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A dor no limite do corpo e

da psique: reflexões sobre


a clínica
. . .psicanalítica e
,;

ps1qu 1atr1ca
Julia Catani 1
Maria Lívia Tourinho Moretto 2

Resumo: Desde há muito, a psiquiatria e a psicanálise esforçam-se para diagnosticar,


compreender e tratar o sofrimento psíquico. A despeito dos grandes investimentos dos
profissionais, persistem as dificuldades de se lidar com a dor física e a dor psíquica
que, constitutivamente e em suas fronteiras, são muitas vezes indiscerníveis. Exemplos
dos investimentos para circunscrever e tratar o adoecimento podem ser localizados
na clinica com pacientes diagnosticados com transtornos somatoformes, ou seja, dis-
funções mentais que sugerem alteração fisiopatológica. Nesse artigo, são discutidas as
manifestações corporais e os modos, cada vez mais frequentes, pelos quais os sujeitos
impossibilitados de lidar com seu conflito psíquico valem-se do corpo para representar

1 Psicóloga. Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae. Membro do Laboratório de Teoria


Social Filosofia e Psicanálise (Latesfip). Doutoranda pelo Departamento de Psicologia
Clínica do Instituto de Psicologia da USP (IPUSP). Colaboradora no Ambulatório de
Transtornos Somatoformes do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas USP (IPq-
HCFMUSP).
2 Professora Doutora do Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP e presidente da
Comissão de Pesquisa da instituição. Orientadora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica do IPUSP. Psicanalista membro do Fórum do Campo Lacaniano de SP.
Editora-chefe da Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar. Editora Associada
e Membro da Comissão Executiva da Revista Psicologia USP. Membro do Grupo de
Trabalho "Dispositivos Clínicos em Saúde Mental" da Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP).

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A dor no limite do corpo e da psique: reflexões sobre a clínica psicanalítica e psiquiátrica

suas angústias. Almeja-se ainda refletir acerca do trabalho dos profissionais de saúde,
sobretudo os psiquiatras e os psicanalistas em instituições hospitalares e os limites de
cada uma dessas modalidades de tratamento.

Palavras-chave: Dor física. Dor psíquica. Psicanálise. Psiquiatria. Transtornos Soma-


toformes.

Há doenças piores que as doenças,


Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traZ; há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adefar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo (. ..)
Fernando Pessoa3

Os transtornos somatoformes e a questão da nomeação: novas ou ve-


lhas dores psíquicas?

O trabalho visa a discutir a presença de sintomas físicos em quadros psi-


quiátricos, a função destes na vida do paciente e suas consequências na clínica.
Para tal, o artigo se vale da categoria de transtornos somatoformes e/ ou sin-
tomas somáticos e transtornos relacionados, e a escolha por este diagnóstico
decorre da imprecisão objetiva do quadro. Ainda que existam critérios para a
confirmação desta categoria, segundo os sistemas psiquiátricos classificatórios
tais como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM)

3 A utilização de parte do poema que aqui nos serve de epígrafe foi localizada originalmente no
texto de Maria Helena Fernandes intitulado: A hipocondria do sonho e o silêncio dos órgãos:
o corpo na clínica psicanalítica. ln: AISENSTEIN, M.; FINE, A.; PRAGIER, G. (Org.).
Hipocondria. São Paulo: Escuta, 2002.

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e a Classificação Internacional de Doenças (CID), ela é a que mais indica o


aparecimento de aspectos psíquicos e da subjetividade na produção dos sin-
tomas. Deste modo, a reflexão proposta procura identificar o que acontece
com os sujeitos para que a sua dor psíquica tenha que ser transformada em
sintomas corporais.
Sabemos bem que a vida de todos nós, as artes e as ciências registram, em
múltiplas configurações, os fenômenos da dor. Sofrimentos físicos e psíquicos,
dores do corpo e da alma, social e individualmente provocadas e suportadas. Sua
compreensão e alívio, sem dúvida, ocupam parte do tempo e dos investimentos
humanos. Ao falar aqui da dor representada por transtornos, hoje chamados
somatoformes ou transtornos de sintomas somáticos, falamos de sofrimentos
cuja identificação e tratamento têm desafiado a medicina desde há muito e têm
se constituído também em objeto de atenção para a psicanálise, apresentando-
se sob diferentes nomes: doença cerebral primitiva, idiopática e não simpática,
psicastênico, histereolepsia histeria traumática, histeria, psicose histérica, perso-
nalidade histriônica, psiconeurose, psicogênico, reação conversiva, reação disso-
ciativa, personalidade instável, transtornos neuróticos, transtornos somatofor-
mes, sintomas somáticos e transtornos relacionados, entre outros. Nossa análise
ancora-se no trabalho desenvolvido no Instituto de Psiquiatria (IPq), mais es-
pecialmente no SOMA (Ambulatório de Transtornos Somatoformes), instância
criada para atender a um número significativo de pacientes que eram assistidos
no complexo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universida-
de de São Paulo, mas sem um diagnóstico preciso que justificasse os sintomas do
ponto de vista laboratorial (CATANI, 2014).
A proposta do serviço é oferecer aos pacientes encaminhados atendimento
tanto do ponto de vista psiquiátrico quanto psicanalítico, além de manter uma
preocupação constante em realizar um diagnóstico diferencial entre sintomas
neurológicos orgânicos ou sintomas funcionais. São também oferecidas terapias
em grupo e individual, arteterapia e terapia corporal. A escolha do modelo psi-
canalítico de assistência deu-se por uma afinidade dos profissionais que criaram
o SOMA em 2009 e, assim, o modelo permanece mesmo com a integração de
novos colaboradores. De acordo com a literatura, os pacientes com esse tipo de
sintoma, ao receberem um lugar de acolhimento onde possam falar a respeito de
suas angústias e serem acompanhados também do ponto de vista sintomatoló-
gico, tendem a apresentar melhoras notórias evitando, assim, gastos excessivos.
Isto porque quando eles adoecem, passam a buscar o serviço de saúde com uma
frequência elevada e muitas vezes realizam exames e consultas sem necessidade,
na tentativa de receberem um nome e um remédio que deem conta de identificar

