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YAZBEK, Maria Carmelita. Questão Social: Desigualdade, Pobreza e Vulnerabilidade.

In: IEE. Curso de Capacitação de Gestores Sociais. São Paulo: IEE, 2008.

QUESTÃO SOCIAL: DESIGUALDADE, POBREZA E VULNERABILIDADE


SOCIAL.
Maria Carmelita Yazbek – março 2008

Introdução

Parto do pressuposto, que uma análise da Assistência Social como área de


Política de Estado, coloca o desafio de concebê-la em seus fundamentos
históricos e em interação com o conjunto das políticas sociais e com as
características do Estado Social que as opera.
Estudar a Assistência Social a partir desta referência supõe desvelar suas
particulares relações com o campo da provisão social estatal, inscrevendo-a no
contexto mais amplo do desenvolvimento da Política Social no Estado
brasileiro, em seu movimento histórico e político.
Nesta perspectiva a análise da Política Social associa-se à busca de
elucidação da natureza e papel do Estado, tomado como instância que
expressa diferentes interesses da sociedade. Interesses que não são neutros
ou igualitários e que reproduzem desigual e contraditoriamente relações
sociais, na medida em que o Estado não pode ser autonomizado em relação à
sociedade e as políticas sociais são intervenções condicionadas pelo contexto
histórico em que emergem. É nesse sentido que o Estado é concebido como
uma relação de forças. Relação assimétrica e desigual que interfere tanto na
viabilização da acumulação, como na reprodução social das classes
subalternas. Assim sendo, objetivado em instituições, com suas políticas,
programas e projetos, o Estado apóia e organiza a reprodução das relações
sociais, assumindo o papel de regulador e fiador dessas relações.
Desse modo, as políticas sociais públicas só podem ser pensadas
politicamente, sempre referidas a relações sociais concretas e como parte das
respostas que o Estado oferece às expressões da “questão social”, situando-se
no confronto de interesses de grupos e classes sociais.

1
Estou colocando a “questão social” como referência para o desenvolvimento
das políticas sociais. "Questão que se reformula e se redefine, mas permanece
substantivamente a mesma por se tratar de uma questão estrutural que não se
resolve numa formação econômico social por natureza excludente” (Yazbek,
2001:33)
Abordar expressões da questão social brasileira nos anos recentes é enfrentar
uma temática bastante ampla e complexa, que supõe opções acerca de
aspectos a serem abordados. Assim sendo, esta análise vai privilegiar a
desigualdade, a pobreza e a vulnerabilidade social como algumas das
resultantes da questão social que permeiam a vida das classes subalternas em
nossa sociedade e com as quais nos defrontamos cotidianamente.
Esta aula abordará os seguintes aspectos:

1 - Concepção de Questão Social;


Sua gênese na sociedade capitalista;
2 - Relação entre Questão Social e Política Social;
3 - Problematização atual: há uma nova Questão Social ?
4 - Principais manifestações e expressões da Questão Social no capitalismo
globalizado:
- as transformações no trabalho (precarização/desestabilização/desemprego);
- as transformações na Política Social (a crise do W.S. e a refilantropização);
- a desigualdade, a pobreza (com suas múltiplas expressões), a
vulnerabilidade e os direitos sociais.

1 – Questão Social: Concepção e origem na sociedade capitalista

A questão social se expressa pelo conjunto de desigualdades sociais


engendradas pelas relações sociais constitutivas do capitalismo
contemporâneo. Sua gênese pode ser situada no século XIX quando os
trabalhadores reagem à exploração de seu trabalho resultante da Revolução
Industrial.

2
A expressão surge, na Europa Ocidental na terceira década do século XIX
(1830) para dar conta de um fenômeno que resultava dos primórdios da
industrialização: tratava-se do fenômeno do pauperismo.1
Como sabemos, no início da Revolução Industrial, especialmente na Inglaterra,
mas também na França vai ocorrer uma pauperização massiva desses
primeiros trabalhadores das concentrações industriais. Sem dúvida, o
empobrecimento desse primeiro proletariado, constituído por uma população
flutuante, miserável, cortada de seus vínculos rurais vai ser uma característica
imediata do iniciante processo de industrialização.
Como observa Bresciani (1982:25-37) sobre a Inglaterra de meados do século
XIX:
“As péssimas condições de moradia e a superpopulação são duas anotações
constantes sobre os bairros operários londrinos ... a instabilidade do mercado
de trabalho acentua a extrema exploração do trabalhador e força-o a residir no
centro da cidade, próximo aos lugares onde sua busca de emprego ocasional
se faz possível a cada manhã. Nessas áreas, a superpopulação acelera e
piora as condições sanitárias das moradias.”
Do ponto de vista histórico “a questão social vincula-se estreitamente à
questão da exploração do trabalho... à organização e mobilização da classe
trabalhadora na luta pela apropriação da riqueza social. A industrialização,
violenta e crescente, engendrou importantes núcleos de população não só
instável e em situação de pobreza , mas também miserável do ponto de vista
material e moral... dessa forma, vincula-se necessariamente ao aparecimento e
desenvolvimento da classe operária e seu ingresso no mundo da política.”
(Pastorini:2004:110)
Obviamente, esse primeiro proletariado vai aos poucos se organizando como
classe trabalhadora (em sindicatos e partidos proletários), como movimento
operário, com suas lutas, reivindicando e alcançando melhores condições de
trabalho e proteção social. Através de seu protagonismo e ação organizada, os
trabalhadores e suas famílias ascendem à esfera pública, colocando suas
reivindicações na agenda política. As desigualdades sociais não apenas são
reconhecidas, como reclamam a intervenção dos poderes políticos na

