sobre aquele grande rio Eufrates Apocalipse XVI, 12
Somos verdadeiramente pessoas seguras de si
Longe de nós — que fará ele aqui? — o pensamento de um dia deixarmos atrás de nós um corpo lembranças nossas em alguém vazios os lugares onde estivemos Quem nos dirá a nós que lá no mar as ondas não venham ainda a precisar de serem vistas para continuar a nascer e a rebentar? Vamos ao ponto de dar nomes de mortos às ruas como se os mortos não pudessem voltar a morrer o que afinal a gente vê todos os dias Escondemos-lhes os ossos. Algum de nós era digno de saber o que resta do seu grande segredo? Não queiras levantar agora a capa da terra só para os veres dormir seu vasto sono horizontal Trincamos tudo: o pão que nos pertence o pão alheio e o mais que os nossos dentes encontrem à disposição Nem nos perturba essa pesada dignidade de recebermos de pé em plena face as estações e de saudarmos à passagem os homens e o tempo Precisámos que alguém nos ensinasse onde olhar as mulheres de corpos excessivos para algumas pás de terra e que lugar no coração lhes dar? Olhai que bem nos fica andar na rua pelo braço de alguma ideia respeitável ousada sem excessos devidamente garantida Dispomos de nomes para todas as coisas conhecemos todos os cheiros todas as promessas temos na vida uma situação privilegiada É ver quem ao morrer põe mais anúncios no jornal como se de outras tantas vidas dispusesse ou pudesse morrer um pouco mais em cada uma delas Se até há entre nós quem faça versos com todas as licenças necessárias Ao de cimo da pele — da pele sim minha senhora — ainda temos bolsos e canetas nos bolsos e muitos outros pequeninos objectos e soluções nos bolsos para a vida e para a morte Somos verdadeiramente pessoas seguras de si
Como vagas rebentam nesta vida as gerações
Por elas pelas palavras que não foram proferidas pelos mortos na estrada pelo preto que acaba de saltar dois metros ou mais em altura por quem à despedida quis ouvir a nona sinfonia de beethoven pelas mulheres de leopoldville pelos directores gerais interinos pelo sexo que trouxe até nós que fomos no princípio apenas dois nossos primeiros pais pelos excessos do estio que obrigam os poetas a escrever em julho os poemas de natal ou na páscoa seguinte aqueles que celebram o pai morto imolando às imagens o que fora delas pereceu por todo o sangue justo derramado na terra depois de abei mesmo depois muito depois de zacarias filho de baraquias morto entre o templo e o altar oh como é digno de louvor o velho que regressa na hora de partir aos seus gestos mais simples ou as crianças que ainda se olham cheias de surpresa no corpo recentemente adquirido Oh como é doce para mim saudar-te a certas horas quando a chuva cai e me é dado adivinhar-te por trás das palavras ditas apenas para orientar o coração Vejo-te então preparada e tensa como um arco e a inclinação com que solícita me atendes acompanha a forma leve e sinuosa do que temos a dizer Tão fresco é o teu riso que quase te direi recém-nascida Enquanto eu mordo contra o muro a cúpula do riso inclinas tanto os vagarosos braços que a tarde desce sensivelmente por eles até configurar-se em tuas mãos E o teu olhar está tanto nos teus olhos profundamente abertos neste vale de lágrimas que em duas gotas negras ele cai nas minhas faces mortais Num sobressalto de pálpebras abriu-se o céu de um poema
Dia a dia mal o sol subir pela manhã acima
e alcançar conveniente altura escreverei em tua honra esse poema a que a tarde virá pôr um ponto final tão rubro como um poente e chamar-lhe-ei o poema de um dia
Todos os dias são poucos para chorar o homem
embora ele chame em seu auxílio as árvores ou se descubra sempre que a tarde passar O homem que depois do poema não diga «agora já posso morrer tranquilo» nem deseje ideias regulares como as horas de trabalho na paz relativa das derrotas adiadas Seja quem for que nunca peça «depressa um carro o mais descapotável possível»
Deixará o poeta anónimas algumas
das palavras que deus lhe pôs na boca ou esses longos versos onde cabe a emoção? Quantas vezes nesse obscuro instinto de escrever o poema terá sido para ele mais que o lugar onde ia ver-se livre das palavras que o sobrecarregavam? Estará ele disposto a abandonar o requintado gosto que têm as leituras junto ao vão da janela?