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seu sofrimento. A consequência disto é que acabam onerando o sistema público


e oferecendo risco a si próprios por mostrarem-se dispostos a se submeterem
ao que lhes for ofertado (CATANI, 2015; MAi, 2004; MARTINEZ et al. 1997;
THOMASSENT et al., 2003).
Cabe explicar, ainda que sucintamente, pois não é o objetivo central do pre-
sente texto, o que é este tipo de diagnóstico segundo a psiquiatria. Os transtor-
nos somatoformes, de acordo com a quarta edição revisada do manual psiqui-
átrico mundialmente conhecido como DSM - Manual Diagnóstico e Estatísti-
co de Transtornos Mentais, elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana
(APA), caracterizam-se por queixas físicas não totalmente explicadas por uma
condição médica geral ou qualquer outro tipo de distúrbio psiquiátrico. Trata-
se de sintomas físicos que sugerem alterações fisiopatológicas embora elas não
ocorram, pois nas buscas para os diagnósticos de causas orgânicas, as manifes-
tações apresentadas não permitem tal conclusão. Nota-se ainda que os pacientes
muitas vezes recusam-se a admitir que os sintomas iniciaram-se após algum tipo
de evento traumático e que o transtorno é decorrente de disfunções psíquicas.
Estas descrições podem ser encontradas de modo mais detalhado no DSM-111,
DSM-111-R, DSM-IV, DSM-IV-R e na CID-10. Fazem parte deste tipo de no-
menclatura os diagnósticos: conversivo, somatização, somatoforme indiferen-
ciado, hipocondríaco, dismórfico corporal, doloroso, somatoforme sem outra
especificação (APA, 2000; CATANI, 2015).
No DSM-V (2013), algumas alterações foram feitas na expectativa de tor-
nar o diagnóstico de TS mais claro, pois até as edições anteriores, geralmente
o transtorno se dava a partir da exclusão de outras patologias o que, de acordo
com teóricos da área, tornava o diagnóstico impreciso, ou ainda eram produ-
zidas sobreposições de categorias que prejudicavam o entendimento dos pro-
fissionais e dos próprios pacientes. Assim, os responsáveis pela elaboração do
manual determinaram que os TS seriam denominados como Sintomas somáticos
e transtornos relacionados. Além da justificativa de que era uma patologia geradora
de insegurança para equipes de saúde mental, os membros filiados à APA afir-
maram que a nomenclatura anterior suscitava dificuldades nas estratégias de
tratamentos. Se antes os critérios de diagnóstico referiam-se à ausência de cau-
sa orgânica, no DSM-V o fundamental é identificar como o paciente lida com
o seu sintoma e a interferência deste em sua vida. Ou seja, agora é proposto
que os profissionais priorizem e investiguem a serviço do que está aquela alte-
ração. A partir disto, é possível supor que há, inclusive por parte dos autores
do manual, uma mudança de atitude para uma escolha mais humanizada em
que a prioridade deixa de ser o sintoma e passa a concentrar-se no próprio

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paciente e em seu bem-estar. Além de não existir mais uma busca exclusiva
e unilateral para saber a natureza dos sintomas, se o paciente os produz ou
se os sintomas são apenas agravados por sua condição psíquica (APA, 2013;
CATANI, 2015).

O ponto de vista psicanalítico e a indistinção entre dor fisica e dor psíquica

Do ponto de vista psicanalítico, não existe diferença entre dor fí-


sica e dor psíquica, ou mais exatamente, entre a emoção dolorosa
e a dor psíquica propriamente dita. A razão disso, acabamos de
sugerir, é que a dor é um fenômeno misto que surge no limite entre
corpo e psique (NASIO, 2008, p.13).

Talvez possamos, a propósito, referirmo-nos às distâncias que se instauram


entre a dor que se sente, a dor que se vê e a dor que se ouve, nas situações con-
temporâneas. Entre o que os sujeitos nos dizem sobre sua dor, nas consultas
médicas e nos atendimentos psicanalíticos e o modo como aprendemos a ver
e ouvir há elos que precisam ser constantemente revistos e há necessidade de
nos perguntarmos por que vemos e ouvimos como o fazemos. Do lugar da
psiquiatria ou do lugar da psicanálise, o espaço dos pontos de vista comporta ver e
ouvir diversamente. Estar aqui ou estar ali, nos territórios da psiquiatria ou da
psicanálise, impõe a diferença, sem dúvida. Mas impõe também a necessidade de
aproximações. O que uma perspectiva acrescenta à outra tem sido sistematica-
mente testemunhado e discutido a partir do nosso trabalho no SOMA. A ideia
de que a dor trazida pelos sujeitos diagnosticados com TS tenha sido a dor da
histeria ou de quadros menos neuróticos (em que quase ou não há simbolização)
remete-nos, justamente, à natureza da observação e do conhecimento gerado
sobre os fenômenos em tempos históricos diversos e sob a égide de saberes
também diferentes. Mas, mais do que isto, pensemos na trama tecida sobre a dor
quando temos que enfrentá-la para buscar seu alívio. O que se configura, entre
os pacientes do SOMA e entre os profissionais que ali atuam, exige em momen-
tos variados um deslocamento dos pontos de vista capaz de abrigar a percepção
do doente, do médico psiquiatra, do psicanalista, da sociedade na qual se insere
o indivíduo adoecido e que o vê como tal e das famílias que cuidam deles, mui-
tas vezes com altos custos pessoais para os parentes. Tentaremos mostrar aqui
como a multiplicidade das injunções e percepções que impregnam os sofrimen-
tos somatoformes os constroem e fortalecem como dores da atualidade.
No diagnóstico de TS, não são encontradas alterações orgânicas. A medicina, a
partir de seu conhecimento, realiza o diagnóstico por meio de um mapeamento do

