, meimendro, mandrágora e beladona,
corrobora o modelo proposto por Hipó- e de purgantes para a eliminação da bi-
crates e acrescenta que, enquanto o exces- le negra.2,3
so de bile negra resulta em estados graves No século V (476 d.C.), ocorreu a
de doença mental, uma quantidade me- queda do Império Romano do Ocidente,
nor ou um desequilíbrio menos acentuado marcando o fim da Antiguidade e o iní-
resulta em um temperamento melancóli- cio da Idade Média. O pensamento gre-
co. Aristóteles sustenta que existe uma re- co-romano, incluindo as suas contribui-
lação da inspiração, do brilhantismo e da ções para a ciência e para a medicina, é
realização com a melancolia.3 abandonado e substituído por uma visão
O século II a.C. marca a ascensão do religiosa edificada sobre a ubiquidade de
Império Romano. A despeito da submis- uma entidade divina e um modelo mani-
são total das cidades gregas, as ideias hi- queísta. Os transtornos mentais passam
pocráticas continuam orientando a for- a ser inseridos na demonologia da épo-
mação e a atuação dos médicos na An- ca. O monge Ionnes Cassianus introduz
tiguidade. Nesse momento histórico, o termo acídia, palavra de origem grega
destacam-se as contribuições de Gale- que significa “estado de descuido”, para
no (Pérgamo, 128-Roma, 201), que rea- designar estados variados de apatia, pre-
firma a teoria dos quatro humores postu- guiça, indolência, negligência e enfraque-
lada por Hipócrates, associando os qua- cimento, de modo que essa palavra pode
tro elementos (ar, fogo, terra e água) com ser considerada um termo medieval para
fluidos (bile amarela, bile negra, fleug- a melancolia. São Gregório Magno (Ro-
ma e sangue), qualidades (quente, úmi- ma, 540-604) inclui a acídia entre os se-
do, frio e seco) e humores (colérico, fleug- te pecados capitais, logo, sujeito à peni-
mático, sanguíneo e melancólico). Segun- tência. São Tomás de Aquino (Roccasec-
do Galeno, citado por Cordás2 e Radden,3 ca, 1225-Fossanova, 1274), apesar de
o balanço entre os fluidos e as qualida- seu profundo moralismo, demonstrou-se
des formaria os traços do temperamento mais benevolente com os melancólicos. Is-
de um indivíduo e as suas predisposições, so porque a vitória sobre a acídia trazia o
enquanto um desequilíbrio significati- contentamento, a maior de todas as virtu-

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des, que expressava a união mística com IDADE MODERNA
Deus, e, portanto, a penitência para o pe-
cado da acídia foi atenuada. Essa postura O final da Idade Média inaugurou a Ida-
perdurou até 1233, quando teve início o de Moderna, consagrando o início de um
período de Inquisição na Igreja Católica, intenso e significativo movimento social,
uma época em que se condenava à mor- cultural e intelectual: o Renascimento.
te tanto os mais proeminentes intelectuais Não há consenso sobre a cronologia desse
que ousavam refutar os dogmas religiosos momento histórico; estima-se que abran-
quanto os doentes mentais, seja por moti- ja os séculos XIV, XV e XVI. A visão reli-
vos heréticos, seja por motivos demono- giosa e maniqueísta que marcou o pensa-
lógicos. Encurralados pela Igreja Católi- mento medieval é convertida em uma vi-
ca, muitos pensadores encontraram refú- são humanista, e a doença mental passa a
gio no mundo árabe, onde as principais ser compreendida prioritariamente a par-
obras científicas e filosóficas greco-roma- tir de uma perspectiva biológica, filosófi-
nas foram traduzidas e continuaram sen- ca e psicológica. Na era moderna, teste-
do aprimoradas. A teoria galênica dos hu- munha-se o período de transição da per-
mores continuou prevalecendo no âmbito cepção da melancolia baseada no modelo
do entendimento da doença mental, sen- humoral galênico para a ciência moder-
do a melancolia o transtorno psiquiátrico na, na qual a alquimia é substituída pe-
mais frequentemente identificado. Nes- la química e os humores são substituídos
se contexto, destaca-se o pensador persa por nervos. Dentre as principais contribui-
Avicenna (980-1037), cujos escritos re- ções, sobressai-se a obra do italiano Mar-
velam como a teoria humoral e as descri- sílio Ficino (1433-1499), intitulada Três
ções greco-romanas dos sintomas da me- livros da vida, na qual ele apresenta o seu
lancolia viajaram da Europa Ocidental pa- aprendizado sobre as causas e curas das
ra o mundo árabe. Avicenna defende que doenças e oferece aconselhamentos sobre
a presença anormal de bile negra é pro- saúde e bem-estar. Ficino elabora sua te-
vocada por um processo de superaqueci- oria acerca da melancolia com base em
mento e sedimentação e postula uma lis- fundamentações astrológicas, sobretudo