Senhores dos planos de urbanização
responsáveis pela paisagem cuidado com o poeta na cidade Não há nem pode crescer na rua árvore mais inútil que a palavra do poeta
Há salas espaçosas em muitas das palavras
Quantos de nós não me dirão andam na vida seriamente à procura de um nome? O mal deve afinal estar em sermos quem somos e não querermos sê-lo Nascemos e morremos e nada acontece da primeira à última palavra sempre que entre nós falamos Não há ideia que não puxemos para de baixo do sol esse sol que de muitos cresta a pele nas exóticas praias das antilhas entre palavras postas onde fora o coração Por vezes nem coração nem palavras sequer apenas mornos sentimentos como gatos bons para nos levar a atravessar o dia Alguém conseguirá ser mais prudente que nós? Houve algum sábado em que não deixássemos a bandeira da repartição a meia haste por aqueles que haviam de morrer só no domingo? Fazemos colecção de impulsos ternos e a vida sobre a terra é uma questão de tempo Demos outrora um nome a cada coisa houvemo-las assim por nossas e opusemo-las dentro de nós à natureza exterior Em cada telefone levantámos uma esperança Passámos nos vidros das montras das cidades e o breve tempo que passámos ficámos Quando o silêncio um dia nos unir então seremos todos nós palavras Ainda hoje há muitos que procuram paz essa paz que se sente ao descer na estaçãozinha de província curiosamente chamada emaús Entremos nos correios ao domingo que talvez certo postal nos leve a dar por ganho o dia A verdade a verdade o que é a verdade? Banhamo-nos às vezes num olhar que faz lembrar aquele antigo rio quando não era ainda o chão o necessário porto onde vão dar as coisas os seres e as folhas e o homem depois de morto Mas permanentemente não nos é possível (um dia outra vez o princípio os telefones tocarão interminavelmente e correrão sem fim todas as fontes pelas imensas manhãs de amanhã) ter a cidade de Jerusalém na frente ó meu senhor da face persistente Inútil nos seria buscar quem aquém do rio de todo em nós jogasse aquela vida que plenamente existe só na nossa voz A verdade meu deus é a cidade que nasce onde e porque os teus olhos e os meus após chorar se olharam
E vejo-te mulher sair dos velhos dias
e ajoelhar numa nuvem de névoa com os teus joelhos puros sobre a nossa miséria de homens de medos e o nosso ser caído e pelo ferro corroído erguê-lo à altura do teu filho que nem sequer pode estender os braços contra os nossos templos domésticos e até lhe escondemos a face entre paredes E procuras no túnel da grande cidade esse teu filho perdido há já três dias entre as minhas palavras e não o podes encontrar porque elas têm tantos ombros pelo menos como a multidão e porque eu para ti até aqui não tinha mais que algumas palavras primordiais tontas palavras pedidas emprestadas às modernas doutrinas estéticas
Dois braços dois olhos vinte dedos na melhor das hipóteses
eis os limites do sonho do homem Sentado deitado de joelhos de pé eis as suas possíveis atitudes E em caso de necessidade é o mesmo o local onde se irá sentar Ah a grande solidariedade que nos vem da mesma carne de termos iguais braços e de abrirmos os mesmos olhos sobre os telhados e a vida o mesmo ouvido para ouvirmos o trovão na noite em que se isolam todas as palavras O que nós temos é principalmente sono Planetas sem luz própria ilumina-nos pontualmente a aurora. Novos passos levarão a nossa morte diária vinte e quatro horas mais longe Já na cidade começam os despertadores a disputar o cântico harmónico dos galos Ainda agora havíamos morrido e já saltamos novos dos lençóis da aurora Vai funcionário arranjado e composto inaugurar o teu dia com prateleiras para todas as ideias por estas ruas que começam a movimentar-se Se vês passar a camioneta para a ericeira vai mesmo assim para o emprego e não para a ericeira e afasta a tentação de sempre seres outra coisa porque é de deus este e qualquer outro dia Somos do povo nós ó funcionário. Ainda bem Sentimos sob os pés a terra Eles lá nos ministérios porém com tão ampla vista sobre o tejo julgam ter deus mesmo à mão E este o cais. Daqui modernos épicos navegações verbais praticaremos a bordo de um conceito ou de um perfume e lentamente ingressaremos no dia e na neblina A mulher que por nós passa tem cara todos nós residentes e domiciliados num corpo temos cara e ter cara é uma responsabilidade enorme Entrarmos na garagem talvez diga alguma coisa a quem mais que em si próprio encontra em nós que assim vistos de costas só por fora somos aquilo que no íntimo tanto foi que nunca o foi Atenção meu amigo às modernas quadrigas que o sol nascente manda pelas ruas Olha uma raça assim de santos e heróis