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corpo e da doença. Apesar da ausência de medicações específicas para tratar dos


sintomas que caracterizam o transtorno somatoforme, é possível cuidar de algu-
mas sintomatologias colaterais fazendo uso de antidepressivos e ansiolíticos, fun-
damentalmente. Mesmo diante das melhoras promovidas com os medicamentos,
os sintomas insistem em se apresentar como tentativa de solucionar o mal-estar
experimentado pelo paciente. Em contrapartida, a incidência traz poucos registros
simbólicos, quando traz é apenas uma forma de tentar lidar com o excesso de
tensão que não vem sendo assimilada pelo psiquismo. A ausência de um tipo de
inscrição no psiquismo que permitiria entender com maior facilidade a serviço do
que está um determinado sintoma, por exemplo, dor, paralisação, somatização, etc.
indica, segundo a psicanálise, a existência de uma cisão entre o afeto e a experiência
traumática (SANTOS et al., 2014). Os sintomas componentes de um transtorno
somatoforme se impõem de um modo que escapa à objetivação da medicina mais
voltada para variáveis anatômicas e biológicas. Com isto, a psicanálise pode ter
mais êxito ao permitir que o paciente, além de poder manifestar sua dor, tenha
um espaço para subjetivar e encontrar elementos para circunscrever o mal-estar
(Ibid., 2014). Ou seja, ao invés de silenciar, pois nestes casos o resultado é pouco
satisfatório e o sintoma não desaparece, o analista convoca o paciente a falar o
que ele tiver vontade para que, a partir de seu discurso, seja possível encontrar o
fio condutor de seu mal-estar que, em um primeiro momento, parece perdido, e
o conflito investido sob a forma distorcida de um sintoma corporal. Freud (1938)
afirmou a necessidade de se reconhecer as interferências psíquicas no corpo so-
mático e ressaltou a importância em não separar mente e corpo, pois isto pouco
ajudaria a entender o sofrimento humano.
No caso de pacientes diagnosticados como TS, as pessoas chegam ao profis-
sional, geralmente, para dizer o que sentem e as repercussões que seus proble-
mas têm gerado. O médico escuta o relato para oferecer um nome para o mal-
-estar daquele paciente que está diante dele. Para isto, o profissional se vale dos
elementos coletados em entrevistas e do seu conhecimento. A nomeação desse
tipo de acometimento determinará, então, a doença, a evolução, o prognóstico
e a cura. Nos casos de pacientes acometidos por sintomas não explicáveis do
ponto de vista médico, a atitude adotada pelos mesmos caminha na direção de
acalmar os que sofrem, demonstrando que a ciência sabe como tratar do seu
desconforto e que é possível, num primeiro instante, encontrar um remédio
para eliminar tal sensação. Apesar disso, logo os profissionais se dão conta de
que aquela dor referida pelos pacientes não cessa e não se encontra exatamente
no corpo, ainda que os órgãos sejam instrumentos utilizados para exprimirem o
mal-estar (CATANI, 2014).

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O TS é uma forma diagnóstica e psiquiátrica encontrada pelos responsáveis


por manuais da APA e da OSM para sublinhar de modo consciente, por meio de
comportamentos, sinais, sintomas e sensações que há algo para além do conhe-
cido e do objetivável. Mas antes de chegar a esta conclusão e fazer o encaminha-
mento ao psiquiatra, os profissionais da saúde, por vezes, insistem em vários re-
cursos para encontrar a comprovação de algo orgânico, até reconhecerem que é
preciso um outro tipo de intervenção. De qualquer modo, a insistência na busca
orgânica diz respeito a diversos aspectos: ao tipo de formação que os profissio-
nais receberam, à dificuldade em determinar que se trata de um quadro funcional
e às frustrações experimentadas por cada um ao saber que os estudos e investi-
mentos para aqueles casos pouco ajudam. É necessário sublinhar que não apenas
os riscos podem aparecer ao paciente que enfrenta uma série de exames, pres-
crições e procedimentos, quanto o reflexo disso pode ser verificado na relação
médico-paciente. O vínculo torna-se cada vez mais frágil diante da ausência de
respostas esperadas e um dos possíveis reflexos é o médico desconfiar do relato
do paciente e ele, indignado, dirigir-se a outros locais para uma nova investigação
que, provavelmente, seguirá um caminho similar (PAULIN; OLIVEIRA, 2013).
A existência de um profissional em quem o paciente possa confiar e que sirva
como referência para os tratamentos e exames auxiliares é fundamental, inclusi-
ve é o que muitas vezes possibilita ao paciente aderir ao tratamento. Pois, como
se sabe hoje, o corpo e a mente são intensos objetos de investigação e de inter-
venção tecnológica. Nunca se teve tanto conhecimento, em padrões científicos,
acerca do homem quanto nos dias atuais. Assim, o domínio da neurologia, da
anatomia, da genética, do corpo em si faz com que se acredite que há um contro-
le absoluto (DELORENZO, 2003). Atrelada às questões de domínio e conheci-
mento, exige-se hoje cada vez mais uma transmissão e absorção de informações
em curtos espaços de tempo. O resultado faz com que os indivíduos submetam-
se frequentemente a diversas experiências e constatam-se diversas formas de
sofrimentos: depressão, toxicomania, transtornos alimentares, modalidades de
estresse, afecções psicossomáticas (FERRAZ, 2003).
A assistência proporcionada a esse público consiste em acompanhar os pa-
cientes de modo a compreender o que acontece com os mesmos, uma vez que os
seus sintomas são agravados ou surgem em decorrência de fatores psíquicos. De
início, muitos deles não concordam com essa condição e resistem a entender que
o seu adoecimento seja coisa de sua cabeça como eles mesmos referem. Acreditam
que admitir isso é o mesmo que dizer que estão loucos. Um dos trabalhos dos profis-
sionais é levar os pacientes a assimilarem o fato de que quando há uma ideia com
a qual eles não podem lidar, este afeto precisa ser descarregado e um dos modos