ta de sinais e sintomas da melancolia que relacionando o quadro com o planeta Sa-
vão desde desconfortos físicos até dese- turno, e ressalta o achado de Aristóteles,
quilíbrios mentais, como medos irracio- estabelecendo uma relação entre geniali-
nais, prejuízo no julgamento, falsas cren- dade e brilhantismo com melancolia. In-
ças e percepções distorcidas da realida- fluenciado pelas ideias de Ficino, Robert
de. Outra importante contribuição nesse Burton (1577-1640) elabora uma obra
período é a obra do médico árabe Ishaq clássica, intitulada A anatomia da melan-
Ibn Imran, intitulada Melancholia, em que colia (1621), um dos primeiros livros de
se encontra uma descrição dos principais psiquiatria escritos em inglês. Nessa obra,
sintomas da doença, como o mutismo, a Burton enfatiza que o quadro clínico da
imobilidade, distúrbios do sono, agitação, melancolia deve ser diferenciado da lou-
desânimo, choro e risco de suicídio. Ain- cura, à qual hoje atribuí­mos o nome de
da na Idade Média, a freira alemã Hilde- mania, e aponta para o fato de que um
gard (1098-1179) foi pioneira ao apontar paciente pode exibir um ou outro quadro
a melancolia em seus estudos sobre cau- em momentos diferentes, observação per-
sas e curas para as doenças, assim como tinente que remete ao quadro que hoje é
diferenças na manifestação desta entre denominado transtorno bipolar. Ele dife-
homens e mulheres.3 rencia também a melancolia positiva, co-

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mo fonte de sabedoria e inclinação poéti- para o campo da medicina. O médico es-


ca, religiosa e filosófica, do estado melan- cocês William Cullen (1710-1790), pio-
cólico, uma doença crônica, caracterizada neiro no emprego do termo neurose, refu-
por um estado de humor melancólico per- ta essa visão mecânica do homem e funda-
manente, caracterizado pela presença de menta suas teorias sobre saúde e doença
medo, sofrimento e enfado, que deixa o mental por meio do sistema nervoso. Sua
indivíduo pesaroso, embotado, preguiço- teoria da melancolia como um desequi-
so, inquieto e inapto ao trabalho. Burton líbrio entre diferentes partes do cérebro,
reconhece ainda a natureza clínica da do- que resultaria no comprometimento de
ença e faz menção ao suicídio. As referên- faculdades cognitivas como o julgamento
cias à etiologia da depressão são difusas e e a articulação de ideias, suplantou a teo-
misturam aspectos sobrenaturais, fatores ria dos humores galênica vigente até en-
hereditários e fatores ambientais e com- tão. O sistema de classificação nosológica
portamentais, como alimentação, absti- proposto por Cullen descrevia a melanco-
nência sexual e ignomínia. Por fim, Bur- lia como uma insanidade parcial, causada
ton defende enfaticamente que nenhum por um grau de torpor na atividade do sis-
homem está livre da melancolia. Muitas tema nervoso que afetava tanto a sensa-
das concepções terapêuticas propostas no ção quanto a volição. Cullen foi profun-
livro são ainda consideradas relevantes, damente influenciado pelo filósofo John
como as postulações sobre os conflitos Locke (1632-1704), que defendia as ex-
mentais e os mecanismos de repressão.3-5 periências como fonte de conhecimento,
Ainda na Renascença, merecem ser sendo o cérebro o órgão responsável pela
mencionadas as contribuições de Teresa organização e integração das impressões
de Ávila, ou Santa Teresa (1515-1582), e ideias, de modo a transformá-las em co-
por sua habilidade na distinção entre a nhecimento, sendo a loucura entendida
melancolia e os estados mentais relacio- como uma falha nesse processo.4
nados; e Timothie Bright (1550-1615), Immanuel Kant (1724-1804), proemi-
que publicou, em 1568, o Tratado da me- nente filósofo metafísico, também contri-
lancolia, uma das primeiras publicações buiu com uma proposta de classificação dos
sobre transtornos mentais fundamentada transtornos mentais, separando-os do qua-
em conceitos médicos consistentes, que dro de retardo mental e identificando três
também inspirou a obra de Burton. O tra- entidades nosológicas principais: melanco-
balho de Bright descreveu a distinção en- lia, mania e insanidade. Ele descreve ainda
tre os estados de melancolia corpóreos e a hipocondria, de modo semelhante a como
os estados espirituais caracterizados por é descrita na atualidade, como uma forma
um grande sofrimento associado a senti- de manifestação da melancolia.3
mentos pecaminosos.3 No século XIX, o termo melanco-
O século XVIII assinala a ascensão do lia e as elucubrações relacionadas perde-
racionalismo e o início do Iluminismo. As ram sua valência no panorama científico.
