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Prosa e Poesia de Fabio Shiva ANUNNAKI - Mensageiros do Vento

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A MARCA
um conto de
FABIO SHIVA

[As imagens utilizadas como ilustração foram retiradas de “ANUNNAKI – Mensageiros do Vento”, desenho animado de Fabrício Barretto & Fabio Shiva]

I – PRIMEIRA DISCUSSÃO
– Isso é um absurdo!
Meu grito provocou um silêncio profundo e inesperado no laboratório. Belarmino cessou seu
entusiasmado lengalenga. Olhava para mim completamente aturdido. Sofia também me fitava com os
olhos arregalados, séria e atenta. Senti que precisava dizer algo mais.
– Chega dessa baboseira de tabuletas sumérias. Não quero ouvir mais nem meia palavra sobre o
assunto.
Estávamos os três no laboratório de biotecnologia da Universidade Federal. Já passava um
pouco das dezenove. O horário oficial de encerramento era às dezoito, mas eu gostava de ficar até mais
tarde. Era quando realmente podia cuidar de minha pesquisa com células-tronco. Outro motivo é que
não havia muita pressa em voltar para casa, com sua solidão e centenas de más recordações. Mesmo
depois de quase um ano do fracasso de meu casamento com Ivone, ainda não conseguia me sentir à
vontade no nosso apartamento.
Essas solitárias horas extras noturnas que eu passava na Universidade, não relatadas nem
remuneradas, eram as minhas favoritas, quando tinha o laboratório só para mim. A solidão não me
incomodava ali, em meu local de trabalho. Eu, o temido Daniel Pádua, Professor Doutor em
Engenharia Genética, Coordenador do Laboratório de Biotecnologia e docente da disciplina de
Estatística Experimental, sinônimo de pesadelo para a maioria dos estudantes, nunca fui exatamente
um tipo popular.

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Quatro meses antes, contudo, logo no início dessa nova turma de mestrado, um de meus
orientandos solicitou permanecer no laboratório após o encerramento, para adiantar sua pesquisa. O
nome do aluno era Márcio Belarmino.
Eu tinha tudo para não gostar dele, mas simpatizei com Belarmino desde o primeiro dia em que
o vi, quando se apresentou para a qualificação de seu projeto de pesquisa. O projeto dele, sobre o uso
de diversos tipos de nutrientes em culturas de células de ovelha, após alguns ajustes bem que poderia se
adequar à minha própria linha de pesquisa. Fisicamente parecia-se muito comigo, o típico mameluco
que puxou mais para o lado índio da família. Nem alto nem baixo, robusto, pele amorenada, um rosto
redondo de olhos orientais encimado por negros cabelos lisos. Quase nenhum pelo no rosto.
O problema é que eu não gostava de encontrar pessoas parecidas comigo, com traços indígenas.
Elas me faziam lembrar de meu pai, um andarilho xavante chamado Bisu, que desapareceu sem deixar
vestígios quando eu tinha cinco anos de idade. Não me agradava sequer pensar nele.
O sentimento de afinidade com Belarmino, contudo, foi mais forte que o fantasma das mágoas
infantis. Não é muito comum ver filhos de índio ocupando bancos de faculdade, que dirá cursando
mestrado por uma Universidade Federal. Daí também minha simpatia. Outro detalhe chamou a minha
atenção, apenas uma coincidência boba. Se alguém fosse julgar somente por nossos nomes, poderia
pensar que éramos filhos de italiano, e não de índio: Márcio Belarmino e Daniel Pádua.
Louvei o empenho dele e disse que, contanto que eu estivesse presente, ele poderia utilizar o
laboratório à vontade. Em pouco tempo me habituei à sua companhia e pude observar sua dedicação
ao trabalho e o dinamismo de sua mente, invulgarmente dotada para a pesquisa científica.
Foi intrigante e também lisonjeiro perceber que por trás do pedido de Belarmino havia um
genuíno interesse em se aproximar de mim. Sempre que percebia que eu estava precisando de um
descanso, ele fazia alguma pergunta, puxava conversa, parecia mesmo ávido para sorver cada gota de
meus preciosos ensinamentos. Quem não teria se sentido honrado? Especialmente eu, que não estava
acostumado a receber aquele tipo de tratamento. Logo começamos a esticar, uma ou duas vezes por
semana, no barzinho do Homero, estrategicamente situado defronte ao campus.
Nossa intimidade crescente começou com uma curiosa inversão de papéis, pois eu o tratava
como o restante da turma o fazia, pelo sobrenome, enquanto ele me chamava familiarmente pelo
primeiro nome, a meu próprio pedido.

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– O Senhor está no Céu, ao menos é o que diz a Bíblia. Já Nietzsche disse que Ele está morto, e
até hoje não foi desmentido. Tudo o que sei é que Darwin não encontrou o menor vestígio Dele
durante suas expedições científicas. Então é melhor deixar essa história de senhor para lá, pode me
chamar de você, de Daniel. Afinal a nossa diferença de idade não é tão grande. Não precisa me deixar
mais velho do que já sou.
Não me arrependi de ter concedido essa liberdade, pois Belarmino nunca se excedia em seus
privilégios. Na presença de terceiros, fossem os outros orientandos na sala de aula ou mesmo alguém
da equipe técnica no laboratório, ele sempre me tratava respeitosamente. Sem chegar a ser cerimonioso,
o que teria soado como hipocrisia. Era tudo na medida certa.
Extrovertido e bastante simpático, ao contrário de mim, Belarmino logo se tornou muito
querido pela turma. Por isso não foi exatamente uma surpresa quando Sofia Bandeira, colega de
mestrado de Belarmino e igualmente minha orientanda, também pediu para ficar até mais tarde no
laboratório. Até que era uma menina aplicada, uma pesquisadora diligente. De outro modo, não estaria
fazendo parte de minha equipe. Mas eu sabia que aquela dedicação toda era pura fachada. Tudo o que
ela queria descobrir era um jeito de se enfiar na cama com Belarmino. Desnecessário dizer que obteve
sucesso em tempo recorde.
Procurei estoicamente me adaptar à esdrúxula situação que eu mesmo havia gerado, em minha
imprevidência. Afinal, dentro de mais alguns meses os dois estariam concluindo suas dissertações, no
ano seguinte uma nova turma chegaria e aquilo tudo seria passado. O que não deu para suportar foi a
pressão adicional causada pela estúpida questão das tabuletas sumérias.
A gota d’água foi quando Belarmino declarou, todo faceiro, que iria pesquisar os genes inativos
no mapa genético da ovelha, a fim de descobrir quais seriam os mais prováveis de terem sido
modificados pelos Anunnaki. A mera possibilidade de que o banco de dados e os computadores do
laboratório fossem utilizados para alimentar aquela sandice, para mim, era de uma heresia intolerável.
Daí meu grito.
– Absurdo!
E agora estávamos ali, os três, diante do impasse declarado.
Nem eu mesmo saberia explicar o que me deu. Não naquele momento. Só sentia o coração
batendo acelerado, a respiração tensa, uma vontade crescendo de quebrar alguma coisa, de esmurrar
alguém, de gritar, de chorar, de explodir.

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– Nem meia palavra!


Sofia me encarava, calada e furiosa. Belarmino parecia em choque. Seu olhar desolado fugiu
para a estufa diante de nós três, onde estavam ordeiramente alinhadas suas preciosas garrafinhas com as
culturas de células-tronco de ovelha. A estufa era permanentemente mantida na temperatura ideal de
37ºC, e o ambiente com 5% de CO2, para manter o ph neutro. De dentro de cada garrafa plástica de 50
ml, nadando em um líquido composto por água, aminoácidos, minerais, vitaminas, glicose, soro fetal e
antibióticos, centenas e centenas de mudas testemunhas presenciaram o evento de minha explosão
emocional, acontecimento muito vasto, complexo e demorado para ter qualquer significação em suas
curtas vidas celulares.
Aquela era a nossa primeira desavença séria. De braços cruzados e ostensivamente de costas
para os dois, eu contemplava a minha própria fisionomia distorcida e vermelha na garrafa de vidro
contendo o meio de cultura das células, que nós fabricávamos ali mesmo no laboratório. Eu sentia o
sangue fervendo só de olhar para o casal. Ao mesmo tempo, estava assustado e constrangido pela
intensidade de minha reação, com sua reveladora desproporcionalidade. Belarmino deveria ter esperado
a crise serenar antes de falar novamente.
– Daniel, deixe-me explicar. Ao menos pense nas possibilidades.
Meia palavra teria bastado.
– Pense você, Belarmino, na possibilidade de perder sua bolsa de mestrado, se continuar
insistindo nessa fantasia!

