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Kant a Os PengadoréS Kant “Confesio francamente: a lem- branga de David Hume fot justamente ‘0 que hd muitos anos interrompeu pe- fa pe vez meu sono dogmaticn e dey 3s minhas pesquisas no Campo da flosofia especulativa uma dires3o completamente nove.” KANT. Prolegémenos “Toda arte falsa, toda va sabedo- fa, tem sua época: pals finalmente ela mesma se destr6l, eo apogeu de sua cultura € a0 mesmo tempo @ inicio de sus devadéncia, Que, no que diz res peito 2 metalisica, tenha chegada este momento, demonstra o estado a que ela, com ardor com que saa trabatha- das todas as demais ci€ncias, decaiy fem toclos os powas culos.” KANT: Frolegdimenos “© imperative categérico é sé um nico, que é este: Age apenas segun- do uma maxima tal que passas ao mes- mo tempo querer que ola se tore lei universal,” KANT: Fundememacdo da Meiatisica dos Costumes “No pode haver nenhuma regra de gnsto objetiva que determine por conceitos © que € belo. Pois todo jul- 20 desta fonte 6 estético: iste 6 0 senti- mento do sujeito, € nde um conceito de um objeto, seu fundamento-desée- terminagio. Pracurar um principio. do gosta, que famecesse 0 critério univer- sal do belo por conceltos devermina- das, & um empenho inutil, porque 0 que & procurado @ impossivel e em si mesmo contradit6rio.” KANT: Anaiitica de Belo Os Pensadorés CIP-Brasil, Cacalogacaio-na-Publicagio Cimara Brasileira do Livro, SP K25¢ Led, Kant, Immanuel, 1724-1804, Textos selecionados / Immanuel Kast ; selegio de soxt0s de Maile: a de Souza Chaui ; tradugées de Tania Maria Bemkop{. Paalo Quimtela, Rubens Rodrigues Tomes Filho, — 2, ed, — Sio Paulo Abril Cultural, 1983, (Gs pensadores) |. Canhecimento - Teoria 2. Critica (Filosofia) 3. Estética 4. tien $, Filosofia alemi 1. Chau, Maritena de Sousa, Ul, Rerukopf, Tania Maria, Quintela, Paulo, 1905 - IV. Tones Filho, Rubees Rodnigues, 142. 4" ‘Titulo, VI. Série. CDD-193 “LLL BS “12 “142.3 0 {dices para eatlogo sistemético: mahecimento Teoma : Filosofia 121 . Criticismo kantiano : Filosofia 142.3 . Estética = Filosofia 111,85 Etica : Filosofia 270 . Filosofia alemi 193 - Teoria do conhecimento ; Filosofia 121 eRe ae IMMANUEL KANT TEXTOS SELECIONADOS Marilena de Souza Chaui nia Maria Bernkopt, Rubens Rodrigues Torres Filho 1984 EDITOR: VICTOR CIVITA ‘Titutas originats: Protegomena 2u einer jeden kinfigen Metapkysik, dic als Wissenschat wird eyfreten komen Grundiegieng zur Mewphysik der Sitven Erne Fassung der Einicituree in de Krk der Urtileérafe Kittle der Unieitskrapi Die Religion trmerhalh dey Grencen der blossen Vernunft © Copyright desea edigao, Abril §.A, Cultura, Sto Paulo, 1980 —3.*egigto, toed, ‘Tradusio pobliceda sob licenga le Auintics Féthona, ‘Colmbes (Funciamentacaa da Metatsiea dos Castumes). Dircito exclusivus sobre as demuis undugies deste volume, ‘AbnI S.A. Cultural, Sig Paula PROLEGOMENOS Tradugdo de Tania Maria Bernkopt * Traduzido do original alemir: Prolegomena zu einer jeden Aainftigen Metaphysik die als Wissenschaft wird anftreten kSnnen, von Immanuel Kant. Riga, bey Jokenn Hartknock, 1783, Estes Prolegdmenas nfio sfo para serem utilizados por aprendizes, mas por futuros mestres c a estes devem servir. niio para ordenar a exposigao de uma cin cia j4 existente, mas para, antes de mais nada, inventarem cles mesmos esta ciéncia. Ha eruditos para os quais a histérja da filosofia (tanto da antiga como da moderna) é a sua propria flosofia; os presentes Prolegémenos nao foram escritos para eles. Bles devem esperar até que aqueles, que estao empenhados em sorver das fontes da raz’o, tenham levado a cabo sva tarefa: sé entio tera chegado a sua vez de dar a conhecer ao mundo © seu trabalho, Na opiniao deles. entretanto, nada que ja nao tenha side dite pode vir a sé-lo, 0 que de fato pode servir para uma segura previsao do futuro, pois, tendo o conhecimento humano divagado durante séculos de tal mancira sobre inumeraveis assuntos, nao deve ser dificil encontrar para cada obra nova uma antiga, que tenha algumas semelhangas com ela. Minha intensiio é a de convencer a todos aqueles que consideram valer a pena ccupar-se com a metafisica: € absolutamente necessario abandonar por enquanto seu trabalho, considerar tudo o que ja aconteceu até agora como inexis- tente ¢ antes de mais nada langar a questao: “Sera que algo como a metafisica é realmente possivel?” Se ela é uma ciéncia, como é que nao obtém, como as outras ciéncias, aplau- so unanime e duradouro? Se ela nfio é uma ciéncia, como explicar que se vanglo- rie incessantemente sob o brilho de uma ciéncia ¢ iluda o entendimento humano com esperangas nunca saciadas ¢ nunca realizadas? E necessixio, portanto, che- gar-se a.uma conclusdo segura a respeito da natureza desta pretensa ciéncia, quer isto demonstre saber ou ignorincia, pois ela nio pode permanecer por mais tempo no pé em que esta. Parece quase ridiculo que cada eigncia progrida sem Sessar, enquanto que esta, que pretende ser a propria sabedoria, cujo ordculo cada homem consulta, continue girando num mesmo circulo, sem dar um passo adiante. Também seus adeptos sz perderam ¢ nem se nota que aqueles, que se sen- tem suficientemente fortes para brilhar em outras ciéncias, queiram arriscar sua fama nesta, onde cada um, mesmo ignorante em tudo o mais, pretende ter o direi- to de formular um julgamento decisive, porque na verdade ainda nao existem neste pais medida e peso seguros para distinguir profundidade de palavreado superficial. 