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A MARCA
um conto de
FABIO SHIVA
[As imagens utilizadas como ilustração foram retiradas de “ANUNNAKI – Mensageiros do Vento”, desenho animado de Fabrício Barretto & Fabio Shiva]
I – PRIMEIRA DISCUSSÃO
– Isso é um absurdo!
Meu grito provocou um silêncio profundo e inesperado no laboratório. Belarmino cessou seu
entusiasmado lengalenga. Olhava para mim completamente aturdido. Sofia também me fitava com os
olhos arregalados, séria e atenta. Senti que precisava dizer algo mais.
– Chega dessa baboseira de tabuletas sumérias. Não quero ouvir mais nem meia palavra sobre o
assunto.
Estávamos os três no laboratório de biotecnologia da Universidade Federal. Já passava um
pouco das dezenove. O horário oficial de encerramento era às dezoito, mas eu gostava de ficar até mais
tarde. Era quando realmente podia cuidar de minha pesquisa com células-tronco. Outro motivo é que
não havia muita pressa em voltar para casa, com sua solidão e centenas de más recordações. Mesmo
depois de quase um ano do fracasso de meu casamento com Ivone, ainda não conseguia me sentir à
vontade no nosso apartamento.
Essas solitárias horas extras noturnas que eu passava na Universidade, não relatadas nem
remuneradas, eram as minhas favoritas, quando tinha o laboratório só para mim. A solidão não me
incomodava ali, em meu local de trabalho. Eu, o temido Daniel Pádua, Professor Doutor em
Engenharia Genética, Coordenador do Laboratório de Biotecnologia e docente da disciplina de
Estatística Experimental, sinônimo de pesadelo para a maioria dos estudantes, nunca fui exatamente
um tipo popular.
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Prosa e Poesia de Fabio Shiva ANUNNAKI - Mensageiros do Vento
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Quatro meses antes, contudo, logo no início dessa nova turma de mestrado, um de meus
orientandos solicitou permanecer no laboratório após o encerramento, para adiantar sua pesquisa. O
nome do aluno era Márcio Belarmino.
Eu tinha tudo para não gostar dele, mas simpatizei com Belarmino desde o primeiro dia em que
o vi, quando se apresentou para a qualificação de seu projeto de pesquisa. O projeto dele, sobre o uso
de diversos tipos de nutrientes em culturas de células de ovelha, após alguns ajustes bem que poderia se
adequar à minha própria linha de pesquisa. Fisicamente parecia-se muito comigo, o típico mameluco
que puxou mais para o lado índio da família. Nem alto nem baixo, robusto, pele amorenada, um rosto
redondo de olhos orientais encimado por negros cabelos lisos. Quase nenhum pelo no rosto.
O problema é que eu não gostava de encontrar pessoas parecidas comigo, com traços indígenas.
Elas me faziam lembrar de meu pai, um andarilho xavante chamado Bisu, que desapareceu sem deixar
vestígios quando eu tinha cinco anos de idade. Não me agradava sequer pensar nele.
O sentimento de afinidade com Belarmino, contudo, foi mais forte que o fantasma das mágoas
infantis. Não é muito comum ver filhos de índio ocupando bancos de faculdade, que dirá cursando
mestrado por uma Universidade Federal. Daí também minha simpatia. Outro detalhe chamou a minha
atenção, apenas uma coincidência boba. Se alguém fosse julgar somente por nossos nomes, poderia
pensar que éramos filhos de italiano, e não de índio: Márcio Belarmino e Daniel Pádua.
Louvei o empenho dele e disse que, contanto que eu estivesse presente, ele poderia utilizar o
laboratório à vontade. Em pouco tempo me habituei à sua companhia e pude observar sua dedicação
ao trabalho e o dinamismo de sua mente, invulgarmente dotada para a pesquisa científica.
Foi intrigante e também lisonjeiro perceber que por trás do pedido de Belarmino havia um
genuíno interesse em se aproximar de mim. Sempre que percebia que eu estava precisando de um
descanso, ele fazia alguma pergunta, puxava conversa, parecia mesmo ávido para sorver cada gota de
meus preciosos ensinamentos. Quem não teria se sentido honrado? Especialmente eu, que não estava
acostumado a receber aquele tipo de tratamento. Logo começamos a esticar, uma ou duas vezes por
semana, no barzinho do Homero, estrategicamente situado defronte ao campus.
Nossa intimidade crescente começou com uma curiosa inversão de papéis, pois eu o tratava
como o restante da turma o fazia, pelo sobrenome, enquanto ele me chamava familiarmente pelo
primeiro nome, a meu próprio pedido.
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– O Senhor está no Céu, ao menos é o que diz a Bíblia. Já Nietzsche disse que Ele está morto, e
até hoje não foi desmentido. Tudo o que sei é que Darwin não encontrou o menor vestígio Dele
durante suas expedições científicas. Então é melhor deixar essa história de senhor para lá, pode me
chamar de você, de Daniel. Afinal a nossa diferença de idade não é tão grande. Não precisa me deixar
mais velho do que já sou.
