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CULTURA E SEUS SIGNIFICADOS Os MULTIPLOS SENTIDOS DE CULTURA Todo mundo tem sua idéia do que € cultura. Na década de 1950, 0 antropélogo americano Alfred Kroeber se deu ao trabalho de compilar as definigdes de cultura e achou mais de 250 variagdes. E naquela época nao deveria haver muito mais do que esse ntimero de antropélogos mundo afora! Por conseguinte, hoje as contariamos em milhares, mesmo porque cultura nao € assunto circunscrito a antropdlogos € filésofos, mas esti, por assim dizer, na boca do povo, Todavia, para o tema s em seis ou que comporao, em sintese, nossa visio sobre cultura. Primeiramente, cultura € vista como se fora sinénimo de erudigao. Cultura seria a substantividade de ser culto, e isso quer dizer possuir conhecimento e demonstrar refinamento social. Tal conhecimento estaria has dreas de Literatura, Filosofia, Historia, etc; ¢ 0 refinamento seriam 0s modos de comportamento, a etiqueta social como atributo de classe social superior. Esta é, na verdade, a acepgio original da palavra cultura tal como concebida pelos romanos (ctiltura € palavra latina que vem do verbo colere, cultivar). Era muito usada, tempos atris, quando as classes alta © média brasileiras sobrevalorizavam o conhecimento , Fetdrica e © comportamento dito refinado como simbolos de status social. Embora nao seja mais importante, cultura como erudiga., ¢ refinamento social ainda tem seus adeptos, a0 menos nas colunas sociais. Nao € isso que se entende por cultura na Antropologia. Uma variagio dessa acepco vem da tradigio da filosofia idealist, alema, originada no século xvm, segundo a qual cultura equivale 4 formagao (bildung, em alemao), no sentido de constituigag ¢ desenvolvimento, tanto individual quanto coletivo. Assim, 0 individuo, tem cultura como parte de sua formagio intelectual ¢ comportamental, seguindo padrdes considerados superiores € refinados, mas nag necessariamente relacionados a classes endinheiradas. E um povo tem cultura como uma tradicao que € respeitada, cultuada e ao mesmo tempo renovada e refinada. A literatura, a ciéncia, a aplicacao tecnolégica, mas também o acatamento as leis e 0 comportamento comedido fariam parte dos atributos de um povo “com cultura”. Assim, haveria homens com mais ou menos cultura, assim como haveria nagdes com culturas mais pujantes e consolidadas. A Antropologia vé essa acepgio com certa desconfianga; mas muitos que admiram as culturas européias, ¢ por vezes subvalorizam a cultura brasileira, baseiam seu raciocinio nessa acepcao de cultura. Uma segunda categoria diz respeito a arte e suas manifestagdes. Diz- se que teatro € cultura, musica classica é cultura. Por extensio ao popular, dangas folcléricas, misica de viola caipira, carrancas do Sio Francisco sao cultura. Cultura seria as manifestagdes a produgao artistica de um povo. Esse sentido esti dentro do interesse da Antropologia, as vezes como folclore, as vezes como tradi¢ao, 4s vezes como ritos culturais € até como cultura material. Outra categoria vé cultura como os habitos e os costumes que representam ¢ identificam um modo de ser de um povo. Em geral esses costumes so reconhecidos como singulares e especificos. Assim, diz-se que no Nordeste, comer rapadura com farinha, e em Minas Gerais, comer broa de milho — faz parte da cultura dessas regides. Dormir em rede no Nordeste, ir 4 praia aos domingos no Rio de Janeiro, passat tardes de sibado em shopping centers em Sao Paulo € noutras cidades modemizadas — € parte da cultura. O jeito maneiroso do baiano, # desconfianca do mineiro, a eldstica capacidade de gozagio do carioc®, ou a rigida l6gica do portugués — sto manifestagdes de suas respectivs culturas. Cultura seria 0 todo comportamental, incluindo 0 emocional € © intelectual, de um povo ou, em menor escala, de uma coletividade ‘Também essa acepeao interessa 2 concepgio de culturs da Apuepglogi Outra acepeao diz que cultura é a identidade de um povo ou de uma coletividade, que se forma em torno de elementos simbélicos compartilhados. Esses elementos, em que se incluem os valores, permitem