abstrações dedutivas são substituídas pe- O termo depressão, por sua vez, emergiu
la fundamentação empírica. Trabalhos de definitivamente e consolidou-se nas déca-
grandes anatomistas, como o médico ale- das seguintes como entidade nosológica
mão Hermann Boerhaave (1668-1738), independente. Desde então, a edificação
promoveram a substituição da teoria dos da teoria da depressão, fundamentada na
humores por um modelo de funcionamen- investigação científica e na observação
to mecânico e hidráulico, oriundo da mi- clínica, que sustenta as práticas médicas,
gração da filosofia mecânica de Newton tem evoluído.

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Em um momento histórico marca- físicas e psicológicas. Defendia que a psi-
do pelo fim da Revolução Francesa e pelo quiatria deveria ser baseada em descri-
auge da Revolução Industrial, observam- ções precisas das diferentes manifestações
-se importantes transformações no campo clínicas, livre de teorias ideológicas, fun-
da psiquiatria. Em 1827, quando Johann damentada em uma rigorosa observação
Christian August Heinroth (1773-1842) é e complementada pelo criterioso esforço
nomeado professor de “medicina psíqui- de delimitação das características típicas
ca” na Universidade de Leipzig, surge a e de sua respectiva classificação. Com es-
primeira disciplina de psiquiatria em uma sa postulação, revolucionou a abordagem
universidade. Uma relevante contribuição metodológica de sua época. Sua influên-
de Heinroth foi sua visão holística da in- cia para os pesquisadores e teóricos que
teração entre mente e corpo, que o levou o sucederam, e para a psiquiatria de um
a cunhar o termo psicossomática. Heinro- modo geral, é inegável.3,4,6
th descreveu o estado de melancolia pura Esquirol, brilhante discípulo de Pi-
como uma paralisia da disposição acom- nel, sustenta que a psiquiatria deve ser
panhada por depressão. Após sua morte, consolidada como uma medicina mental e
entretanto, muitos anos se passaram até que, portanto, a compreensão dos trans-
que a disciplina fosse ministrada nova- tornos psiquiátricos deve ser baseada em
mente. Os acadêmicos pareciam se opor pressupostos neurobiológicos (anatomia
veementemente a ela, pois se mostravam cerebral). Em 1838, publica a obra Des
avessos à noção de que a psiquiatria, vista Maladies Mentales, considerada o primei-
como um aglomerado de ideias elusivas, ro marco divisor antes de Kraepelin. Es-
pudesse se consolidar como uma especia- quirol propõe uma alteração do conceito
lidade médica.2,4 de melancolia de Pinel, descrevendo-a co-
Na primeira metade do século XIX, a mo uma perturbação das emoções e não
relevância das contribuições da psiquiatria do intelecto e dividindo-a em lipemania
francesa é notável. Dentre as grandes per- e monomania, primeira aferição conheci-
sonalidades reveladas, destacam-se os no- da na história para a divisão entre trans-
mes de Philippe Pinel (1745-1826) e Jean- tornos do humor (lipemania) e transtor-
-Etienne Dominique Esquirol (1772-1840). nos do juízo (monomania). O termo lipe-
Ao defender a humanização no tratamen- mania perdurou na França por um tempo,
to, Pinel revolucionou a abordagem da mas não se estendeu à Inglaterra ou à Ale-
doença mental. Em 1801, publica o Trate manha e, embora não tenha sobrevivido,
Médico-Philosophique sur L’aliénation Men- configurou-se como um indicativo da mu-
tale ou la Manie, considerado um marco dança do termo melancolia para depres-
na história da psiquiatria. Pinel definiu a são. Outra importante contribuição de Es-
melancolia ou, como ele postulou, delí- quirol foi a proposta de sistematização do
rio sobre um assunto exclusivo, como uma tratamento da melancolia, abrangendo o
forma parcial de insanidade caracteriza- treinamento adequado dos médicos que
da por um único ou um limitado núme- atuavam em hospitais psiquiátricos.2,4
ro de delírios. Ele descreveu como princi- Outro importante nome que merece
pais sintomas da melancolia a taciturnida- ser citado é o do psiquiatra norte-america-
de, um ar meditabundo, a desconfiança e no Benjamin Rush (1745-1813). Homem
a busca da solidão. Identificou causas psi- pragmático e cientista empírico, Rush foi
cossociológicas, uma variedade de confi- considerado o pai da psiquiatria norte-
gurações nervosas individuais e experiên­ -americana e dedicou seus estudos à reti-
cias de vida, bem como predisposições rada do caráter misterioso e supersticioso