Não me arrependi de ter concedido essa liberdade, pois Belarmino nunca se excedia em seus
privilégios. Na presença de terceiros, fossem os outros orientandos na sala de aula ou mesmo alguém
da equipe técnica no laboratório, ele sempre me tratava respeitosamente. Sem chegar a ser cerimonioso,
o que teria soado como hipocrisia. Era tudo na medida certa.
Extrovertido e bastante simpático, ao contrário de mim, Belarmino logo se tornou muito
querido pela turma. Por isso não foi exatamente uma surpresa quando Sofia Bandeira, colega de
mestrado de Belarmino e igualmente minha orientanda, também pediu para ficar até mais tarde no
laboratório. Até que era uma menina aplicada, uma pesquisadora diligente. De outro modo, não estaria
fazendo parte de minha equipe. Mas eu sabia que aquela dedicação toda era pura fachada. Tudo o que
ela queria descobrir era um jeito de se enfiar na cama com Belarmino. Desnecessário dizer que obteve
sucesso em tempo recorde.
Procurei estoicamente me adaptar à esdrúxula situação que eu mesmo havia gerado, em minha
imprevidência. Afinal, dentro de mais alguns meses os dois estariam concluindo suas dissertações, no
ano seguinte uma nova turma chegaria e aquilo tudo seria passado. O que não deu para suportar foi a
pressão adicional causada pela estúpida questão das tabuletas sumérias.
A gota d’água foi quando Belarmino declarou, todo faceiro, que iria pesquisar os genes inativos
no mapa genético da ovelha, a fim de descobrir quais seriam os mais prováveis de terem sido
modificados pelos Anunnaki. A mera possibilidade de que o banco de dados e os computadores do
laboratório fossem utilizados para alimentar aquela sandice, para mim, era de uma heresia intolerável.
Daí meu grito.
– Absurdo!
E agora estávamos ali, os três, diante do impasse declarado.
Nem eu mesmo saberia explicar o que me deu. Não naquele momento. Só sentia o coração
batendo acelerado, a respiração tensa, uma vontade crescendo de quebrar alguma coisa, de esmurrar
alguém, de gritar, de chorar, de explodir.
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Estava dito. Era irreversível, não havia como voltar atrás. Sofia foi a primeira a se rebelar.
– Você só pode estar de brincadeira, professor.
– Isso vale para você também, menina.
– Não me chame de menina, que eu tenho nome. Não sabia que agora estamos em uma
ditadura ou, melhor dizendo, em uma tirania, onde quem pensa diferente do professor Daniel Pádua
tem a bolsa cortada. É assim que funciona agora?
– E você duvida? O que é que você está pensando, que o mestrado é uma democracia? Ou,
melhor dizendo, uma democracia à moda antiga, dos gregos? Acho muito justo. Nesse caso você, sendo
mulher, não teria nem o direito de abrir a boca, para começar. Será que devo mesmo ter que lembrá-los
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de que estamos estudando Biotecnologia aqui? Ou talvez eu é que não tenha sido avisado de que o
mestrado agora é em Literatura ou, melhor dizendo, em Psicanálise?
Fiz uma pausa para respirar. A essa altura a maior parte de minha ira havia sido corroída por um
turbilhão de autocensura, por minhas palavras ásperas com Belarmino. Agora só queria um jeito de sair
daquela situação.
– Escutem, acho que houve um mal-entendido. Vocês interpretaram errado o que eu disse. Não
estou ameaçando cortar a bolsa de ninguém. Mas o que é isso, gente? Tudo o que fiz foi lembrar vocês,
admito que de forma um tanto exaltada, que estamos aqui para fazer ciência.
Respirei fundo mais uma vez. Achei que já estava calmo o suficiente para confrontar
diretamente Belarmino.
– Uma coisa é você contar as suas anedotas de alienígenas no bar do Homero, enquanto
estamos bebendo. Outra coisa, bem diferente, é querer trazer essa maluquice aqui para dentro do
laboratório, você está me entendendo? Isso é inadmissível, Belarmino. Você ficou tão obcecado por
essa fantasia, ficção científica na melhor das hipóteses, que não percebe que está cruzando uma
fronteira perigosa. A sua forma de pensar é que pode acabar custando seu mestrado. Não estou
ameaçando, apenas avisando. Sei como funciona a mentalidade acadêmica. Só digo isso para o seu bem.
Você tem um futuro brilhante pela frente. Não estrague tudo por conta de um mero capricho. Quero
ver sua dissertação aprovada com louvor. Você sabe disso. E eu sei que você também quer isso. Então
tente fazer uma ideia de minha surpresa, de meu choque, vendo você querendo jogar tudo pro alto para
procurar chifre de E.T. em cabeça de ovelha!
A minha fraca tirada não obteve as risadas que eu ousei esperar. Só uma tentativa de sorriso da
parte de Belarmino, indicação de que a cumplicidade estava sendo restaurada, ao menos em parte. Sorri
amarelo para ele, como se estivéssemos disputando de quem era o sorriso mais sem graça.