1
Castel assinala alguns autores como E. Burete e A.Villeneuve-Bargemont que a utilizam.

3
regulação pública das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora. A
questão social, portanto resulta da divisão da sociedade em classes e da
disputa pela riqueza socialmente gerada, cuja apropriação é extremamente
desigual no capitalismo. Supõe desse modo, a consciência da desigualdade e
a resistência à opressão por parte dos que vivem de seu trabalho.
Nesse contexto, são institucionalizados no âmbito da ação do Estado
mecanismos complementares ao mercado, configurando a emergência da
Política Social nas sociedades industrializadas, de democracia liberal.
Robert Castel vai afirmar que é a partir desse reconhecimento, que se
constituir a moderna Seguridade Social, obviamente, em longo processo, que
vai do predomínio do pensamento liberal (meados do século XIX, até a 3ª
década do século XX com a emergência das perspectivas keynesianas e social
democratas que propõem um Estado intervencionista no campo social e
econômico. (cf. Behring e Boschetti, 2006)
No século XX, a partir da crise econômica de 1929, com a quebra da bolsa de
New York, e seguindo as idéias de Keynes, que defendeu uma maior
intervenção do Estado na regulação das relações econômicas e sociais,
ampliam-se as políticas sociais. Efetivamente, com os impactos sociais da
crise econômica o governo norte americano, “buscando evitar que a fome e a
miséria deteriorassem definitivamente a sociedade” (Costa, 2006:56) inicia a
experiência histórica de um Estado intervencionista que vai efetivar um pacto
entre interesses do capital e dos trabalhadores: o chamado consenso pós-
guerra.
Nesse sentido as políticas keynesianas buscam gerar pleno emprego, criar
políticas e serviços sociais tendo em vista a criação de demanda e ampliação
do mercado de consumo.
Após a 2ª Guerra Mundial o Estado de Bem Estar Social consolida-se no
continente europeu. O Plano Beveridge (1942) na Inglaterra serviu de base
para o sistema de proteção social britânico e de vários países europeus. A
base desse sistema foi a noção de Seguridade Social entendida como um
conjunto de programas de proteção contra a doença, o desemprego, a morte
do provedor da família, a velhice, a dependência por algum tipo de deficiência,
os acidentes ou contingências. Antes, no final do século XIX (em 1883) Otto
Von Bismark criara na Alemanha o seguro social.

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O Estado de Bem Estar Social caracterizou-se de modo geral, pela
responsabilidade do Estado pelo bem estar de seus membros. Trata-se de
manter um padrão mínimo de vida para todos os cidadãos, como questão de
direito social, através de um conjunto de serviços provisionados pelo Estado,
em dinheiro ou em espécie.(Cf. Silva, 2004). Para Mishra esse Estado Social,
supõe alto e estável nível de emprego, serviços sociais universais e uma rede
de segurança de assistência social.
No caso brasileiro, podemos encontrar em 1923 com a Lei Eloi Chaves uma
legislação precursora de um sistema público de proteção social com as Caixas
de Aposentadorias e Pensões (CAPs). Mas, é na primeira metade dos anos de
1930, que a questão social se inscreve no pensamento dominante como
legítima, expressando o processo de “formação e desenvolvimento da classe
operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu
reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado”
(Iamamoto, 1995; 77 – 10 ed.) Durante essa década são criados os Institutos
de Aposentadorias e Pensões (IAPs) na lógica do seguro social.
Nesta mesma década situamos a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o
Salário Mínimo, a valorização da saúde do trabalhador e outras medidas de
cunho controlador e paternalista. Progressivamente, o Estado amplia sua
abordagem pública da questão, criando novos mecanismos de intervenção nas
relações sociais como legislações laborais, e outros esquemas de proteção
social como atividades educacionais e serviços sanitários, entre outros. Pela
via da Política Social e de seus benefícios o Estado busca,portanto, manter a
estabilidade, diminuindo desigualdades e garantindo direitos sociais.

No Brasil, nunca se alcançou a institucionalidade de um Estado de Bem Estar


Social, embora desde os anos 30, ao reconhecer a legitimidade da questão
social no âmbito das relações entre capital e trabalho o governo Vargas tenha
buscado enquadrá-la juridicamente com medidas de cunho social.
A Constituição de 1937 vai criar uma dualização entre a Política Previdenciária
(Seguro Social) para os trabalhadores formais, predominantemente os
trabalhadores da industria, que “são transformados em sujeitos coletivos pelo
sindicato e os informais que são enquadrados como pobres, dependentes das
instituições sociais, dissolvidos em atenções individualizadas e não