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que revestia a doença mental até então, es- poentes Karl Jacobi (1775-1858); e, de
forçando-se para colocar as doenças men- outro, a “escola psiquista”, que atribuía às
tais no mesmo paradigma das doenças de perturbações emocionais o embasamento
outras especialidades médicas, atribuindo das perturbações anímicas. Em 1845, pu-
ao cérebro o substrato biológico dos trans- blica o Tratado sobre patologia e terapêu-
tornos mentais. O trabalho de Rush em re- tica das doenças mentais, um verdadeiro
lação à melancolia influenciou estudiosos marco na história da psiquiatria. De mo-
além da fronteira de seu país, como Esqui- do geral, ele defendia que o cérebro era o
rol, por exemplo. Considerando as ideias órgão afetado na loucura e que as doen-
de Cullen e Kant, Rush descreve a melan- ças mentais seriam, pois, doenças do cé-
colia como uma insanidade parcial e, fun- rebro. A classificação proposta por Jaco-
damentado no princípio de que a razão é bi resultava em basicamente três estados
central em todo transtorno mental, acres- que, em geral, sucediam um ao outro con-
centa que, embora a concepção do qua- forme a progressão da doença: estado me-
dro seja de fato ampla, a melancolia está lancólico, que poderia ser seguido por es-
mais associada com a presença de falsas tados de exaltação ou mania e, finalmen-
crenças ou delírios do que com sentimen- te, pelo estado de demência crônica. Sua
tos ou emoções como medo ou tristeza. proposta de classificação ficou conhecida
Rush introduziu ainda o termo tristema- como a teoria da psicose única e, segun-
nia, que substitui o termo hipocondria, do essa concepção, a melancolia configu-
existente até então para designar formas rava-se como o estágio inicial da doença
de insanidade vinculadas a delírios sobre mental.3,6
si mesmo, coisas ou condições; e substi- A evolução do pensamento de Emil
tuiu o termo melancolia por amenomania, Kraepelin e Sigmund Freud consolidou
referindo-se à presença de delírios acerca definitivamente a transição da psiquiatria
do resto do mundo que envolve o pacien- vitoriana do século XIX para a psiquiatria
te. A influência de Rush ultrapassou fron- moderna no início do século XX. A influên­
teiras e séculos, porém os termos usados cia marcante desses dois nomes também
por ele não sobreviveram.3,7 inaugurou uma divisão nas práticas em
Os achados de um personagem cen- saúde mental: de um lado, a psicanálise,
tral no cenário da psiquiatria alemã, Wi- alicerçada em fundamentos psicológicos;
lhelm Griesinger (1817-1868), conside- e, de outro, a psiquiatria científica, funda-
rado por muitos como um dos pais da mentada em bases neurobiológicas. A se-
psiquiatria biológica, também merecem gunda teve um impacto muito mais sig-
destaque, especialmente por sua grande nificativo no desenvolvimento da prática
influência na obra de Kraepelin. A Grie- em psiquiatria e uma influência maior nas
singer é creditado o feito de colocar a psi- definições da síndrome depressiva, utili-
quiatria alemã em uma posição de proe­ zadas tanto no Manual­diagnóstico e esta-
minência na segunda metade do século tístico de transtornos mentais8 quanto na
XIX, lugar anteriormente ocupado pela Classificação internacional das doenças.9 O
França. Tal feito pode ser atribuído à su- conceito de depressão desenvolvido pela
peração das ideias conflitantes que divi- psicanálise, por sua vez, contribuiu para o
diam a psiquiatria alemã do início do sé- desenvolvimento das psicoterapias e para
culo XIX em duas vertentes: de um lado, as representações da depressão encontra-
a “escola somática”, que relacionava os das na arte e na literatura.4
transtornos mentais a processos orgâni- Profundamente influenciado pelas
cos, tendo como um de seus maiores ex- ideias de Griesinger e pela psicologia ex-

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Depressão 23
perimental de Wilhelm Max Wundt (1832- No contexto da psiquiatria científi-
1920), Emil Wilhelm Magnus Georg Krae- ca da primeira metade do século XX, des-
pelin (1856-1926) apresentou, em 1899, o tacam-se outros nomes que influenciaram
mais forte conceito taxonômico vigente no os psiquiatras de sua geração: o psiquia-
panorama da psiquiatria mundial. Ele pos- tra britânico Aubrey Lewis, que defendeu
tulou categorias de doenças mentais de uma visão unidimensional da depressão,
acordo com o grupo de sintomas e a pro- afirmando que a divisão entre depressão
gressão da doença. Sua mais importante endógena e reativa ou neurótica e psicó-