a coletividade pairar acima das diferencas que a dividem — seja de classe social, regio, religio, etc. Em contraste com outros povos ou coletividades, esse conjunto simbélico € que diferenciaria uma coletividade de outras, cada uma com seus respectivos conjuntos simbélicos. Essa acep¢ao € muito usada para se compreender as diferencas, identidades ¢ lealdades que existem entre os povos. Freqentemente essa acepgao de cultura € usada para se dizer que o Brasil € 0 que € pelo “jeitinho” de fazer as coisas; ov, por outra, o Brasil 86 se une, 86 se identifica como um todo em tomo de instituigdes ou festas como 0 Camaval ou 0 futebol, neste caso especialmente na Epoca dos jogos de Copa do mundo. Mais uma categoria considera que cultura ¢ aquilo que est por tris dos costumes e das atitudes de um povo. Aqui o conceito de cultura se intelectualiza, torna-se abstrato. Esse aquilo-que-esti-por-tris constituiria uum sistema ou estrutura inconsciente que determina 0 modo como as pessoas se comportam, pensam ¢ se posicionam no mundo. Essa acepco € muito querida da Antropologia, chamada por diferentes escolas de padrio, modelo, estrutura, blueprint, etc. Outra acepgao, proposta pelo antropélogo brasileiro José Luiz dos Santos, argii que cultura é uma dimensdo que esti em © perpassa todos os aspectos da vida social; por conseguinte, € aquilo que da sentido aos atos © aos fatos de uma determinada sociedade. Poder-se-ia distinguir cultura no pensamento, no ideario de valores, no comportamento das pessoas em quaisquer circunstiincias, isto é, nas relagdes sociais em geral, bem como nos atos politicos, nos fatos econdmicos, na produglo artistica, na religiosidade, etc., de uma determinada coletividade. Enfim, talvez a acepcao mais genérica diz que cultura é tudo aquilo que © homem vivencia, realiza, adquire transmite por meio da linguagem. A origem dessa acepgao de cultura esti naquela que considerada a primeira definicao formal de cultura. Foi enunciada em 1871 pelo inglés Edward Tylor, reconhecido por muitos como o primeiro pesquisador e pensador a promover a Antropologia como uma ciéncia: “Cultura [...] € 0 todo complexo que inclui conhecimentos, crengas, antes, moral, leis, costumes € quaisquer outras capacidades € habitos adquirides pelo homem como membro de uma sociedade”, NossO CONCEITO DE CULTURA Diante de tantas acepgdes que se desdobram em muitissimas variagdes, propor outra definicao de cultura pareceria uma temeridade. Por que nao simplesmente dizer que cultura é tudo isso, bem combinado, ¢ algo mais que se queira acrescentar? Facil, mas a tarefa da Antropologia Cultural € perseguir uma compreensibilidade do que € cultura ndo sé para efeitos argumentativos ¢ demonstrativos, mas também para esclarecer seu valor conceitual em relagio a outros conceitos importantes que nos ajudam a entender o homem como ser coletivo. De modo que, para servir como instrumento de reflexo e operacionalidade, eis como poderemos articular 0 conceito de cultura, esperando que ele seja amplo € claro ao mesmo tempo e€ que se coadune com os temas que serio discutidos a0 longo deste livro. Cultura éo modo proprio de ser do homem em coletividade, que se realiza em parte consciente, em parte incons- cientemente, constituindo um sistema mais ou menos cocrente de pensar, agir, fazer, relacionar-se, posicionar- se perante o Absoluto, ¢, enfim, reproduzir-se. Reconhecamos que a amplitude dessa definigto, que abarca muitas das acepcdes vistas acima, também traz problemas. O que se quer dizer, por exemplo, com “homem em coletividade”, “pensar”, ou “posicionar- se perante o Absoluto”, quanto mais “sistema mais ou menos coerente”? © que quer dizer que a cultura “se realiza em parte consciente, em parte inconscientemente”? ‘ Expliquemos desde jf que “modo proprio de ser” quer dizer que distinguimos cultura como algo além da biologia, da insergao do homem no reino animal, Consideramos que essa distingao no € um corte abrupto: 0 homem permanece animal, inclusive com instinto de Sobrevivencia. Mas a cultura tem sua propria légica © uma certa descontinuidade em relagao & natureza, uma certa autonomia, ¢ di 30 homem caracteristicas de comportamento que vao além do comportamento animal. Esse ponto poderia ser contestado pelos sociobidlogos que propdem que cultura é tio-somente uma continuidade da natureza animal do homem, que tudo que o homem faz culturalmente © faz como parte de sua natureza animal. Nao cabe neste capitulo dar conta de todas as caracteristicas € =” expostos na nossa definiglo de cultura, pois que serio us sramsicasos 37 st ts sronttncn bs at discutidos e exemplificados como aspectos ou temas de outros capitulos, A nogao de coletividade, coletivo, especialmente em sua relacao com a nogio de individuo, receberé uma atencao ampliada mais adiante. Jé a crucial idéia de que cultura € um sistema “mais ou menos coerente” 56 ficard totalmente clara ao final do livro. Mas desde j4 vio se delineando as bases dessa proposicao. Examinemos alguns dos predicados de cultura. © que se quer dizer com pensar? Para a Antropologia pensar é articular uma compreensio do mundo (worldview em inglés, weltanschauung, em alemao) através da linguagem. £ claro que pensar € um ato de consciéncia, individual, que se forma através de palavras, conceitos ¢ sentidos de uma lingua, Mas € também um ato coletivo, na medida em que os termos desse pensar, as categorias de pensamento sio dados pela cultura da qual 0 individuo faz parte. Pode-se, por conseguinte, dizer que a cultura “pensa", sem mistificar nada, A lingua, como veiculo de pensar e de comunicar, e também como estrutura que a compée, est presente em nossa definicao de cultura. Ela é€ compreendida como um sistema de simbolos convencionados como significados que sto compantilhados inconscientemente por uma comunidade de falantes. As palavras apresentam significados proprios que sio compreensiveis part uma determinada coletividade. Todavia, os significados das palavras no sto fixos e permanentes, ao contririo, tém o potencial de variagio, de produzir novos significados. Dai que pensar é um ato ao mesmo tempo determinado pelos significados coletivamente compartilhados e dados pela lingua sobre a realidade, porém circunstanciado pela individualidade pensante (com suas circunstancias), aberto para conceitos que vém de fora © apto para criar 0 novo. Portanto, pensar € um ato que esti inserido em um sistema, mas o desafia e vai além dele, com chances de modifica-lo. £ certo que a grandessissima maioria dos atos e resultados do Pensamento advém das possibilidades encontradas no sistema lingiistico; entretanto, em certas ocasides, 0 pensamento produz um significado. novo para algo jé conhecido, uma variagio de uma idéia, ou um conceito novo. £ no pensamento que est4 o principal fator da criatividade do homem. Seu resultado mais evidente hoje em dia € o que chamamos de ciéncia, junto com sua aplicagio pritica, a tecnologia. Enfim, num sentido ‘mais concreto, na nossa definigdo, pensar representa o sistema ideol6gico da cultura, 0 conjunto de idéias, a légica ¢ a filosofia que sio inerentes ‘na cultura, A caracteristica da criatividade, propria da lingua e do uso que se faz dela, é também uma caracteristica que est4 presente na cultura. A cultura € um sistema que ordena o pensar, mas também 0 agir, 0 modo de relacionar-se de seus participantes e também os valores que justificam tudo isso. Os atos so, em principio, variagdes individuais aceitiveis dentro do conjunto de atos de uma coletividade; podem ser variagdes que destoam demais do conjunto e conseqiientemente serem rejeitadas, nao aceitas; mas podem ser variagdes que, ao serem aceitas, venham a produzir mudangas no sistema cultural. Ser capaz de permanecer 0 mesmo e também de mudar é um exemplo do que acima mencionamos ‘como uma das caracteristicas da cultura: sua coeréncia ou ‘sistematicidade, porém parcial, aberta, A conclusio filos6fica que podemos tirar € que a cultura, que condiciona o comportamento € 0 pensar do homem, também Ihe di liberdade para pensar o diferente e comportar-se diferentemente. ‘A dialética de mao dupla individuo/coletivo € um dos pontos mais importantes para se compreender como a