8 KANT Nao ¢, pois, de se admirar que, depois de ter claborado longamente uma ciéncia ¢ esteja surpreendide com os resultados, ocorra a alguém perguntar-se: & Possivel tal ciéncia e de que modo? Pois a razio humana gosta tanto de construir ue jé por indmeras vezes edificou a torre, derrubando-a depois. para verificar o bom estado de seu fundamento. Nunca ¢ tarde demais Para tornar-se racional ¢ Sibio: mas € dificil, em qualquer circunstincia, pér em ago o discernimento, se ele chega tarde. Chegar a perguntar-se se uma ciéncia & possivel pressupde que se duvide da realidade da mesma. Tal divida, porém, ofende a tados aqueles cuja riqueza con- Siste talvez justamente neste pretenso tesourg; assi Se explica que aquele que deixa transparecer esta diivida sb encontre resisténcia & sua volta. Alguns, Orgulhosamente cOnscior de seus bens, adquiridos hé muite tempo, ¢ por isso mesmo considcrados legitimos, irao, com seus compéndios metafisicos na mio, olh-lo com desdém; outros, que nunca conseguem ver algo que nao seja idéntico ao ja visto em outra parte, nao irda compreendé-lo; ¢ tudo permanecerd assim durante algum tempo, como se nada houvesse ocorrido capaz de acarrctar ou de fazer esperar uma transformagiio préxima, Do mesmo modo atrevo-me a predizer que o leitor, capaz de pensar por si Proprio. ira. a0 ler estes Profegémenos, néio x duvidar da ciéneia que possuiu até agora, mas de ficar por conseqiiéncia totalmente convencido de que tal ciéncia nao poderia ter existido sem que as exigéncias aqui expressas, ¢ nas quais se ba- seia sua possibilidade, sejam atendidas, como isto até agora nunca aconteceu, nio ha ainda uma verdadcira metafisica, Mas como a procura por ele nunca pode Ser Fenlunciada' porque o interesse da razio humana universal esta intimanente snirelagado com cla, deverd o leitor admitir que estd prestes a acontecer uma reforma completa e inevitavel, ou, mais ainda, um renascimento da metafisica segundo um plano até agora desconhecido, mesmo que se queira resistir a isto por algum tempo. Desde as tentativas de Locke ¢ Leibni ou, mais ainda, desde a criagio da metafisica, por mais longe que remonte. a sua histéria, nio houve acontecimento algum gue fosse mais decisivo em relagdo ao destino desta ciéneia do que a ok siva levada a efeito por David Hume contra ela, Ele nio trouxe luz a esta espécie de conhecimento, mas despertou uma centelha, na qual se poderia ter acendido uma luz, se ele tivesse encontrado uma mecha inflamavel, cujo arder fosse cuida- dosamente mantido e aumentado. Hume tomou como ponte de partida um Gnico mas importante conceito da metafisica, ou seja, 0 da conexdo entre causa ¢ efeito (c, por conseguinte, os con- ceitos dai derivados, de forga ¢ de aco, etc.): desafiou a razio, que pretende ter Berada este conceito em seu seio, a responder-Ihe precisamente com que dircito ela pensa que uma coisa possa ter sido criada de tal maneira que, uma vez posta, Possa-se depreender dai que outra coisa qualquer também deva ser posta; pois * Rusticus exspeotm, dum deMuat uni do A) * O.camponés aguarda, enquantiy presa a torrente: lle Labitur e¢ labecur ia omae valubilis acvum* Horieio. (N, arént, resvala rolando por wea a vida. (N. do E,) PROLEGOMENOS: 9 isso € 0 que afirma o conceito de causa. Demonstrou de mancira irrefutavel ser totalmente impossivel 4 razao pensar esta conexio w priori a partir de conceltos, pois cla encerra necessidade; nao é, pois, possivel conceber que, pelo fato de uma voisa ser, Outta coisa deva ser necessariaments ¢ como séja passivel introduzir a priori o conceito de tal conexao. A partir dai concluiu que a razZo se engana completamente com este conceito a0 considers-lo sua propria criagao, ja que cle ndo passa de um bastardo da imaginagéo, a qual, fecundada pela experiéncia, colocou certas representagdes sob a lei da associagao, fazendo passar a necessi- dade subjetiva que dai deriva, ou seja. um habito. por uma necessidade objetiva baseada no conhecimento, A partir dai concluiu que a razdo nao tem a faculdade dé pensar em tais conexdes, mesmo de um mado geral, porque seus conceitos no passariam entéo de simples ficgGes ¢ tados os seus pretensos conhecimentos a priori nao seriam mais do que experiéneias camuns mal rotuladas, o que equivale a afirmar: ndo ha em parte alguma ¢ nem pode haver uma metafisica.? Por mais precipitada ¢ incorreta que fosse sua conclusdo. haseave-se pelo menos numa investigagao, ¢ esta investigagio merecia certamente que os bons e¢- rebros de sua época se tivessem unido para dar ao problema, exposto por Hume, uma solugao talvez mais feliz, 0 que teria propiciado uma reforma total da cién- cia. Mas o destino, desde ha muito desfavoravel & metafisica, nao permitiu que Hume fosse compreendido por alguém. Nao se pode deixar de sentir uma certa pena ao verificar como seus adversirios Reid. Oswald, Beattie ¢ finalmente Pris- tley nao haviam percebido nem de longe 0 ponto crucial da questio, pois toma- vam como ponto pacifico justamente aquilo de que ele duvidava, procurando demonstrar, 20 contrario, com urdor ¢ muitas vezes com grande arrogancia, qui- Fo que Hume jamais pensara em por em divida, ignorando de tal mancira o seu aceno pura uma renovagae que tudo permaneceu no antigo estigio, como se nada tivesse ucontecido, A questdo nao era see conceito de causa era certo, util ¢ indispensavel a todo 0 conhecimento da natureza, pois isso Hume nunca colocara em davida; mas se era concebide @ priori pela rézio, tendo desta maneira uma verdade interior independente de toda experiéncia e, por conseguinte, uma utili dade mais ampla ndo limitada simplesmente aos objetos da experiéneia: a res- peito disso, esperava Hume um esclarecimento, Estava em cogitagio apenas a origem deste conceito ¢ nao sua utilidade indispensdvel; uma vez determinada esta origem, apresentar-se-iam espontaneamente as condigdes de sua utilizagdo bem como o Ambito de sua aplicagao. Mas os adversérios deste homem célebre deveriam ter penetrado, para que sua tarefa fosse satisfavoriamente cumprida, profundamente na natureza da razao enquanto ela se ccupa apenas com 0 pensameato puro, o que lhes era muito peno- 2 Mio obsjante, Hume denominou ita meima Gloss desrutiva de Mietalisiéw ¢ atrihuiu-lhe wm grande valor, “Metatisiea ¢ moral”, dix ele (Versuede, 4, parte. p. 214 dx tradugio alema}, “0 oy ramox mais importantes da clencia: a matemiaica ea clencin da naturezé no tw nem-a metade do seu valor.” Este romem perspickz viu agai apenas 4 wtilidade negative que lesin a. limitagdo dax exigenelas exageradas da ratio especulativa