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de lidar com isto situa-se no corpo, sob a forma de um sintoma. Dizer que o que
ele tem é coisa da cabeça não é incorreto, mas na prática e para o tratamento surte
poucos efeitos. A pessoa nota que algo não está correto, tanto que percebe um
membro paralisado, perde a consciência, apresenta dores incessantes mesmo com
os remédios mais adequados etc. Vale lembrar, como diz Nasio (2008, p. 29) que
"nada na vida psíquica pode se perder, nada desaparece daquilo que se formou,
tudo é conservado[...] e pode reaparecer sob a forma de mal-estar". Mas, também
é compreensível que os médicos tenham investido anos de trabalho e dedicação
para tratar de forma a eliminar os sintomas. Sobretudo, tendo como base o tipo de
formação recebida e de acordo com a qual localizar a causa da patologia deve ser
conseguido a todo custo. Ao deparar-se com este tipo de adoecimento, em que o
fisico é apenas um modo de expressar que algo não está bem com aquele sujeito,
os recursos científicos e os conhecimentos adquiridos não parecem suficientes, o
que deixa os profissionais com sentimentos de impotência e de hostilidade. Quan-
do o profissional reconhece o limite e a impossibilidade de cuidar do doente e en-
caminha-o para um serviço especializado, o trabalho do psiquiatra e do psicanalista
também será complexo, mas se existir maior preparo para lidar com os sentimen-
tos que a pessoa transfere ao profissional e para manejá-los de forma a favorecer
o tratamento e a garantir o vínculo, isto fará grande diferença para a saúde daquele
que sofre e vem buscar ajuda.
Segundo Berlinck (1997), atualmente muito se discute a respeito da exclusão
do diagnóstico e do termo histeria nos manuais psiquiátricos e da atitude que
os médicos têm na clínica, pois em grande parte dos casos a atenção dos mé-
dicos concentra-se mais em prescrever medicações ou escrever no prontuário
o atendimento do que em escutar os pacientes e as suas queixas que vão muito
além dos seus sintomas. O entendimento da questão reside no fato de os pro-
fissionais, hoje, estarem menos preparados ao término do curso e no contato
com os pacientes para lidar com casos que não são objetos do ensino nas aulas
de anatomia, fisiologia, farmacologia ou outras disciplinas da formação médica.
O contato com pacientes somatoformes, assim como com os histéricos, exige
suportar a cena transferencial implicada, com seus intensos e contraditórios sen-
timentos de amor e ódio, e poder lidar melhor com o não saber.
No campo da medicina, pouco se fala de escuta médica, pois isto já está im-
plícito nas regras e funções dos profissionais, ainda que o seu objeto de estudo
seja a patologia. Com o avanço tecnológico, a psiquiatria utiliza-se do modelo
da neurociência na expectativa de que seja possível lidar com o comportamento
humano, o que engendra o risco de gerar um maior rigor técnico que se desin-
teresse pelo sofrimento humano e pelas causas psíquicas ali presentes. Ou seja,

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com os progressos e a tentativa de garantir objetividade, a psiquiatria pratica-


mente minimiza as referências históricas sem deixar, muitas vezes, espaço para a
consideração de acontecimentos traumáticos na vida do doente. A cura transfe-
rencial, ou simplesmente pela palavra, é invalidada como técnica terapêutica de
tal maneira que as pessoas recorrem aos riscos de procedimentos urgentes na
tentativa de cura. Tais fatos são observáveis também no público do ambulatório
de TS que, muitas vezes, chega de outras clínicas já tendo sido submetido a pro-
cedimentos diversos sem que, talvez, fossem necessários.
Em contrapartida, é preciso sublinhar, conforme dito anteriormente, a alte-
ração ocorrida na última edição do DSM. Ainda que a mudança possa parecer
banal ou supérflua em um primeiro momento ou a um leitor menos atento, do
ponto de vista psicanalítico as alterações descrevem o sofrimento de uma ma-
neira mais próxima do trabalho de um analista. O corpo serve como meio de se
comunicar com o mundo e de expressar sua subjetividade. Como a manifestação
é apresentada por meio de uma linguagem muito particular, é preciso oferecer
uma escuta para compreendê-lo e buscar perceber a relação que as pessoas esta-
belecem com a sua dor. Para a psicanálise, a apropriação do próprio corpo pelo
sujeito sempre implica em alguma dificuldade, o corpo nunca encontra elemen-
tos suficientes para representar a sua própria subjetividade e também transpor
em palavra a relação vivida com o outro (DUNKER, 2006).
Já do ponto de vista psiquiátrico, por se tratar de um tipo de diagnóstico em
que conteúdos psíquicos interferem na produção de sintomas, os estudos mos-
tram a importância de uma ação mais próxima do paciente para que possa existir
algum tipo de transformação no sintoma por ele apresentado. Como tentativa de
solucionar os problemas, os autores sugerem que os atendimentos de assistên-
cia psiquiátrica devam ocorrer com a mesma equipe em um curto intervalo de
tempo, pois deste modo os enfermos sentem confiança e encontram um lugar
onde podem falar de suas dores até serem capazes de acessar as suas tristezas e
angústias (OMALLEY et al., 1999).
No que tange ao SOMA, desde o início o serviço funcionou com o atendimen-
to dos residentes sob a supervisão de psiquiatras experientes. Por se tratar de um
estágio do programa de residência, os alunos, a cada seis meses, eram obrigados
a interromper os atendimentos para seguirem em sua especialização. Ao término,
quase sempre, observava-se uma regressão na condição clínica das pessoas ali as-
sistidas e os fenômenos dolorosos sofriam uma piora substancial nos quadros de
somatização e conversão. Ademais, as queixas quanto aos novos residentes que
assumiam os casos e ao serviço em geral eram recorrentes. A insatisfação pode
ser atribuída às situações traumáticas e de abandono vividas pelos sujeitos. As-