– Sabem o que mais? Já trabalhamos o suficiente por hoje. Vamos fechar a casa e depois
refrescar nossas ideias no Homero, já que foi mencionado? Por minha conta.
Belarmino sorriu amarelo de volta, campeão indisputável. Abriu os braços, coçou a cabeça,
desviou o olhar para o chão.
– Puxa, professor, seria ótimo. Obrigado, realmente. É que... combinei de levar Sofia ao cinema.
E então o convite feito por educação, depois de uma pausa deliberada:
– Quer ir conosco?
Senti novamente a taquicardia, a respiração sôfrega, a náusea provocada pelo repentino
resfriamento da pele. Temi estar sofrendo um ataque do coração.
– Não, obrigado. Divirtam-se. Escutem, vamos colocar uma pedra sobre isso que aconteceu
aqui hoje. Tudo bem?
Sofia levantou a mão de imediato.
– Por mim tudo bem, professor.
Belarmino hesitou um pouco antes de consentir com um mudo aceno de cabeça.
– Muito bem, então. Eu vou saindo, se os pombinhos não se incomodam. Estou me sentindo
um pouco indisposto, para falar a verdade. Louco para chegar logo em casa e tomar um banho.
Belarmino, posso deixar as chaves do laboratório com você? Verifique se está tudo em ordem antes de
fechar, pode ser? Isso é, se não for atrasar o cinema de vocês. Ah, que bom então – completei, diante
da aquiescência dele. – Boa noite e até amanhã.
Saí do laboratório jurando para mim mesmo nunca mais voltar a pensar no assunto. Mas nessa
noite só fui dormir depois de duas pílulas e não sei quantos uísques, pois não conseguia parar de pensar
nas benditas tabuletas sumérias. E quando finalmente peguei no sono, não teria sido tão ruim se eu
tivesse sonhado com elas. O sonho que eu tive, horroroso demais para ser descrito com palavras, foi
com o Paulo Setúbal, meu antigo orientador de mestrado.
Justo com quem. Um fantasma do passado que voltava para me assombrar. Somente ao acordar
na manhã seguinte, suando frio e com uma tremenda dor de cabeça, foi que percebi como Paulo era
parecido em tantas coisas com o Márcio Belarmino.
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II – AS TABULETAS SUMÉRIAS
– Sabia que as ovelhas podem ter vindo de outro planeta?
Foi assim que começou. Belarmino disparou essa pérola à queima-roupa, logo depois do brinde,
mal havíamos nos acomodado na penúltima mesa disponível no Homero. Isso aconteceu o quê, um
mês, mês e pouco antes dessa primeira discussão, que na verdade terminou no laboratório, mas teve sua
origem exatamente ali.
Por essa época Sofia não havia iniciado seu ataque. Estávamos apenas eu e ele à mesa,
perfeitamente a sós em meio à balbúrdia geral. Eram sete ou oito mesas no salão. A nossa ficava no
canto oposto à porta, bem em frente ao caixa onde o próprio Homero se sentava, tendo como sempre
à sua frente a caneca de cerâmica contendo um líquido desconhecido, que o dono do bar ingeria em
mínimos goles, a cada cinco ou dez minutos. Na parte externa do bar, ocupando sem cerimônia a
calçada de pedestres, havia mais meia dúzia de mesas tomadas pelo sedento pessoal da Universidade. A
última mesa vazia, bem ao lado do banheiro, já estava sendo ocupada por três estudantes da graduação.
– Que história é essa, Belarmino?
Ele saboreou o primeiro gole da cerveja, feliz por ter obtido algum efeito com sua frase de
impacto.
– Vi um documentário incrível. Você precisa assistir, Daniel. É fascinante. Se metade do que
estiver ali for verdade, elas são a maior descoberta de todos os tempos!
– Elas? De quem você está falando?
– Das tabuletas sumérias.
Foi a primeira vez que ouvi essas palavras. Nenhum abalo sísmico ocorreu. Limitei-me a dar
mais um gole na cerveja, que naquela noite eu bebia mais para fazer companhia. Meu fígado não andava
lá essas coisas. Concedido, portanto, que não iniciei o assunto com a melhor das disposições. Também
não contribuiu para adoçar meu humor aquela inesperada petulância de Belarmino, querendo vir me
dizer o que eu precisava assistir. Mas não cheguei a tomar como ofensa, pois estava claro que o assunto o
empolgava.
– Já ouviu falar dessas tabuletas? Da Suméria?
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uma das ideologias predominantes no mundo. Mesmo porque, pelo que entendi, o que incomodou e
tem incomodado a respeito das tabuletas sumérias não são tanto as semelhanças com a história bíblica.
E sim as perturbadoras diferenças.
A garçonete chegou com o pedido. Prevendo o próximo, já trazia uma nova garrafa na bandeja,
com a tampinha prestes a ser ejetada ao meu consentimento. Que ela obteve sem demora, ainda que o
cheiro da gordura fumegando do filé e das batatas, e a antecipação de mais álcool entrando em meu
organismo estivessem fazendo o meu fígado chiar em agonia. Mas disfarcei a careta com um sorriso e
até propus o brinde.