Estava dito. Era irreversível, não havia como voltar atrás. Sofia foi a primeira a se rebelar.
– Você só pode estar de brincadeira, professor.
– Isso vale para você também, menina.
– Não me chame de menina, que eu tenho nome. Não sabia que agora estamos em uma
ditadura ou, melhor dizendo, em uma tirania, onde quem pensa diferente do professor Daniel Pádua
tem a bolsa cortada. É assim que funciona agora?
– E você duvida? O que é que você está pensando, que o mestrado é uma democracia? Ou,
melhor dizendo, uma democracia à moda antiga, dos gregos? Acho muito justo. Nesse caso você, sendo
mulher, não teria nem o direito de abrir a boca, para começar. Será que devo mesmo ter que lembrá-los

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de que estamos estudando Biotecnologia aqui? Ou talvez eu é que não tenha sido avisado de que o
mestrado agora é em Literatura ou, melhor dizendo, em Psicanálise?
Fiz uma pausa para respirar. A essa altura a maior parte de minha ira havia sido corroída por um
turbilhão de autocensura, por minhas palavras ásperas com Belarmino. Agora só queria um jeito de sair
daquela situação.
– Escutem, acho que houve um mal-entendido. Vocês interpretaram errado o que eu disse. Não
estou ameaçando cortar a bolsa de ninguém. Mas o que é isso, gente? Tudo o que fiz foi lembrar vocês,
admito que de forma um tanto exaltada, que estamos aqui para fazer ciência.
Respirei fundo mais uma vez. Achei que já estava calmo o suficiente para confrontar
diretamente Belarmino.
– Uma coisa é você contar as suas anedotas de alienígenas no bar do Homero, enquanto
estamos bebendo. Outra coisa, bem diferente, é querer trazer essa maluquice aqui para dentro do
laboratório, você está me entendendo? Isso é inadmissível, Belarmino. Você ficou tão obcecado por
essa fantasia, ficção científica na melhor das hipóteses, que não percebe que está cruzando uma
fronteira perigosa. A sua forma de pensar é que pode acabar custando seu mestrado. Não estou
ameaçando, apenas avisando. Sei como funciona a mentalidade acadêmica. Só digo isso para o seu bem.
Você tem um futuro brilhante pela frente. Não estrague tudo por conta de um mero capricho. Quero
ver sua dissertação aprovada com louvor. Você sabe disso. E eu sei que você também quer isso. Então
tente fazer uma ideia de minha surpresa, de meu choque, vendo você querendo jogar tudo pro alto para
procurar chifre de E.T. em cabeça de ovelha!
A minha fraca tirada não obteve as risadas que eu ousei esperar. Só uma tentativa de sorriso da
parte de Belarmino, indicação de que a cumplicidade estava sendo restaurada, ao menos em parte. Sorri
amarelo para ele, como se estivéssemos disputando de quem era o sorriso mais sem graça.
– Sabem o que mais? Já trabalhamos o suficiente por hoje. Vamos fechar a casa e depois
refrescar nossas ideias no Homero, já que foi mencionado? Por minha conta.
Belarmino sorriu amarelo de volta, campeão indisputável. Abriu os braços, coçou a cabeça,
desviou o olhar para o chão.
– Puxa, professor, seria ótimo. Obrigado, realmente. É que... combinei de levar Sofia ao cinema.
E então o convite feito por educação, depois de uma pausa deliberada:
– Quer ir conosco?
Senti novamente a taquicardia, a respiração sôfrega, a náusea provocada pelo repentino
resfriamento da pele. Temi estar sofrendo um ataque do coração.
– Não, obrigado. Divirtam-se. Escutem, vamos colocar uma pedra sobre isso que aconteceu
aqui hoje. Tudo bem?
Sofia levantou a mão de imediato.
– Por mim tudo bem, professor.
Belarmino hesitou um pouco antes de consentir com um mudo aceno de cabeça.
– Muito bem, então. Eu vou saindo, se os pombinhos não se incomodam. Estou me sentindo
um pouco indisposto, para falar a verdade. Louco para chegar logo em casa e tomar um banho.
Belarmino, posso deixar as chaves do laboratório com você? Verifique se está tudo em ordem antes de
fechar, pode ser? Isso é, se não for atrasar o cinema de vocês. Ah, que bom então – completei, diante
da aquiescência dele. – Boa noite e até amanhã.
Saí do laboratório jurando para mim mesmo nunca mais voltar a pensar no assunto. Mas nessa
noite só fui dormir depois de duas pílulas e não sei quantos uísques, pois não conseguia parar de pensar
nas benditas tabuletas sumérias. E quando finalmente peguei no sono, não teria sido tão ruim se eu
tivesse sonhado com elas. O sonho que eu tive, horroroso demais para ser descrito com palavras, foi
com o Paulo Setúbal, meu antigo orientador de mestrado.
Justo com quem. Um fantasma do passado que voltava para me assombrar. Somente ao acordar
na manhã seguinte, suando frio e com uma tremenda dor de cabeça, foi que percebi como Paulo era
parecido em tantas coisas com o Márcio Belarmino.

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II – AS TABULETAS SUMÉRIAS
– Sabia que as ovelhas podem ter vindo de outro planeta?
Foi assim que começou. Belarmino disparou essa pérola à queima-roupa, logo depois do brinde,
mal havíamos nos acomodado na penúltima mesa disponível no Homero. Isso aconteceu o quê, um
mês, mês e pouco antes dessa primeira discussão, que na verdade terminou no laboratório, mas teve sua
origem exatamente ali.
Por essa época Sofia não havia iniciado seu ataque. Estávamos apenas eu e ele à mesa,
perfeitamente a sós em meio à balbúrdia geral. Eram sete ou oito mesas no salão. A nossa ficava no
canto oposto à porta, bem em frente ao caixa onde o próprio Homero se sentava, tendo como sempre
à sua frente a caneca de cerâmica contendo um líquido desconhecido, que o dono do bar ingeria em
mínimos goles, a cada cinco ou dez minutos. Na parte externa do bar, ocupando sem cerimônia a
calçada de pedestres, havia mais meia dúzia de mesas tomadas pelo sedento pessoal da Universidade. A
última mesa vazia, bem ao lado do banheiro, já estava sendo ocupada por três estudantes da graduação.
– Que história é essa, Belarmino?
Ele saboreou o primeiro gole da cerveja, feliz por ter obtido algum efeito com sua frase de
impacto.
– Vi um documentário incrível. Você precisa assistir, Daniel. É fascinante. Se metade do que
estiver ali for verdade, elas são a maior descoberta de todos os tempos!
– Elas? De quem você está falando?
– Das tabuletas sumérias.
Foi a primeira vez que ouvi essas palavras. Nenhum abalo sísmico ocorreu. Limitei-me a dar
mais um gole na cerveja, que naquela noite eu bebia mais para fazer companhia. Meu fígado não andava
lá essas coisas. Concedido, portanto, que não iniciei o assunto com a melhor das disposições. Também
não contribuiu para adoçar meu humor aquela inesperada petulância de Belarmino, querendo vir me
dizer o que eu precisava assistir. Mas não cheguei a tomar como ofensa, pois estava claro que o assunto o
empolgava.
– Já ouviu falar dessas tabuletas? Da Suméria?

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– A terra de Conan, O Bárbaro!


