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Especial - 2012
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RESUMO
A substituição de nós por a gente tem sido amplamente estudada no português
do Brasil (doravante PB), por diversos autores (OMENA, 1986, 1996, 2003;
LOPES, 1993; SEARA, 2000; FERNANDES, 1997, 2004; LAUREANO,
2003; ZILLES, 2005, 2007; TAMANINE, 2010; entre outros), que indicam o
estágio avançado desse processo de mudança, sobretudo na língua oral. Todavia,
com relação ao português europeu (daqui por diante PE), a pesquisa científica
tem sido pouco produtiva e pouco se podia afirmar sobre tal variação em
terras lusas. Adotando-se orientação teórico-metodológica da Sociolinguística
laboviana (LABOV, 1994), em Vianna (2011), foram utilizadas amostras de
fala espontânea referentes às duas variedades do português. Os resultados de
tal investigação indicam que a variação entre as formas de primeira pessoa do
plural no PE, embora apresente semelhanças com o que se observa para o
fenômeno no PB, é fundamentalmente determinada por fatores sociais e não
caracteriza um processo de mudança em curso.
Palavras-chave: mudança linguística; pronomes; variação linguística.
ABSTRACT
The substitution of “nós” for “a gente” have been extensively studied in
Portuguese of Brazil, by several authors (OMENA, 1986, 1996, 2003;
LOPES, 1993; SEARA, 2000; FERNANDES, 1997, 2004; LAUREANO,
2003; ZILLES, 2005, 2007; TAMANINE, 2010; among others), indicating
the advanced stage of this process of change, especially in spoken language.
However, with respect to European Portuguese, scientific research has been
unproductive and anything could be said about such a change in Portugal.
INTRODUÇÃO
Em função da pouca tradição que os estudos sociolinguísticos
gozam em Portugal1 até bem pouco tempo era insuficiente o que se sabia
acerca da variação entre nós e a gente no PE. Embora as monografias
dialetais produzidas tanto no continente, quanto nas áreas insulares da
Madeira e dos Açores, desde muito cedo registrassem a existência do a gente
pronominal (BUESCU, 1961; MOURA, 1960; MEDEIROS, 1964; CRUZ,
1969; NUNES, 1965; FARIA, 1997; entre outros), não havia descrições
sociolinguísticas para o fenômeno variável2.
Tendo em vista essa lacuna na pesquisa científica, em que a
variação entre as formas de primeira pessoa do plural ainda se mantinha
pouquíssimo investigada, foram utilizadas amostras de fala organizadas
pelo Projeto bilateral “Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades
africanas, brasileiras e europeias”, de acordo com o arcabouço metodológico
da Sociolinguística laboviana. Tais corpora incluem entrevistas coletadas
em dois pontos na Grande Lisboa (Oeiras e Cacém). Posteriormente,
novos inquéritos foram realizados na cidade do Funchal (capital da
Madeira) e passaram a fazer parte da base de dados do Projeto, como sendo
representativos da porção insular da nação portuguesa.
1
A pouca tradição de tais estudos em Portugal acarreta alguns grandes entraves para que se
desenvolvam pesquisas de cunho sociolinguístico. Um desses obstáculos é a não-existência de
corpora adequados que focalizem informantes do PE. A maior parte do material desenvolvido
em Portugal é constituída por entrevistas de curta duração, produzidas para pesquisas com fins
dialetológicos.
2
O trabalho de Lopes (1999, 2003) foi a única descrição localizada levando-se em conta os
parâmetros da sociolinguística e dados de língua oral do PE e do PB, simultaneamente. Há,
contudo, limites nas conclusões da autora, já que não havia o equilíbrio perfeito entre as amostras
das variedades brasileira e europeia.
Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 14 Número Especial: 95-116. 2012
Vol.14 - N. Especial - 2012
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2. Fatores selecionados no PE
Entre os grupos de fatores linguísticos controlados, três foram
apontados como relevantes na variação entre nós e a gente para o PE, na
seguinte ordem: (1º) pessoa verbal; (2º) preenchimento do pronome sujeito;
e (3º) paralelismo formal e semântico. Entre os fatores sociais, quatro
destacaram-se como influentes na alternância das formas de 1ª pessoa do
plural, a saber: (4º) localidade; (5º) escolaridade; (6º) gênero; e (7º) faixa
etária. Tendo em vista tal resultado, ilustrado no quadro 1, pode-se dizer
que chama atenção a elevada importância do encaixamento social para o
fenômeno variável no PE, principalmente se tivermos em perspectiva que
todos os fatores não-estruturais foram selecionados, como será mais bem
discutido no decorrer do artigo.