para sliminar controvérsias inlermindveis ¢ inoperiumis que confundem o gétero lama 189; mas perdex de vista © prejuico positive que cesuita Ge tomar Ua radio as mais importance, bayeada nas unis ela pode impor A-voniade a mais alto ojetivo ge vodas.0= suns aspiragiies, (N, do A.) 10 KANT 80. Inventaram ento um meio mais.cémodo para nao ir contra todo o conheci- mento, ou seja, apelar para o entendimenta humano comum. E de. fata uma gran- de dadiva do céu possuir uma entendimento reto (on, como recentemente o deno- minaram entendimento sadio). Mas ele deve ser provado por fatos, pelo que se pensa © se diz de refictido e racional, ¢ nao quando ¢ utilizado como ordculo, quando no se sabe dizer nada inteligente para se justificar, Apelar para o enten- dimento comum somente quando eonhecimento ¢ ciéncia chegam a seu fim,e nao antes, é uma das sutis invengdes da época moderna, com o que © mais insipido tagarela chega a afrontar, confiadamente, a mais penetrante cabeca ¢ resistir-lhe. ‘Mas enquanto houver uma parcela minima de conhecimento, ¢ oportuao resguar- dar-se de recorrer a este expediente desesperada, E visto que este apelo clara mente nada mais é do que um apelo ao ju'zo das massas: um aplauso, que faz enrubescer o filisofo, mas € objeto de orgutho ¢ triunfo para o charlatio popular, Mas eu deveria pensar, na yerdade, que Hume podia ter tanto direito de pretender Possuir sadio entendimento quanto Beattie, e além disso, algo mais, que este cer- tunente nao possuia, ou seja, uma razio critica, que delimite o entendimento comum para que ele nao se perea em altas especulagSes, ou, quando se trata ape. as destas, nilo aspire a decidir nada, porque néo consegue justificar se perante seus proprios principio: pois somente assim permanecerd um entendimento sadio. Cinzel ¢ malho podem muito bem servir para trabalhar um pedago de madeira, mas para gravar no cobre é preciso utilizar o buril. Assim slo ambos titeis, tanto 0 sadio entendimento como o entendimento especulativo, mas cada um 4 sua mancira; aquele, quando se tratam de juizos imediatamente aplicdveis a experiencia, este, porém, quando se trata de julgar de mancira geral e a partir de simples conceitos, por exemplo na metafisica, onde o sadio entendimento, como se denomina a si mesmo, muitas vezes por aritiphrasin,* nao possni absolu- tamente nenhum juizo, Confesso francamente: a lembranga de David Hume foi justamente © que h& muitos anos interrompeu pela primeira vez meu sono dogmatico e deu ais minhas Pesquisas no campo da filosofia especulativa uma diregao completamente nova, Eu estava bem Jonge de dar ouvidos a suas conclusées, que resultavam simples- mente do fato de ele nao se ter proposto sua tarefa em toda a sua amplitude, mas de ter visto apenas uma de suas partes, que, sem levar em consideragao o todo, nao pode dar informagiio alguma. Quando se parte de um pensamento ja funda- mentado, apesar de nao mais ter sido deseavolvido, que um outro nos deixou, Pode-se esperar ser possivel levé-lo, através da reflexdio, mais além do que o pers. picaz homem, a quem se deve a primeira centetha desta luz, 0 levau, Examinei em primeiro lugar, pertanto, se a objegdo de Hume nao poderia ser tomada como geral e logo descabri que © coneeito de conexfo entre causa e efeito nio ¢ de modo algum o Unico pelo qual o entendimento pensa a priori as conexdes entre as coisas, mas, muito mais do que isto, a metafisica é totalmente Constituida disso. Procurei assegurar-me de seu mimero, ¢ como isto me foi possi- * Por antiirase, ironia. (N, do E.) vel realizar conforme meu desejo, ou seja, a partir de um Gnico principio, passei a tratar da dedugao desses conceitos, 05 quais, agora tinha certeza, nao haviam sido deduzidos da experiéncia, como pensava Hume, mas originavam-se do entendimento puro. Esta dedugio, que parecia impossivel ao meu perspicaz predecessor ¢ que a ninguém ocorrera antes dele, apesar de cada um ter se servido desses conceitos com seguranga, sem nem sequer perguntar-se onde se baseava ade objetiva, esta dedugio foi, portanto, a tarefa mais ardua que jamais se empreendeu a favor da metafisica; o pior nisso foi, entretanto, que a metafisica, ou © quanto existe dela sob este nome, no podia trazer-me o minimo auxilio. pois a possibilidade de uma metafisica 85 se faz presente justamente por tal dedu- a0. Por ter conseguido solucionar o p..' ‘>ma de Hume, niio apenas em um caso Particular, mas tendo em vista todo o poder da razdo pura, s6 assim, entdo, pude avangar a passos firmes, ainda que lentos, no sentido de determinar completa- mente ¢ de acorde com principios universais o ambito da razao pura, tanto em seus limites como em seu contatido, pois isso ere a Ginica coisa da qual necessi- tava a metafisica para executar seu sistema segunde um plano seguro, Receio. porém, que acontega a exposiedo do problema de Hume, apresen- tada da mancira mais extensa possivel (a saber, 4 Crifea da Razdo Pura), o mesmo que aconteceu ao préprio problema como foi apresentado pela primi vez. Sera julgada incorretamente, porque néo & compreendida: nao sera compreendida, porque se tem prazer em folhear o livro, mas no em meditar sobre ele; nao se querera dispender tal esforgo, porque a obra é arida, obscura, Porque & contréria a todos os conccitos costumeiros e por demais pormenorizada, Confesso que no esperava ouvir de um filésofo queixas quanto 4 falta de popula- ridade, entretenimento e comodidade, quando se trata justamente da existéncia de um canhecimento de alta relevancia, indispensavel i humanidade que nao pode ser estabelecido a no ser segundo as mais estritas regras de uma exatidao justa, 4 qual se seguir, com o tempo, a popularidade, mas jamais logo de inicio. A Queixa s6 é justa no que se refere a uma certa obscuridade, causada em parte pela extensdo do plano, que ndo permite que se deixem de lado as Pontos principais, dos quais depende a investigagia ropus-me entdo a sanar esta queixa com es- tes Proleg6menos. A referica obra, que apresenta o poder dit razio pura em todo o seu Ambito ¢ limites, continua sendo sempre o fundamento ao qual estes Prulegdmenos se referem como meros exercicios preliminares; pois aquela Critica deve ser, enquanto ciéncia, sistematica © completa até os minimos detathes, antes de se pensar ¢m permitir que surja a metafisica ou ter disso a mais remota esperanga. 