5
organizadas.” (Mestriner, 2001:105) Essa dualização entre o pobre e o cidadão
vai se constituir numa marca da política social brasileira.
Assim, se para a emergente classe operária brasileira, as ações no campo da
proteção social se redefinem como parte de um pacto entre as classes sociais,
para o trabalhador pobre, sem carteira assinada ou desempregado restam as
obras sociais e filantrópicas que mantêm-se responsáveis pela assistência e
segregação dos mais pobres, com atendimento fragmentado por segmentos
populacionais atendidos.
Não é objetivo deste texto retomar iniciativas históricas de enfrentamento à
pobreza na sociedade brasileira mas, é interessante observar que uma rápida
caracterização do percurso dessas ações, suas persistências e redefinições,
evidencia sempre concepções de pobreza que não constroem a figura do
cidadão. “Mas sim a figura do pobre: figura desenhada em negativo, pela sua
própria carência” (Telles, 1999:190)
Do ponto de vista estatal, a atenção para esses segmentos vai basear-se
numa lógica de benemerência, dependente de critérios de mérito e
caracterizada pela insuficiência e precariedade Moldando a cultura de que
“para os pobres qualquer coisa basta”. Dessa forma o Estado não apenas
incentiva a benemerência mas passa a ser responsável por ela, regulando-a
através do CNSS (criado em 1938) mantendo a atenção aos pobres sem a
definição de uma política não acompanhando os ganhos trabalhistas e
previdenciários, restritos a poucas categorias. (cf. Mestriner, 2001)
É também nesse contexto que emerge como profissão o Serviço Social
brasileiro marcado pelo projeto político da Igreja Católica expresso "pela
doutrina e pela ação social católica" que neste momento histórico prioriza a
Ação Social (intervenção direcionada para mudanças políticas e sociais sob a
ótica do ideário católico), em detrimento de ações de Assistência Social. 2

2
Ver a propósito Entrevista com Odila Cintra Ferreira. Revista Serviço Social e Sociedade nº 12, São
Paulo, Cortez, agosto de 1983.
Partilho com Netto (2001) a análise segundo a qual a profissionalização do Serviço Social não se explica
apenas como continuidade da filantropia ou da caridade (desenvolvidas desde a emergência da sociedade
burguesa) mas vincula-se à dinâmica da ordem monopólica."O caminho da profissionalização do
Serviço Social é, na verdade, o processo pelo qual seus agentes - ainda que desenvolvendo uma
autorepresentação e um discurso centrados na autonomia dos seus valores e da sua vontade - se
inserem em atividades interventivas cuja dinâmica, organização, recursos e objetivos são determinados
para além do seu controle." (Netto, 2001: 71)

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Ainda assim, a Assistência Social era considerada um avanço em relação às
práticas filantrópicas prevalecentes até então.
Em 1942 o governo brasileiro criou a Legião Brasileira de Assistência, primeira
grande instituição de Assistência Social do país, para atender às famílias dos
expedicionários brasileiros. Terminada a Guerra a LBA se volta para a
assistência à maternidade e à infância, iniciando a política de convênios com
instituições sociais no âmbito da filantropia e da benemerência. Caracterizada
por ações paternalistas e de prestação de auxílios emergenciais e paliativos à
miséria vai interferir junto aos segmentos mais pobres da sociedade
mobilizando a sociedade civil e o trabalho feminino. Essa modalidade de
intervenção está na raiz da relação simbiótica que a emergente Assistência
Social brasileira vai estabelecer com a Filantropia e com a benemerência (cf.
Mestriner, 2001)3. O caráter dessa relação nunca foi claro e a histórica
inexistência de fronteiras entre o público e o privado na constituição da
sociedade brasileira vai compor a tessitura básica dessa relação que
continuamente repõe tradições clientelistas e assistencialistas seculares.
Portanto, o que se observa é que historicamente a atenção à pobreza pela
Assistência Social pública se estrutura acoplada ao conjunto de iniciativas
benemerentes e filantrópicas da sociedade civil.
Apenas com a Constituição de 1988 são colocadas novas bases para o
Sistema de Proteção Social brasileiro com o reconhecimento de direitos sociais
das classes subalternizadas em nossa sociedade. Com a inserção na
Seguridade a Assistência Social assume o caráter de política pública de
Proteção Social4 articulada a outras políticas do campo social voltadas à
garantia de direitos e de condições dignas de vida. Sem dúvida, uma mudança
substantiva na concepção da assistência social, um avanço que permite sua
passagem do assistencialismo e de sua tradição de não política para o campo
da política pública.

3 - Para a autora “Assistência Social, Filantropia e Benemerência tem sido tratadas no Brasil como irmãs
siamesas, substitutas umas da outras” (Mestriner: 2001:14)
4
Por Proteção Social entendem-se as formas "às vezes mais, às vezes menos institucionalizadas que as
sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de
certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio, as privações.
Incluo neste conceito, também tanto as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais
(como a comida e o dinheiro), quanto os bens culturais (como os saberes), que permitirão a sobrevivência
e a integração, sob várias formas na vida social.Incluo , ainda, os princípios reguladores e as normas
que,com o intuito de proteção, fazem parte da vida das coletividades" (Di Giovanni, 1998:10)

7
Como política pública cabe à Assistência Social construir direitos por meio de
ações de prevenção e provimento de um conjunto de garantias ou seguranças
que cubram, reduzam ou previnam exclusões, riscos e vulnerabilidades sociais.

Para a implementação dessa mudança fundamental, a Assistência Social não


pode ser pensada isoladamente, mas na relação com outras políticas sociais e
em conformidade com seu marco legal no qual está garantida a
descentralização com a primazia do Estado, o comando único em cada esfera
governamental e a gestão compartilhada com a sociedade civil pelos
Conselhos, Conferências e Fóruns, em seu planejamento e controle.

Em outubro de 2004, atendendo ao cumprimento das deliberações da IV


Conferência Nacional de Assistência, realizada em Brasília em dezembro de
2003, o CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social aprovou, após amplo
debate coletivo, a Política Nacional de Assistência Social em vigor, que
apresenta o (re) desenho desta política, na perspectiva de implementação do
SUAS – Sistema Único de Assistência Social.

