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II SEMINÁRIO INTERNACIONAL: ALESSANDRO BARATTA: LEITURAS DE

UM REALISMO JURÍDICO PENAL MARGINAL

Palestra: Direito Penal e Pulsão de Morte: A Hipótese do Fim da Violência


no Discurso da Modernidade Penal

Palestrante: Salo de Carvalho – Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em


Direito; Pós-Doutor em Criminologia (Universidade Pompeu Fabra,
Barcelona).

1. Civilização, Barbárie e Ciências Criminais

Os projetos político e científico da Modernidade, no qual se inserem os


discursos das ciências criminais – conjunto disciplinar integrado pelas ciências
penais dogmáticas (direito penal e processo penal) e não-dogmáticas
(criminologia) –, têm como objetivo central a busca da felicidade através da
negação da barbárie e da afirmação da civilização.
Nas mais diversas construções teóricas sobre a primeira natureza
humana (Freud) – do bom selvagem (Rousseau) ao homo lupus (Hobbes) –,
o Estado moderno, fundado nas premissas do contrato social, representaria a
forma política de superação da infância da humanidade. Na era civilizada da
segunda natureza, caberia ao ente estatal a criação de instrumentos para
concretização do ideal civilizatório, extirpando, constante e gradualmente, os
resquícios da natureza selvagem do humano.
A justificativa da intervenção estatal é baseada na hipótese de que o
homem, no estado de natureza, gozaria amplamente sua liberdade, não
havendo qualquer restrição à fruição dos desejos. No entanto a impossibilidade
de convívio se estabelece em face da tensão entre desejos ilimitados e bens
limitados.
O uso da violência definiria, portanto, as relações na primeira
natureza. A forma de anular o estado de guerra, corrupção do estado ideal
(idílico) de natureza, é a instituição do poder civil, que representa o status de
maturidade em contrapondo à infantilidade.
A incerteza do gozo dos bens, face à possibilidade de expropriação
pela força, conduz à necessidade do pacto. Os homens, em troca de
1
segurança, optam por limitar sua liberdade, alienando certo domínio ao
repositório comum denominado Estado. Como regulador, caberia ao poder
instituído executar esta quantidade alienada em caso de violação das leis de
convivência. Nesta proposição, o direito penal será vislumbrado como
mecanismo idôneo para resguardar os valores e interesses expressos no
contrato e como instrumento simbólico de punição dos que violaram as
cláusulas contratuais livremente aceitas. Através da ideia de consenso o
condenado adere à punição, motivo pelo qual é percebida como legítima.

2. Ciências Criminais, Racionalização e o Otimismo da Cultura

A formação do Estado Moderno carrega consigo princípios de


organização e racionalização da administração pública que definirão o perfil do
sistema de justiça penal. Outrossim, em paralelo à organização burocrática dos
poderes, são projetadas inúmeras expectativas outras decorrentes do processo
de racionalização, civilização, maturidade do humano: segurança, felicidade e
autonomia individual, p. ex.
Se as agências de controle social são inseridas na burocracia moderna
com os objetivos de gestão e controle dos desvios (caráter preventivo) e
punição dos delitos (caráter repressivo), o direito (penal), ao pretender-se
científico, recepciona o estatuto e a programação do racionalismo. Na trilha das
demais ciências, seguindo o estatuto científico da civilização, as ciências
criminais são lançadas na grande aventura da Modernidade: elaborar
tecnologia (racionalidade instrumental) direcionada ao progresso e ao avanço
social, de forma a conquistar condições de felicidade individual e bem-estar
comunitário.
A expectativa das comunidades científica e política em relação à
ciência jurídico-penal não é outra, portanto, que a de desenvolver
instrumentos capazes de erradicação do resto bárbaro que
insistentemente emerge na cultura. As violências, manifestas em inúmeras e
distintas condutas desviantes, impedem a constituição da civilização. O
fenômeno da violência representa, portanto, um dos últimos obstáculos a ser
extirpado para que o projeto civilizatório se torne pleno.