contribuição foi a divisão das psicoses en- tica era arbitrária, e que a depressão seria
tre condições caracterizadas por altera- uma doença única; Adolf Meyer, psiquia-
ções de pensamento que podem resultar tra suíço, contemporâneo de Kraepelin,
em deterioração e que requerem trata- que criticou a postulação deste, susten-
mento contínuo, que denominou demen- tando que havia muitas formas de depres-
tia praecox (demência precoce); e altera- são que não se enquadravam na categoria
ções do humor não deteriorantes, geral- única da psicose maníaco-depressiva pos-
mente episódicas e passíveis de remissão, tulada por Kraepelin, e sugeriu, em 1905,
que denominou de psicose maníaco-de- que se eliminasse o termo melancolia e
pressiva. O termo demência precoce re- se adotasse definitivamente o termo de-
feria-se a um quadro psicótico associado pressão, a fim de ressaltar os propósitos
a um processo de deterioração cognitiva médicos; Ugo Cerletti, psiquiatra e neu-
progressiva (demência) que ocorria em rologista italiano, que, em parceria com
indivíduos jovens (precoce), cujo prog- Lúcio Bini, definiu com sucesso os parâ-
nóstico tendia a ser pior quando compa- metros necessários para a aplicação de
rado ao da psicose maníaco-depressiva. eletricidade diretamente no couro cabelu-
Sua conceituação dicotômica contrapu- do e iniciou o uso de estímulo elétrico pa-
nha-se à teoria da psicose única de Grie- ra a indução de convulsão com fins tera-
singer. A proposta de Kraepelin de dividir pêuticos, desenvolvendo, assim, a eletro-
as doenças mentais em duas entidades, convulsoterapia (ECT), a qual se tornou
transtornos afetivos e psicoses esquizofrê- a base das intervenções biológicas indica-
nicas, formou as bases do entendimento das para o tratamento dos transtornos psi-
da doença mental por mais de um século. quiátricos durante as décadas de 1940 e
Embora com o passar dos anos os trans- 1950. Inicialmente utilizada para o trata-
tornos psiquiátricos tenham sido cada vez mento da esquizofrenia, observou-se que
mais compreendidos como um continuum a ECT também poderia ser eficaz no trata-
e não como entidades completamente se- mento de sintomas depressivos e manía-
paradas, a concepção de Kraepelin conti- cos. A ECT continua sendo um tratamento
nua fundamentando os principais manu- biológico de excelência até os dias de ho-
ais de referência para a classificação de je, sendo ainda considerada o tratamen-
transtornos mentais até os dias de hoje. to mais eficaz para episódios de depres-
A depressão era entendida, nesse contex- são grave.4,13,14
to, como parte do curso da psicose manía- Em 1917, Sigmund Freud15 (1856-
co-depressiva. Kraepelin atribuiu a etiolo- -1939) publica o artigo “Luto e Melanco-
gia da doença a fatores hereditários, dan- lia”. Nele, em primeiro lugar, afirma que
do maior ênfase aos fatores internos do irá esclarecer alguns tópicos sobre a natu-
que aos externos, e observou ainda que as reza da melancolia, alertando para as li-
mulheres eram mais suscetíveis a eles do mitações de suas conclusões. Em segun-
que os homens.4,10-12 do, pontua que a melancolia pode assu-

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mir várias formas clínicas e que algumas Radó (1890-1972), psicanalista húnga-
dessas formas podem ter afecções somáti- ro, distinguiu a neurose depressiva – for-
cas e outras psicogênicas, e que suas con- ma menos grave, na qual o paciente tem
siderações estão vinculadas à observação consciên­cia de sua baixa autoestima – da
de casos de natureza psicogênica indiscu- melancolia – forma mais grave, com pre-
tível. Freud sugere a presença de uma dis- sença de delírios de autoacusação, que se
posição patológica e distingue os traços aproxima da depressão psicótica. Otto Fe-
mentais da melancolia, os quais incluíam nichel (1898-1946), psicanalista vienen-
desânimo profundo, perda da capacidade se, sob a tutela de Radó, defendeu que
de amar, inibição de toda e qualquer ativi- a depressão seria um aspecto comum à
dade, diminuição da autoestima, autorre- maioria das formas de neurose e que a
criminação e autoenvilecimento e expec- persistência de um grau leve de depressão
tativa delirante de punição. Ele postula seria um prenúncio de que uma depressão
que, na melancolia, acontece um empo- mais grave poderia se desenvolver, suge-
brecimento e esvaziamento do próprio rindo, portanto, um continuum dos esta-
ego, que resulta em um delírio de inferio- dos de depressão entre neurose e psicose.