34 se esti hd muito tempo habituade a ver surgir como novos velhos e gastos conhecimentos, retirados de suas relagdes anteriores, ¢ dar-lhes uma indumen- taria sistemitica, sceundo um corte qualquer, mas sob novos titulos; a maioria dos leitores niio estard esperando, antecipadamente, nada além disso daquela Cf- lca. Estes Prolegcmenos, entretanto, levi-los-do a ver que esta é uma ciéncia totalmente noya, na qual ninguém antes havia pensado, da qual a simples idéia era desconhecida ¢ para a qual nada até agora pode ser de utilidade, a no ser 0 Z KANT aceno dado pelas dividas de Hume, Este também nem sequer pressentiu a possi- bilidade de tal ciéncia formal, mas, para colocar seu barco cm lugar seguro, levou-o até a praia (ao ceticismo), onde poderia permanecer e apodrecer: em vez disso, me é de enorme importancia dar-lhe um pilote que possa manobrar 0 barco com firmeza, de acordo com os principios seguros da arte nautica. retiradas do conhecimento do globo, c, munide de uma carta nautica completa ¢ de um com- passo, leva-lo para onde melhor the parecer. Abordar uma ciéncia nova, isolada ¢ inica em seu género, com o precon- ceito de poder julgd-ta gragas a pretensos conhecimentos anteriormente adquiri dos, apesar de ser justamente de sua realidade que se deve, antes de mais nada, duvidar, nao leva a coisa alguma a nao ser a crer ver em toda parte aquilo que j4 era eonhecido em conseqiéncia ce uma certa semelhanga de expressdes; s6 que to tudo Ihe deve parecer deformado, absurdo ¢ totalmente confuso, porque se baseia. nfo no pensamento do autor. mas sempre sd em seus prdprios, que se tor- neram pela forga do habito uma maneira de pensar tornada natureza. Mas a extensio da obra, na medida em que se funda na propria cincia ¢ ndo na sua exposigao, sua inevitivel aridez ¢ sua exatiddo escolastica passam a ser qualida- des vantajosas & coisa em si, tornando-se 20 livro, entrétanto, bastante Prejudiciais, E verdade que nem a todos é dado escrever tio sutil ¢ atrativamente camo David Hume ou tio profunda ¢ 20 mesmo tempo elegantemente como Moses Mendelssohn: é certo que poderia ter dado um earater popular A minha exposigio (camo me lisonjeio) se meu intuito fosse criar um plano, recomendando a outros Sua execugao ¢ néo levasse 10 a sério 0 bem da ciéneia, que ha tanto tempo me ‘ocupa; pois requeria muita constincia ¢ nio menor abnegagaa ceder o atrativo de uma acolhida favoravel e mais répida ao aplauso tardio, mas duradouro. Fazer planos é, nw maioria das vezes, uma exuberante ‘ocupagie do espirito, uma fanfarronice pela qual se toma ares de génio criador, ao se exigir 0 que nao Se pode produzir, ao censurar o que nao se é capaz de fazer melhor ¢ a0 propor aguilo que nem se sabe onde encontrar, se bem que seria necessario, para um plano sério de uma eritica geral da razdo. muito mais do que se pode supar; se no se quiser que cle se torne, como é comum, uma simples declamagao de piedo- $0 descjos. Pois a raziio pura ¢ uma esfera tio isolada, tao completamente cone- xa em si mesma, que nao € possivel tocar em uma de suas partes sem que se atinja todas as outras, e nada se pode fazer sem ter determinado a cada parte o seu lugar @ sua influéncia sobre a3 outras; porque nada, a nio ser ela, poderia corrigir inte Fioemente nosso juizo; a validade ¢ utilidade de cada parte dependem da relagio que existe entre ela ¢ as outras na propria raziio, ¢, como acontece na estrutura de um corpo organizado, a finalidade de cada um dos membros s6 pode ser deduzida do conceito completo do todo. Partindo dai, pode-se afirmar de tal Critica que ela nunca seri digna de confiangs, se nao estiver integralmente acabada até os mini- mos elementos da razdo pura, e que, na esfera deste poder, ou se deve datermiinar e regular tudo ou entao nada. Mas se um simples plano que precedesse o da Critica da Rado Pura fosse PROLEGOMENOS 8 ininteligivel, indigno de confianga e iniltil, tanto mais util ele seria seguindo-sethe na ordem do tempo. Pois com isto cstar-se-a apto a ter uma visio do conjunto. a examinar, pega por pega, os pontos principais que importam nesta ciéncia ¢ poder dispor methor alguns detalhes da exposigdo do que se podia fazer na primeira redagio da obra. Este é, portanto. um plano desta espécie. posterior 4 obra concluida, estabe- lecido em mérodo analitico, j que a obra propriamente dita teve que ser redigida de acordo com 0 método sintético, a fim de que a ciéncia pudesse mostrar todas a8 suas articulagdes como a estrutura de um poder particular de conhecimento em sua relagio natural. Quem ainda achar obscura este plano que antecipo como Prolegémenos a toda metafisica futura, pensar que nao é necessaria que todos estudem metafisica, que ha alguns talentos que alcangam certo sucesso em cign- cigs sdlidas e mesmo prafundas. as quais se aproximam mais, porém, da intuigio, este nao conseguira triunfar nas investigagdes através de conceitos puramente deduzidos, e deve entao, neste caso, aplicar seus dons intelectuais em outro obje- (Oj que aquele, porém, que se proponha a julgar a metafisica, ou pretenda mesmo criar uma, atenda totalmente is exigéncias aqui formuladas, quer aceite minha solugao, quer a refute até 0 fundo, colocando outra em seu lugar — pois nfo pode repeli-la: ¢ que finalmente a téo decantada obscuridade (uma habitual desculpa para a prépria comodidade ¢ incapacidade) tenha sua utilidade, j4 que todos aqueles que guardam cauteloso siléncio, em se tratando de outras eiéncias, falam magistralmente cm questdes da metafisica ¢ as resolvem com ousadia, porque sua ignordncia nao contrasta elaramente com a ciéneia dos outros, mas com certeza com os verdadeitos principios criticos, dos quais podemos afirmar com razio: ignavum, fircos, pecus a praesepibus arcent.