– Vive la différence!
Belarmino ficou me olhando intrigado, como se aguardasse uma explicação. Talvez a minha
pronúncia enferrujada não tivesse colaborado. Enfim, fui obrigado a traduzir.
– Viva a diferença.
– Ah, sim. Viva!
Ele deu um bom gole, suspirou satisfeito e já se pôs a atacar as iscas de filé, a mergulhar na boca
pedaços de pão encharcados de molho, intercalando cada bocado com uma ou duas tiras de batata frita.
Só para fazer companhia, mergulhei a ponta de um naco de pão no molho e dei uma pequena mordida,
disposto a fazê-lo durar. A conversa poderia ter seguido outros rumos naquele momento. Talvez até
Belarmino não ficasse tão obcecado com isso depois. Mas eu tinha que trazer o assunto de volta,
enamorado ainda pela secreta metáfora que havia surgido em minha mente.
– E então? Fale mais sobre essas diferenças tão perturbadoras...
– O quê? Ah, claro. Vou resumir ao ponto crucial. A principal discordância entre as tabuletas
sumérias e a Bíblia é que no lugar de Jeová, Deus Todo-Poderoso, criador do céu e da terra, estão os
Anunnaki. De acordo com as tabuletas, foram os Anunnaki que criaram a raça humana à sua imagem e
semelhança. Foram os Anunnaki que instruíram o homem para que construísse uma arca capaz de
sobreviver ao dilúvio. Foram os Anunnaki que presentearam a humanidade com um animal vindo de
seu planeta natal: a ovelha. O cordeiro de Deus vindo do céu!
Afinal. Tentei esconder meu desconforto fugindo do assunto.
– Não vejo onde está essa diferença toda. Pelo que você está dizendo, Anunnaki era apenas o
nome que os sumérios davam a Jeová. Onde está a diferença? É só uma questão de nome, de tradução.
A chama de Belarmino se exaltou após essa provocação não intencional.
– É muito mais que isso. Anunnaki não é uma entidade individual como Jeová, se é que se pode
falar assim do Deus onipresente. Mas o termo Anunnaki se refere a uma entidade coletiva, a um povo.
Se me lembro bem, na língua suméria Anu significa céu, e Ki significa terra. Anunnaki, portanto, seriam
aqueles que do céu para a terra vieram.
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– Esse foi o Cordeiro de Deus, vindo do céu. O animal que os Anunnaki mandaram trazer de
Nibiru foi a ovelha, Daniel!
– A-hã. Você já disse isso.
– Você está achando que é tudo mitologia, não é mesmo? É porque você não viu ainda o
documentário. Mas escute, agora vem a melhor parte. Pensei muito em você quando o assisti.
– Foi mesmo?
– Foi. Na verdade, pensei em nós dois. Em você e em mim também.
Apesar de ter bebido muito menos que Belarmino, acreditei que estava ficando intoxicado, a
julgar pelo que eu sentia naquele momento e tendo em vista meu fígado combalido. Mas prestei toda
atenção ao que ele estava dizendo.
A história de Ka-In e Abael acontece mais ou menos como na Bíblia. Os Anunnaki apreciaram
mais o pernil de carneiro que a salada de legumes, e isso deixou Ka-In enciumado. Um dia os dois
irmãos discutiram, e Ka-In matou Abael. Quando os Anunnaki descobriram o crime, ficaram
ultrajados. Expulsaram Ka-In e sua esposa-irmã Awan para terras distantes, colocando sobre ele uma
marca indelével. Os Anunnaki alteraram a essência vital de Ka-In. E a partir de então nunca mais a
barba cresceu em seu rosto.
– Essa é a famosa marca de Caim, Daniel! É claro que isso não está exatamente dessa forma nas
tabuletas, mas a conclusão a que os pesquisadores chegaram foi de que o DNA de Ka-In foi alterado
para torná-lo imberbe. E essas terras distantes, para onde o clã de Ka-In foi, bem podem ter sido as
Américas dos índios, as terras de nossos ancestrais! Já pensou? Você e eu podemos ser descendentes do
primeiro assassino da humanidade!
Por algum motivo, a ideia parecia fasciná-lo. Decidi que eu já havia tido o suficiente daquilo.
Sinalizei para Homero, pedindo a conta. Enquanto aguardávamos, ele insistiu.
– Você devia ver esse vídeo, Daniel. Você vai gostar, eu tenho certeza.
– Só se você for ver comigo, lá em casa.
Saiu antes que eu tivesse tempo de pensar. Quando dei por mim, já havia falado. Belarmino
arregalou os olhos, depois ficou olhando para o chão. Balbuciou alguma coisa sobre já ser tarde.
Tamanho era o seu constrangimento que mal se despediu e saiu antes mesmo da garçonete trazer o
troco.
Isso como apresentação ao tema das tabuletas sumérias. Nessa noite não teve santo que me
fizesse dormir, de tanta vergonha e dor no fígado. Bem que os poetas de antigamente acreditavam que
o fígado é que era a sede das paixões.