cultura funciona. Do nosso ponto de vista, individuo e coletivo sao entidades distintas ¢ podem ser concebidas e percebidas separadamente, cada uma com sua propria Jogica de funcionamento. O individuo age movido tanto pela consciéncia quanto pelo inconsciente; ele € uma etema sintese dialética desses dois predicados. J4 0 coletivo, do qual o individuo € parte, é sempre algo inefavel, uma totalidade que funciona por meios diferentes de uma mera soma agregada de individuos. Embora 0 socidlogo francés Emile Durkheim (1858-1917) tenha concebido o coletivo como um “consciente coletivo’, na verdade o coletivo nao exerce qualquer atividade consciente, nio “fala”, no enuncia, a nao ser como parcialidade empirica, por exemplo, como grupo ou até como multiddo. O coletivo funciona por uma ldgica semelhante a légica que prevalece no inconsciente humano. Qs temas que Ihe dizem respeito, por exemplo, a linguagem ¢ sus estrutura, as normas € os valores, so transmitidos para os individuos tanto pelo consciente I6gico, pelo aprendizado, quanto ainda pot vis do inconsciente. © coletivo s6 € percebido através das agdes mais ot borer cra Previsiveis, “ndo-individualizadas" dos individuos Saat anne denne em Sh empirica, mas é também um se oe depende de outros; 0 coletivo € algo que s6 existe par , para os individuos. Podemos considerar dua ji Ba caer eee que as duas entidade ‘ tramente em fun¢io uma da outra. Essa explicagao se faz necessaria = “ intropolégico que enfatizam Porque hd correntes clo pensament 0u dao predominiincia em suas andlise somuicapes 9 oma a0 individuo ora a0 coletivo, Por exemplo, as escolas faodlokohisitecasscnarblenownaticlateeeaa totes GmAtieabaaieomupeienioas susie eee comportamental ¢ interativo dos individuos naa sociedade, a qual € considerada memati ae em interagao. O coletivo $6 existe em conseqiién Hite downers smibigoaIboe hncinbnes cfantona mmoneaind Cease como um organismo em que tudo esti ee Cana pehicedamoua hea ee trodelo aentiic, os indvidos em si oem g a —_ fungdes do conjunto. Do mesmo modo, eee wei eo francesa, o individuo € a mera representasao ou mani noxalot do coletivo, € este, por sua vez, 36 Paap mao eas = and advém de uma realidade mental mais profunda, um: — Si ad 8 estrutura subjacente que esti presente no ser humano ¢ nas culturas. Entender essi ee haties tepa croa wines cinaeene mais adiante, , Quando falamos que cultura compreende tam ibém “| ee aiecim dies ae anaes enigne cy te reconhecimento de um limite de compreensibilidade de si ere assim admite ¢ elabora a cexisténcia de algo que esti acima do cognoscivel. (Os metafisicos chamam esse algo incognoscivel de o Nada. Preferimos humilo de o Absoluto, Absoluto se opve a relativo, que seria tudo axuilo passivel de compreensiblidade. }4 0 *Absoluto" sere - 4 5 eat cutrmenie como o Deus, os dese, 0 ets nists tk floresta, < indecifrivel, enfim, o misterioso. Ele &, necessariamente, algo diferente dlaqulo que se considera cognoscivel. © mencionado Durkheim chamou wo somente 0 Absoluto, mas todos 0s Sentimentos, a1os ¢ atitudes que aaa nhecimento desse aspeco presente em toda cultura ae qual se poe a tudo aquilo que relativo, comiqueiro, 0 “profano’. Essa disting2o € muito usada na Antropologia, conforme re mais detalhes no capmlo que et religiio (Religito, fituais € mits"). Outro predicado da cultura € s¥# reproducao, algo que € proprio de sores vives. ft it ioe edwccrer oe ven ene esse 9c Gila ct acblagneenes sen eorservagao cultural do. que em es sen ° Finca « conservaao foram temas de reprodugio cultur zs ide cultura. Dependendo 2s vezes da pose ana a politica Jo akropélogo, a cultura & 1 Antrororsers vista como uma entidade conservadora ou como um ser em permanente mudanga. Sa0 dois pdlos opostos que, relevados das disputas sobre qual € mais ou menos importante, funcionam como predicados da cultura, Em nossa concepgao, mudanga € conservagao se integram ao predicado maior que é a reprodugao cultural. Isto €, reproduzir-se é da esséncia da cultura, seja mudando ou conservando. A reprodugao cultural se dé por viirios meios, sendo o fundamental € 6bvio a reprodugao fisica dos homens que a compartilham. Isto é a cultura esté assentada em uma coletividade, que tem por obrigagio bioldgica se reproduzir; € o faz por meios (fisicos ©) culturais, que veremos em outros capitulos mais adiante. A morte de um povo Tepresenta a morte de uma cultura, tal como ela estava se realizando; mas nao necessariamente a morte de todos os aspectos dessa cultura, como a lingua ou um determinado costume, que podem continuar sendo Praticados por outros povos. Nao se pode dizer que ainda exista a cultura romana antiga, mas a lingua latina é uma entidade mais ou menos viva, com significados préprios que emulam o pensamento em Varias areas, e tantos costumes originalmente romanos continuam a ser Praticados entre as culturas influenciadas ou derivadas da cultura romana, na Europa, nas Américas e alhures. Além do aspecto fisico, a cultura se reproduz, para usarmos um raciocinio tautolégico, por meios prdprios, culturais. © principal meio cultural de reproducio € a transmissio de significados culturais nao sé de geracao a geracio, mas no espago de uma mesma geragio, no cotidiano. Isso se di por meio da linguagem e do comportamento ensinado, emulado € aprendido pelos novos membros da coletividade. Ao transmitir os significados que a caracterizam, a cultura ao mesmo tempo se mantém. No processo de transmissio, que se di no tempo, ela pode criar novos significados e, portanto, mudar. A cultura tem meios ¢ instituicbes de autopreservaco € conservacio que Ihe permitem funcionar com estabilidade — e, por conseguinte, dar confianga 208 individuos que a vivenciam. $40 meios de conservacao a lingua, entendida aqui como © compartilhamento dos significados das palavras Para a transmissio de mensagens; os modos de educagio, formais € curry Na verdade, todos os aspectos de uma cultura devem funcionar para sua conservacdo; 86 que, com freqiiéncia, as institui¢des culturais nao atendem aos anseios e desejos dos seus membros, entram em choque, em contradig2o, intemamente © umas com as outras. A desigualdade social € econémica, por exemplo, que nao € uma instituigto cultural, mas © resultado de um modo como os homens se relacionam para reproduzir-se materialmente, termina produzindo instituigdes culturais, modos de comportamento consolidadas ¢ aceitiveis, até que eles entrem em contradigio, em conflito, produzindo mudangas. Para muitos, a desigualdade econdmica a matriz. de choques de todos os naipes nas instituigbes culturais, de simples reclamos, a formaco de movimentos politicos € revolugdes. Em linguagem mais seca, quando tomada por contradigdes, umas fortes e evidentes, outras leves € de longa duragio, a cultura busca uma sada, um novo acomodamento, enfim, muda, ou seja, adquire novas caracteristicas. Devemos entender que cada cultura tem um ritmo proprio de reprodugio, de conservagio e de mudanga, uma dindmica. Se esse ritmo for intensificado, corre-se 0 risco de a cultura perder sua estabilidade e se transformar em algo bastante diferente. Por exemplo, ao longo dos tiltimos duzentos anos, muitas culturas indigenas brasileiras que viviam jé na dependéncia de um relacionamento desigual com a sociedade brasileira dominante, mudaram tanto que mal podemos reconhecé-las como sendo originalmente indigenas. Muitas delas perderam stra lingua materna € hoje seus membros s6 falam portugués; outras perderam instituigdes € ritos tradicionais, tendo adquirido outras instituigdes € ritos ex6genos por conta dessa convivéncia. A prépria cultura brasileira € resultado de um processo localizado de reprodugao da cultura portuguesa que, ao se relacionar de modo dominante com as culturas indigenas do litoral brasileiro e com os africanos trazidos como escravos, que trouxeram modos ¢ instituigdes de culturas proprias, absorveu € incorporou tantos aspectos culturais dessas culturas que terminou se transformando numa cultura nova, mestica, sincrética e sintética. Aqui chegamos 2o importante tema do relacionamento entre culturas. Podemos dizer, com um pouco de licenga poética, que as culturas se relacionam umas com as outras. Por