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A dor no limite do corpo e da psique: reflexões sobre a clínica psicanalítica e psiquiátrica

sim, a experiência dos alunos era pouco aproveitada e muito desgastante, pois eles
eram impelidos a conviver com a hostilidade excessiva dos enfermos e não passa-
vam tempo suficiente com eles para observarem um possível progresso, fruto do
trabalho. Além disso, o fato de os alunos recém-graduados atenderem a pessoas
muitas vezes não medicadas ou muito graves gera insegurança e faz com que eles
não confiem na palavra e não apostem nos afetos, sobretudo porque a formação
que tiveram quase sempre está na contramão do que é proposto no ambulatório,
mas não na contramão de uma psiquiatria clássica. Tendo em vista esses aspec-
tos, solicitou-se aos responsáveis pelo programa de residência uma alteração no
tempo de permanência no estágio. A duração de um ano é fundamental e garante,
hoje, maiores progressos aos tratamentos e ao aprendizado dos alunos. E a equipe,
como um todo, conseguiu identificar as carências e necessidades do serviço, assim
como potencializar as habilidades de cada aluno para a relação e a construção do
vínculo com os enfermos (CATANI, 2015).

A clínica psiquiátrica e psicanalítica e o sofrimento corporal

O trabalho mais próximo com os pacientes de TS é imprescindível, pois, de


maneira geral, eles apresentam dificuldade em desenvolver relações, falar de si
mesmos e de seus sentimentos, justamente porque ao longo de sua vida, prin-
cipalmente na infância, quase não receberam afeto (BARTORELLI et al., 2011;
GALUCCI et al., 2008; MARTINEZ et al., 1997; OMALLEY et al., 1999) Na
prática psiquiátrica, o tratamento é fundado na eliminação dos sintomas, pois se
pressupõe que estes são os responsáveis pela angústia. Para a psicanálise, ainda
que os sintomas estejam presentes, o analista não sabe a priori do sofrimento do
paciente, é preciso que o sujeito fale para implicar-se no que está acontecendo e
entender o seu adoecimento. O transtorno somatoforme é um diagnóstico que é
feito a partir de critérios objetivos, mas que necessariamente, em alguma medida,
precisa levar em consideração questões psíquicas que não são objetivas e que se
relacionam com causas inconscientes. No SOMA, muitas vezes, constata-se que
a pessoa desconhece em grande parte os elementos que estão implicados em seu
adoecer. Com a equipe que trata a situação não é muito diferente, uma vez que
mais do que outras patologias em que a origem é orgânica, no ambulatório a si-
tuação prioritariamente é psicológica e carregada de aspectos simbólicos. Diante
de tal desconhecimento, um dos recursos utilizados pelos profissionais é valer-se
de anseios, desejos e fantasias despertados no encontro com aquele doente na
tentativa de lidar com o que pode estar sendo vivido ali. Evidentemente que não
se trata sempre de realizar um processo analítico, mas cabe oferecer recursos e

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analisar os déficits e complicações que impedem que a pessoa elabore e transpo-


nha em palavras o que é experimentado mentalmente (CATANI, 2015).
Freud (1895) traz a ideia de que a dor é uma condição estruturante para o su-
jeito, de que existe um nível de dor que é experimentado por cada pessoa desde o
nascimento e que permite identificar quando algo não vai bem e precisa ser cor-
rigido. É o caso de um bebê com fome que chora para obter alimento e eliminar
aquele desconforto. A dor sinaliza os possíveis perigos existentes para aquele or-
ganismo. No entanto, sabemos que existem pessoas que não tiveram condições de
serem cuidadas nos momentos de desconforto ou que viveram situações bastante
traumáticas desde muito cedo e que a forma de comunicarem-se é sinalizando cor-
poralmente que algo não está bem, pois ainda não foram capazes de ultrapassar,
por assim dizer, aquela etapa inicial. Com o apoio das explicações freudianas, é
possível supor que esse parece ser também o modo como os pacientes com trans-
tornos somatoformes vivem a sua realidade, a experiência de desamparo insiste
em se apresentar diante dos conflitos, pois é a mais familiar e a que pede, a todo
momento, uma inscrição e uma forma de transpor este instante, de criar uma no-
meação para aquele desconforto e mal-estar (SIMONETTI, 2015).
É preciso reconhecer que existem vários corpos presentes num paciente e por
isso muitas leituras e entendimentos são necessários. Há que se reconhecer: o cor-
po biológico, o corpo filosófico, o corpo histórico, o corpo antropológico, o corpo
estético, o corpo religioso e ainda o corpo psicanalítico, que permitirão o desen-
volvimento teórico e clínico para a escuta e o tratamento analítico (FERNAN-
DES, 2002). Faz-se imprescindível, ante aquele sujeito, considerar cada um desses
elementos, pois não é porque os sintomas somatoformes ou somáticos se fazem
evidentes que é possível ignorar os elementos que compõem a história daquele
sujeito.
A clínica atual exige dos analistas que eles testemunhem e tratem de diversas
queixas envolvendo diretamente o corpo: depressão, quadros psicossomáticos,
anorexia e bulimia, somatizações de um modo geral, adicções, psicoses entre
outros. Daí a necessidade da presença forte do testemunho e da observação do
analista, pois, por vezes, neste tipo de quadros faltam palavras, mas sobram apre-
sentações, cenas que precisam ser partilhadas para possibilitar a diminuição da
angústia, lembranças que para aqueles sujeitos só são evocadas com a utilização
do próprio corpo e num momento muito tardio a experiência de desprazer. A
descrição deste funcionamento é comum em pessoas diagnosticadas por trans-
tornos somatoformes. Isto é, o sintoma e o corpo são palco de escoamento de
dores psíquicas, sem que muitas vezes o sujeito seja capaz de entender ou rela-
cionar aquela manifestação a algum conflito. O mal-estar está presente, mas o su-