ridade, principalmente moral, que é com- Outros nomes, como o de Karl Abraham,
pletado por insônia e pela recusa em se René Spitz e Melanie Klein, também me-
alimentar. Sugere que a tendência a adoe- recem destaque.2,4
cer de melancolia está vinculada à predo- A partir da década de 1960, além
minância do tipo narcisista de escolha ob- das psicoterapias psicodinâmicas, as abor-
jetal. Ele também aponta para a tendên- dagens cognitivas e comportamentais des-
cia ao suicídio e, ainda, para a tendência pertaram o interesse e também passaram
da melancolia em se transformar em ma- a exercer influência sobre o entendimen-
nia. O termo depressão propriamente di- to e o tratamento do comportamento de-
to é utilizado de modo descritivo, e não pressivo. Dentre elas, destaca-se a terapia
como um quadro clínico ou uma catego- cognitivo-comportamental (TCC), desen-
ria nosológica. Freud inaugura a prática volvida pelo psicólogo norte-americano
primordialmente terapêutica baseada em Aaron Beck. A TCC sustenta que a origem
fundamentos psicodinâmicos que predo- e a manutenção dos sintomas depressivos
minou na psiquiatria moderna da primei- estão associadas à presença de pensamen-
ra metade do século XX. Se, por um lado, tos e crenças disfuncionais e não de for-
a orientação psicanalítica enfraqueceu os ças inconscientes, como defendia a tradi-
laços da psiquiatria com a medicina expe- ção freudiana. Inúmeros ensaios clínicos
rimental e com as demais ciências biológi- controlados comprovam a eficácia da TCC
cas, por outro, fez importantes contribui- no tratamento da depressão leve e mode-
ções, como o aumento do insight clínico, rada.17-19
o desenvolvimento sistemático de defini- A influência da primeira e, especial-
ções do comportamento e da doença e a mente, da segunda guerra mundial resul-
diminuição do estigma social associado tou na expansão da influência e na popu-
ao transtorno mental.11,12,15,16 larização da psiquiatria – e na posterior
A influência da orientação psica- expansão do diagnóstico de depressão. O
nalítica na psiquiatria ocidental atin- sucesso dos psiquiatras no tratamento de
giu seu ápice na década de 1960 e per- soldados que desenvolveram transtornos
durou até a década de 1970. Nesse perío- mentais em decorrência da guerra elevou
do, alguns nomes se destacaram: Sandor o status da psiquiatria a um patamar se-

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melhante ao de outras especialidades mé- conhecida como hipótese noradrenérgica
dicas. A atuação dos psiquiatras deixou de (5HT).4,21
estar restrita aos asilos ou hospitais psi- Em 1951, Herbert Hyman Fox e Har-
quiátricos. O adoecimento e o sofrimento ry L. Yale comprovaram o efeito tubercu-
mentais dos soldados, acrescidos dos bons lostático da iproniazida, a qual passou a
resultados obtidos com a intervenção psi- ser largamente utilizada no tratamento da
quiátrica, favoreceram a superação do es- tuberculose, diminuindo de forma signifi-
tigma social associado à doença mental. cativa a mortalidade nos Estados Unidos.
A popularização do trabalho dos psiquia- Em 1952, Ernst Abert Zeller observou que
tras, incentivada pelos meios de comuni- a iproniazida era um inibidor da enzima
cação, aumentou o interesse, a procura e monoaminoxidase (MAO), e estudos sub-
o consumo de produtos e serviços de saú- sequentes demonstraram a relação entre a
de mental pela população geral. Esse ce- administração da iproniazida e o aumen-
nário culminou com a explosão do merca- to dos níveis de serotonina no cérebro e
do de saúde mental observada na segun- na melhora do humor. Em 1957, Nathan
da metade do século XX.4 S. Kline apresentou os resultados de suas
Apesar do serendipismo que mar- pesquisas com a iproniazida, acumulando
cou o estabelecimento da psicofarmacolo- evidências científicas sobre seus efeitos
gia como estratégia de primeira linha no antidepressivos. Surgia, assim, o primeiro
tratamento dos transtornos mentais, essa grupo de medicamentos antidepressivos,
disciplina trouxe importantes contribui- que ficaram posteriormente conhecidos
ções para o entendimento dos substratos como inibidores da MAO (IMAO). Essa
neurobiológicos de diferentes transtornos classe de antidepressivos foi rapidamen-
mentais, incluindo a depressão. Ainda na te introduzida na prática clínica e larga-
década de 1950, o psiquiatra suíço Ro- mente utilizada para o tratamento da de-
land Kuhn (1912-2005) descobriu aciden- pressão. Todavia, sua ascensão foi tão rá-
talmente o efeito antidepressivo específi- pida quanto seu declínio. A gravidade dos
co da imipramina, molécula com proprie- efeitos colaterais observados levou à reti-
dades anti-histamínicas, anticolinérgicas rada da maior parte dos IMAOs do merca-
e sedativas, no tratamento da síndrome do em nível internacional e culminou com
depressiva. Kuhn descobriu a utilidade a ascensão dos ADTs.22
clínica da administração do antidepressi- Conforme descrito previamente, na
vo tricíclico.20 A partir dessa descoberta, década de 1950 registrou-se uma verda-
outros antidepressivos tricíclicos (ADTs) deira revolução na psicofarmacologia e na
foram desenvolvidos, como a amitripti- psiquiatria com a introdução, na prática