A Assistência Social, como política de Proteção Social, inserida na Seguridade


Social, avançou muitíssimo no país ao longo dos últimos anos, nos quais foram
e vem sendo, construídos mecanismos viabilizadores da construção de direitos
sociais da população usuária dessa Política, conjunto em que se destacam a
PNAS e o SUAS.
Este conjunto, sem dúvida, vem criando uma nova arquitetura institucional e
ético política para a Assistência Social brasileira. A partir dessa arquitetura e
das mediações que a tecem podemos efetivamente, realizar, na esfera pública,
direitos concernentes à Assistência Social.

2 - Relação entre Questão Social e Política Social

A Política Social é uma modalidade de intervenção do Estado no âmbito do


atendimento das necessidades sociais básicas dos cidadãos, respondendo a
interesses diversos, ou seja, a Política Social expressa relações, conflitos e

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contradições que resultam da desigualdade estrutural do capitalismo.
Interesses que não são neutros ou igualitários e que reproduzem desigual e
contraditoriamente relações sociais, na medida em que o Estado não pode ser
autonomizado em relação à sociedade e as políticas sociais são intervenções
condicionadas pelo contexto histórico em que emergem.
Portanto, as políticas sociais públicas só podem ser pensadas politicamente,
sempre referidas a relações sociais concretas e como parte das respostas que
o Estado oferece às expressões da “questão social”, situando-se no confronto
de interesses de grupos e classes sociais.
Assim, o papel do Estado só pode ser objeto de análise, se referido a uma
sociedade concreta e à dinâmica contraditória das relações entre as classes
sociais nessa sociedade. É nesse sentido que o Estado é concebido como uma
relação de forças, como uma arena de conflitos. Relação assimétrica e
desigual que interfere tanto na viabilização da acumulação, como na
reprodução social das classes subalternas. Na sociedade capitalista o Estado é
perpassado pelas contradições do sistema e assim sendo, objetivado em
instituições, com suas políticas, programas e projetos, apóia e organiza a
reprodução das relações sociais, assumindo o papel de regulador e fiador
dessas relações. (Cf. Yazbek: 2007)
Estudos sobre as políticas sociais, particularmente na periferia capitalista
(Vieira,2004; Behring, 1998; Behring e Boschetti, 2006) apontam que elas são
estruturalmente condicionadas pelas características políticas e econômicas do
Estado e de um modo geral, “as teorias explicativas sobre a política social não
dissociam em sua análise a forma como se constitui a sociedade capitalista e
os conflitos e contradições que decorrem do processo de acumulação, nem as
formas pelas quais as sociedades organizaram respostas para enfrentar as
questões geradas pelas desigualdades sociais, econômicas, culturais e
políticas.” (Chiachio: 2006:13)
As políticas sociais, portanto, constituem uma forma de intermediação nas
relações Estado/Sociedade. O escopo dessa interferência configura o
reconhecimento público do direito ao atendimento das necessidades sociais da
população que deixam a esfera da provisão privada e passam a ser
responsabilidade do Estado. Nesse sentido o enfrentamento da Questão

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Social na sociedade capitalista, com suas variações, tem sido impensável sem
a intermediação do Estado e de suas políticas:
“Há nele um espaço de condensação de forças sociais, conjunturalmente
mutável, que possibilita graus, níveis, pautas de autonomia em decorrência das
questões a enfrentar e do peso político dos setores sociais nele envolvidos”
(Sposati, 1988:53)
Para Fleury (1994) sob a égide do conceito de cidadania, as políticas sociais
tratam das ações governamentais, dos planos, programas, projetos e outras
medidas necessários ao reconhecimento, implementação, exercício e gozo dos
direitos sociais reconhecidos pela sociedade como incluídos na condição de
cidadania, gerando uma pauta de direitos e deveres, entre aqueles aos quais
se atribui a condição de cidadãos.
Dessa forma, a Política Social Pública permite aos cidadãos acessar recursos,
bens e serviços sociais necessários, sob múltiplos aspectos e dimensões da
vida: social, econômico, cultural, político, ambiental entre outros. É nesse
sentido que as políticas públicas devem estar voltadas para a realização de
direitos, necessidades e potencialidades dos cidadãos de um Estado.

3 - Problematização atual: há uma nova Questão Social ?

Nos anos 90, autores europeus, entre os quais estou destacando Robert
Castel5, apontam a existência de uma “nova Questão Social” como decorrência
das transformações que ocorrem no capitalismo contemporâneo, desde a
segunda metade dos anos 70, que trazem mudanças no trabalho e na
sociedade salarial. Para Castel a sociedade salarial é aquela sociedade na qual
a maior parte dos cidadãos tem sua inserção social relacionada ao lugar que
ocupam no mundo do trabalho, reconhecido e protegido. “... uma sociedade
salarial é uma sociedade fortemente hierarquizada. Não é uma sociedade de
igualdade, permanecem injustiças, permanece mesmo a exploração. É
também, uma sociedade conflituosa na qual os diferentes grupos sociais são

5
Cabe destacar também Pierre Rosanvalon in La Nouvelle question sociale. Paris, Seuil, 1995. Para esse
autor a nova questão social se expressa pelo crescimento do desemprego, pelo aparecimento de novas
formas de pobreza e pelo esgotamento do modelo de proteção social baseado no risco coletivo. Para
Rosanvallon o caminho é a busca de uma nova solidariedade e da individualização dos direitos sociais