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A dor no limite do corpo e da psique: reflexões sobre a clínica psicanalítica e psiquiátrica

jeito não é capaz de relacioná-lo a nenhuma história e desconforto. O resultado é


que muitos resistem aos tratamentos que lhes são oferecidos. Assim, o trabalho
do analista envolve um escuta do corpo, do discurso, da alteridade, dos fantas-
mas que compõem ou são trazidos à cena analítica. Ou seja, o corpo recebe o es-
tatuto de zonas erógenas, pois é investido libidinalmente em sua totalidade desde
o nascimento pelas figuras parentais (ÁVILA, 2004; FERNANDES, 2002).
No entanto, já se mencionou, nos transtornos somatoformes o histórico de
vida é permeado por maus tratos, abandono e violência física ou psicológica,
além de negligências. Conforme indica Nasio (2008, p. 11): ''A prática da psica-
nálise nos ensina que uma dor intensa sempre nasce de um transtorno do eu,
mesmo momentâneo; e que uma vez ancorada no inconsciente, ela reaparecerá,
transfigurada em acontecimentos penosos e inexplicados da vida cotidiana". Na
maioria dos casos, ao menos dos que fazem acompanhamento no serviço do
SOMA, o investimento corporal proporcionado a estas pessoas na infância foi
pequeno ou quase inexistente, não houve uma figura que fizesse este tipo de
função. O que se espera é que o bebê, em seus primeiros anos de vida, tenha uma
relação com o mundo permeada por sensações corporais e, ao experimentar al-
gum tipo de desprazer, ele chore e manifeste insatisfação e que a mãe ou a figura
parental responda ao apelo de modo a apaziguar o incômodo. O movimento só
é possível se a pessoa está conectada e emocionalmente envolvida com aquele
bebê para escutar e interpretar a demanda que ele solicita, oferecendo a partir de
então nomes e condições para que o recém-nascido aos poucos possa assimilar
e reconhecer a origem de seu mal estar (ÁVILA, 2004; FERNANDES, 2002).
Ao comparar tais observações com as situações vividas pelos pacientes do
SOMA, tudo indica que a disponibilidade afetiva dos adultos foi ínfima na vida
deles e parece não ter produzido registros suficientes para que a pessoa tivesse
condições de entender o mundo circundante, construir laços afetivos. Assim, a
urgência e a dor psíquica se inscrevem no corpo de modo difuso ou por meio de
sintomas que apelam por um tipo de escuta e demanda que ela mesma desconhe-
ce. O que se promove são peregrinações e tentativas feitas por ela para nomear
o sofrimento não correspondente ao nome que por vezes o médico é capaz de
localizar em seus manuais ou ainda, sem gerar o resultado que o próprio paciente
espera, o alívio do desprazer. É justamente por tal motivo que o trabalho analítico
pode receber espaço e importância, uma vez que ele poderá oferecer ao paciente
condição de nomeação e de constituição de um corpo libidinizado, motor da cura
analítica. A libidinização na terapia ocorrerá a partir do trabalho e da possibilidade
oferecida a estes pacientes para encontrarem um lugar para expressar, de modo
verbal e metafórico, o que até então era representado apenas corporalmente pela

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Julia Catani; Maria Lívia Tourinho Moretto