– Rá, boa! Mas essa foi a Ciméria, certo?
Ergui as mãos, agora sim um pouco ofendido.
– Tudo bem. Confesso minha completa ignorância a respeito das fabulosas tabuletas da
Suméria, da Ciméria ou da Sibéria!
Saiu mais áspero do que eu pretendia. O sorriso murchou no rosto dele, como a folha de alface
esquecida no canto do prato, na mesa ao lado. Agora que um silêncio embaraçoso interpunha-se entre
nós, o barulho ao redor começava a emergir acima da linha da percepção. Na mesa em frente um casal
discutia algum assunto com a maior seriedade. Mas a conversa dos dois era abafada pela algazarra de
uma grande mesa de calouros que debatiam a teoria da evolução em altos brados, entre assovios e
risadas maliciosas.
Não me agradava ver Belarmino chateado comigo.
– E então? Estou esperando. Que tal essas tabuletas?
– Sei que o assunto parece exótico, mas não foi à toa que falei sobre isso. Acho que esse vídeo,
na verdade uma série de vídeos... Varei a noite assistindo, de tão eletrizado que fiquei, Daniel! Acredito
que as tabuletas sumérias podem ser úteis em nosso trabalho. Eu estava pensando até mais na sua
pesquisa especificamente que na minha...
– Agora você me deixou realmente curioso. Que tal me contar essa história do começo?
Ele prontamente abandonou o tom de queixa. Já estava novamente empolgado.
– Curiosa foi essa sua escolha de palavras! Pois a Suméria é praticamente o começo da história
humana. Os sumérios viveram há seis mil anos, no mínimo. Alguns pesquisadores afirmam que eles são
bem mais antigos. Possuíam muitos conhecimentos, principalmente em astronomia. Sabiam a posição e
até a aparência de cada planeta do Sistema Solar, mesmo de Urano, Netuno e Plutão, que só foram
descobertos pela ciência no século vinte. Obviamente, também conheciam a escrita e registraram a sua
história em tabuletas de argila, muitas das quais sobreviveram até nossos dias.
Belarmino bebericou o que restava em seu copo, depois esvaziou o que havia na garrafa no meu
copo e no dele. Ergui a mão e acenei para atrair a atenção de Homero, que como de costume,
aboletado no caixa como estava, sem sequer descruzar as mãos de cima do ventre volumoso, esticou o
pescoço na direção da cozinha e gritou com sua voz de locutor de rádio AM:
– Salta uma perfeitamente gelada para a mesa vinte e seis!
Logo veio uma pressurosa garçonete esgueirando-se por entre as mesas com a cerveja.
Aproveitei para pedir uma porção de iscas de filé e batatas fritas. Eu não estava com o menor apetite,
mas gostava de ver Belarmino comer. Reassegurado por meus gestos paternalistas, ele prosseguiu na
tarefa de me instruir.
– A primeira tabuleta foi traduzida em 1872, pelo assiriologista George Smith, e causou
sensação no mundo inteiro. Era uma parte da epopeia de Gilgamesh, a mais antiga obra de literatura
conhecida. Continha uma narrativa acurada do Grande Dilúvio, semelhante em muitos detalhes à
história contada na Bíblia.
– Só espero que a sua história não termine com você me convidando para entrar para alguma
seita ou algo assim.
– Rá! Boa. Realmente, a religião está bem no centro da zona de impacto, por assim dizer.
Imagine o choque das pessoas, em plena era vitoriana, diante daquelas espantosas coincidências entre as
tabuletas e a Bíblia. Mais especificamente, entre as tabuletas e a Torá ou Pentateuco, os cinco primeiros
livros da Bíblia, que teriam sido ditados diretamente por Deus a Moisés.
– E o que há de tão chocante nisso? Os sumérios copiaram a história dos hebreus.
– Aí é que está. Os sumérios não podem ser acusados de plágio, pois suas tabuletas foram
escritas pelo menos dois mil anos antes da época em que a história de Moisés supostamente aconteceu.
– Então foi Moisés que plagiou os sumérios. Quem está ligando? Não faz a menor diferença.
Afinal, são apenas mitos.
– Pode não fazer mesmo muita diferença para você, Daniel, individualmente. Mas pense no
abalo que isso representa para a sociedade, para os valores e tradições da cultura judaico-cristã, que é

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uma das ideologias predominantes no mundo. Mesmo porque, pelo que entendi, o que incomodou e
tem incomodado a respeito das tabuletas sumérias não são tanto as semelhanças com a história bíblica.
E sim as perturbadoras diferenças.
A garçonete chegou com o pedido. Prevendo o próximo, já trazia uma nova garrafa na bandeja,
com a tampinha prestes a ser ejetada ao meu consentimento. Que ela obteve sem demora, ainda que o
cheiro da gordura fumegando do filé e das batatas, e a antecipação de mais álcool entrando em meu
organismo estivessem fazendo o meu fígado chiar em agonia. Mas disfarcei a careta com um sorriso e
até propus o brinde.
– Vive la différence!
Belarmino ficou me olhando intrigado, como se aguardasse uma explicação. Talvez a minha
pronúncia enferrujada não tivesse colaborado. Enfim, fui obrigado a traduzir.
– Viva a diferença.
– Ah, sim. Viva!
Ele deu um bom gole, suspirou satisfeito e já se pôs a atacar as iscas de filé, a mergulhar na boca
pedaços de pão encharcados de molho, intercalando cada bocado com uma ou duas tiras de batata frita.
Só para fazer companhia, mergulhei a ponta de um naco de pão no molho e dei uma pequena mordida,
disposto a fazê-lo durar. A conversa poderia ter seguido outros rumos naquele momento. Talvez até
Belarmino não ficasse tão obcecado com isso depois. Mas eu tinha que trazer o assunto de volta,
enamorado ainda pela secreta metáfora que havia surgido em minha mente.
– E então? Fale mais sobre essas diferenças tão perturbadoras...
– O quê? Ah, claro. Vou resumir ao ponto crucial. A principal discordância entre as tabuletas
sumérias e a Bíblia é que no lugar de Jeová, Deus Todo-Poderoso, criador do céu e da terra, estão os
Anunnaki. De acordo com as tabuletas, foram os Anunnaki que criaram a raça humana à sua imagem e
semelhança. Foram os Anunnaki que instruíram o homem para que construísse uma arca capaz de
sobreviver ao dilúvio. Foram os Anunnaki que presentearam a humanidade com um animal vindo de
seu planeta natal: a ovelha. O cordeiro de Deus vindo do céu!
Afinal. Tentei esconder meu desconforto fugindo do assunto.
– Não vejo onde está essa diferença toda. Pelo que você está dizendo, Anunnaki era apenas o
nome que os sumérios davam a Jeová. Onde está a diferença? É só uma questão de nome, de tradução.
A chama de Belarmino se exaltou após essa provocação não intencional.
– É muito mais que isso. Anunnaki não é uma entidade individual como Jeová, se é que se pode
falar assim do Deus onipresente. Mas o termo Anunnaki se refere a uma entidade coletiva, a um povo.
Se me lembro bem, na língua suméria Anu significa céu, e Ki significa terra. Anunnaki, portanto, seriam
aqueles que do céu para a terra vieram.

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– Então eram deuses também?