3. A Imagem do Homem Civilizado

2
A figura do bourgeois renascentista, conviva da aristocracia pré-
revolucionária, evoca este homem civilizado – apreciador das artes, da
gastronomia requintada, do vestuário alinhado. Elegante, culto, incentivador
das ciências humanas e naturais, cultiva a arte das boas maneiras, da
linguagem polida de referência cortês. Educado nas academias, poliglota, é
refinado no trato com seus semelhantes.
A imagem do homem burguês do século XVIII representa, no
imaginário ocidental, o ápice desta cultura romântica apolínea. A perspectiva
apolínea sustenta o modelo metafísico socrático de reforço dos valores morais
de Justiça, Beleza, Bondade e Verdade, referências do homem civilizado. A
metafísica apolínea, portanto, segundo Nietzsche, evoca “a verdade superior,
a perfeição desses estados na sua contraposição com a realidade cotidiana tão
lacunarmente inteligível (...).”1
E neste imaginário, ao polido homem da cultura é contraposto seu
outro: o bárbaro. A negação do convívio amistoso e a ruptura com as regras e
os limites impostos pela civilização caracterizam os atos daquele que, por
atavismo ético ou estético, não ultrapassou a infância da humanidade e, em
consequência, não atingiu a segunda natureza, a natureza domada pelas
disciplinas da cultura.
A representação do bárbaro como esteticamente feio e moralmente
corrompido, como perverso desprovido de freios inibitórios cujo habitat é
estabelecido nas margens da cultura, solidifica a imagem do civilizado como
virtuoso frequentador do cotidiano urbano, de suas instituições e dos locais de
socialização.
As teses spenceriana e darwiniana da evolução das espécies
fornecerão importante chave de interpretação para elaborar a dicotomia
fundamental da criminologia clássica: criminoso bárbaro versus cidadão
civilizado. O homem da Modernidade, o último homem na conceituação de
Nietzsche, “considera a si mesmo o ponto mais avançado do desenvolvimento
histórico da humanidade, acreditando que a finalidade dessa história consistiria
precisamente na chegada do moderno. Orgulhoso de sua cultura e formação,
que o elevaria acima de todo passado, o último homem crê na onipotência do
seu saber e do seu agir.”2

1
Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, p. 29.
2
Giacóia Jr., Nietzsche, p. 56.
3
4. O ‘Outro’ do Civilizado: o Bárbaro

Mas se o homem moderno (bourgeois) é alçado ao patamar supremo


da cultura, colocado no ápice da evolução da espécie, o estigma do bárbaro irá
identificar aquela minoria de pessoas que não ultrapassou as necessárias
etapas de evolução. Sem transpor definitivamente a primeira natureza, estão
condicionadas a romper, a qualquer momento, as regras do convívio pacífico,
pois são estrangeiros e não fazem parte da cultura.
Na criminologia de Garófalo, seja do ponto de vista ético – “há
indivíduos moralmente inferiores, assim como os há e houve sempre
superiores (...)”3 – ou desde perspectiva estética – “se é certo que o senso
moral é um produto da evolução, natural admitir que ele seja menos
aperfeiçoado nas classes que representam um grau inferior de
4
desenvolvimento físico” –, o homo criminalis, perdido no abismo do atraso
antropopsicológico e incabível na civilização, estará eternamente vinculado às
noções de anomalia moral, fisiológica e sexual.
Nas palavras de Ferri “o criminoso nato pode ser um assassino
tranqüilamente selvagem, um depravado violentamente brutal, um refinado
obsceno por conta de uma perversão sexual proveniente de uma defeituosa
organização física. Ele pode também ser um ladrão ou falsário. A repugnância
em apropriar-se do bem alheio, esse instinto lentamente desenvolvido pela
vida social na coletividade, falta-lhe em absoluto (...). Tive ocasião de
demonstrar, no estudo psicológico de um homicida nato, que a aparente
regularidade de sua inteligência e de seus sentimentos pode encobrir tão
completamente sua profunda insensibilidade moral, que seu verdadeiro caráter
escapa àqueles que ignoram a psicologia experimental.”5
A patologia das condições físicas e psicológicas, refletida na
degenerescência individual deste selvagem, se mantém apesar da evolução e
aponta sua distinção com o homem da cultura.