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concorrentes, mas é uma sociedade na qual cada indivíduo desfruta de um
mínimo de garantias e de direitos” (Castel,2000:245)
Para o autor essa sociedade, caracterizada por proteções e seguridade social
está em crise e mudança como resultado de processos como a
internacionalização do mercado que se torna cada vez mais competitivo, a
mundialização da economia e os processos de flexibilização, terceirização e
fragmentação do processo produtivo e da organização do trabalho. Suas
conseqüências para os trabalhadores são dramáticas: a instabilidade no
emprego e a precarização e vulnerabilidade do trabalho e das organizações
dos trabalhadores. Nesse quadro, temos pessoas que o autor denomina de
sobrantes, pessoas sem lugar na sociedade, mas que “estão lá como inúteis,
inúteis ao mundo como se costumava falar dos vagabundos nas sociedades
pré-industriais, no sentido de que não encontram um lugar na sociedade, com
um mínimo de estabilidade.” (255)
Nesta conjuntura “a nova questão social parece ser o questionamento da
função integradora do trabalho na sociedade” (239)
Frente a esse contexto (europeu) em que os indivíduos estão cada vez mais
excluídos dos sistemas de proteção social o autor justifica mudanças na
intervenção do Estado e a prevalência de políticas de inserção focalizadas e
seletivas para as populações mais pobres (os invalidados pela conjuntura) em
detrimento de políticas de integração, universalizadas para todos os cidadãos.
O que se constata é que há um denominador comum na maior parte das
análises sobre a “nova questão social”: há uma crise no Estado de Bem Estar
Social (Welfare State); o “paradigma da exclusão” passou a prevalecer sobre o
da luta de classes e das desigualdades constitutivas do capitalismo; a nova
realidade é definida como pós-industrial, pós-trabalho, pós-moderna etc (Cf.
Pastorini, 2004)
O que temos de fato, é que efetivamente, a articulação: trabalho, direitos e
proteção social que configurou os padrões de regulação sócio-estatal do
Welfare State, cuja institucionalidade sequer alcançamos, passa por
mudanças, não sem resistências e enfrentamentos.
Apesar dessas mudanças não é pertinente afirmar que o Welfare State, na
maior parte tenha sido desmontado. O que se observa sob a influência do

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neoliberalismo, é a emergência de “políticas sociais de nova geração” que tem
como objetivo a equidade. (Draibe, 1996)

3.1 A produção brasileira


Uma análise da produção brasileira sobre a “Questão Social” evidencia
influências desse debate europeu e outras posições.
Assim, para Iamamoto a “análise da Questão Social é indissociável das
configurações assumidas pelo trabalho e encontra-se necessariamente situada
em uma arena de disputas entre projetos societários, informados por distintos
interesses de classe, acerca de concepções e propostas para a condução das
políticas econômicas e sociais.” (Iamamoto, 2004: 10).
Para Netto (2004:45) a “questão social é constitutiva do desenvolvimento do
capitalismo. Não se suprime a primeira, conservando-se o segundo”. É Netto
ainda que nos mostra que a expressão a partir da 2ª metade do século XX
desliza para o vocabulário do pensamento conservador (Comte, Durkheim e
Leão XIII com sua Rerum Novarum de 1891)
Pereira (2004:52) assume uma outra linha de problematização apontando que
no rastro das transformações societárias temos a “substituição de um perfil
histórico de proteção social, que tinha como pilares o pleno emprego, as
políticas sociais universais e a extensão de direitos sociais por um outro
caracterizado ironicamente pela plena ocupação com desemprego e
insegurança social crescentes” Aponta ainda que além do desemprego
estrutural outros problemas de dimensões planetárias estão ganhando terreno
como: a deterioração do meio ambiente, o acirramento do racismo e das lutas
étnicas, ameaças bélicas, o aprofundamento da desigualdade social, a
globalização da pobreza e o desmonte de direitos sociais.
Nesse quadro, afirma a autora: “por falta de forças sociais com efetivo poder
de pressão para fazer incorporar na agenda pública problemas sociais
ingentes, com vista ao seu decisivo enfrentamento, entendo que temos pela
frente não propriamente uma questão social explicíta, mas uma incômoda e
complicada “questão social” latente, cuja explicitação acaba por tornar-se o
principal desafio das forças sociais progressistas.”
Wanderley (2000) mostra que na América Latina, a compreensão atual da
questão social guarda traços de uma “questão social fundante” que permeou a

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estruturação e o desenvolvimento histórico de nosso continente. Essa questão
passa pelas dominações econômicas, culturais, políticas, sociais, culturais,
religiosas que marcaram nossa história lembrando os processos colonizadores,
a questão indígena, a situação dos negros, a questão rural, operária, da mulher
e o múltiplos mecanismos de exclusão social no Continente.
A tese que sustento é que a Questão Social apesar de suas novas
manifestações e indicadores, permanece estruturalmente a mesma por se
constituir em uma questão estruturante de relações sociais desiguais que
configuram o sistema capitalista.
Obviamente, nem todos “os problemas agudizados pela economia global (ou
não) e pela hegemonia do liberalismo de mercado” podem ser subsumidos pela
questão social capitalista, mas, grande parte deles “são produtos da mesma
contradição que gerou essa questão.”
Questão que, na contraditória conjuntura atual, com seus impactos
devastadores sobre o trabalho, assume novas configurações e expressões
entre as quais destacamos: 1 - as transformações das relações de trabalho; 2 –
transformações nos padrões de proteção social.

4 - Principais manifestações e expressões da Questão Social no


capitalismo globalizado:

4.1 - As transformações no trabalho.

Como sabemos, o sistema capitalista, nestas últimas décadas vem passando


por profundas transformações. Alteram-se seus padrões de produção e
acumulação. “As empresas industriais associam-se às instituições financeiras...
que passam a comandar o conjunto da acumulação... “ (Iamamoto:2007:108)
A produção se globaliza, com processos de flexibilização produtiva, avanços
técnológicos e informacionais, com a robótica, e, sobretudo nas formas de
organização das relações de trabalho e da economia Essas mudanças,
levaram à precarização e subalternização do trabalho à ordem do mercado, um
sem limites e sem fronteiras sociais.