– Para os primeiros humanos, muito provavelmente.
E assim, entre bocados de filé e batata intercalados por muitos goles de cerveja, Belarmino foi
desvendando a extraordinária história dos Anunnaki. Povo originário de Nibiru, planeta que atravessa
transversalmente o nosso sistema solar, em uma órbita que leva milhares de anos terrestres para ser
completada. Vieram à Terra em busca do ouro, elemento muito raro em seu planeta e do qual eles
precisavam para pulverizar na atmosfera, minimizando assim os catastróficos efeitos provocados pelo
gradual esfriamento dos vulcões de Nibiru. Eram os vulcões ativos que mantinham a atmosfera densa o
suficiente para proteger Nibiru igualmente do frio enregelante do espaço, no ponto mais afastado da
órbita e, no ponto mais próximo, do calor abrasador do Sol.
Os primeiros experimentos com o ouro obtiveram sucesso. Uma base Anunnaki foi
estabelecida na Terra, com a missão de coletar o máximo de ouro no menor tempo possível. Uma
intrigante corroboração desta passagem da narrativa, como pontuou um deliciado Belarmino, foi a
descoberta dos vestígios de antigas minas na África do Sul, datando de mais de cento e cinquenta mil
anos.
– Só a descoberta dessas minas já joga na lata de lixo toda a história ensinada nas escolas.
Belarmino ergueu a mão em um gesto inconsciente, o dedo em riste pontuando o ritmo de sua
oratória. Com a outra mão, catou uma das últimas batatas no prato, branca de tanto sal, e a enfiou
distraidamente na boca antes de arrematar sua argumentação.
– E veja você que coisa. Nas tabuletas sumérias os Anunnaki descrevem o local que eles
sobrevoaram e onde primeiro encontraram o ouro como a porção de terra em forma de coração. Justamente o
que hoje conhecemos como África!
Eu ouvia aquilo tudo com alarme crescente. Mas evitei de todos os jeitos manifestar o meu
desassossego. Até desempenhei razoavelmente o papel de “escada”, entregando as deixas para ajudar
Belarmino a dizer a sua fala até o fim. Mas, ai de mim! Ao contrário das batatas, a saga dos Anunnaki
estava apenas começando. Ele levou ainda mais duas cervejas narrando uma desconcertante sequência
de eventos.
Tendo passado um longo período trabalhando nas minas de ouro, os heróis Anunnaki acabaram
se rebelando, pois afinal eram astronautas e não reles força muscular. A solução para o impasse foi criar
um trabalhador primitivo, através da manipulação genética de uma espécie já existente na Terra. Após
uma série de tentativas fracassadas de inseminação artificial, o primeiro êxito foi chamado de Adamu, o
de pele avermelhada. Para que pudesse procriar e multiplicar sua nova espécie, deram-lhe uma
companheira, chamada Ti-Amat. O primeiro casal foi levado para um local paradisíaco chamado Edin,
nas proximidades de Eridu, a primeira cidade Anunnaki construída em nosso planeta.
– Só que os dois foram expulsos do jardim do Edin depois que tentaram provar o fruto da
árvore proibida, a que só os Anunnaki tinham acesso. Agora escute só essa, Daniel. Muitos
pesquisadores acreditam que era com o fruto dessa árvore que os Anunnaki produziam a bebida que
lhes concedia uma vida tão longa, de muitas centenas de anos terrestres.
Quase posso jurar que nesse momento os olhos de Belarmino brilhavam com a fixidez dos
fanáticos. Mas também é possível que meus temores tenham feito com que imaginasse coisas. De todo
modo a saga continuava, precisava prosseguir.
Posteriormente a raça de Adamu passou por um novo enriquecimento genético, através do
intercâmbio direto com os Anunnaki. Longe de casa há tanto tempo, os heróis de Nibiru não souberam
resistir aos encantos das netas de Adamu. Os dois primeiros nascimentos resultantes do sexo entre
Anunnaki e terrestres foram o de Adapa, um novo Adão, e o de sua companheira Titi, os primeiros
homo sapiens, seres humanos propriamente ditos. E Adapa e Titi tiveram filhos gêmeos, a quem
chamaram Ka-In e Abael. E os Anunnaki ensinaram a Ka-In os segredos e técnicas da agricultura, para
que a crescente população de humanos pudesse produzir por si mesma o alimento que consumia tão
vorazmente. E os Anunnaki mandaram trazer de Nibiru a matriz genética de um animal nativo de lá, e
confiaram a Abael a importante missão de cuidar da criatura, para que ela se multiplicasse e desse muita
carne, leite e lã. A essa altura Belarmino estava quase babando em êxtase.

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– Esse foi o Cordeiro de Deus, vindo do céu. O animal que os Anunnaki mandaram trazer de
Nibiru foi a ovelha, Daniel!
– A-hã. Você já disse isso.
– Você está achando que é tudo mitologia, não é mesmo? É porque você não viu ainda o
documentário. Mas escute, agora vem a melhor parte. Pensei muito em você quando o assisti.
– Foi mesmo?
– Foi. Na verdade, pensei em nós dois. Em você e em mim também.
Apesar de ter bebido muito menos que Belarmino, acreditei que estava ficando intoxicado, a
julgar pelo que eu sentia naquele momento e tendo em vista meu fígado combalido. Mas prestei toda
atenção ao que ele estava dizendo.
A história de Ka-In e Abael acontece mais ou menos como na Bíblia. Os Anunnaki apreciaram
mais o pernil de carneiro que a salada de legumes, e isso deixou Ka-In enciumado. Um dia os dois
irmãos discutiram, e Ka-In matou Abael. Quando os Anunnaki descobriram o crime, ficaram
ultrajados. Expulsaram Ka-In e sua esposa-irmã Awan para terras distantes, colocando sobre ele uma
marca indelével. Os Anunnaki alteraram a essência vital de Ka-In. E a partir de então nunca mais a
barba cresceu em seu rosto.
– Essa é a famosa marca de Caim, Daniel! É claro que isso não está exatamente dessa forma nas
tabuletas, mas a conclusão a que os pesquisadores chegaram foi de que o DNA de Ka-In foi alterado
para torná-lo imberbe. E essas terras distantes, para onde o clã de Ka-In foi, bem podem ter sido as
Américas dos índios, as terras de nossos ancestrais! Já pensou? Você e eu podemos ser descendentes do
primeiro assassino da humanidade!
Por algum motivo, a ideia parecia fasciná-lo. Decidi que eu já havia tido o suficiente daquilo.
Sinalizei para Homero, pedindo a conta. Enquanto aguardávamos, ele insistiu.
– Você devia ver esse vídeo, Daniel. Você vai gostar, eu tenho certeza.
– Só se você for ver comigo, lá em casa.
Saiu antes que eu tivesse tempo de pensar. Quando dei por mim, já havia falado. Belarmino
arregalou os olhos, depois ficou olhando para o chão. Balbuciou alguma coisa sobre já ser tarde.
Tamanho era o seu constrangimento que mal se despediu e saiu antes mesmo da garçonete trazer o
troco.
Isso como apresentação ao tema das tabuletas sumérias. Nessa noite não teve santo que me
fizesse dormir, de tanta vergonha e dor no fígado. Bem que os poetas de antigamente acreditavam que
o fígado é que era a sede das paixões.
Belarmino ficou arredio durante uma semana ou quase isso. Depois apareceu com aquela
história de Sofia. Naquele momento até fui grato a ela, pois meu pupilo voltou ao seu comportamento

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de sempre e não deu mostras de estar tentando me evitar. Pelo contrário, continuou batendo na mesma
tecla.
– Gostaria muito de saber a sua opinião sobre este livro.
A aula de Estatística Experimental havia terminado. Os alunos abandonavam rapidamente a
sala, o alívio estampado em cada rosto. Eu não os culpava. A matéria que ensino é de fato uma
disciplina árida e provavelmente inútil para o aluno médio de mestrado, que considera uma perda de
tempo aprender a fazer na mão custosas operações matemáticas que na prática são invariavelmente
feitas no computador. Raros eram os que conseguiam tirar algum proveito real de minhas aulas.
Belarmino era um deles. Olhei para o livro que ele me oferecia. Era O 12º Planeta, de Zecharia Sitchin.
– Não me vá dizer que é sobre aquelas suas ovelhas alienígenas!
– É isso mesmo. Como adivinhou?
– Algo me dizia que o assunto desse livro não é Estatística Experimental.
Naquele momento Belarmino não estava muito receptivo às minhas tiradas. Seus olhos
apresentavam aquele mesmo brilho febril.
– Escute, professor. Eu tive algumas ideias lendo esse livro. Estou precisando conversar com
alguém em quem eu possa confiar.
As minhas duas horas seguintes deveriam ser supostamente dedicadas à produção de texto, a
publicar ou perecer. Eu estava engasgado há dias com um artigo de cinco páginas. O artigo versava sobre
técnicas de carcinogênese induzida em células-tronco, basicamente um resumo da bibliografia existente
sobre o assunto, boa parte de minha autoria. Afinal aquela era a minha especialidade. Escrever não era
uma tarefa difícil, apenas cansativa. Meia dúzia de pessoas iria ler o artigo, se tanto. Depois ele seria
solenemente ignorado, como de costume. Mas o trabalho não era menor por isso.
Por outro lado, o que ele disse me sensibilizou.
– Fico feliz em saber que você confia em mim, Belarmino. Sou todo ouvidos.