Belarmino ficou arredio durante uma semana ou quase isso. Depois apareceu com aquela
história de Sofia. Naquele momento até fui grato a ela, pois meu pupilo voltou ao seu comportamento
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de sempre e não deu mostras de estar tentando me evitar. Pelo contrário, continuou batendo na mesma
tecla.
– Gostaria muito de saber a sua opinião sobre este livro.
A aula de Estatística Experimental havia terminado. Os alunos abandonavam rapidamente a
sala, o alívio estampado em cada rosto. Eu não os culpava. A matéria que ensino é de fato uma
disciplina árida e provavelmente inútil para o aluno médio de mestrado, que considera uma perda de
tempo aprender a fazer na mão custosas operações matemáticas que na prática são invariavelmente
feitas no computador. Raros eram os que conseguiam tirar algum proveito real de minhas aulas.
Belarmino era um deles. Olhei para o livro que ele me oferecia. Era O 12º Planeta, de Zecharia Sitchin.
– Não me vá dizer que é sobre aquelas suas ovelhas alienígenas!
– É isso mesmo. Como adivinhou?
– Algo me dizia que o assunto desse livro não é Estatística Experimental.
Naquele momento Belarmino não estava muito receptivo às minhas tiradas. Seus olhos
apresentavam aquele mesmo brilho febril.
– Escute, professor. Eu tive algumas ideias lendo esse livro. Estou precisando conversar com
alguém em quem eu possa confiar.
As minhas duas horas seguintes deveriam ser supostamente dedicadas à produção de texto, a
publicar ou perecer. Eu estava engasgado há dias com um artigo de cinco páginas. O artigo versava sobre
técnicas de carcinogênese induzida em células-tronco, basicamente um resumo da bibliografia existente
sobre o assunto, boa parte de minha autoria. Afinal aquela era a minha especialidade. Escrever não era
uma tarefa difícil, apenas cansativa. Meia dúzia de pessoas iria ler o artigo, se tanto. Depois ele seria
solenemente ignorado, como de costume. Mas o trabalho não era menor por isso.
Por outro lado, o que ele disse me sensibilizou.
– Fico feliz em saber que você confia em mim, Belarmino. Sou todo ouvidos.
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vida mais longa antes de ser transferida para cá. Ela foi geneticamente alterada para que sua vida se
tornasse mais curta, em conformidade com os rápidos ciclos terrestres. Essa foi a ideia que eu tive,
professor: os genes da ovelha podem conter o segredo da vida longa.
O discurso havia terminado. Belarmino me fitava com um olhar intenso, mas eu não saberia
dizer se me enxergava ou não. Parecia estar tendo uma epifania, que me julguei na obrigação de
interromper.
– Diga-me uma coisa, Belarmino. Você anda tomando drogas?
– Rá, essa foi boa. Agora fale sério, professor. Meu raciocínio tem lógica?
– Olha. A linha de seu raciocínio até que é plausível. O problema são as suas premissas.
– O que é que tem?
– Será que nem desconfia? Sabe que isso começa a me preocupar? O que você pretende com
essa história de ovelhas E.T.? Não percebe que está apoiando todas essas suposições em dados que não
passam de pura fantasia? Onde espera chegar insistindo nisso?
– Ainda não sei, professor. Mas estou quase descobrindo.
Eu estava a ponto de replicar quando ouvimos uma batidinha discreta na porta, que já estava
aberta. Diante da porta estava Sofia Bandeira, parecendo muito apetitosa com seus jeans apertados e
sua blusa decotada.
– Boa tarde! Com a sua licença, professor Daniel, gostaria de falar com ele rapidinho, tudo
bem? Márcio, esqueceu que combinamos de estudar juntos na biblioteca?
O cerco de Sofia estava apenas começando, já com pleno êxito. Belarmino seguiu docilmente
atrás dela. Deixou o livro comigo, arrancando de mim a promessa de lê-lo rapidamente. Bem que tentei.
No dia seguinte à primeira discussão no laboratório, acordei me sentindo péssimo, sofrendo de
ressaca alcoólica e moral. Acreditei firmemente que não havia como eu me sentir pior do que naquele
momento.
Eu estava enganado, é claro.
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– Por que continuar focando tanto na doença, se não está dando resultado? Que tal
experimentar a saúde, para variar?
– Como é?
– Nós podemos ajudar a criar células capazes de viver mais, já parou para pensar nisso? É bem
melhor que ficar tanto tempo tentando criar o câncer comestível!
Senti a vista escurecer.
– Agora chega, rapaz. De agora em diante você está terminantemente proibido de falar sobre
tabuletas sumérias, ovelhas alienígenas, índios assassinos ou qualquer outra dessas fantasias, está me
entendendo? Dentro da Universidade só quero ouvir falar de trabalho. Se você desrespeitar essa
simples regra, serei obrigado a recomendar seu desligamento do mestrado, por insubordinação e falta
de decoro científico. Será que fui claro?