falta de inscrição e da linguagem. Caberá, com essas pessoas nas quais o corpo re-
cebe uma conotação maior para evidenciar as suas dores subjetivas, o trabalho de
escuta, observação e tradução do que se passa na sessão (ÁVILA, 2004).
No caso de pessoas identificadas sob o nome de transtornos somatoformes ou
sintomas somáticos, trata-se de poder nomear e descrever o processo vivido pela
dupla de analista e analisando, transpor em palavras o sofrimento, o sentimento
e o mal-estar experimentados. É um trabalho árduo e lento, pois na maioria das
vezes trata-se de um território totalmente desconhecido e os recursos dos quais
aquela pessoa dispõe são pequenos, tendo apenas a descarga da tensão para evitar
o desprazer. Neste sentido, conforme afirma Ávila (2004), o corpo do analista é
palco de inúmeras ressonâncias e deve ser utilizado para o tratamento, isto é, o que
não pode ser vivido pelo paciente, não raras vezes se reflete no corpo do terapeuta,
por meio de sonos, dores, cansaço, excitação, tensão, fome, angústia, entre outros
exemplos. Portanto, a participação do analista nos atendimentos opera-se como
fundamental e, se este recurso não for incluído, permanecerá a impossibilidade de
o paciente de entrar em contato com os elementos traumáticos de sua história e a
inviabilidade de ressignificar tais circunstâncias (ÁVILA, 2004).
O texto de Casetto (2004) traz uma importante contribuição ao sublinhar
Groddeck e Spitz como personagens fundamentais no pensamento psicossomá-
tico. Groddeck foi um dos pioneiros na associação das relações entre doença e
conteúdos reprimidos, além de ter sido perspicaz ao valer-se da transferência para
cuidar relação médico e paciente. Spitz utiliza o termo hospitalismo para propor
que as crianças, ao serem internadas nos anos 50 em instituições e manterem-se
afastadas de suas mães, adoeciam não exatamente por agentes patológicos, mas
sim pela ausência da genitora, portanto, por uma carência afetiva. De acordo
com Casetto (2004), a psicossomática hoje configura-se como um modelo teóri-
co-prático que oferece a possibilidade de uma introdução dos afetos e um privi-
légio dos vínculos como proteção para o adoecimento. A introdução dos afetos,
segundo o autor, não deveria restringir-se apenas aos psicólogos, psicanalistas e
psiquiatras, mas alcançar todos os profissionais da saúde. Sob esta ótica, segun-
do a qual os afetos e a subjetividade não devem ser dissociados do mal-estar e
do sofrimento do paciente, assim como outros autores (ÁVILA, 2007; BER-
LINCI<., 1999; FERNANDES, 2002; NASIO, 2008; 2010, SIMONETTI, 2015;
VOLICH, 2010), Casetto (2004) insiste que a dor não é dissociável da mente e
da percepção, mesmo quando existem lesões reais. Há sempre uma experiência
particular que deve ser investigada e compreendida, inclusive para dimensionar
o impacto dos sintomas e das dores na vida do paciente e as formas com que ele
vive o processo. No caso, buscar situações pregressas auxilia na compreensão do

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A dor no limite do corpo e da psique: reflexões sobre a clínica psicanalítica e psiquiátrica

psiquismo e na proposta de novos tratamentos. As proposições feitas pelo autor


podem ser transpostas para o trabalho realizado no SOMA, local em que os
atendimentos funcionam sob a ótica psicanalítica. Sendo um lugar de formação
profissional, não se pretende que ali os residentes adotem o modelo teórico em
sua prática. Espera-se apenas que os alunos adquiram condições de pensar no
cuidado daquele que adoece e na disponibilidade em ouvir a história dos pacien-
tes, construir um espaço de trabalho onde a escuta e os afetos possam estar pre-
sentes e serem acolhidos, evitando hospitalismos, atitudes assépticas, internações e
procedimentos desnecessários. Ainda que a população atendida no SOMA seja
de adultos, observam-se incansáveis buscas dos pacientes por profissionais que
lhes ofereçam atenção e respaldo para dores e angústias com relação às quais as
medicações não são suficientes.
A sensação de desamparo é experimentada por qualquer pessoa, pois como
afirma Freud (1926), ela estaria relacionada à incapacidade do bebê, ao nascer,
de realizar as condições necessárias à sua sobrevivência. A criança logo quando
nasce não possui aparato e maturidade suficiente para lidar com as adversidades
do meio, ela precisa sem dúvida da presença de um adulto para garantir as con-
dições necessárias para que ela sobreviva e se desenvolva para que, com o passar
do tempo, tenha possibilidade de lidar por si só e cuidar do que lhe for necessá-
rio. De acordo com a psicanálise, o desamparo não se associa apenas à falta de
cuidado, alimentação ou de higienização de um bebê. Trata-se de uma condição
da existência humana que se relaciona com a precariedade motora, afetiva, sexual
e da linguagem (SIMONETTI, 2015). Além disso, Freud postula, ainda neste
texto, que o bebê experimenta a ausência de sua mãe nos primeiros anos de vida
como algo definitivo e isso não é vivido apenas por sentimento de angústia, mas
de dor ante a perda do objeto. Este processo se repetirá por várias vezes até que
o bebê perceba que o desaparecimento da genitora não é aniquilante e que ela
continua a existir ainda que ausente. No entanto, como aponta Delouya (2002),
se esse processo de afastamento é experimentado pelo recém-nascido como algo
muito disruptivo e traumático, isso produzirá marcas e deficiências na função
psíquica e, consequentemente, afetiva que se prolongarão por boa parte na vida
daquele sujeito.
Para Volich (2010), os sintomas corporais remetem às experiências mais pri-
mitivas do sujeito, inclusive em casos nos quais não existem lesões orgânicas,
tal como o transtorno somatoforme. Segundo Nasio (2008, p. 30): "Todo afeto
doloroso é a revivescência de uma antiga dor traumática". Ou ainda, um pouco
adiante em seu texto ele afirma (p. 34): "[...] a dor inconsciente é uma aptidão, a
aptidão do eu a rememorar, de forma diferente de uma lembrança consciente,

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Julia Catani; Maria Lívia Tourinho Moretto