Pelo menos dessa vez ele foi direto ao ponto. Ou quase.


– Acho que o cerne de tudo é essa árvore sagrada do jardim do Edin, cujos frutos concediam
longa vida a quem bebesse do elixir preparado com o seu sumo. Alguns pesquisadores defendem que
certas passagens das tabuletas sumérias, assim como da Bíblia, devem ser interpretadas simbolicamente.
Esses pesquisadores acreditam, e eu junto com eles, que a árvore sagrada pode ser o próprio DNA da
espécie humana. Ao criar a humanidade, os Anunnaki moldaram os nossos genes para que nossas vidas
fossem extremamente curtas, comparadas com as deles. Pois então. O meu ponto é o seguinte: os
Anunnaki trouxeram a matriz genética de um animal de seu planeta e o adaptaram para a vida na Terra.
Esse animal era a ovelha, certo? Meu palpite é que a ovelha, sendo originária de Nibiru, devia ter uma

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vida mais longa antes de ser transferida para cá. Ela foi geneticamente alterada para que sua vida se
tornasse mais curta, em conformidade com os rápidos ciclos terrestres. Essa foi a ideia que eu tive,
professor: os genes da ovelha podem conter o segredo da vida longa.
O discurso havia terminado. Belarmino me fitava com um olhar intenso, mas eu não saberia
dizer se me enxergava ou não. Parecia estar tendo uma epifania, que me julguei na obrigação de
interromper.
– Diga-me uma coisa, Belarmino. Você anda tomando drogas?
– Rá, essa foi boa. Agora fale sério, professor. Meu raciocínio tem lógica?
– Olha. A linha de seu raciocínio até que é plausível. O problema são as suas premissas.
– O que é que tem?
– Será que nem desconfia? Sabe que isso começa a me preocupar? O que você pretende com
essa história de ovelhas E.T.? Não percebe que está apoiando todas essas suposições em dados que não
passam de pura fantasia? Onde espera chegar insistindo nisso?
– Ainda não sei, professor. Mas estou quase descobrindo.
Eu estava a ponto de replicar quando ouvimos uma batidinha discreta na porta, que já estava
aberta. Diante da porta estava Sofia Bandeira, parecendo muito apetitosa com seus jeans apertados e
sua blusa decotada.
– Boa tarde! Com a sua licença, professor Daniel, gostaria de falar com ele rapidinho, tudo
bem? Márcio, esqueceu que combinamos de estudar juntos na biblioteca?
O cerco de Sofia estava apenas começando, já com pleno êxito. Belarmino seguiu docilmente
atrás dela. Deixou o livro comigo, arrancando de mim a promessa de lê-lo rapidamente. Bem que tentei.
No dia seguinte à primeira discussão no laboratório, acordei me sentindo péssimo, sofrendo de
ressaca alcoólica e moral. Acreditei firmemente que não havia como eu me sentir pior do que naquele
momento.
Eu estava enganado, é claro.

III – ÚLTIMA DISCUSSÃO


A cena seguinte foi ainda mais grotesca. Dessa vez Belarmino veio mais cedo, antes que o resto
da turma chegasse para a aula de Estatística Experimental. De cara amarrada, ele me devolveu as chaves
do laboratório.
– Professor Daniel, precisamos conversar.

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Já não gostei do tom de voz. Apelei para a minha arma de sempre.


– Fico feliz em ver que você continua confiando em mim, Belarmino. Pode falar.
– Professor, entendo que do seu ponto de vista eu esteja cometendo um erro. Peço apenas que
me deixe cometer esse erro por mim mesmo, pois assim poderei aprender com ele, na pior das
hipóteses. Pois também existe a possibilidade, por mínima que seja, de que eu esteja certo. Peço apenas
que considere essa possibilidade, professor. Deixe-me ao menos tentar.
Ele quase me desarmou. Eu estava me preparando para alguma hostilidade ostensiva ou
encoberta, não para aquela sincera tentativa de paz. Mas era uma paz que significava derrota para mim.
– Pode tentar à vontade no banheiro de sua casa, está certo? Aqui na Universidade, agora sou eu
que peço apenas que você faça o trabalho para o qual foi contratado.
Ele finalmente explodiu. Quando um não quer, dois não fazem a paz.
– Poderia me dizer o que é que o incomoda tanto nas tabuletas sumérias? Sinceramente,
professor, eu esperaria essa reação de algum pastor fanático, nunca de um homem de ciência, cuja obra
eu tanto admiro. Por que tanto preconceito?
– Não se trata de preconceito. Justamente por ser um homem de ciência, como você diz, não
tenho tempo a perder com mitologia.
– Professor, eu até concordo em parte. É possível que as tabuletas não contenham nada além de
mitos e fábulas, embora existam centenas de evidências em contrário. Conceda ao menos que elas
possam conter alguns indícios de verdade. Conhece a história daquele arqueólogo, Schliemann? Todos
consideravam a Ilíada e a Odisseia como pura fantasia e literatura, mas ele resolveu seguir a possibilidade
de que fossem narrativas de fatos realmente acontecidos. Foi assim que ficou mundialmente famoso
como o descobridor das ruínas de Troia.
– Quer dizer então que você agora decidiu largar a Biotecnologia para se dedicar à Arqueologia?
Boa sorte em seus novos caminhos. Ou melhor dizendo, em seus antigos caminhos. Será que não
entende isso? Aqui nós estamos olhando para o futuro. E você fica insistindo em olhar para o passado.
– O futuro se esconde no passado.
Não gostei do modo como ele disse aquilo, meio professoral.
– Que bobagem foi essa que você disse?
Ele repetiu.
– Essa frase aparece em diversos contextos nas tabuletas.
– Realmente, parece um poço de sabedoria para mim. Um poço de seis mil anos, de água podre,
estagnada. E você, Belarmino, não se contentou em dar um gole, já foi logo mergulhando de cabeça,
deu nisso. Não é à toa que parece tão encachaçado por essas tabuletas maledetas!
– Professor, peço que me conceda ao menos a dignidade de ser levado a sério.
– Conceda você primeiro a si mesmo essa dignidade, se for capaz, antes de querer exigi-la dos
outros. Pode sonhar à vontade com suas histórias em quadrinhos durante seu tempo livre, mas aqui
dentro o assunto é trabalho. Estamos entendidos?
Ele fez mais uma tentativa, sujeito teimoso. Era o sangue índio, eu sabia.
– Professor, então me deixe fazer essa pesquisa no horário após o expediente. Prometo que
utilizarei apenas o meu próprio tempo e uma quantidade ínfima de energia elétrica para consultar o
computador do laboratório.
Touché. Era preciso virar o jogo e depressa.
– Só que logo depois de consultar o banco de dados você vai querer fazer alguns
experimentozinhos, não é mesmo? Pensa que não sei como é a progressão dessa doença sua? Já vi
acontecer antes. E além do mais pode esquecer essas horas depois do expediente. Estou com muitos
afazeres domésticos pendentes, assuntos que preciso resolver em casa. Não vou poder ficar até tarde no
laboratório por um tempo. Sinto muito, Belarmino.
Não era só uma desculpa. Eu realmente havia descoberto um vazamento na cozinha, entre
outras coisas. Mas ele não se deu por vencido.
– Não percebe como isso que estou querendo fazer pode ajudar sua própria pesquisa?
– Com toda sinceridade, não vejo como.