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Efetivamente, as mudanças que vem ocorrendo no "mundo do trabalho"
trazem graves conseqüências para o tecido social em geral, configurando um
novo perfil para a questão social, no qual destacamos a precarização, a
desestabilização, a insegurança e a vulnerabilidade do trabalho e das
condições de vida dos trabalhadores que perdem suas proteções e enfrentam
problemas como o desemprego; a eliminação de postos de trabalho; o
crescimento do trabalho informal, uma característica histórica da economia
brasileira (e que hoje alcança mais da metade da força de trabalho do país); e
também o aumento das formas de trabalho precarizado, sobretudo feminino e
infantil.
Os processos de globalização em andamento com sua valorização do capital
financeiro, suas grandes corporações transnacionais, seus mercados, suas
mídias e suas estruturas mundiais de poder intensificam as desigualdades
sociais com suas múltiplas faces. São tempos em que crescem as massas
descartáveis, sobrantes e à margem dos direitos e dos sistemas de proteção
social em um mundo em que se generalizam salários precários e insegurança
social e onde há quase três bilhões de pessoas que vivem com dois doláres ou
menos por dia. Não há dúvidas que está em curso um ciclo de transformações
societárias em escala internacional e em diferentes esferas da vida:
econômica, política, cultural (e até subjetiva). Essas modificações são
expressão da crise que enfrenta o sistema capitalista internacional, na qual se
a questão do trabalho é questão central, há muitas outras destituições das
quais são vitimas as mulheres, os negros, as crianças e adolescentes, os
idosos, os migrantes, os camponeses, os povos indígenas, os homossexuais.
Dados recentíssimos da OIT (10/03/2008) mostram uma pequena melhoria nas
relações de trabalho. No mundo a participação de homens em condições
vulneráveis de trabalho baixou de 56.1% para 51.7%. Esses mesmos dados
revelam que a América Latina foi a única região do mundo em que cresceu a
participação de pessoas trabalhando em condições precárias entre 1997 e
2008. O Brasil fugiu à tendência.
De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos - Dieese entre 1998 e 2007 a participação média de
trabalhadores sem carteira assinada nas capitais regrediu de 38.9% para
35.1%.

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4. 2 - as transformações na Política Social (a crise do Estado de Bem
Estar Social e a refilantropização);
Com as mudanças no processo de acumulação que trazem desestabilização
da ordem do trabalho, e sua precarização e insegurança, o sistema de
proteções e garantias que se vincularam ao emprego inicia um processo de
alterações, assumindo novas características.
Para Castel, “a instabilidade do emprego vai substituir a estabilidade do
emprego como regime dominante da organização do trabalho... e este é, sem
dúvida o desafio mais grave que se apresenta hoje. Talvez mais grave que o
desemprego.” (Castel, 2000:249-250) Essa situação coloca o trabalho em
condição de grande vulnerabilidade, exatamente pela ruptura entre trabalho e
proteção.
Para o autor o aumento do desemprego, encontra-se acompanhado do
aumento da pobreza, que se amplia com trabalhadores excluídos do mercado
formal de trabalho.
Para alguns autores (como Mishra): trata-se de uma crise irreversível do
Estado de Bem Estar Social porque o mesmo supunha o pleno emprego, e
enfrentamos o fim do consenso keynesiano, alem de alterações demográficas,
mundialização crescente da economia e outras graves questões quanto ao
financiamento do Estado de Bem Estar Social que tende a ser responsabilizado
por “desequilíbrios econômicos (e também políticos) que vivem essas
sociedades, transformando dessa forma, os programas sociais em um dos
alvos principais para reduzir os gastos dos Estados.”(Pastorini, 2004: 43)
Neste contexto, alteram-se as experiências contemporâneas dos sistemas de
proteção social. O Estado, como instituição reguladora dessas relações passa
à defesa de alternativas privatistas, que envolvem a família, as organizações
sociais e a comunidade em geral. Recolocam-se em cena práticas filantrópicas
e de benemerência, ganhando relevância o nonprofit sector como expressão da
transferência à sociedade de respostas às seqüelas da questão social.
É bom lembrar também que a filantropia neste contexto se apresenta com
novas faces estratégicas e com um discurso atualizado na defesa da qualidade
dos bens e serviços oferecidos, parecendo ganhar atualidade uma perspectiva
"modernizadora", sobretudo na dimensão gestionária de um número crescente

15
de instituições do campo filantrópico. Os conceitos de amor ao próximo, de
benemerência e de assistencialismo, passam a fazer parte da tradição de uma
"antiga filantropia" que vai defrontar-se com a "moderna filantropia" solidária
do Terceiro Setor.
.A solidariedade social, como base deste Setor privado e não mercantil de
provisão social é reveladora do ideário que preside os atuais processos de
redefinição dos papéis do Estado e da Sociedade Civil na área do bem estar
social, apontando para a edificação de um sistema misto de proteção social.
O sistema misto traz consigo uma nova filosofia e uma requalificação das
intervenções do Terceiro Setor e de seus agentes no Bem Estar Social, que
historicamente caracterizou-se pela centralidade do Estado na tarefa de
assegurar o bem estar da sociedade. Estado cuja intervenção fundou-se na
perspectiva universalizadora de garantia de um mínimo vital para todos os
cidadãos. Estado que operacionalizou suas responsabilidades a partir do
reconhecimento das competências profissionais e do trabalho baseado no
saber técnico para a prestação de serviços sociais.
Sem dúvida, a perspectiva universalizadora, a profissionalidade e a
intervenção especializada como "modêlo de ação competente" se tornaram
componentes fundamentais das políticas de bem estar no Welfare
contemporâneo.
O sistema misto questiona estes componentes e valoriza a colaboração entre
solidariedade e profissionalidade, aspecto que "parecia irreconciliable com los
parámetros del Estado de Bienestar" abrindo "importantes perspectivas para la
articulación de lo público y lo privado" (Roca, 1992: 115)