* Virgilio. * As bulucas aftstam dns cochsiras © rebanhe ociose, PROLEGOMENOS Adverténg preliminar a respeito das peculiaridades de todo conbecimento metafisico § 1. Das fontes da metafisica Quando se pretende apresentar um conhecimento como ciéncia, ¢ necessé. tio, antes de mais nada, poder determinar precisamente seu carater, 0 que ela nao fem em cemum com nenhuma outra, e que the é, portanto, peculiar; caso contr4- rio, confundem-se os limites de todas as ciéncias e nenhuma delas pode ser trata- da profundamente de acordo com sua natureza, Quer esta peculiaridade consista na diferenca do objeto ou das fontes do conhecimento, au ainda do modo de conhecimento, de algumas destas coisas sendo de todas juntas, ¢ sobre isso que se baseia antes de tude a idéia da possivel ciéncia e de seu dominio, Primeiramente, no que se refere as fonces de um conhecimento metafisicos Fé esti implicito em seu conceito que elas ndo podem ser empiricas. Seus principio (aos quais pertencem nao sé seus axiomas, mas seus conceitos fundamentais) nao devem ser tirados da experiéncia, pois © conhecimento deve ser metafisico e nao. fisico, isto é, estar além da experiéncia, Logo, nem a experiéncia externa, que é a Fonte da Fisica propriamente dita, nem a interna, que é a base da Psicologia empi- a, constituem o seu fundamento. Ela é portanto, conhecimento @ priori, de entendimento puro ow de razao pura. 7 Mas assim ela no teria nada ‘que a distinguisse da matemiitica pura; ela deverd chamar-se, cntao, conhecimento filoséfieo puro; a tespeita do significado desta expresso, refiro-me na Critica da Razdo Pura, p. 712 ¢ seguintes, * onde esta clara ¢ satisfatoriamente apresentada 9 diferenga entre estas duas maneiras do uso da razio, — Isso era 0 que tinha a dizer acerea das fentes do conheci- mento metafisico. § 2. Datinica espécte de conhecimento que ‘pode ser chamado metafisico A) DA DIFERENCA ENTRE JUFZ0 SINTETICO E ANALITICO EM GERAL O conhecimento metafisice deve conter Juizos @ privri; isto exige a peculiari- dade d¢ suas fontes. Ora, tenfam os juizos a arigem que tiverem ou se apresentem em sua forma ldgica como quiserem, existe uma diferenga entre eles pelo seu con. so Ei tefetnca do aur, bem como outrasno tex, tem samo hase a eyo alr Wece, 1958, AN. do E) PROLEGOMENOS, 15 teiido, que faz com que séjam simplesmente explicativos ¢ nada acrescentem a0 contetido do conhecimento, ou extensivos e ampliem 0 conhecimento dado; os Primeiros podem ser denominados juizos anaiificos ¢ os segundos sintéricas. Qs juizos analiticos nao afirmam no predicado nada que ja nao tenha sido pensado no conceito do sujéito, embora com menos clareza ¢ consciéncia, Quan- do eu digo: todos os corpos sao extensos, nao terei ampliado em nada meu con- seito de corpo, mas apenas 0 decompus, pois a extensao daquele conceito ja havia sido realmente pensada antes do juizo, apesar de nao afirmada explicitamente: 0 juizo €, pois, analitico. Ao contrario, a propasigio: alguns corpos $30 pesados, contém algo no predicado que nao é pensado realmente no conceito geral de corpo; ela aumenta, portanto, meu conhecimento ao acrescentar algo ao meu eonceito, e deve por isso ser deneminada um juizo sintético, 2) O PRINCIPIO COMUM DE TODOS OS JUIZOS ANALITICOS & 0 PRINCIPIO DE CONTRADICAG Todos os juizos analiticos repousam fundamentalmente sobre o principio de contradigio © séo por sua natureza conhecimentos @ priori, sejam os conceitos Que Ihes servem de matéria empiricos ou nao. Pois, tendo'9 predicado de um juizo analitico afirmativo sido pensado j4 no conceito da Sujeito, nfo pode por ele ser negado sem que haja uma contradi¢io; do mesmo modo, deve ser necessaria- mente negado o seu contririo, num juizo analitico mas negativo, pelo sujeito, ¢ isto em conseqiiéncin do principio de contradicio. Assim acontece com as propo- sigdes: cada corpo é extenso por natureza, e: nenhum corpo é inextenso ples) por natureza. Justamente por isso sio todas as proposigdes analiticus juizos @ priori mesmo que seus conceitos sejam empiricos, por exemplo: ouro é um metal amare- lo; pois. para saber isso, niio preciso de outra experiéneia além do meu conceito de ouro, o qual contém que este corpo é amarelo ¢ é metal: pois isso ja constituia © meu coneelto ¢ eu no fiz nada a nao ser desmembr4-lo, sem precisar recorrer anada além dele. ©) TUIZ08 SINTETICOS NEC QUE 0 DE CONTRADICAO ESSITAM DE UM OUTRO PRINCIPIO Existem juizos sintéticos @ posteriori cuja origem € empirica: mas existem também aqueles que sdo certos @ priori e ‘originam-se do entendimento puro ¢ da razao pura. Ambos concordam entre si que nia podem de modo algum originar se do princfpio de anilise, ou seja, do principio de contradigdo; eles exigem ainda um outro principio totalmente diverso, embora, qualquer que seja o principio de onde derivem, devam sempre derivar de acorda com o principio de contradicao; pois nada pode ir contra este principio, apesar de nem tudo poder derivar dele. Quero agora classificar os juizos sintéticos, 1) Juizos de experiéncia sio sempre sintéticos. Pois seria absurdo funda- mentar um juizo analitico na experiéncia, j4 que nao preciso ir além do meu con- 16 KANT ceito para formular um juizo ¢ no é necessario para isso reeorrer ao testemunho da experiéncia. Que um corpo é extenso é uma proposigao ja estabelecida @ prio- ri, € nGo um juizo de experiéncia. Pois, antes que eu chegue a experiéncia, tenho JA todas as condigées para o meu juizo no conceito, do gual sb poderei extrair 0 Predicado de acordo com principio de contradigio ¢ com isso torno-me ao mesmo tempo consciente da necessidade do juizo, o que jamais me ensinaria a experiéncia. 