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– Por que continuar focando tanto na doença, se não está dando resultado? Que tal
experimentar a saúde, para variar?
– Como é?
– Nós podemos ajudar a criar células capazes de viver mais, já parou para pensar nisso? É bem
melhor que ficar tanto tempo tentando criar o câncer comestível!
Senti a vista escurecer.
– Agora chega, rapaz. De agora em diante você está terminantemente proibido de falar sobre
tabuletas sumérias, ovelhas alienígenas, índios assassinos ou qualquer outra dessas fantasias, está me
entendendo? Dentro da Universidade só quero ouvir falar de trabalho. Se você desrespeitar essa
simples regra, serei obrigado a recomendar seu desligamento do mestrado, por insubordinação e falta
de decoro científico. Será que fui claro?
Tarde demais notei que os outros alunos já haviam chegado para a aula, que por conta do
episódio transcorreu em intenso constrangimento coletivo. Raras vezes fui tão cruel e sarcástico ao lidar
com as dificuldades de meus alunos face aos desafios da Estatística Experimental. O término da aula foi
saudado por um rápido abandono em massa da sala, que fingi não notar, ocupado com minhas
anotações. Quando ergui a cabeça, Belarmino também havia saído.
Câncer comestível. Meu sangue fervia. Se havia duas palavras que eu seguramente odiava mais que
tabuletas sumérias, eram essas. Elas me perseguiam há anos, desde os tempos em que eu, jovem e ingênuo
mestrando, ainda sonhava em utilizar a ciência para o bem da humanidade.
A ideia que motivou a minha dissertação era simples, porém ousada. Uma das principais
características das células cancerosas é a sua desordenada reprodução. E o problema todo do câncer é
que as células resultantes dessa reprodução são todas igualmente doentes, cancerosas. A minha
audaciosa ideia era que, se pudéssemos obter essa mesma reprodução desenfreada, só que com células
sadias, teríamos uma fonte inesgotável de matéria orgânica à nossa disposição. Em outras palavras,
teríamos encontrado a solução para o problema da fome no mundo.
A minha hipótese era muito ambiciosa para caber em um mestrado. Assim, o projeto inicial foi
sofrendo drásticos e sucessivos cortes. Logo de início tive que mudar totalmente o foco, pois eu
planejava trabalhar com células vegetais. Mas a bibliografia existente sobre as galhas, ou tumores
vegetais, é incomparavelmente menor que a que trata do câncer animal. Além disso, meu orientador, o
Professor Paulo Setúbal, achou que seria mais interessante se a minha pesquisa tratasse de ovelhas, que
na época estavam na moda, após a clonagem da ovelha Dolly. E é claro que assim a minha pesquisa
poderia servir à pesquisa dele, por isso aceitei a mudança sem questionar. Fazia parte do jogo.
Evidente que não seria realizado durante o mestrado o meu sonho de criar uma célula sadia
com grande capacidade de autorreprodução. Nem durante o doutorado, nem até o presente momento,

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diga-se de passagem. Tive de resumir a dissertação a um minúsculo aspecto do projeto inicial,


justamente a etiologia do câncer nas células. Eu tinha de começar por algum lugar. O problema é que
até hoje não saí do começo.
Fiz uma extensa revisão bibliográfica, realizei mais de duzentos experimentos, analisei milhares
de células cancerosas. Para os fins da dissertação classifiquei as etiologias em três grupos: agentes
químicos, agentes radiológicos e agentes virais, além de um quarto grupo formado por diversos outros
agentes. Foi um trabalho digno. Bem feito. Mereceu a nota máxima que ganhou. Só que a vitória teve
um sabor amargo.
Foi bem na minha apresentação da dissertação. Eu estava um pouco nervoso, como era de se
esperar, mas até que falei bem. Respondi com correção e clareza às perguntas feitas pela banca. E então
chegou a vez de meu próprio orientador falar. Paulo Setúbal começou fazendo os elogios de praxe, que
mais engrandeciam a ele como orientador que a mim como orientando. Quando Paulo louvou minha
coragem em adotar hipóteses de trabalho bastante audaciosas, logo vi que haveria problemas. Ele havia
insistido para que eu deletasse algumas passagens da justificativa, que teimei em manter. É que meu
projeto original já havia sido mutilado demais, para atender às limitações impostas pelo mestrado.
Aquelas poucas linhas eram a última resistência. Custaram muito caro. O professor Paulo Setúbal não
tirou o meu dez, mas não perdeu a oportunidade de vingar sua vaidade ferida.
– Muito embora sua originalidade seja louvável, meu caro Daniel Pádua, a ciência deve ser
sobretudo pragmática. O cientista de hoje, afinal, deve ter um olho na pesquisa, outro no
financiamento. Por isso é que quero fazer essa pergunta: como você vê o potencial comercial de sua
pesquisa? Acha que é comercialmente viável a ideia de um câncer comestível?
O pequeno auditório pareceu mais cheio do que estava ao som das gargalhadas. Até minha mãe,
que estava presente e provavelmente não entendia metade das palavras que estavam sendo ditas, até ela
riu. Obtive a nota máxima no mestrado, mas eles riram da minha cara. Paulo não tirou o meu dez, mas
me deixou marcado por aquela tirada infame. Pois o chiste do câncer comestível foi repetido pelos
corredores da Universidade e além, acompanhou-me até o doutoramento, tornou-se o grosseiro epíteto
de todo o meu trabalho de pesquisa.
E pensar que Paulo havia sido muito mais que um professor para mim. Por essa época ele era
meu amigo mais próximo, meu confidente. Daí ter doído tanto o que vi como uma grande traição da
parte dele. Rompemos em definitivo naquela noite mesmo. Fiquei tão abalado que acabei me
envolvendo com a primeira mulher que apareceu. Quando Ivone engravidou, pensei que seria uma boa
ideia nos casarmos. Não foi.

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Isso tudo e mais um pouco fiquei remoendo nessa tarde, após a malfadada aula de Estatística
Experimental. Senti um ódio intenso por Belarmino, o que me assustou. Achei que o melhor seria
limitar o contato com ele ao mínimo possível. Decidi que até o final dessa turma de mestrado eu
fecharia o laboratório pontualmente às dezoito, evitando assim qualquer possibilidade de
reaproximação com Belarmino.
Para ocupar o tempo, depois do conserto do vazamento na cozinha programei uma série de
tarefas domésticas há muito negligenciadas. Entretanto logo na semana seguinte todo o meu tempo
livre foi tomado por uma agradável surpresa. Fui convidado para fazer uma preleção no próximo
Congresso Internacional de Oncologia, que ocorreria dali a algumas semanas em outra cidade.
Aparentemente o meu pequeno artigo de cinco páginas sobre carcinogênese induzida havia despertado
mais atenção do que eu imaginava. Fiquei muito grato pelo convite e comecei imediatamente a me
preparar para a apresentação. Determinado a seguir a minha estratégia de evitar ficar até mais tarde no
laboratório, copiei os arquivos mais importantes para o computador de casa.
E assim se passaram três semanas. O contato com Belarmino, restrito ao inevitável no
laboratório e nas aulas, era de minha parte da mais gélida cortesia. Chegaria um momento em que
teríamos que sentar para discutir a dissertação de Belarmino. Eu, como orientador e parte ofendida,
esperava que ele desse o primeiro passo. Mas quem acabou dando esse passo foi Sofia.
Ela veio falar comigo quando eu saía da sala de reuniões. Dava a impressão de ter ficado ali de
plantão, à minha espera. Sua ansiedade era evidente, a ponto de subjugar sua costumeira arrogância.
– Professor, preciso falar com o senhor sobre um assunto particular. É a respeito do Márcio.
Estou preocupada com ele. Está sofrendo muito desde aquela briga que teve com o senhor. Anda
tendo pesadelos toda noite, acorda gritando. Tomo cada susto!
Senti uma curiosidade irresistível em descobrir se os pesadelos de Belarmino seriam muito
piores que meus sonhos com o Paulo Setúbal.
– Ele te contou sobre esses pesadelos? Ele tem sonhado com o quê?
Nesse momento Belarmino despontava no corredor, alguns metros à nossa frente. Sofia
engatou numa sequência de perguntas sobre as fórmulas da Estatística Experimental, que ela
evidentemente havia preparado de antemão. Ele certamente achou estranho, mas ela não poderia ter
sido mais convincente. Não tive muita oportunidade de ficar ruminando esse episódio, pois faltavam
poucos dias para o Congresso de Oncologia. Eu estava muito ocupado com os preparativos finais da
apresentação.
Minha palestra seria no sábado pela manhã. Decidi viajar na sexta à noite. Fechei o laboratório
às dezoito em ponto e fui para casa dirigindo sem pressa, pois meu voo era só às onze da noite. As
malas já estavam prontas. Eu só precisava tomar um banho, comer alguma coisa e sair.
Assim que cheguei em casa, no entanto, ficou martelando na mente a sensação de ter esquecido
algo importante. Um rápido exame da bagagem revelou o que era. Não estava em parte alguma o
roteiro impresso de minha palestra, acrescido de anotações à mão. Só então lembrei que durante a tarde
fiquei repassando o discurso enquanto monitorava uma turma no laboratório. Eu devia ter esquecido
por lá meus papéis.
Eu poderia imprimir novamente o roteiro, e fiz isso. Mas achei que daria muito trabalho me
lembrar de todas as anotações. Sem contar que a Universidade ficava no caminho do aeroporto. Como
não iria demorar, não deixei o carro em minha vaga no estacionamento. Parei na calçada mesmo, ao
lado do Homero.
Quando abri a porta do laboratório e vi a luz acesa, pensei que era mais alguma coisa que eu
havia esquecido. Mas lá estava Belarmino, manipulando as culturas na estufa. Quando ele me viu,
devolveu as garrafinhas à estufa, tirou apressadamente as luvas de procedimento e veio ao meu
encontro. Movia-se com rapidez, como se tivesse pressa. Cheguei a pensar que tivesse a intenção de me
agredir. Sendo mais jovem e estando em melhor forma que eu, Belarmino levava vantagem. Vasculhei
com os olhos ao redor, à procura de algo que pudesse servir como arma.
Ele, no entanto, estava sorrindo, de braços abertos. O abraço me tomou completamente de
surpresa.