exemplo, a cultura brasileira se relaciona com a cultura norte-americana ou com as culturas indigenas, E certo que sio os individuos que se relacionam uns com os outros; mas ao fazerem, ao lado de trocarem bens € produtos, transmitem ¢ Tecebem valores, idéias, pensamentos, modos de comportamento que sao absorvidos, isto é, “emprestados”, de propésito ou até inconscientemente, € so, posteriormente, incorporados ao todo coletivo, ganhando sua propria dinamica de existéncia € transmissio Na Antropologia costuma-se chamar de “empréstimo” cultural, por exemplo, ‘(0.uso brasileiro da calga jeans, que foi “inventada” € era um item material da cultura americana. Ou diz-se que © habito dos brasileiros de tomar banho nio s6 como higiene corporal, mas também como refrigério mental, é um empréstimo cultural da cultura indigena. Enfim, 0 contato entre povos produz um contato entre culturas que se relacionam, ‘emprestando € incorporando novos hibits, novas instituigdes, novos modos de ser. ‘A Antropologia usa 0 termo “aculturagdo” para expressar este processo de relacionamento ¢ de incorpora¢ao de itens culturais de uma cultura por outra. Aculturagdo € um dos termos criados pela Antropologia mais usados pelo piblico em geral. Por exemplo, € usado para representar as mudangas culturais que se oPErsm nas sociedades indigenas; ou nos contingentes de imigrantes em seus novos paises. Freqientemente, entende-se que a aculturagao de um tal povo leva 4 imtegragdo ‘esse povo a uma entidade politica maior, ume nagio-estado, indigenas ao Brasil. Ow a assimilacdo dos como © caso dos povos igrantes, como 0 caso dos italianos no sul do Brasil, ov dos japone=<* tm Sao Paulo. Porém, h4 que se entender que 0 processo aculturatve sno é inexorivel, imeversivel, pois acontece de haver uma rea¢a0 cultural gue faz com que um determinado povo se retraia ¢ volte a ser algo proximo do que era antes. Também € preciso contextualizar que 0 proceso aculturativo se da freqiientemente por meios politicos € Pilitares, pela dominago de uma nagio sobre outra. Nesse caso, 2 nudancas sio, em geral, forgadas, fazendo com que a resisténcia cultural we ransforme em aceitaclo € acomodamento com a nova dinimica intercultural € interétnica. ‘Com efeito, a dinamica propria de cada cultura é afetada pelo relacionamento entre 0s povos, organizados como nagdes € estados. AS formas mais evidentes desse relacionamento sio a econdmica € a politica. ‘A desigualdade internacional é evidente nesses dois aspectos. As respectivas culturas também so afetadas pela maior ou menor disposicio de emprestarem-se costumes € instituigdes umas das outras. Evidente- mente, quanto mais poderosa ¢ dominante for uma nacio em relacio 4 ‘outra, mais evidente 0 modo submisso com que uma cultura absorve elementos culturais de outra. Por exemplo, 0 modo como nés brasileiros vemos ¢ admiramos os filmes de Hollywood, que sio, em sua grande maioria, ensaios cinematognificos sobre aspectos da cultura americana, parece indicar que queremos emular 0 comportamento dos pop stars. Ou 0 modo como os povos indigenas adotaram tanto aspectos da cultura brasileira como o uso de roupas, as armas de fogo, ou 0 sal € o agticar, quando poderiam muito bem viver sem esses itens. © empréstimo desses itens culturais nao se deve a uma caréncia anteriormente sentida, mas pela forca ideolégica que tém por virem de uma cultura que se posiciona Isso nos leva a outro ponto que precisa ser esclarecido, Nao ha efetivamente culturas superiores ou inferiores, como se fora numa escala evolucionaria. Toda e cada cultura tém © seu proprio ¢ singular valor; toda cultura proporciona aos seus membros o sentido de ser ¢ estar no mundo. Mesmo nos momentos de grandes contradigoes crises, como, para usar um exemplo radical e dificil de ser compreendido, durante a fase nazista da cultura alema, 0 povo alemio via motivos para continuar fiel ao seu modo de ser. Ao final, queriam apenas se livrar de um mal que Ihes acometera © expurgar uma tendéncia malévola que estava dentro de sie que fora capitalizada de modo tao cruel € desumano por um lider