4.3 Desigualdade, pobreza (com suas múltiplas expressões), e direitos


sociais.
Como vimos, a Questão Social circunscreve um terreno de disputas, pois diz
respeito à desigualdade econômica, política e social entre as classes na
sociedade capitalista, envolvendo a luta pelo usufruto de bens e serviços
socialmente construídos, por direitos sociais e pela cidadania. Sabemos que a
sociedade capitalista é estruturalmente desigual, mas sabemos também que a
expansão de políticas e serviço sociais expressam o reconhecimento da
cidadania dos trabalhadores e de seus direitos no contexto das relações sociais

16
nesta sociedade. Assim, a pobreza é abordada aqui como expressão direta das
relações vigentes na sociedade, localizando a questão no âmbito de relações
constitutivas de um padrão de desenvolvimento extremamente desigual, em
que convivem acumulação e miséria.
A pobreza brasileira é produto dessas relações que, em nossa sociedade, a
produzem e reproduzem, quer no plano sócio econômico, quer nos planos
político e cultural, constituindo múltiplos mecanismos que “fixam”,os pobres em
seu lugar na sociedade.
Abordar aqueles que socialmente são constituídos como pobres é penetrar
num universo de dimensões insuspeitadas. Universo marcado pela
subalternidade, pela revolta silenciosa, pela humilhação, pela fadiga, pela
crença na felicidade das gerações futuras, pela alienação, pela resistência e
pelas estratégias para melhor sobreviver, apesar de tudo. Embora a renda se
configure como elemento essencial para a identificação da pobreza, o acesso a
bens, recursos e serviços sociais ao lado de outros meios complementares de
sobrevivência precisa ser considerado para definir situações de pobreza. (cf.
Yazbek, 2007) É importante considerar que pobreza é uma categoria
multiimensional, e, portanto, não se expressa apenas pela carência de bens
materiais, mas é categoria política que se traduz pela carência de direitos, de
oportunidades, de informações, de possibilidades e de esperanças (Martins,
1991:15)
“Submersos numa ordem social que os desqualifica, marcados por clichês:
‘inadaptados’, ‘marginais’, ‘problematizados’, portadores de “altos riscos”, casos
sociais, alvo de pedagogias de reerguimento e promoção (Verdes-Leroux,
1986) os pobres representam a herança histórica da estruturação econômica,
política e social da sociedade brasileira” (Yazbek, 2007:22) A pobreza tem sido
parte constitutiva da história do Brasil, assim como, os sempre insuficientes
recursos e serviços voltados para seu enfrentamento. Nessa história, é sempre
necessário não esquecer o peso da “tradição oligárquica e autoritária, na qual
os direitos nunca foram reconhecidos como parâmetros no ordenamento
econômico e político da sociedade”. Estamos nos referindo a uma sociedade
desde sempre desigual e “dividida entre enclaves de ’modernidade’ e uma
maioria sem lugar”, uma sociedade de extremas desigualdades e assimetrias.
“Um país caracterizado por uma história regida por um privatismo selvagem e

17
predatório, que faz da vontade privada e da defesa de privilégios a medida de
todas as coisas, que recusa a alteridade e obstrui, por isso mesmo, a dimensão
ética da vida social, pela recusa dos fundamentos da responsabilidade pública
e da obrigação social” (Telles,1993: 2- 4).
É bom lembrar ainda, que a pobreza é uma face do descarte de mão de obra
barata, que faz parte da expansão capitalista. Expansão que cria uma
população sobrante, gente que se tornou não empregável, parcelas crescentes
de trabalhadores que não encontram um lugar reconhecido na sociedade, que
transitam à margem do trabalho e das formas de troca socialmente
reconhecidas (Telles, 1998). Expansão que cria o necessitado, o desamparado
e a tensão permanente da instabilidade no trabalho. Implica a disseminação do
desemprego de longa duração, do trabalho precário, instável e intermitente,
dos biscates e de outras modalidades de relacionamento da força de trabalho
com o capital, que em sua essência representam a questão social..
Sabemos que a pobreza, como situação de privação social potencializa
situações de vulnerabilidade social e expõe os que a vivenciam a riscos
cotidianos. Por vulnerabilidade entendemos “um somatório de situações de
precariedade, para além das precárias condições socioeconômicas (como
indicadores de renda e escolaridade ruins) presentes em certos setores
censitários. São considerados como elementos relevantes no entendimento da
privação social aspectos como a composição demográfica das famílias aí
residentes, a exposição à situação de riscos variados (como altas incidências
de certos agravos à saúde, gravidez precoce, exposição à morte violenta, etc)
precárias condições gerais de vida e outros indicadores”. (Centro de Estudos
da Metrópole, 2004:12)
A pobreza e as situações de grave miséria econômica trazem em seu bojo
situações de extrema vulnerabilidade social caracterizada pela vida em
condições adversas, esfacelando ou ainda impedindo laços de convivência
social e familiar, levando ao “abandono, ausência de cuidados e de bons
vínculos relacionais, devido à luta cotidiana estabelecida por milhares de
famílias para garantir a sobrevivência de seus membros”. (Guerra, 2006:58).
Nesse sentido, a vulnerabilidade é produzida socialmente e revela por suas
múltiplas expressões a questão social em um contexto sócio histórico. Ou seja,
os grupos vulneráveis se tornam vulneráveis pela ação da própria sociedade.