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– Vitória! Consegui identificar o gene! Eu consegui, Daniel!


Fiquei tão surpreendido, que em minha comoção retribuí ao abraço. Talvez eu tenha feito mais
que isso. Belarmino afastou-se, quase me empurrando, como se de repente tivesse descoberto que eu
estava fedendo. Ouvi o som de minha própria voz, irreconhecível.
– Como você conseguiu entrar?
– Fiz uma cópia de sua chave naquele dia. Sinto muito. Sei que está zangado comigo porque
usei o laboratório sem a sua permissão. Mas sei também que vai me perdoar quando der uma olhada no
que eu descobri. Nós vamos ficar famosos, Daniel! Porque eu vou dividir o crédito todo com você,
ouviu?
Golpeei com toda força. A arma escolhida foi a garrafa de vidro com o meio de cultura das
células. Cheia e pesada como estava, chocou-se contra a têmpora de Belarmino com um estrondo de
vidro e osso se partindo. Ele caiu no chão se estrebuchando como um possuído, com os olhos tão
voltados para cima e para dentro que não dava para se enxergar as pupilas. O líquido vermelho da
cultura de células, que o banhara por inteiro, agora se misturava ao tom mais escuro e espesso do
sangue que brotava do ferimento na cabeça e formava uma poça no chão. Ele levou quase cinco
minutos para morrer.
Eu estava inesperadamente calmo. Uma serenidade glacial havia se apoderado de mim.
Considerei como deveria agir em seguida. Acreditava que ninguém havia me visto chegar à
Universidade. Com um pouco de sorte, conseguiria sair sem ser notado. Tudo o que precisava era
encontrar uma maneira de fazer a morte de Belarmino parecer acidental. Não pareceu fácil a princípio,
mas após alguma reflexão a ideia me ocorreu.
Primeiro caminhei até a bancada de equipamentos e me agachei diante do bico de Bunsen. O
botijão de gás que alimentava o bico de Bunsen ficava no chão, debaixo da bancada. Girei o registro
para liberar ao máximo a passagem do gás. Lembrei que aquele botijão havia sido trocado no começo
da semana. Estava praticamente cheio.
Ao lado do bico de Bunsen ficava a placa aquecedora que utilizávamos para algumas soluções.
Liguei o aparelho na tomada, tendo o cuidado de posicioná-lo de cabeça para baixo, com a placa de
alumínio repousando sobre dois pontos diferentes do fio.
As folhas com minhas anotações para a palestra estavam em cima de outra bancada, perto da
porta. Desci pelas escadas, para evitar esbarrar com alguém no elevador. Atravessei o longo pátio do
estacionamento sentindo os músculos das costas doerem de tão tensos. Esperava ouvir a qualquer
momento a explosão.

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Nem lembro de ter atravessado a rua e entrado no carro. Hesitei um pouco antes de dar a
partida, pensando se não devia esperar. Mas eu precisava sair dali o quanto antes, isso sim, se não
quisesse perder o voo. Saí guiando cautelosamente, pronto para desviar de alguém que perdesse a
direção ou freasse bruscamente pelo susto.
Só um bom tempo depois que a Universidade tinha ficado para trás, ainda na terrível
expectativa de ouvir a explosão, foi que a tensão acumulada começou a aflorar. Minhas mãos tremiam
tanto ao volante que quase tive de parar o carro naquele ponto ermo. Mas de algum modo consegui
chegar até o aeroporto.
Embarquei no avião sentindo-me o mais miserável dos fracassados. Ao menos tive a cautela de
explicar minha ansiedade para a aeromoça como sendo medo de voar. Ela sorriu e me assegurou que a
viagem seria rápida e que eu nem teria muito tempo para sentir medo.
Sim, a viagem foi rápida. Mas para mim pareceu interminável. Fiquei repisando os fatos em
minha mente, tentando encontrar o erro, descobrir a causa para a explosão não ter acontecido.
Imaginava quando se daria a descoberta do corpo, com minhas impressões sangrentas na própria arma
do crime. Contra toda lógica, já esperava encontrar a polícia à minha espera ao sair do avião.
Quando cheguei ao hotel, ainda temendo ser preso a qualquer momento, fui direto para o
quarto ligar a tevê, à procura de algum noticiário. Foi só então que fiquei sabendo do ocorrido.
Cometi um erro de cálculo de alguns minutos. Pensei que a placa de alumínio do aquecedor
elétrico levaria de cinco a dez minutos para se aquecer o suficiente para derreter a cobertura
emborrachada do fio elétrico, provocando o curto que liberaria a fagulha que causaria a explosão no
laboratório hermeticamente fechado e saturado de gás de cozinha. Ou a placa levou mais tempo para se
aquecer, ou o fio era de qualidade superior à que eu esperava.
A explosão aconteceu mais de vinte minutos depois que liguei o aquecedor na tomada. A essa
altura o conteúdo do botijão já devia ter sido liberado por inteiro no ambiente confinado do
laboratório. Por isso, a explosão foi bem mais espetacular do que eu poderia supor.
Ao menos quatro outras pessoas morreram, além de Belarmino. Um professor e três alunos de
uma turma de quinto período de Oceanografia, que estavam tendo aula em uma sala imediatamente
acima do laboratório no momento da explosão. Dezenas de outras pessoas ficaram feridas.
Na manhã seguinte, no congresso, consideraram heroica a minha decisão de prosseguir com a
apresentação. A pedido do Coordenador da mesa, minha palestra foi precedida por um minuto de
silêncio em honra das vítimas. Meu nervosismo, facilmente desculpável pelo público presente, não
impediu que a apresentação fosse bastante aplaudida.
Quando o Coordenador estava para abrir para as perguntas da audiência, solicitei permissão
para me retirar da mesa, alegando esgotamento nervoso. Saí debaixo de mais calorosos aplausos.