lina, a desipramina e a nortriptilina, to- clínica, dos principais grupos de agentes
dos com diferentes propriedades farma- psicoativos utilizados até os dias de ho-
cológicas. Entre elas, a inibição da recap- je. Por esse motivo, a década de 1950 é
tação de noradrenalina (NA) parecia ser frequentemente considerada a “década de
a mais importante, reforçando a hipóte- ouro” da psicofarmacologia mundial. No
se proposta por Joseph Jacob Schildkraut, que concerne ao grupo dos antidepressi-
em 1965, de que a depressão seria o resul- vos, a descoberta dos efeitos antidepressi-
tado de um déficit central de NA. De acor- vos da iproniazida e da imipramina mar-
do com a teoria, a deficiência de NA resul- cou uma nova era no tratamento da de-
taria em depressão, enquanto seu exces- pressão, e a ECT deixou de ser a única
so resultaria em mania. Essa teoria ficou alternativa de tratamento biológico eficaz

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disponível. A visão psicanalítica predomi- prescrito no mundo e com maior número


nante na psiquiatria da primeira metade de publicações científicas.22
do século XX criticou veementemente os A partir da década de 1980, teste-
avanços da psicofarmacologia, argumen- munhou-se um expressivo desenvolvi-
tando que o uso de psicofármacos inviabi- mento das neurociências, viabilizado pe-
lizaria a descoberta dos conflitos psicoló- lo rápido desenvolvimento de tecnologias
gicos subjacentes à depressão. Porém, tais que possibilitaram a avaliação estrutural,
avanços possibilitaram a desejável reapro- funcional e molecular do cérebro in vivo.
ximação da psiquiatria com a neurobiolo- Tais avanços levaram à elucidação de di-
gia e, assim, com as demais áreas da me- ferentes mecanismos neurais subjacen-
dicina.16,22 tes ao comportamento humano e amplia-
Entre 1969 e 1970, os farmacologistas­ ram substancialmente as possibilidades
russos Izyaslav P. Lapin e Gregory F. de investigação das síndromes psicopa-
Oxenkrug postularam a hipótese serotonér- tológicas. Assim, o progresso tecnológi-
gica da depressão, em oposição à hipótese co e o desenvolvimento de psicofárma-
noradrenérgica vigente até então. A hipóte- cos aproximaram a psiquiatria da neu-
se serotonérgica sustentava que a presença robiologia e consolidaram o processo de
de um déficit de serotonina na fenda sináp- elevação da psiquiatria ao mesmo pata-
tica em certas regiões do cérebro era uma mar que as demais especialidades médi-
das causas bioquímicas das síndromes de- cas. A exploração da biologia da mente
pressivas.23 alterou fundamentalmente a conceituali-
Os IMAOs e os ADTs, como descrito zação de doen­ça mental, a prática da psi-
anteriormente, foram descobertos aciden- quiatria e o treinamento dos futuros pro-
talmente, graças a minuciosas observações fissionais.7,24,25
de alguns pesquisadores. A demonstração Estudos recentes têm sugerido que
da eficácia das primeiras classes de anti- a elevação dos níveis de monoaminas na
depressivos constituiu-se em fonte de evi- fenda sináptica não parece ser o mecanis-
dência robusta acerca das alterações neu- mo farmacológico que medeia a melhora
roquímicas na depressão, inaugurando um clínica, ou pelo menos não é o mecanismo
novo movimento na farmacologia e na psi- final relacionado à melhora clínica. A ele-
quiatria: o desenvolvimento intencional vação dos níveis de monoaminas na fen-
de substâncias capazes de agir na neuro- da sináptica desencadearia uma série de
transmissão. Em 1974, alicerçado na hipó- alterações neuroquímicas intracelulares
tese serotonérgica da depressão, um grupo capazes de provocar modificações na ex-
de pesquisadores patrocinados pela indús- pressão gênica, o que se traduziria em um
tria farmacêutica desenvolveu uma molé- aumento da síntese de fatores neurotrófi-
cula capaz de inibir de forma seletiva e po- cos e consequentes efeitos na neuroplas-
tente a recaptação da serotonina, a fluo- ticidade (p. ex., aumento da neurogênese
xetina. Surge o primeiro inibidor seletivo no núcleo denteado, aumento da sobrevi-
da recaptação de serotonina (ISRS), uma da e arborização neuronal). Essas altera-
classe de antidepressivos que popularizou ções neurobiológicas parecem ser críticas
o tratamento farmacológico da depressão para o efeito terapêutico dos antidepres-
a partir de uma considerável melhora no sivos. Embora o desenvolvimento de no-
perfil de tolerabilidade quando compara- vas classes de antidepressivos tenha tra-
da com os IMAOs e ADTs. Rapidamente, a zido indiscutíveis avanços na tolerabili-
fluoxetina tornou-se o antidepressivo mais dade desses fármacos, não houve avanço

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Depressão 27
em termos de eficácia quando compara- tria como especialidade médica, visto
das com os chamados antidepressivos de que, pela primeira vez na história dessa
primeira geração, de modo que o futu- especialidade, se discute um diagnóstico
ro da psicofarmacologia parece depender com validade determinada e com meca-
de uma migração de mecanismos de ação nismos fisiopatológicos e etiológicos am-
“mais superficiais”, em nível sináptico, pa- parados por evidência científica robusta.