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Como afirma Oliveira (1995:09) uma definição econômica de vulnerabilidade
social é insuficiente e incompleta, mas deve ser a base material para seu
enquadramento mais amplo, pois nela, sem nenhuma dúvida, encontrem-se
representados todos os grupos vulneráveis da sociedade brasileira. É
“insuficiente e incompleta porque não especifica as condições pelas quais se
ingressa no campo dos vulneráveis” e nesse sentido coloca esperanças de
resolver ou atenuar a vulnerabilidade “no econômico, o qual certamente é
indispensável, mas não clarifica o processo pelo qual precisamente se constrói
esse amplo universal que é a vulnerabilidade “
Vulneráveis são pessoas ou grupos que por condições sociais, de classe,
culturais, étnicas, políticas, econômicas, educacionais e de saúde, distinguem-
se por suas precárias condições gerais de vida, no conjunto da sociedade
envolvente.
Nesse universo podemos entender que a vulnerabilidade implica em
susceptibilidade à exploração; restrição à liberdade; redução da autonomia e
da auto-determinação; redução de capacidades; fragilização de laços de
convivência; ruptura de vínculos e outras tantas situações que aumentam a
probabilidade de um resultado negativo na presença de risco.
A noção de risco ganha particular relevância no pensamento europeu, no
contexto de mundialização de economia que traz consigo a globalização do
risco societal “que se associa a um aumento da pobreza e das desigualdades
sociais... pela emergência ou amplificação de situações de risco social, através
de processos por vezes muito complexos de ruptura dos equilíbrios sociais à
escala local. O desemprego cíclico, os empregos precários e mal pagos, a
insegurança social, a informalização do mercado de trabalho, o trabalho infantil,
a sobreexploração das mulheres e dos idosos, as várias discriminações do
trabalho, as migrações forçadas de famílias à procura de ocupação, a
marginalização dos pobres e dos que sofrem incapacidade para trabalhar, a
criminalização da droga, da miséria e da revolta, o renascimento dos racismos
e da intolerância são apenas alguns dos sinais...do sistema econômico em que
vivemos, o capitalismo globalizado.” (Hespanha e Carapinheiro,2002:13)
É diante deste quadro que precisamos pensar a Política de Assistência Social
e suas possibilidades, possibilidades que emergem no país com a Constituição
de 1988 e sua Seguridade Social. Constituído na “contra mão” das

19
transformações que ocorrem na ordem econômica internacional mundializada o
sistema de Seguridade Social brasileiro incluiu entre as políticas protetivas a
Assistência Social que desde 1993, regulamentada como política social
pública, iniciou seu transito para o campo dos direitos, da universalização dos
acessos e da responsabilidade estatal.
Como política de Estado a Assistência Social passa a partir daí a ser um
espaço para a defesa e atenção dos interesses e necessidades sociais dos
segmentos mais empobrecidos da sociedade, configurando-se também, como
estratégia fundamental no combate à pobreza, à discriminação, às
vulnerabilidades e à subalternidade econômica, cultural e política em que vive
grande parte da população brasileira. Assim, cabem à Assistência Social ações
de prevenção e provimento de um conjunto de garantias ou seguranças que
cubram, reduzam ou previnam exclusões, riscos e vulnerabilidades sociais,
(Sposati, 1995) bem como atendam às necessidades emergentes ou
permanentes decorrentes de problemas pessoais ou sociais de seus usuários.
(Cf Yazbek, 2004)
Nesse caminho, a Assistência Social e os que a constroem como política de
direitos precisam “construir cotidianamente vínculos e compromissos estreitos
entre trabalhadores (da assistência social) e usuários no desenho dos
programas, serviços e ações de assistência social, de acordo com suas
necessidades individuais e coletivas.” (Raichelis, 2007¨:6)

Considerações finais

Analisar a questão social hoje permite que nos defrontemos com novas e
velhas questões, são os “novos pobres” e a pobreza estrutural de sempre. São
enfim situações de desigualdade, pobreza e vulnerabilidade, exclusão e
subalternidade com múltiplas faces, com as quais convivemos cotidianamente
como: o desemprego, a falta de trabalho, a violência doméstica da qual são
vitimas mulheres, crianças, adolescentes, idosos; a droga, a AIDS, a
discriminação por questões de gênero e etnia, a moradia na rua ou em
habitações precárias e insalubres, as crianças e adolescentes sem proteção,
os doentes mentais, as dificuldades dos portadores de deficiência, o

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envelhecimento sem recursos, a fome e a alimentação insuficiente e outras
tantas questões e temáticas relativas a uma forma de pertencimento social.
Colocar essa questão permite também refletir sobre os caminhos para
enfrentá-la, sem esquecer, e essa é uma nota de esperança nesse quadro, que
a reprodução ampliada da questão social é a reprodução ampliada das
contradições sociais, e que não há rupturas no cotidiano sem resistência, sem
enfrentamentos e que se a intervenção desta Política Social se efetiva e
circunscreve um terreno de disputa, é aí que está o desafio de construir as
mediações capazes,de articular a vida social das classes subalternas com o
mundo público dos direitos e da cidadania. O Suas é sem dúvida uma
mediação fundamental nesse processo.

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