5. O Homo Naturalis Adormecido

Se a representação do criminoso (e do louco) no discurso civilizatório é


a do fisicamente degenerado, do moralmente corrompido e do socialmente
3
Garófalo, Criminologia, p. 14.
4
Garófalo, Criminologia, p. 16.
5
Ferri, Os Criminosos na Arte e na Literatura, p. 32/35.
4
degradado, sendo, portanto, o delito atributo específico de minoria de insanos
que não logrou ultrapassar as etapas do processo evolutivo, a criminologia
crítica, no campo das ciências criminais, apontará uma das maiores e das mais
radicais feridas da cultura ocidental.
O pensamento crítico de ruptura com as idealizações da dogmática
penal, sobretudo das teorias do delito e da pena, produz efeitos terroríficos
profundamente importantes para a análise dos discursos sobre o processo
civilizatório e sobre a formação da cultura como adestramento da natureza
humana ao colocar em cena o homem da cultura como sujeito dos atos de
barbárie.
Se Sade evoca em sua literatura libertina o homo naturalis adormecido
no cortês homem da Modernidade; Sutherland imputa ao industrial capitalista
a responsabilidade pelos crimes da grande política (ilícitos da esfera pública); e
a criminologia feminista desnudará a violência privada presente no lar, último
reduto de segurança e de civilidade.

6. Desencanto e Fragmentação

No âmbito das ciências criminais, as criminologias crítica e pós-crítica,


ao tematizarem os inúmeros desdobramentos e as variáveis do processo de
racionalização da violência pública do lupus artificialis (agências estatais de
controle social) direcionada (finalidade) à anulação das violências privadas do
lupus naturalis, permitiram notar a violência do próprio projeto civilizatório
ocidental.
De forma diversa, os discursos dogmáticos do direito penal e as
criminologias pós-positivistas (neurocriminologia e biologia criminal) seguem
atualizando a perspectiva idealista de anulação do selvagem do humano. Não
por outra razão perdem-se no emaranhado das metodologias e nas discussões
metafísicas, forma de contemplação e de defesa contra a evidência da crise
que indicam o rumo do abismo teórico.
Conforme leciona Timm de Souza, não é difícil perceber que “(...) sob
uma camada hegemônica e colorida de frenetismo e desespero não
suficientemente conscientizados, repousa uma infinita multiplicidade de
fragmentos culturais, fragmentos que são sobras ou ruínas vítimas da violência
e das promessas não cumpridas de um modelo civilizatório e, especialmente,
de uma modernidade ingenuamente otimista e intrinsecamente violenta. Nunca

5
como agora foi tão visível incisiva verdade do famoso dito de Walter Benjamin:
‘nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um
monumento de barbárie’.”6
A premissa básica que orienta esta fala, portanto, é a de que as
ciências criminais, direcionadas a anular a violência do bárbaro e a reafirmar os
ideais civilizados, ao longo do processo de constituição (e de crise) da
Modernidade, produziram seu oposto. Assim, apesar do nobre fim (fim da
violência), o sistema penal colocou em marcha tecnologia de uso desmedido
da força, cuja programação, caracterizada pelo alto poder destrutivo, tem
gerado inominável custo de vidas humanas
O motivo deste aparente paradoxo é apresentado por Morin: “la
barbarie no es sólo un elemento que acompaña a la civilización, sino que la
integra. La civilización produce barbarie (...).”7
Assim, evidencia-se o fato de que a manifestação do não-civilizado, ou
seja, a violência, não representa um resto bárbaro em vias de extinção. Pelo
contrário, integra e constitui o húmus do humano.
Se ao homo artificialis foi delegada a gestão das virtudes e a
repressão das perversões, concebendo-se o poder punitivo estatal como
reserva ética dos valores morais civilizados, a criminologia crítica demonstra
ser esta concepção romantizada. Sobretudo porque o poder penal, longe de
seguir a programação civilizatória de supressão das crueldades do homem
natural, será constituído, ele próprio, como instrumento de violências.
O lupus artificialis, detentor de desejos e vontades de violência, ao
invés de anular as perversidades do bárbaro, as potencializa, pois não atua de
maneira ascética. Por ter sido criado e, sobretudo, por ser operado por lupus
naturalis, suas virtudes e vícios são naturalmente transpostos, (re)produzindo
em nível institucional o cotidiano ambíguo de virtudes e devassidões da vida
privada.
Na intersecção entre psicanálise e criminologia, a questão central das
violências modernas e contemporâneas é exposta: o erotismo do exercício do
poder.
Em Os 120 Dias de Sodoma, Sade expõe as medidas pelas quais o
exercício do poder se torna assustadoramente erótico, sexualizado. Cria, pois,
condições de perceber não apenas a condição humana, mas a falibilidade das
instituições geradas para conter os vícios do homem. O poder, incontrolado em