carismvitico e insano. Ainda hoje, a entender os poetas ¢ filésofos alemies, eles buscam se expiar por aquele momento, sem abrogar sua auto-estima por serem alemaes. Destarte, as culturas so vivenciadas em coletividades que tém maior ‘ou menor poder de fogo, por assim dizer; isto €, maior ou menor capacidade de dominar outras coletividades, outros povos © nacoes, seja pela forca de armas, seja pelo sistema econdmico. E bastante comum que se confunda superioridade politico-militar ¢ econémica com superioridade cultural; cabe, entretanto, ao pensamento critico € cientifico nao permitir que essa confusio seja aceitivel e se transforme em algo com conseqiiéncias politicas. Por outro lado, as vezes uma cultura, Cujo povo que a sustenta ndo tem poder de fogo, chega a predominar em diversos aspectos sobre uma nag4o mais poderosa, que a domina. Esse foi o caso da cultura grega, da época clissica, sobre a cultura romana, cuja nag3o dominava os gregos. A cultura grega classica passou a cultura romana seu original modo de pensar, sua filosofia, a busca pelo sentido do homem e das coisas, sua estética e suas discussdes sobre ética. Outro exemplo é 0 caso da cultura judaica. Podemos dizer que a sobrevivéncia do povo judeu, apesar de todos os percalgos ao longo de mais de cinco mil anos, se deve no ao poder politico € militar de sua nago (que em 44_Awrrorovocia muitos periodos até deixou de funcionar), mas a forga religiosa integradora e a abertura filos6fica de sua cultura para a ciéncia. No mundo atual, a convivéncia positiva entre culturas se da sob a égide tanto de uma série de principios filos6ficos, de carter humanista, tal como delineados na Carta e em diversas resolugdes da Organizacao das Nagdes Unidas, quanto pelo pensamento cientifico, sobre o qual as culturas de todas as nagGes auténomas querem ter alguma forma de dominio, ou de utilizag&o soberana. E certo que os empréstimos culturais se fazem muito mais por influéncia econdmica do que verdadeiramente por convic¢ao cultural; é certo também que as culturas cada vez mais compartilham aspectos comuns, que vieram ultimamente do desenvolvimento politico, militar, econémico e cultural dos Estados Unidos e que cada vez mais se parecem umas com as outras. O mundo parece estar se tornando um s6, e muita gente virou arauto e propugnador desse processo, geralmente conhecido como globalizacao. Entretanto, a convivéncia proxima e imediata dos membros de cada cultura continua a exercer o poder maior de lealdade e identificacdo cultural entre os individuos. Assim, a auto-reprodugao das culturas provavelmente garantira um mundo diversificado de qualquer jeito, or outro lado, a convivéncia negativa entre culturas existiu no assado e continua istii i i : competicao entre Gees tons oe bs Sti rises herve Haveré ou nao uma tivalidade entre i ae ae ee certas ae i ee ° islamismo versus a que sustenta 0 cristianismo? : cultura ocidental-brasileira e as culturas indigenas? Esse tema tao candente e tao evitado Por antropdlogos sera di ae final deste livro, liscutido ao ulturas, por exemplo, Copyrighr® 2008 Méxcio Pereira Gomes ‘Todos os direitos desta edigio reservadis 2 Editors Contexto (dinars Pinsiey Leda) Fare de cape Insio Geaspt, Chrecas Kaepper Monesgrm de capa e diagramario: Gustavo §, Vilas Boas Pisgrnas det peigina 79 Pero Pauhs i Bevisio Lilian Aquino ‘Dados Intermacionais de CavalogagSo na Publicasao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Anrropologia :ciéncia do hamem : filosofia da cultura # Mércto Peteira Gomes. — Seo Paulo i Contexto, 2008, Pabliogralia. ISBN 978 &5 7244-383-8 1. Aatropnlogia 2. Antsopologis social Pexquis: anctopohigica L. Tula, 1-301 Indices para catilogo sistemicico: 1, Ancopologis 301 2, Amropologia : Sociologia 301 Enitora Conrexto Dietor editorial: Jaime Pinsky Rusa 10s, Joné Elias, $20 — Allo da Lapa 05083-0340 - Sio Paulo ~ se asx: (11) 3832 5838 s. contexm@ebacaconcerto.com be wewrreditorscontexto.com br Proibida a reprodugéo toral ou parcial. Os infrazores serdo processados a focras da lei ‘gs. =o

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