2) Juizos matemdticos sao em conjunto sintéticas. Esta proposigio parece ter escapado até agora aos analistas da razio humana, Parece até opor-se em linha reta a todas a5 suas suposigdes, apesar de ser incontestavelmente certa e por sonseqiiéncia muito importante. Pois por se achar que as conclusdes dos matem- tices seguiam todas principio de contradigio (o que exige a natureza de qual- quer eerteza apoditica), assim se chegou & persuasio de que também os principios deveriam ser conhecidos segundo o principio de contradigdo, no que eles muito se enganaram; pois uma proposicio sintética pade ser na yerdade compreendida Segundo o principio de contradigao, mas sé quando é pressuposta uma outra Proposi¢ao sintética, da qual pode ser deduzida, nunca porém em si mesma, Antes de mais nada, deve ser observado que as proposigdes matematicas sdo 4 qualquer tempo juizos @ priori e nao empiricas, por carregarem necessidade, coisa que no pode ser tirada da experiencia. Se no se quiser conceder-me isso, Testrinjo minha proposicio & matemdtica pura, cujo conceito jé implica que ela contenha conhecimento ndo-empirico, mas simples conhecfmento puro a priori. Poder-se-ia pensar a principio que @ proposi¢a0 7+5 = 12 nao. passe de uma sim. ples proposigiio analitica, resultando do coneeito de uma soma de 7 © 5 segundo © principio de contradig¢ao. Somente quando se observa mais de perto, deseobre- S€ que 0 conceito da soma de 7 ¢ 5 nada mais contém do que a reuniao destes dois algarismos nur tnica, com © que nao é pensado de maneira alguma o que é este algarismo iinico que os compreende. © conceito de 12 nao esta de modo algum Pensado no momento em que eu penso apenas aquela reunido de $ © 7 ¢, ainda que desmembre por longo tempo meu conceito de uma tal possivel soma, no eneontrarei nele © doze. Deve-se ir além desses conceites, tomando por ajuda a intuigao que corresponde a um dos dois, por exemplo os cinco dedos, ou (como Segner em sua Aritmértica) cinco pontos, ¢ acresccntar uma apds outra as unida- des do 5, duds pela intuigio, a0 eonceito de 7. Por esta propasigdo, 7+5= 12, ampliamos realmente nosso conceito ¢ acrescentamos ao Primeiro coneeito um Novo, que nao havia sido pensado naquele, isto , a proposigao aritmética & sem- pre sintética, © que nos fica interiormente ainda mais claro se tomarmos nimeros uum pouco maiores, pois vemos claramente que, por mais que viremos e reviremos ossos conecitos & nossa vontade, nunca poderiamos, sem recorrer a ajuda da intuigao © mediante o simples desmembramento de nossos conceitos, encontrar a soma. Tampouco & analitico qualquer principio da geometria pura. Que a linha rela scja a mais curta cntre dois pontos é uma proposicao sintética, pois meu con- ceito de reto nfo contém nada de grandeza, porém apenas uma qualidade, O con- PROLEGOMENOS fa veito de “mais curto” é inteiramente acrescentado ¢ nao pede ser deduzido do conceito de linha reta de acorde com um desmembramento. Aqui deve-se recorrer A ajuda da intwigdo, e somente mediante ela é possivel a sintese Alguns outros principios, pressupostos pelos. gedmetras, so na verdade analiticos ¢ se fundam no principio de contradic&o: mas eles servem apenas como proposigoes idénticas para o encadeamento metédico e nao como principios: por exemplo, aa, o todo é igual a si mesmo, ou (a+b)>a, isto &, o todo é maior que sua parte. Entretanto, mesmo estes principios. se validos por simples conceitos, sé sio permitidos na matematica porque podem ser representados na intuigdo. O que nos faz acreditar comumente que o predicado de tais juizos apaditicns ja este- Ja presente cm riasso conceito € 0 juizo seja, portanto, analitico, é simplesmente a ambigiiidade da expresso. Devemos, a saber, pensar para 0 conceito dado um determinado predicado e esta necessidade ja & inerente aos conceitos. Mas a ques- tao nfo é o que devemos pensar para o conceito dado, mas o que pemsamos real- mente nele. apesar de obscuramente; ai fica evidente que © predicado estd intima- mente ligado de mancira necessaria dqueles conceitos, nao imediatsmente, mas por meio de um intuigao que Ihe deve ser acreseentada, § 3, Observacéto para a divisiio gerat dos jutzos em analitivos e sinsétieos Esta divisio ¢ indispensdvel no que diz respeito critica do entendimento humano e merece por isso ser cldssica nessa critica; do contririo, eu nao saberia dizer se ela teria consideravel utilidade em outro campo qualquer. E aqui encon- tra também a causa de as filsofos dogmiticos terem em geral precurado as fon- tes dos juizos metafisicos sempre apenas na propria metafisica ¢ nunca fora dela, nas leis puras da razéo. Estes filésofos menosprezaram esta divisio que parece oferecer-se por si mesma ¢ como o famoso Wolff, ou o perspicaz Baumgarten, que lhe seguiu as pegadas, pudcram procurar a prova para © principio de razao suficiente, manifestamente sintético, no principio de contradigio. Ao contrario j4 encontro nos Ensaios de Locke sobre o entendimento humano um aceno para esta divisio. Pois, no quarto livro, terceiro capitulo, § 9 ¢ seguintes, depois de j& haver falado antes do diverso modo de conexdo das representagdes em juizos ¢ de suas fontes, onde ele coloca uma delas na identidade ou contradiggo (juizos analiti cos}, a outra, porém, na existéncia das representagdes num sujeito Gjuizos sintéti- cos), confessa enfim, no § 10, que nosso conhecimento (a priori) da wltima & muito restrito e quase nulo, Mas contém tao pouca determinagio ¢ regularidade 9 que ele afirma desta espécie de conhecimento que nao nos devemos admirar que ninguém, nem mesmo o proprio Hume, tenha aproveitade a ocasifo para tecer consideragiies sobre esta espécie de proposigdes. Pois tais principios universais e nao obstante determinados nao podem ser aprendidos facilmente de outras pes soas que apenas os pressentiram obscuramente, Deve-se chegar a cles primeiro por reflexo propria, depois entao se pode acha-los em outro lugar, onde segura- mente no se teria cncontrado nada antes, porque nem sequer os préprios autores 18 KANT sabiam que suas préprias observagdes tém como fundamento tal idéia. Os que ‘Go pensam nunca por si mesmos possuem. entretanto. a perspicdcia de encontrar tudo, depois que thes foi mostrado, naquilo que ja havia sida dito e onde ninguém antes pudera ver. A questdo geral dos ProlegGmenos €, em geral, possivel d metafisica? §4 