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Sobre contar histórias

A criança e o adulto, o rico e o pobre, o sábio e o ignorante, todos, enfim, ouvem


com prazer histórias – uma vez que estas histórias sejam interessantes, tenham vida
e possam cativar a atenção. A história narrada, lida, filmada, dramatizada, circula em
todos os meridianos, vive em todos os climas. Não existe povo algum que não se
orgulhe de suas histórias, de suas lendas e de seus contos característicos.
(Malba Tahan, prefácio de As Mil e Uma Noites)

Se há algo que o ser humano precisa para viver é de histórias. As histórias são tão
essenciais a vida, como são a água e o oxigênio. O ato de ouvir e contar histórias faz
parte da cultura de todos os povos e mantém acesa a chama de sua identidade cultural.
Contar histórias faz com que toda uma tradição, lendas, crenças, a trajetória dos
antepassados sejam passadas de geração a geração. Mais do que isso, ensinamentos são
transmitidos. Ou como diria Walter Benjamin, é na narrativa que é compartilhada a
sabedoria.

Entre diversos povos africanos, por exemplo, havia o griot, membro da comunidade que
era o guardião das histórias de seu povo. Ele tinha a responsabilidade sagrada de
transmitir lendas e ritos ancestrais a partir da narração oral. Já entre os gregos antigos,
os aedos e os rapsodos contavam essas histórias em espetáculos públicos.

Entre os árabes não havia aldeia em que não existisse pelo menos um contador de
histórias. Em algumas cidades maiores, como Cairo, Damasco ou Constantinopla, os
contadores de história se reuniam em associações, e o seu dirigente, denominado de
cheik el-madah, recebia enorme prestígio e autoridade.

Ao longo dos séculos o ato de contar histórias foi se modificando, as plataformas foram
se alterando, os mecanismos foram se adaptando às necessidades de cada povo. Porém,
a essência do que significa ouvir e contar histórias permanece. Permanece a vontade de
trocar experiências, de transmitir valores, de sensibilizar.

A Literatura é uma dessas manifestações da arte de contar histórias. Nas páginas dos
livros compartilhamos os dramas e aventuras, dores e alegrias, vitórias e fracassos de
personagens, que embora não povoem o mundo concreto, transmitem emoções
compartilháveis por qualquer um que co-habita em seu mundo por alguns momentos.
Ao mergulhar em uma história compartilhamos a dor do outro, mesmo que nunca a
tenhamos experimentado em nossa vida cotidiana. E esse contado com o sentir o que o
outro sente desperta em nós compaixão, empatia. Também desperta um olhar crítico
sobre o mundo e as relações humanas. Nos torna, ao mesmo tempo, mais esperançosos e
céticos acerca de tudo o que nos redeia.

Cada história ouvida, lida ou compartilhada nos transforma. Modifica nossa visão de
mundo e a maneira como nos comportamos sobre determina situação. Faz com que
entendamos o mundo de uma maneira mais complexa, ampliando os horizontes e
tornando múltiplas as possibilidades de análise daquilo que nos cerca.

Em um mundo repleto de violência, em que a dor do outro não toca mais. Num
momento em que se assiste em silêncio a injustiça. No qual a morte vira estatística, e o
outro vira um problema social. Em que o semelhante representa perigo por ser diferente.

Está faltando histórias. Está faltando ouvir, ler e compartilhar narrativas, que se tornam
experiências. Está faltando compartilhar sabedoria. Está faltando se colocar no lugar do
outro, e por alguns momentos experimentar uma vida que não é a nossa. Sofrer uma dor
que não é a nossa. E assim, rememorarmos nossa identidade cultural. E assim,
aprendermos qual é a trajetória dos nossos antepassados. E assim, recordarmos o que
precisamos de verdade para viver. E assim, lembrarmos o que é ser humano.

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