Tarde demais notei que os outros alunos já haviam chegado para a aula, que por conta do
episódio transcorreu em intenso constrangimento coletivo. Raras vezes fui tão cruel e sarcástico ao lidar
com as dificuldades de meus alunos face aos desafios da Estatística Experimental. O término da aula foi
saudado por um rápido abandono em massa da sala, que fingi não notar, ocupado com minhas
anotações. Quando ergui a cabeça, Belarmino também havia saído.
Câncer comestível. Meu sangue fervia. Se havia duas palavras que eu seguramente odiava mais que
tabuletas sumérias, eram essas. Elas me perseguiam há anos, desde os tempos em que eu, jovem e ingênuo
mestrando, ainda sonhava em utilizar a ciência para o bem da humanidade.
A ideia que motivou a minha dissertação era simples, porém ousada. Uma das principais
características das células cancerosas é a sua desordenada reprodução. E o problema todo do câncer é
que as células resultantes dessa reprodução são todas igualmente doentes, cancerosas. A minha
audaciosa ideia era que, se pudéssemos obter essa mesma reprodução desenfreada, só que com células
sadias, teríamos uma fonte inesgotável de matéria orgânica à nossa disposição. Em outras palavras,
teríamos encontrado a solução para o problema da fome no mundo.
A minha hipótese era muito ambiciosa para caber em um mestrado. Assim, o projeto inicial foi
sofrendo drásticos e sucessivos cortes. Logo de início tive que mudar totalmente o foco, pois eu
planejava trabalhar com células vegetais. Mas a bibliografia existente sobre as galhas, ou tumores
vegetais, é incomparavelmente menor que a que trata do câncer animal. Além disso, meu orientador, o
Professor Paulo Setúbal, achou que seria mais interessante se a minha pesquisa tratasse de ovelhas, que
na época estavam na moda, após a clonagem da ovelha Dolly. E é claro que assim a minha pesquisa
poderia servir à pesquisa dele, por isso aceitei a mudança sem questionar. Fazia parte do jogo.
Evidente que não seria realizado durante o mestrado o meu sonho de criar uma célula sadia
com grande capacidade de autorreprodução. Nem durante o doutorado, nem até o presente momento,
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Isso tudo e mais um pouco fiquei remoendo nessa tarde, após a malfadada aula de Estatística
Experimental. Senti um ódio intenso por Belarmino, o que me assustou. Achei que o melhor seria
limitar o contato com ele ao mínimo possível. Decidi que até o final dessa turma de mestrado eu
fecharia o laboratório pontualmente às dezoito, evitando assim qualquer possibilidade de
reaproximação com Belarmino.
Para ocupar o tempo, depois do conserto do vazamento na cozinha programei uma série de
tarefas domésticas há muito negligenciadas. Entretanto logo na semana seguinte todo o meu tempo
livre foi tomado por uma agradável surpresa. Fui convidado para fazer uma preleção no próximo
Congresso Internacional de Oncologia, que ocorreria dali a algumas semanas em outra cidade.
Aparentemente o meu pequeno artigo de cinco páginas sobre carcinogênese induzida havia despertado
mais atenção do que eu imaginava. Fiquei muito grato pelo convite e comecei imediatamente a me
preparar para a apresentação. Determinado a seguir a minha estratégia de evitar ficar até mais tarde no
laboratório, copiei os arquivos mais importantes para o computador de casa.
E assim se passaram três semanas. O contato com Belarmino, restrito ao inevitável no
laboratório e nas aulas, era de minha parte da mais gélida cortesia. Chegaria um momento em que
teríamos que sentar para discutir a dissertação de Belarmino. Eu, como orientador e parte ofendida,
esperava que ele desse o primeiro passo. Mas quem acabou dando esse passo foi Sofia.
Ela veio falar comigo quando eu saía da sala de reuniões. Dava a impressão de ter ficado ali de
plantão, à minha espera. Sua ansiedade era evidente, a ponto de subjugar sua costumeira arrogância.
– Professor, preciso falar com o senhor sobre um assunto particular. É a respeito do Márcio.
Estou preocupada com ele. Está sofrendo muito desde aquela briga que teve com o senhor. Anda
tendo pesadelos toda noite, acorda gritando. Tomo cada susto!
Senti uma curiosidade irresistível em descobrir se os pesadelos de Belarmino seriam muito
piores que meus sonhos com o Paulo Setúbal.
– Ele te contou sobre esses pesadelos? Ele tem sonhado com o quê?
Nesse momento Belarmino despontava no corredor, alguns metros à nossa frente. Sofia
engatou numa sequência de perguntas sobre as fórmulas da Estatística Experimental, que ela
evidentemente havia preparado de antemão. Ele certamente achou estranho, mas ela não poderia ter
sido mais convincente. Não tive muita oportunidade de ficar ruminando esse episódio, pois faltavam
poucos dias para o Congresso de Oncologia. Eu estava muito ocupado com os preparativos finais da
apresentação.
Minha palestra seria no sábado pela manhã. Decidi viajar na sexta à noite. Fechei o laboratório
às dezoito em ponto e fui para casa dirigindo sem pressa, pois meu voo era só às onze da noite. As
malas já estavam prontas. Eu só precisava tomar um banho, comer alguma coisa e sair.