IV – O TELEFONEMA, A CARTA
Nem sei como atravessei aquela primeira semana após a morte de Belarmino. Evidentemente as
aulas foram interrompidas, sem previsão de retorno. Não demorou a ser identificada a origem da
explosão. Como responsável pelo laboratório de Biotecnologia da Universidade, logo me tornei alvo de
todo o tipo de atenção indesejada por parte da polícia e da imprensa.
Sofia, quem diria, foi quem me livrou a cara. Voluntariou-se para depor e contou o que sabia:
que Belarmino havia feito uma cópia ilegal das chaves e estava usando o laboratório às escondidas. Ela
me inocentou completamente.
No dia de seu enterro, Márcio Belarmino foi execrado em rede nacional como um cientista
louco e homicida, um inconsequente que tirou a vida de quatro pessoas e a sua própria com sua
temeridade e imprudência. Já eu agora posava de professor decepcionado e sofrido com o aluno
brilhante e instável. Lembrei-me das proféticas palavras de Belarmino, de que nós dois nos tornaríamos
famosos.
O jornal da tevê estava terminando quando o telefone tocou.

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– Doutor Daniel Pádua?


Era uma voz masculina, de um timbre meio aquoso, como se a pessoa do outro lado da linha
estivesse gargarejando enquanto falava.
– Sim.
– Aqui fala o doutor Hugo Santana. Sou advogado e represento os interesses da Biocorp. Como
tem passado?
– Olha, se o senhor está vendendo alguma coisa, eu realmente não estou interessado.
Antipatizei de imediato com o descaramento do sujeito, querendo se igualar a mim em
doutoramento só por ter feito a prova da OAB. Enfatizei bem a palavra senhor para deixar bem claro
quem era o verdadeiro doutor ali. Mas ele não se mostrou nem um pouco intimidado.
– Não pretendo lhe vender nada, eu lhe asseguro. Muito pelo contrário, o meu interesse é
comprar. E a Biocorp é uma excelente pagadora, doutor Pádua. Pode ter certeza disso.
– Que conversa é essa?
– Soubemos do recente falecimento de seu associado, Márcio Belarmino. Por favor aceite
nossas mais sinceras e profundas condolências.
Fiquei cauteloso na mesma hora.
– Sim. Ele era meu aluno.
– O doutor deve estar ciente de que ele entrou em contato conosco, com o setor de pesquisas
da Biocorp.
– Não estou sabendo de nada. Do que se trata?
– Não está sabendo? Isso é estranho. Porque ele citou o seu nome. Disse que os dois estavam
trabalhando juntos na pesquisa do genoma da ovelha.
– Não sei do que o senhor está falando. Minha pesquisa não tem nada a ver com isso.
– Doutor Pádua, não há motivo para segredos. Dias antes de falecer nessa lamentável tragédia,
Márcio Belarmino enviou para a Biocorp algumas amostras de sua pesquisa. Eu lhe asseguro, doutor
Pádua, que a Biocorp ficou interessada. Realmente interessada.
– Volto a dizer que não sei do que o senhor está falando.
– Vamos combinar um encontro, para que eu possa lhe apresentar pessoalmente a nossa
proposta. É uma proposta muito vantajosa, doutor Pádua. Podemos combinar logo amanhã pela
manhã? Ou no horário do almoço fica melhor?
– O senhor é surdo por acaso?
– Escute, doutor Pádua. Estou encarregado de assegurar que a Biocorp terá prioridade no
financiamento de sua pesquisa. Estou autorizado a oferecer de imediato um adiantamento, como

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garantia. O que me diz de duzentos mil dólares, para começar? Livres de impostos e depositados em
uma conta de sua escolha.
Bati o telefone na cara do sujeito. Logo o aparelho voltou a tocar, e só silenciou quando o
despluguei da tomada. Alguns minutos depois a campainha da porta tocou.
Aquela noite ainda me reservava uma surpresa. Era Sofia. Estava irreconhecível metida dentro
de um vestido bege formal, que provavelmente era o mais próximo que ela poderia chegar de vestir
luto.

– O senhor não foi ao enterro, professor.


– Não tive coragem. Sinto muito.
– Tudo bem. Eu entendo.
Ela abriu a bolsa e tirou de dentro um envelope amarfanhado, que estendeu para mim.
– Encontrei isso enfiado em uma mochila que Márcio deixou lá em casa. Demorei para achar
porque não estava querendo mexer nas coisas dele, para não ficar lembrando... Sabe como é. Levei hoje
para o enterro, pensando que iria encontrar o senhor lá. Por isso vim aqui. Márcio me disse onde o
senhor morava.
Do lado de fora do envelope estava escrito a caneta, com a letra de Belarmino: para o professor
Daniel Pádua. Mas o envelope não estava lacrado, e pela intensidade com que Sofia me fitava não foi
difícil adivinhar que ela havia lido a carta primeiro.

Olá, Daniel.
Nem sei por que estou escrevendo isto. Acho que fiquei impressionado com uns sonhos que ando tendo
ultimamente. Meu pai dizia que os espíritos às vezes avisam por meio de sonhos quando estão para levar alguém para o
mundo deles. Pura crendice, eu sei. Mas fiquei pensando em como seria terrível se alguma coisa acontecesse comigo sem que
eu tivesse a oportunidade de conversar e contar tudo.
Foi um erro não ter falado para você logo no início, quando nos conhecemos. Mas eu quis esperar até que nos
tornássemos amigos de verdade, independente de qualquer outra coisa. Estava tão empolgado por finalmente conhecer você
pessoalmente!

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Depois as coisas foram ficando meio estranhas entre nós, e não havia mais como conversar nada. Sinto muito por
ter insistido tanto com você a respeito das tabuletas. Eu devia ter percebido que você é teimoso como eu, e que insistindo eu
só aumentava a sua resistência.
Também lamento profundamente ter que conduzir essas pesquisas escondido de você. Só estou fazendo isso porque
sinto que estou prestes a encontrar algo grande. Sei que depois que tudo for esclarecido você irá compreender que eu não agi
por mal.
Mas não foi para falar de pesquisa que resolvi escrever esta carta. Foi para falar de meu pai, um índio xavante
nascido no Mato Grosso e chamado Bisu. Eu tinha quinze anos quando ele morreu. Em seu leito de morte, ele me contou
sobre uma primeira família que teve e abandonou, sobre o filho que largou aos cinco anos de idade.
Nós somos irmãos, Daniel. Não me cabe julgar os atos de nosso pai. Até porque se ele não tivesse cometido esse
erro com você, eu não teria nascido. Sou grato por ele ter me contado tudo antes de morrer. Não foi difícil descobrir onde
você e sua mãe moravam. Fiquei tão orgulhoso quando soube que você era professor universitário! Decidi seguir a mesma
carreira, para que um dia você também pudesse ter orgulho de mim.
Sei que você nunca vai ler esta carta, e que ela está servindo apenas para me ajudar a criar coragem para chamar
você para conversar. Sei que voltaremos a ser bons amigos, melhores do que nunca.
Um grande abraço de seu irmão,
Márcio Belarmino

Depois que terminei de ler a carta, notei que Sofia continuava me fitando com grande
expectativa, como se aguardasse que eu fizesse algo. Será que esperava que eu seguisse a tradição bíblica
e a tornasse minha amante?
Pedi que ela fosse embora. Eu precisava ficar só.

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Prosa e Poesia de Fabio Shiva ANUNNAKI - Mensageiros do Vento
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O conto A MARCA foi originalmente publicado na coletânea “REDRUM – Contos de Crime e
Morte” (Caligo Editora, 2014). E em 2016 foi incluído no livro duplo de contos de Fabio Shiva,
“Labirinto Circular / Isso Tudo É Muito Raro” (Cogito Editora).

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ANUNNAKI - Mensageiros do Vento é uma Ópera Rock em desenho animado. A história é
livremente inspirada nas traduções das antigas tabuletas de argila da Suméria, tidas por muitos
como a primeira civilização humana. O filme conta a saga dos Anunnaki, “aqueles que do céu
para a terra vieram”, tal como é contada nas tabuletas sumérias. Vindos de Nibiru, os
Anunnaki buscam o ouro da Terra para solucionar o desequilíbrio na atmosfera de seu planeta
natal. E assim criam a espécie humana, ao misturar seus genes a uma raça nativa, com o
objetivo de obter trabalhadores para as minas de ouro. Então uma nova aproximação de
Nibiru provoca um dilúvio que quase extermina a humanidade, que logo em seguida enfrenta
outro grave perigo: disputas de poder entre os Anunnaki, culminando na deflagração de armas
nucleares.

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