ra mecanismos intracelulares. Em outras Essa nova abordagem baseada em uma
palavras, da neurotransmissão para a ex- perspectiva neurológica e psiquiátrica
pressão gênica.22 permitirá o desenvolvimento de ensaios
Com a consolidação definitiva da clínicos em populações específicas para
psiquiatria como especialidade médica no avaliar os padrões de resposta a diferen-
século XIX, impôs-se o desafio de mudan- tes estratégias terapêuticas. Abre-se tam-
ça do paradigma diagnóstico dos transtor- bém a perspectiva do desenvolvimento
nos mentais, exatamente como ocorreu de abordagens preventivas e terapêuticas
com outras especialidades médicas. Os centradas na correção de alterações neu-
avanços nas neurociências registrados nas robiológicas subjacentes, ampliando de-
últimas décadas têm se mostrado promis- finitivamente os horizontes do diagnósti-
sores, lançando bases para um paradigma co e do tratamento psiquiátricos.27
fisiopatológico do diagnóstico psiquiátri-
co. Nesse contexto, pesquisas envolvendo
indivíduos com depressão têm apresen- REFERÊNCIAS
tado um papel de destaque. Baseado em
descrições de Gaupp (1905), o grupo li- 1. Rousseau G. Depression´s forgotten genealo-
gy: notes towards a history of depression. Hist
derado pelo pesquisador K. Ranga Rama Psychiatry. 2000;11(41 Pt 1):71-106.
Krishnan lançou o conceito de depressão 2. Cordás TA. Depressão: da bile negra aos neu-
vascular (inicialmente descrita como de- rotransmissores, uma introdução histórica. São
pressão arteriosclerótica) ou, mais preci- Paulo: Lemos; 2002.
samente, depressão isquêmica subcorti- 3. Radden J. The nature of melancholy: from Aris-
cal (DIS). Tal termo descreve um processo totle to Kristeva. New York: Oxford University;
2000.
específico, análogo ao recentemente des-
4. Lawlor C. From melancholia to prozac: a his-
crito para a demência vascular isquêmi-
tory of depression. New York: Oxford Universi-
ca, preenchendo requisitos para validade ty; 2012.
diagnóstica. A DIS tem uma descrição clí- 5. Nicol WD. Robert Burton´s anatomy of melan-
nica com critérios diagnósticos bem esta- choly. Postgrad Med J. 1948;24(270):199-206.
belecidos: pode ser identificada por meio 6. Pereira MEC. Griesinger e as bases da “Primeira
de exames laboratoriais (imagens de res- psiquiatria biológica”. Rev Latinoam Psicopatol
Fundam. 2007;10(4):685-91.
sonância magnética); pode ser claramen-
te diferenciada de outros transtornos 7. Cunningham MG, Goldstein M, Katz D, O’Neil SQ,
Joseph A, Price B. Coalescence of psychiatry, neu-
mentais; não é associada a fatores fami- rology, and neuropsychology: from theory to prac-
liares; e os achados de ressonância mag- tice. Harv Rev Psychiatry. 2006;14(3):127-40.
nética podem influenciar o prognóstico 8. American Psychiatric Association. Manual diag-
longitudinalmente.26 nóstico e estatístico de transtornos mentais:
DSM-IV-TR. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2002.
O conceito de DIS certamente re-
presenta um marco na evolução do con- 9. Organização Mundial de Saúde. Classificação
de transtornos mentais e de comportamento da
ceito da depressão como entidade noso- CID-10: critérios diagnósticos para pesquisa.
lógica em particular e na própria psiquia- São Paulo: Artes Médicas; 1993.

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28 Quevedo & Silva (orgs.)

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