em linha pelas ruas da cidade a alimentar o ritmo regular do trânsito Momentaneamente libertos da noite armamo-nos de coração para o dia que mesmo agora abriu em pássaros Morreu antónio arroio e hoje os meninos da escola antónio arroio são tão estúpidos como todos os meninos e esquecem-se que ali morreu um homem Aqui estamos nós homens sujeitos ao tempo Que lindos corpos temos com que graça os libertamos do inverno e vamos por aí Sabes dizer-me amigo que interesses serve o riso que nasce nas faces das crianças? Não terás quem te empreste um cego lastimável? — o sábado é o dia em que saem para a rua — talvez assim mereças piedade Longe vai o tempo em que tu homem sem amanhã trincavas à socapa o milho à porta da mercearia na remota aldeia E aí vamos nós cheios de música nostálgicos de ausência ricos de horizontes com o nível de vida expresso no olhar Em quem tem carro dispensa-se a virtude ele afasta de nós qualquer obstáculo — pensam os intelectuais da venda de automóveis olhando-se no espelho lívido do stand Comamos e bebamos que amanhã morreremos Diverte-te noite e dia gilgamesh desfruta do espectáculo das crianças mais atraente na verdade que o das sombras quando atravessam o rio houbour Oh as falas sem futuro de manhã no autocarro um autocarro de reivindicações Caminhamos para a morte sobre os pés As novas casas vêm apagar em nós a memória das velhas A quem darão estas faces anónimas que passam — oh este homem de pé um homem velho não no deixes perder senhor tu que o criaste — pequenas alegrias ao chegar a casa? Alegrias sem conto terá hoje a cidade Deixai senhoras que passais para o mercado cair o coração na esquina junto à mulher que sofre entre folhas de outono Ela merece muito mais que os velhos que ali estão completamente ao sol quais crianças ou choupos Somos a solidão onde a chuva acontece e essa gota de água em nós é um acontecimento Tão rápidas vieram as chuvas este ano que conseguiram surpreender ainda pelas ruas os braços das mulheres. Já entre as árvores cessou a troca habitual dos pássaros Santa teresa com desejos de comungar e a chuva a não a deixar sair O pecador já com um pé na direcção do mal e a chuva a não o deixar sair Amanhã passaremos sob a água com um chapéu aberto e um cão pela trela e insensivelmente meteremos por paisagens de litografia inglesa Dia de chuva e nós assim tão sós no pórtico do templo há tantos anos: mil, dois mil, novecentos e cinquenta e tantos? A cem séculos de distância meto moedas no saco Não tem nome o mistério do fogo que lambe lábil como o pensamento quem no outro inverno fomos O tempo tem passado extraordinariamente Agora que a aragem fria vem de novo quebrar uma ânfora de memórias na linha dos umbrais e roçar antigas asas contra a nossa pele talvez possamos desfraldar as palavras necessárias à sensibilidade do tempo que ao longo da avenida certas tardes cai tão concentrado como uma pedra a dois passos de nós. Alguém arrasta periféricos véus sobre as searas e passa mãos cheias de dedos pelo fumo das casas Alguém passou por aqui decerto alguém passou por aqui. Não vedes mortas folhas que não há muito tinham coração e manchado de sangue o caminho que leva à cidade que há para além das montanhas Eu sei que são inúteis os nossos raciocínios e as propostas de caminhos rectos E se ele passar por aqui (ou por outro sítio) dentro de um mês ou de um ano talvez veja em nós as mesmas faces orientadas que insistem suavemente na direcção da cidade Não deu o calceteiro a volta ao quarteirão nem a flor da sacada emitiu catorze folhas — só nove bastariam — sem o inverno vir Quando o tempo traz de novo às árvores o fruto erguemos as cabeças dignamente A primavera sempre quando chega estende sobre nós uma toalha de esperança e o céu começa logo acima das cabeças Não estamos sós há vida sobre a terra Bóia no ar da tarde um assobio e o próprio vento não nos é desconhecido Há um homem à sombra das árvores de junho tem uma certa forma de olhos onde nasce deus e é tão surpreendente tão desprevenido como uma criança O ser que amamos nesses meses enche toda a rua Se uma mão de calor nos mata de cansaço e as planícies se lavam no nascer do sol entregamos os corpos à ventura Não és tu a minha estação ó verão instalado Afastamos com água das árvores o outono Já os dias começam a diminuir ouve-se ao longe o búzio da azeitona — deixa cair agora os gestos mais simples com que te defendias de inimigos como as plantas as crianças e os dias Colheram as maçãs ainda não choveu e o manto da inocência cobre como antes a criança que ainda não quer ver o nome nos jornais: o olhar é para ela só olhar e não possível ponto de partida do poema Iremos até onde as folhas caem é possível que o outono seja lá Que bem estamos em nós nem outrem nos sonhamos são impossíveis qualquer passado ou futuro Enfeitamos com trapos nossos símbolos os paus e aproximamos o pássaro da rosa enquanto fores mandando ao nosso encontro dias e não chegar a hora de sairmos da história como o sol sai agora por detrás do mar E o mar sempre lá no lugar onde está fronteiro à face momentânea dos homens Que mágicos não são prédios em construção abandonados ao anoitecer E outra vez nós temos sobretudo sono