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- A gente + P3
(1) “...eu ia com os meus irmãos pra rua... a gente brincava...” (Amostra
Cacém: dado 249, M1A)
- A gente + P4
(2) “... vamos pra Rio de Mouro de vez em quando e a gente vamos a andar
na beira das estradas e encontramos lá...” (Amostra Cacém: dado 26
– M1B)
- Nós + P4
(3) “...preparo o que está para preparar e Ø jantamos...” (Amostra Oeiras:
dado 100, M2C)
- Nós + P3
(4) “...é que que nós nos nos conhecemos todos e Ø trocamos números e agora
Ø fala-se e isso...” (Amostra Funchal: dado 407, M2A)
CONCORDÂNCIA VERBAL NO PE
Fatores Aplicação/Total % PR
P3 292/294 99 0.99
P4 63/1719 3 0.25
(5) “... onde eu estou por exemplo acontece muito isso a gente temos pessoas
mais do Norte ( também se vê ) muito...” (Amostra Cacém: dado 234,
F1A)
(6) “...nem pensar agora (pegar)/é sempre dispendioso... a gente quanto
mais perto vivemos do trabalho melhor mas...” (Amostra Cacém:
dado 571, M1C)
(7) “... e eles vão brincar até quando quiserem e eu vou-lhes dar isto... e a
gente temos que tar a levar com isso não é? possa no meu tempo se eu
dissesse isso a minha mãe levava uma lambada... não é?” (Amostra
Cacém: dado 615, F3B)
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(8) “...é que que nós nos nos conhecemos todos e Ø trocamos números e
agora Ø fala-se e isso...” (Amostra Funchal: dado 407, M2A)
(9) “... mas nós o pequeno nuca teve direito a regalias a nível da CEE...”
(Amostra Cacém: dado 349, M2A)
- Nós expresso
(10) “...por exemplo...eu vou-lhe dar um exemplo...nós estamos numa paragem
de autocarro não é? tão pessoas idosas...” (Amostra Cacém: dado 66,
M1C)
- Nós não-expresso
(11) “...no meu tempo não era assim não era assim Ø tínhamos tínhamos
os nossos pais educaram-nos nós íamos aprender...” (Amostra
Oeiras: dado 289, M1C)
- A gente expresso
(12) “... isto obviamente é o mesmo que numa família a gente tar continuamente
a pedir dinheiro para comprar...” (Amostra Oeiras: dado 47, M3B)
- A gente não-expresso
(13) “... e a gente tem aguentado tudo isso... (sei lá) se Ø não terá mais pra
aguentar...” (Amostra Cacém: dado 716, F1B)
EXPRESSÃO DO SUJEITO
Fatores Aplicação/Total % PR
Pleno 327/680 48 0.90
Nulo 33/1339 2 0.24
TOTAL 360/2019 18
(14) “...não que a gente queira mas por...a gente também não sabe quem
Ø encontra ...” (Amostra Cacém: dado 635, M1C)
(15) “...a gente fomos se embora Ø vimos ele a meio caminho...” (Amostra
Cacém: dado 282, M1B)
PARALELISMO FORMAL
Fatores Aplicação/Total % PR
Realização isolada 43/192 22 0.60
Primeiro da série 80/347 23 0.50
Antecedido por a gente 165/244 67 0.88
Antecedido por nós 68/1230 5 0.38
LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA
Fatores Aplicação/Total % PR
Lisboa/Oeiras 68/787 8 0.25
Cacém 152/691 21 0.58
Funchal 140/541 25 0.75
2.6 O gênero
O gênero foi o sexto fator selecionado pelo Programa Goldvarb,
sendo o terceiro entre os fatores sociais apontados como relevantes para
a variação entre nós e a gente no PE. Tal variável leva em consideração a
possibilidade de existência de usos linguísticos que sejam mais comuns
entre o gênero feminino ou entre o gênero masculino, muito embora, nas
sociedades ocidentais, essas diferenças tendam a ser sutis. Corroboram
para isso inúmeros agentes que se relacionam à evolução das sociedades
modernas como, por exemplo, a entrada das mulheres no mercado de
trabalho, que antes era um território exclusivamente masculino, e a maior
participação dos homens nas tarefas domésticas, que no passado eram
reservadas apenas às mulheres. Todavia, inúmeras pesquisas apontam a
existência de uma maior sensibilidade, por parte das mulheres, com relação
ao status social atribuído pela comunidade às variantes linguísticas.
A tabela 6 sintetiza os resultados da variável gênero na variação entre
nós e a gente, nos dados do PE:
Fatores Aplic./Total % PR
Faixa 1
63/543 11 0.43
(de 18 a 35 anos)
Faixa 2
149/886 16 0.40
(de 35 a 55 anos)
Faixa 3
148/590 25 0.69
(56 anos ou mais)
Considerações finais
A comparação entre as variedades brasileira e europeia, no que se
refere à variação entre nós e a gente, aponta semelhanças, especialmente
quando se tem em vista a atuação dos fatores linguísticos. Todos os fatores
linguísticos selecionados na investigação já foram anteriormente apontados
em pesquisas realizadas no PB.
Por outro lado, com relação aos fatores sociais, há grandes diferenças
no comportamento das duas variedades. Enquanto no PB há preferência
pelo uso inovador entre os jovens, claramente indicando mudança em
curso, no PE o comportamento das faixas etárias mais novas é bastante
conservador.
Além disso, no que se refere à escolaridade, o PE indica a diminuição
do emprego da forma inovadora, à medida que aumenta a escolarização do
falante. No PB, por sua vez, isso não ocorre, o que indica não haver estigma
associado ao uso da forma no desempenho oral dos falantes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORBA, L. R. Alguns aspectos sobre o uso de “nós” e “ a gente” em Curitiba.
Fragmenta, UFPR, n. 10: 65-76, 1993.