Fosse real a metafisica, que se pudesse afirmar como ciéncia, poder-se-ia entéo dizer: aqui esti a metafisica, vés podeis aprendéta e ela convencer-vos-a irresistivel ¢ invariavelmente de sua verdade: esta pergunta seria entio desneces- sfria & permaneceria apenas esta outra, que se refere mais a um exame de nossa perspicicia do que A prova da existéncia da coisa em si, ou seja, como ¢ possivel @ metafisica ¢ como comega a ruzio para chegar até cla? Sé que neste caso a Fazio nao teve tanta sorte. Nao se pode apresentar um Gnico Livro, como se esti- vesse mostrando um Euclides, ¢ afirmar: isto é metafisica, aqui encontrais o mais nobre objetivo desta ciéncia, 0 conhecimento de um ser supremo e de um mundo. futuro, provados a partir de prineipios da razio pura, E certo que nos podem ser apresentadas muitas proposigdes, apoditicamente certas ¢ funea contestadas; mas elas sio em conjunto analiticas e referem-se mais ao material © aos in: (rumentos de construgio da metafisica de que & ampliagiio do canhecimento, que deve ser a nossa verdadeira intengao para com ela (§ 2. c.). Mas, se apresentardes Jogo também proposigdes sintéticas (por exemplo, 0 principio de razo suficiente) que ¥és nunca provastes a priori, a partir da simples razdo, como era vosso dever, mas que s¢ concede com prazer a vés, assim cals, quando quereis servir-vos dela Para vosso objetivo principal, em afirmagdes tao inadmissiveis ¢ inseguras que uma metafisica contradiz a outra para todo 0 sempre, quer isto se refira as pré- prias afirmagies, quer as provas, ¢ com isso terd destruido sua propria pretensdo a um aplauso duradauro. As primeiras tentativas de realizar tal ciéncia foram sem dtivida a primeira causa da precoce manifestacao do ceticismo, uma manera de pensar onde a razdo procede tio violentamente contra si rhesma que ela nunca Poderia ter surgido a nao ser em total desespero quanto a satisfazer suas mais importantes aspiragdes, Pois, muito tempo antes de se comegar a interrogar meto. dicamente a natureza, interrogou-se apenas @ razao isolada, que ja havia sido exercitada, de certa maneira, pela experiéneia comum; porque a razdo nos esta sempre presente, as Icis da natureza, entretanto, preciam ser Pprocuradas comu- mente com grande esforgo; ¢ assim a metaifsica futuava como espuma, mas de fal mancira que quando uma, que se havig criudo, se desfazia, imediatamente aparecia outra an superficie, que era, sempre recalhida com sofreguidao por alguns, enguanto outras, ao invés de precurarem na profundeza a causa deste PROLEGOMENOS 9 aparecimento, considcravam-se muito sébios porque zombavam dos baldados esforgos dos primeiros. © O essencial do conhecimenta matemdtico puro que o distingue de todo o outro conhecimento @ priori é que ele nunca deve ir adiante a partir de conceitos, mas sempre @ somente @ partir da construcio de conceitos (Critica, p. 713). Como, porém, ele deve ir em seus principios além do conceito ¢ aleangar aquilo que contéim a intuig2o correspondent: ao mesmo conccito, assim nao podem nem devem seus principios ser obtidas por desmembramento de conceitos, ista 6. analiticamente, ¢ sio por isso todos sintéticos, Nao posso deixar de apontar aqui d prejuizo que constituiu para a filosofia 9 fato de uma observacao aparentemente tio simples ¢ insignificante ter sido des- curada. Hume, quando sentiu a vocagiio digna de um fildsofo, ou seja, langar 0 olhar sobre todo a campo de conhecimento a priori, no qual o entendimento hu- mano se arroga tio amplos dominios, eliminou irrefletidamente toda uma provin- cia da mesma, na verdade a mais consideravel, ou seja, a matematica pura, par. tindo da suposigao de sua natureza, e por assim dizer sua constituicdo, se fundar em principios completamente diversos. isto é, meramente no prinefpio de contra- digiie: apesar de ele nao ter feito a divisao dos prineipios tio formal ou geral ou usando as mesmas denominagdes que ¢u uso aqui, o fez, porém, de tal maneira que equivaleria a afirmar; a matematica pura contém apenas proposigdes analiti- cas, mas a metafisica, sintéticas a priori. Mas aqui ele se enganou muito e este en- gano teve conseqiéncias decisivamente prejudicinis para seu conceito. Pois, s¢ isto ndo tivesse acontecido com ele, teria ampliado sua pergunta quanto a origem, de nossos juizos sintéticos, inde muito além de scu conceito metafisico de causali- dade, estendendo-a sobre a possibilidade da matematica a priori, pois esta ele também deveria ter tomado como sintética, Neste caso, porém, nao teria podido fundar suas proposigdes metafisicas na simples experiéncia, pois senio teria sujei- tado da mesma forma os axiomas da matematica para A experiéncia, para o que ele cra por demais perspicaz, A boa companhia que a metafisica teria encontrado a teria assegurado contra o perigo de um mau trato indigna, pois os golpes desfe- ridos contra Gltima teriam atacado também a primeira, o que ele nao pretendia, nem podia pretender, Assim teria sido levado este homem perspicaz a considera- ges que deveriam ter-se tornado andlogas as que nos ocupam agora, mas que te- riam lucrado imensamente com a inimitavel beleza de sua exposigio. Os juizos metafisicos prapriamente ditos sao todos sintéticos. Deve-se aqui distinguir os juizos que pertencem @ metafistea dos que so propriamente metafi- sieas, Entre aqueles esto muitos analiticos, mas sao apenas os melos para chegar a juizos metafisicos, para os quais est voltado o fim da cigncia, ¢ que sio todos sintéticos. Pois, quando conceitos pertencem a metafisica, por exemplo, o de substiincia, entao pertencem também necessariamente a metafisica 08 juizos, que surgem do simples desmembramento da mesma, por exemplo, substancia é aquilo gue existe apenas como sujeita e por meio de outros juizos analiticos semelhantes procuramos chegar perto da definigdo dos conceitos. Mas como a analise de um conceite puro do entendimente (como os contides na metafisica) nao vai adjante 20 KANT senao pelo desmembramento de cada um doa outros conceitos empificos, que nao pertencem