6
Timm de Souza, Em Torno à Diferença, p. 129.
7
Morin, Breve Historia de la Barbarie en Occidente, p. 19.
6
seu estado bruto, circula, fascinando e apaixonando todos aqueles que
corporificam as instituições.
Calligaris, ao comentar a obra de Sade, “peça chave do quebra-
cabeça moderno”, é preciso: “o poder assombra a fantasia erótica moderna
(...). O exercício do poder é contaminado por modalidades de prazer e de gozo
aprendidas na cama, ou seja, por um erotismo violento, sombrio e, em geral,
envergonhado.”8
As conclusões possíveis sobre o ideal do fim da violência no discurso
penal são indigestas, pois não apenas é desfeito o sistema maniqueísta ético e
estético que sustentou desde o nascimento da modernidade os processos de
criminalização e punição, como é desnudada a erótica do poder.
O intuito deste discurso, portanto, para além de apresentar
descritivamente o diagnóstico das violências produzidas pela configuração
inquisitiva das ciências criminais–, é provocar aberturas, cisões, ranhuras na
lógica do pensamento autoritário e genocida que rege o agir dos sistemas
punitivos.

Bibliografia

BORGES, Contador. A Revolução da Palavra Libertina. in SADE, Marquês. A


Filosofia na Alcova. São Paulo: Iluminuras, 2003.
CALLIGARIS, Contardo. Os 120 Dias de Sodoma. Ilustrada, Jornal Folha de
São Paulo, São Paulo, 11.05.06.
CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010.
FERRI, Enrico. Os Criminosos na Arte e na Literatura. Porto Alegre: Lenz,
2001.
GARÓFALO, Raffaelle. Criminologia. Campinas: Peritas, 1997.
GELSTHORPE, Loraine. Feminism and Criminology. in The Oxford Handbook
of Criminology. 3. ed. Oxford: Oxford Press, 2002.
GIACÓIA Jr., Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
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KLOSSOWSKI, Pierre. Sade, mi Prójimo. Madrid: Arena, 2005.
MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade (Ensaios sobre a Imaginação
Libertina). São Paulo: Iluminuras, 2006.

8
Calligaris, Os 120 Dias de Sodoma, p. 12.
7
MORIN, Edgar. Breve Historia de la Barbarie en Occidente. Buenos Aires:
Paidos, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São
Paulo: Cia. das Letras, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia (ou Helenismo e
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SADE, Marquês de. A Filosofia na Alcova. São Paulo: Iluminuras, 2003.
SADE, Marquês de. Diálogos entre um Padre e um Moribundo (e outras
diatribes e blasfêmias). São Paulo: Iluminuras, 2003.
SADE, Marquês de. Os 120 Dias de Sodoma (ou a Escola da Libertinagem).
São Paulo: Iluminuras, 2006.
SUTHERLAND, Edwin. White-Collar Criminality. in American Sociological
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TIMM DE SOUZA, Ricardo. Em Torno à Diferença: aventuras da alteridade na
complexidade da cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007.

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