Assim que cheguei em casa, no entanto, ficou martelando na mente a sensação de ter esquecido
algo importante. Um rápido exame da bagagem revelou o que era. Não estava em parte alguma o
roteiro impresso de minha palestra, acrescido de anotações à mão. Só então lembrei que durante a tarde
fiquei repassando o discurso enquanto monitorava uma turma no laboratório. Eu devia ter esquecido
por lá meus papéis.
Eu poderia imprimir novamente o roteiro, e fiz isso. Mas achei que daria muito trabalho me
lembrar de todas as anotações. Sem contar que a Universidade ficava no caminho do aeroporto. Como
não iria demorar, não deixei o carro em minha vaga no estacionamento. Parei na calçada mesmo, ao
lado do Homero.
Quando abri a porta do laboratório e vi a luz acesa, pensei que era mais alguma coisa que eu
havia esquecido. Mas lá estava Belarmino, manipulando as culturas na estufa. Quando ele me viu,
devolveu as garrafinhas à estufa, tirou apressadamente as luvas de procedimento e veio ao meu
encontro. Movia-se com rapidez, como se tivesse pressa. Cheguei a pensar que tivesse a intenção de me
agredir. Sendo mais jovem e estando em melhor forma que eu, Belarmino levava vantagem. Vasculhei
com os olhos ao redor, à procura de algo que pudesse servir como arma.
Ele, no entanto, estava sorrindo, de braços abertos. O abraço me tomou completamente de
surpresa.
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Nem lembro de ter atravessado a rua e entrado no carro. Hesitei um pouco antes de dar a
partida, pensando se não devia esperar. Mas eu precisava sair dali o quanto antes, isso sim, se não
quisesse perder o voo. Saí guiando cautelosamente, pronto para desviar de alguém que perdesse a
direção ou freasse bruscamente pelo susto.
Só um bom tempo depois que a Universidade tinha ficado para trás, ainda na terrível
expectativa de ouvir a explosão, foi que a tensão acumulada começou a aflorar. Minhas mãos tremiam
tanto ao volante que quase tive de parar o carro naquele ponto ermo. Mas de algum modo consegui
chegar até o aeroporto.
Embarquei no avião sentindo-me o mais miserável dos fracassados. Ao menos tive a cautela de
explicar minha ansiedade para a aeromoça como sendo medo de voar. Ela sorriu e me assegurou que a
viagem seria rápida e que eu nem teria muito tempo para sentir medo.
Sim, a viagem foi rápida. Mas para mim pareceu interminável. Fiquei repisando os fatos em
minha mente, tentando encontrar o erro, descobrir a causa para a explosão não ter acontecido.
Imaginava quando se daria a descoberta do corpo, com minhas impressões sangrentas na própria arma
do crime. Contra toda lógica, já esperava encontrar a polícia à minha espera ao sair do avião.
Quando cheguei ao hotel, ainda temendo ser preso a qualquer momento, fui direto para o
quarto ligar a tevê, à procura de algum noticiário. Foi só então que fiquei sabendo do ocorrido.
Cometi um erro de cálculo de alguns minutos. Pensei que a placa de alumínio do aquecedor
elétrico levaria de cinco a dez minutos para se aquecer o suficiente para derreter a cobertura
emborrachada do fio elétrico, provocando o curto que liberaria a fagulha que causaria a explosão no
laboratório hermeticamente fechado e saturado de gás de cozinha. Ou a placa levou mais tempo para se
aquecer, ou o fio era de qualidade superior à que eu esperava.
A explosão aconteceu mais de vinte minutos depois que liguei o aquecedor na tomada. A essa
altura o conteúdo do botijão já devia ter sido liberado por inteiro no ambiente confinado do
laboratório. Por isso, a explosão foi bem mais espetacular do que eu poderia supor.
Ao menos quatro outras pessoas morreram, além de Belarmino. Um professor e três alunos de
uma turma de quinto período de Oceanografia, que estavam tendo aula em uma sala imediatamente
acima do laboratório no momento da explosão. Dezenas de outras pessoas ficaram feridas.
Na manhã seguinte, no congresso, consideraram heroica a minha decisão de prosseguir com a
apresentação. A pedido do Coordenador da mesa, minha palestra foi precedida por um minuto de
silêncio em honra das vítimas. Meu nervosismo, facilmente desculpável pelo público presente, não
impediu que a apresentação fosse bastante aplaudida.
Quando o Coordenador estava para abrir para as perguntas da audiência, solicitei permissão
para me retirar da mesa, alegando esgotamento nervoso. Saí debaixo de mais calorosos aplausos.
IV – O TELEFONEMA, A CARTA
Nem sei como atravessei aquela primeira semana após a morte de Belarmino. Evidentemente as
aulas foram interrompidas, sem previsão de retorno. Não demorou a ser identificada a origem da
explosão. Como responsável pelo laboratório de Biotecnologia da Universidade, logo me tornei alvo de
todo o tipo de atenção indesejada por parte da polícia e da imprensa.