a metafisiea (por exempla, o ar ¢ um fluido etistico, cuja elasticidade nao é suprimida por nenhum’grau conhecido de baixa temperatura). vé-se entfio que © conéeito. ¢ nao o juizo analitico, é na verdade metafisico: pois esta ciéncia tem algo peculiar © priprio dela na produgie de seus conhecimentos a priori, 0 que deve ser diferenciado do que ela possui em comum com outros conheci- mentos do entendimento; assim ¢, por exemplo, a praposigdo: tudo o que nas coi- Sas ¢ substincia, é constante: uma proposigao sintética e propriamente metafisica, Quando se reuniram preliminacmente, segundo certos principios, 08 concei- tos 4 priori que constituem a matéria ¢ o instrumento de construgdo da metafi- sica, entdo é de grande valor 0 desmembramento destes conceitos. Também podem ser os mesmos expostos separadamente como uma parte especial (assim como philosopkia definitiva). que contém apenas proposigdes analiticas perten- Centes 4 metafisica, separadamente de todas as proposigdes sintéticas que consti- tuem a propria metafisica. Pois tais desmembramentos nao tém, de fato, em ne- nhum lugar uma utilidade to relevante como na metalisica, isto & no que se refere As proposigdes sintéticas, que devem ser produzidas daqueles conceitos previamente desmembrados. A conclusiio deste paragrafo é, pois, que a metafisica tem a ver, na verdade, com proposigdes sintéticas a priori e somente estas constituem seu objetivo, para © qual ela necesita certamente de alguns desmembramentos de seus conceitos, portanto de juizos analiticos, mas 0 procedimento nada mais é, como em qual. quer outra espécie de conhecimento, que procurar tornar claros, por desmembra- mento, scus conceitos, Somente a produgdo da conhecimento a Priori, tanto Segundo a intuigiio coma os conceitos, bem como, finalmente, segundo. proposi- gGes sintéticas @ priori, ¢ isto no conhecimento filasétfico, constituem © conteddo essencial da metafisica, Cansados, portanto, do dogmatismo, que nao nos ensina nada, ¢ a0 mesmo tempo do ceticismo, que de modo geral nada nos Promete, nem mesmo a tranqui: lidade licita da ignorincia, impelidos pela importancia do conhecimento que jul- gamos possuir, ou que se nos aferece sob o titulo de razao pura, resta-nos apenas uma pergunta critica, sob cuja resposta podemos regular nosso comportamento futuro: ¢, em geral, possivel a metafisica? Mas esta pergunta no deve ser respon- dida por objegdes céticas contra certas afirmacdes de uma real metafisica (pois até agora nfo consideramos nenhuma vélida), porém s$ pelo coneeito ainda problemdtico de tal metafisica. Na Critica de Razdo Pura procurei tratar desta questao sinteticamente, ou seja, pesquisando na propria razio pura e procurando determinar nesta mesma fonte os elementos bem como as leis de seu uso puro segundo principios, Este tra- balho € drduo ¢ exige um leitor decidido a, pouco © pouco, pencirar pelo pensa- mento num sistema que ndo tem come fundamento nenhum dado a nao ser a pro- pria raziio, © sem apoiar-se, portanto, em nenhum fato que procure desenvolver 0 conhecimento a partir de seu embriao originario. Os Proiegémenos devem servir, a0 contrario, de cxercicio preliminar; devem ser mais para mostrar 6 que se tem PROLEGOMENOS 3 a fazer para wrazer 4 realidade uiia ciéncia, onde for possivel, e nao tentar expd- Ia. Eles devem, pois, apoiar-se om alge que j4 se conhece como digno de confian ga, de onde se pode partir com seguranga e remontar as fontes, que ainda nao se conhecem e cuja descoberta nfio esclarece apenas aguilo que ja se sabia, mas que apresentara ao mesmo tempo um conjunto de muitos conhecimentos que nascem todos das mesmas fontes. O procedimento metédico dos Prolegémenos, princi- palmente daqueles que devem preparar para uma future metifisica, sera, portan- to, analitico. Embota nao se possa admitir que a metafisica seja reat como cigneia, feliz- mente podemos afirmar com sepuranga que um certo conhecimente sintético puro a priori é real ¢ dado, a saber, malemdtica pura e ciéncta pura da natureza; ambas contém proposigdes apoditicamente certas, seja através da simples raziio, seja através da consentimento geral adquirido pein experiéneia, e apesar disso univer- salmente reconhecidas como independentes da experiéncia. Possuimos, portanto, a0 menos algum conhecimenta sintética a prior? incontestado ¢ nig devemos per- guntar se ele ¢ possivel (pois cle € real), mas apenas como ele ¢ possivel, para podermas derivar a possibilidade de todos os outros'do princfpio de possibilidade do conhecimento dado. Questo geral dos Prolegémenos; como é possivel um eonhecimento pela razao pura? 85 Vimos acima a consideravel diferenga entre juizos analiticos ¢ sintéticas. A possibilidade de proposigdes analiticas pode ser facilmente concebida, pois ela se funda exclusivamente no principio de contradigao, A possibilidade de propesi- gGes sintéticas @ posteriori, ou seja, das que sao tiradas da experiéncia, nao neces- sita tampouco de explicagiio especial. pois a propria experiéncia nada mais é do que uma continua reuniao (sintese) de percepgdes. Restam-nos, portanto, apenas Proposigdes sintéticas @ priori, cuja possibilidade deve ser procurada ou investi- gada, porque ela deve basear-se em outros princ{pias que nio o principio de contradicao, Mas nao devemos aqui procurar primeiro a possibilidade de tis proposi- goes, isto 4, perguntar se s4o possiveis. Ha um numero suficiente delas ¢ de fato niio séo dadas realmente com indiscutivel certeza. Como o método aqui seguido agora deve ser analitico, nosso ponto de partida ser que tal conhecimento sinté- tico, porém puro, da razao realmente existe. Em seguida, devemos investigar o fundamento desta possibilidade ¢ perguntar como € possivel este conhecimento, Para que possamos estar em condigdes de determinar, a partir dos prineipios de sua possibilidade, as condigdes de seu uso, seu fimbitu ¢ seus limites. A verda- deira tarefa, da qual tuds depende, expressa com precisdo escolastiva, &, pois:

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