um antigo trauma doloroso: a dor inconsciente é o nome que damos à memória


inconsciente da dor". A dor corporal é o que equivaleria a uma dor psíquica que
se torna tão insuportável para a pessoa de tal modo que é preciso receber algum
tipo de solução. Uma das formas encontradas é transformar essa dor em sinto-
mas e neste sentido não é possível fazer uma separação entre corpo e mente.
Um paciente com sintomas somatoformes no hospital reencontra o desamparo
sob diversas facetas, uma vez que lida com as incertezas da vida e de seu transtorno
que, neste caso, podem estar representadas na linguagem, no amor, no sofrimento
e no corpo do paciente. Os adoecidos por transtornos somatoformes buscam o
hospital para se cuidarem e lidarem com as adversidades psíquicas e físicas que
experimentam, mas procuram também este ambiente por ser um local que, em
alguma medida, remete a aspectos familiares, ou seja, onde o desamparo pode ser
revivido. Trata-se de um ambiente onde, para além dos cuidados recebidos, é pos-
sível reviver alguns sofrimentos e onde, segundo a psicanálise, contemplam algo da
ordem da satisfação, do gozo, há prazer e desprazer juntos (BERLINCK, 1999).
Ao se apresentarem no hospital, as pessoas ocupam-se do adoecimento, do
desamparo, do sofrimento advindo de seus sintomas. Cabe lembrar, como assinala
Moretto et al. (2014), que o lugar do psicanalista não precisa e não deve restrin-
gir-se somente à atenção e ao cuidado ao paciente, mas também deve contemplar
uma atuação institucional. Com o tipo de trabalho que os profissionais do SOMA
desenvolvem, busca-se identificar os motivos pelos quais sofre aquele sujeito que
peregrina pelo hospital passando por diversas clínicas em busca de algo que deve
ser escutado caso a caso. No entanto, a atuação não deve limitar-se apenas ao am-
bulatório, mas deve-se realizar uma interlocução entre os profissionais das clínicas
nas quais esse paciente é atendido, pois especificamente neste tipo de transtorno,
o somatoforme, quanto menor for o número de especialistas e de serviços pelos
quais passe, mais frutífero e menos oneroso será o trabalho dos profissionais, in-
clusive para a saúde do paciente. Na vertente institucional, sobretudo num hospital
escola, onde o SOMA está inserido, ensinar aos alunos que a fala do paciente é
importante e a ela deve ser dada a devida atenção é imprescindível. Para o futuro
profissional dos residentes, esse aprendizado é vital no tratamento e na clínica.
Cabe lembrar que clinicar diz respeito a inclinar-se na direção de quem sofre. Isto
pode e deve contemplar muito mais do que exames e prescrições medicamentosas,
mais ainda com os pacientes do SOMA, com quem as atitudes rigorosamente ob-
jetivas costumam surtir pouco efeito (SIMONETTI, 2015).
De acordo com Smaira et al. (2003), muitos dos pacientes que realizam trata-
mento, em geral sofrem de transtornos psiquiátricos ou já apresentaram algum
tipo de mal-estar psicológico (o índice varia entre 30% a 50%). No Brasil, no

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A dor no limite do corpo e da psique: reflexões sobre a clínica psicanalítica e psiquiátrica

entanto, somente de 1% a 12% são encaminhados para avaliação psicológica ou


psiquiátrica, fato que prejudica o diagnóstico e tratamento dos casos atendidos,
inclusive no que se refere à condição médica. A participação de um analista,
quando convocada, costuma contribuir e apaziguar o mal-estar vivido por aque-
les que se sentem impotentes diante deste sofrimento. O trabalho desenvolvido
em parceria entre diversos profissionais que assistem, de algum modo, ao pa-
ciente produz consequências para a equipe e para o doente, mas também para a
própria instituição. A pluralidade de especialistas tem como objetivo estabelecer
estratégias e realizar intervenções para diminuir o sofrimento provocado pelos
sintomas, promover espaços e atendimentos individuais e/ ou em grupo, de for-
ma que o doente possa partilhar a sua percepção do processo de adoecimento.
Considera-se também fundamental aos que assistem a um público similar ao do
SOMA criar situações nas quais os integrantes da equipe consigam trocar experi-
ências e discutir alguma necessidade, inclusive para que a decisão quanto às con-
dutas com os pacientes possam ser tomadas em conjunto, permitindo uma visão
integral do paciente e uma coesão quanto ao desenvolvimento do tratamento e
do prognóstico que geralmente não ocorre com tal público (PINHO, 2006).
Na clínica de Transtornos Somatoformes faz-se necessário analisar, refletir, co-
locar-se no lugar do outro, compreender o sofrimento, de modo a poder tolerar e
acolher a dificuldade e a angústia de cada um dos envolvidos. Ao que tudo indica, o
paciente quer ser ouvido, desejando que sua história e seu sofrimento, seja ele fisico
ou psíquico, possam ser respeitados. Vale ressaltar também que o intuito não é criar
uma condição de escuta e de trabalho com estes pacientes em que os aspectos orgâ-
nicos e patológicos fiquem excluídos, pelo contrário, pois isto também seria reprodu-
zir a postura inadequada. Trata-se, sim, de poder estar atento às questões biológicas
e disfuncionais que podem estar associadas aos transtornos somatoformes e aos
quadros de sintomas somáticos, mas inclusive, conforme aponta Simonetti (2015),
poder fazer convergir às questões psíquicas fundamentais, principalmente para este
grupo. Neste sentido, Nasio (2008, p. 9) ponderou: "Sabemos da importância, para
um clínico - médico ou psicanalista -, de escutar não só a dor corporal do paciente,
mas também as perturbações psicológicas por ela desencadeada".

Pain on the limits of body and psyche: reflections on the psychoanaly-


tical and psychiatric clinic

Abstract: For a long time Psychiatry and Psychoanalysis have tried to diagnose, unders-
tand and treat mental suffering. Despite huge professional investments, difficulties con-
tinue in dealing with the physical as well as mental pain which are often undistinguished

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Julia Catani; Maria Lívia Tourinho Moretto

either in relation to their limits or their constitutions. Examples of investments to limit


and treat sickening can be found in the clinic with patients that suggest physiopatholo-
gical alterations. This article discusses the body manifestations and the ways (more and
more frequent nowadays) in which the subjects use the body to represent their anguish,
when feeling incapable of dealing with the psychic conflict. The aim is also to reflect on
the work of health professionals, specially psychiatrists and psychoanalysts working in
hospitals, and the limits of each one of these modes of treatment.

Key-words: Mental Pain. Physical Pain. Psychiatry. Psychoanalysis. Somatoform disorders.

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