Sofia, quem diria, foi quem me livrou a cara. Voluntariou-se para depor e contou o que sabia:
que Belarmino havia feito uma cópia ilegal das chaves e estava usando o laboratório às escondidas. Ela
me inocentou completamente.
No dia de seu enterro, Márcio Belarmino foi execrado em rede nacional como um cientista
louco e homicida, um inconsequente que tirou a vida de quatro pessoas e a sua própria com sua
temeridade e imprudência. Já eu agora posava de professor decepcionado e sofrido com o aluno
brilhante e instável. Lembrei-me das proféticas palavras de Belarmino, de que nós dois nos tornaríamos
famosos.
O jornal da tevê estava terminando quando o telefone tocou.
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garantia. O que me diz de duzentos mil dólares, para começar? Livres de impostos e depositados em
uma conta de sua escolha.
Bati o telefone na cara do sujeito. Logo o aparelho voltou a tocar, e só silenciou quando o
despluguei da tomada. Alguns minutos depois a campainha da porta tocou.
Aquela noite ainda me reservava uma surpresa. Era Sofia. Estava irreconhecível metida dentro
de um vestido bege formal, que provavelmente era o mais próximo que ela poderia chegar de vestir
luto.
Olá, Daniel.
Nem sei por que estou escrevendo isto. Acho que fiquei impressionado com uns sonhos que ando tendo
ultimamente. Meu pai dizia que os espíritos às vezes avisam por meio de sonhos quando estão para levar alguém para o
mundo deles. Pura crendice, eu sei. Mas fiquei pensando em como seria terrível se alguma coisa acontecesse comigo sem que
eu tivesse a oportunidade de conversar e contar tudo.
Foi um erro não ter falado para você logo no início, quando nos conhecemos. Mas eu quis esperar até que nos
tornássemos amigos de verdade, independente de qualquer outra coisa. Estava tão empolgado por finalmente conhecer você
pessoalmente!
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Depois as coisas foram ficando meio estranhas entre nós, e não havia mais como conversar nada. Sinto muito por
ter insistido tanto com você a respeito das tabuletas. Eu devia ter percebido que você é teimoso como eu, e que insistindo eu
só aumentava a sua resistência.
Também lamento profundamente ter que conduzir essas pesquisas escondido de você. Só estou fazendo isso porque
sinto que estou prestes a encontrar algo grande. Sei que depois que tudo for esclarecido você irá compreender que eu não agi
por mal.
Mas não foi para falar de pesquisa que resolvi escrever esta carta. Foi para falar de meu pai, um índio xavante
nascido no Mato Grosso e chamado Bisu. Eu tinha quinze anos quando ele morreu. Em seu leito de morte, ele me contou
sobre uma primeira família que teve e abandonou, sobre o filho que largou aos cinco anos de idade.
Nós somos irmãos, Daniel. Não me cabe julgar os atos de nosso pai. Até porque se ele não tivesse cometido esse
erro com você, eu não teria nascido. Sou grato por ele ter me contado tudo antes de morrer. Não foi difícil descobrir onde
você e sua mãe moravam. Fiquei tão orgulhoso quando soube que você era professor universitário! Decidi seguir a mesma
carreira, para que um dia você também pudesse ter orgulho de mim.
Sei que você nunca vai ler esta carta, e que ela está servindo apenas para me ajudar a criar coragem para chamar
você para conversar. Sei que voltaremos a ser bons amigos, melhores do que nunca.
Um grande abraço de seu irmão,
Márcio Belarmino
Depois que terminei de ler a carta, notei que Sofia continuava me fitando com grande
expectativa, como se aguardasse que eu fizesse algo. Será que esperava que eu seguisse a tradição bíblica
e a tornasse minha amante?
Pedi que ela fosse embora. Eu precisava ficar só.
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O conto A MARCA foi originalmente publicado na coletânea “REDRUM – Contos de Crime e
Morte” (Caligo Editora, 2014). E em 2016 foi incluído no livro duplo de contos de Fabio Shiva,
“Labirinto Circular / Isso Tudo É Muito Raro” (Cogito Editora).
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ANUNNAKI - Mensageiros do Vento é uma Ópera Rock em desenho animado. A história é
livremente inspirada nas traduções das antigas tabuletas de argila da Suméria, tidas por muitos
como a primeira civilização humana. O filme conta a saga dos Anunnaki, “aqueles que do céu
para a terra vieram”, tal como é contada nas tabuletas sumérias. Vindos de Nibiru, os
Anunnaki buscam o ouro da Terra para solucionar o desequilíbrio na atmosfera de seu planeta
natal. E assim criam a espécie humana, ao misturar seus genes a uma raça nativa, com o
objetivo de obter trabalhadores para as minas de ouro. Então uma nova aproximação de
Nibiru provoca um dilúvio que quase extermina a humanidade, que logo em seguida enfrenta
outro grave perigo: disputas de poder entre os Anunnaki, culminando na deflagração de armas
nucleares.
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