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A figura do bourgeois renascentista, conviva da aristocracia pré-
revolucionária, evoca este homem civilizado – apreciador das artes, da
gastronomia requintada, do vestuário alinhado. Elegante, culto, incentivador
das ciências humanas e naturais, cultiva a arte das boas maneiras, da
linguagem polida de referência cortês. Educado nas academias, poliglota, é
refinado no trato com seus semelhantes.
A imagem do homem burguês do século XVIII representa, no
imaginário ocidental, o ápice desta cultura romântica apolínea. A perspectiva
apolínea sustenta o modelo metafísico socrático de reforço dos valores morais
de Justiça, Beleza, Bondade e Verdade, referências do homem civilizado. A
metafísica apolínea, portanto, segundo Nietzsche, evoca “a verdade superior,
a perfeição desses estados na sua contraposição com a realidade cotidiana tão
lacunarmente inteligível (...).”1
E neste imaginário, ao polido homem da cultura é contraposto seu
outro: o bárbaro. A negação do convívio amistoso e a ruptura com as regras e
os limites impostos pela civilização caracterizam os atos daquele que, por
atavismo ético ou estético, não ultrapassou a infância da humanidade e, em
consequência, não atingiu a segunda natureza, a natureza domada pelas
disciplinas da cultura.
A representação do bárbaro como esteticamente feio e moralmente
corrompido, como perverso desprovido de freios inibitórios cujo habitat é
estabelecido nas margens da cultura, solidifica a imagem do civilizado como
virtuoso frequentador do cotidiano urbano, de suas instituições e dos locais de
socialização.
As teses spenceriana e darwiniana da evolução das espécies
fornecerão importante chave de interpretação para elaborar a dicotomia
fundamental da criminologia clássica: criminoso bárbaro versus cidadão
civilizado. O homem da Modernidade, o último homem na conceituação de
Nietzsche, “considera a si mesmo o ponto mais avançado do desenvolvimento
histórico da humanidade, acreditando que a finalidade dessa história consistiria
precisamente na chegada do moderno. Orgulhoso de sua cultura e formação,
que o elevaria acima de todo passado, o último homem crê na onipotência do
seu saber e do seu agir.”2
1
Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, p. 29.
2
Giacóia Jr., Nietzsche, p. 56.
3
4. O ‘Outro’ do Civilizado: o Bárbaro
6. Desencanto e Fragmentação
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como agora foi tão visível incisiva verdade do famoso dito de Walter Benjamin:
‘nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um
monumento de barbárie’.”6
A premissa básica que orienta esta fala, portanto, é a de que as
ciências criminais, direcionadas a anular a violência do bárbaro e a reafirmar os
ideais civilizados, ao longo do processo de constituição (e de crise) da
Modernidade, produziram seu oposto. Assim, apesar do nobre fim (fim da
violência), o sistema penal colocou em marcha tecnologia de uso desmedido
da força, cuja programação, caracterizada pelo alto poder destrutivo, tem
gerado inominável custo de vidas humanas
O motivo deste aparente paradoxo é apresentado por Morin: “la
barbarie no es sólo un elemento que acompaña a la civilización, sino que la
integra. La civilización produce barbarie (...).”7
Assim, evidencia-se o fato de que a manifestação do não-civilizado, ou
seja, a violência, não representa um resto bárbaro em vias de extinção. Pelo
contrário, integra e constitui o húmus do humano.
Se ao homo artificialis foi delegada a gestão das virtudes e a
repressão das perversões, concebendo-se o poder punitivo estatal como
reserva ética dos valores morais civilizados, a criminologia crítica demonstra
ser esta concepção romantizada. Sobretudo porque o poder penal, longe de
seguir a programação civilizatória de supressão das crueldades do homem
natural, será constituído, ele próprio, como instrumento de violências.
O lupus artificialis, detentor de desejos e vontades de violência, ao
invés de anular as perversidades do bárbaro, as potencializa, pois não atua de
maneira ascética. Por ter sido criado e, sobretudo, por ser operado por lupus
naturalis, suas virtudes e vícios são naturalmente transpostos, (re)produzindo
em nível institucional o cotidiano ambíguo de virtudes e devassidões da vida
privada.
Na intersecção entre psicanálise e criminologia, a questão central das
violências modernas e contemporâneas é exposta: o erotismo do exercício do
poder.
Em Os 120 Dias de Sodoma, Sade expõe as medidas pelas quais o
exercício do poder se torna assustadoramente erótico, sexualizado. Cria, pois,
condições de perceber não apenas a condição humana, mas a falibilidade das
instituições geradas para conter os vícios do homem. O poder, incontrolado em
6
Timm de Souza, Em Torno à Diferença, p. 129.
7
Morin, Breve Historia de la Barbarie en Occidente, p. 19.
6
seu estado bruto, circula, fascinando e apaixonando todos aqueles que
corporificam as instituições.
Calligaris, ao comentar a obra de Sade, “peça chave do quebra-
cabeça moderno”, é preciso: “o poder assombra a fantasia erótica moderna
(...). O exercício do poder é contaminado por modalidades de prazer e de gozo
aprendidas na cama, ou seja, por um erotismo violento, sombrio e, em geral,
envergonhado.”8
As conclusões possíveis sobre o ideal do fim da violência no discurso
penal são indigestas, pois não apenas é desfeito o sistema maniqueísta ético e
estético que sustentou desde o nascimento da modernidade os processos de
criminalização e punição, como é desnudada a erótica do poder.
O intuito deste discurso, portanto, para além de apresentar
descritivamente o diagnóstico das violências produzidas pela configuração
inquisitiva das ciências criminais–, é provocar aberturas, cisões, ranhuras na
lógica do pensamento autoritário e genocida que rege o agir dos sistemas
punitivos.
Bibliografia
8
Calligaris, Os 120 Dias de Sodoma, p. 12.
7
MORIN, Edgar. Breve Historia de la Barbarie en Occidente. Buenos Aires:
Paidos, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São
Paulo: Cia. das Letras, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia (ou Helenismo e
Pessimismo). 2 ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
SADE, Marquês de. A Filosofia na Alcova. São Paulo: Iluminuras, 2003.
SADE, Marquês de. Diálogos entre um Padre e um Moribundo (e outras
diatribes e blasfêmias). São Paulo: Iluminuras, 2003.
SADE, Marquês de. Os 120 Dias de Sodoma (ou a Escola da Libertinagem).
São Paulo: Iluminuras, 2006.
SUTHERLAND, Edwin. White-Collar Criminality. in American Sociological
Review, vol. 05, n. 01, February, 1940.
TIMM DE SOUZA, Ricardo. Em Torno à Diferença: aventuras da alteridade na
complexidade da cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007.