Ah o movimento súbito dos carros rente à noite
e os amantes a medo preparando as novas mortes de cristo pelos meios que a técnica lhes veio proporcionar As nossas cidades ao cair da tarde Talvez estas estradas consintam jesus cristo um entre nós na nossa freguesia mas dando ao mesmo tempo sentido a tudo isto Tu és senhor um deus verdadeiramente ofendido Andaste nestas regiões de terra para terra é mentiroso todo aquele que te nega o mundo passa é a última hora É inútil repito. As ruas da cidade de tão orientadas não vão dar ao coração Os versos que erguemos ao longo dos passeios coagularam em ilhas que a indiferença rodeou de silêncio e ao roçar o asfalto até adquiriram seguras cotações nos mercados onde vendem as palavras Os homens passam de mãos nos bolsos com a despreocupação de quem escarra poentes em bocas rubras comprometendo assim uma esperança municipal em cada esquina Não é possível quando o autocarro passa configurar o sentimento e atravessar com ele pela mão e chamar-lhe mulher como se o fosse Quantos de nós senhor exigimos mais espaço — muito menos decerto bastaria para estar à vontade no teu reino a troco de uma renda razoável Desses-nos tu somente o corpo indispensável para sentir o vento quando passa e para devolver-te o tempo que nos deste Longe do dia definitivo poupamos gestos (no fundo só as crianças os sabem perder) demos a volta à cidade em tardes de domingo todos tínhamos sítios precisos onde ir Afasta-nos senhor do caminho e dos olhos essa cruz lembra-te ao menos da nossa honesta cidade onde todas as ruas têm um sentido e os homens sabem bem aonde se dirigem todos eles o sabem só tu não Olha que acontecimentos nos esperam ao fim da rua ou ao fim da semana Vamos compondo hoje e amanhã a face que havemos de mostrar aos outros na nossa habitual órbita de astros Tem cães e gatos tem espinhas o nosso dia: ousaremos aproximá-lo de ti queimá-lo nesses lábios onde todo o tempo tem oriente e poente nascimento e morte? Terras de zabulon e de neftali mesmo cafarnaum nalguma delas foste assim estrangeiro? Triste destino o teu: morreres na minha boca tu que és o responsável pelo vento que tinhas os teus ombros sem regresso prometidos ao céu sobre Jerusalém És o mais singular dos meus amigos oferecendo ao tempo a arca do teu peito quando ainda limite algum de idade te atingira Quererás tu recolher nossos dias iguais? Olha a pressa com que os dias se sucedem uns aos outros nesta terrível terra que uma vez teus pés senhor pisaram e deixaram Poucos são os que vêem ser vistos por ti único olhar que não se cruza nestas ruas onde todos nasceram e vão desaguar Mas como aproximar-te nestes dias de vento se a vista se nos prende a todos os joelhos desde logo uma altura muito inferior aos teus olhos? Baixássemos senhor o nosso pobre olhar em vez de o deixarmos exceder o nível médio das águas do mar
Como era o teu rosto?
Saberão muitos hoje os caminhos que a ele vão dar? E quantos há que fogem a dobrar diante de ti seu pobre joelho esfolado? Todos fazem render estavelmente o rosto que lhes deste ninguém te ama além do combinado ou fora de um prudente horário de trabalho Raros aqueles que feridos pelos homens regressam findo o dia ao teu convívio E atrás de nós um monstro — uma besta escarlate? — lentamente se elabora também ele beberá do cálice da tua ira Deixámos-te só senhor deixámos-te só de braços estendidos contra os nossos dias abolindo as mais sólidas paredes - quem não for irmão dos meus irmãos nem mesmo é meu irmão Fomos todos ao encontro de nós próprios se olhamos para o céu é na expectativa do que nos possa trazer alguma lua nova - já o santo o sabia nesse tempo os homens sempre foram os mesmos Não saberás de algum remédio convincente para abalar um coração tristemente contente? Terás no fim para nós uma morte tão funda que nos separe de todo o mal que fizemos e assim nos aproxime do bem que desejámos? Quando vieres pela estrada de sião então afastarás de nós a impiedade Nós somos os das tendas aqueles para quem não é possível a transfiguração Só duvidam um pouco de si aqueles a quem já tu senhor pediste alguma vez alguém O nosso deus é um deus ofendido