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A BRUXARIA EUROPEIA Adriana Dantas de Mariz * A caca as bruxas ocorrida na Europa — no periodo que se estende entre 1540 e 1750, aproximadamente — criou simbolicamente uma figu- ra de mulher que enfeixa o essencial dos medos presentes na sociedade, fazendo dela uma bruxa, um perigo a ser punido e extirpado do corpo social em nome da ordem, da moral e dos bons costumes. Para isso, contou com forte aparato juridico e teolégico, que the garantiu a necess4- ria legitimidade. Muito se tem escrito a respeito da caga as bruxas européia. Estudiosos das mais diversas areas vém dedicando-se ao estudo do fendmeno, cuja complexidade desafia as légicas e faz surgir as mais diferentes hipdteses e abordagens, na tentativa de entendé-lo e de explica-lo. Todavia, até hoje nio se chegou a uma conclusio ou a um consenso sobre se eram as bruxas culpadas ou nao dos delitos de que eram acusadas, julgadas e, em grande nimero, queimadas nas fogueiras inquisitoriais. A maior dificul- dade reside no fato de que as eventuais provas dos “crimes” eram quase sempre inconsistentes e tendenciosas. A evidéncia legal dos crimes de bruxaria baseava-se nos depoimentos daqueles que os denunciavam — movidos freqiientemente por interesses escusos — e nas confissées dos acusados, tomadas, de modo geral, sob longas e cruéis sess6es de tortura. A mais leve disputa entre vizinhos, ou entre marido e mulher, 0 surgimento de alguma doenca, desventura ou catdstrofe inexplicaveis, que porventura se abatessem sobre esses ou sobre a comunidade eram suficientes para levantar a suspeita de bruxaria e a conseqiiente acusagao de bruxa. § minha intengo analisar a figura da bruxa-mulher enquanto constru- ¢4o simbélica, enquanto narrativa. Nao pretendo, aqui, descobrir ou ques- * Adriana Dantas de Mariz é mestre em Antropologia pela Universidade de Brasilia. 61 Adriana Dantas de Mariz tionar a veracidade dos fatos e dos crimes atribufdos as bruxas, nem tratar dos casos em que as vitimas dos processos de bruxaria eram homens, criancas ou judeus, ainda que esses uiltimos também tenham sido forte- mente perseguidos pelos tribunais da Inquisi¢ao. Limitar-me-ei, neste arti- go, ao estudo das mulheres-bruxas, vistas como libidinosas e antropofagi- cas, mas também como portadoras de um perigoso saber. Interessa-me, portanto, descobrir quem eram as bruxas, que tipo de ameacas sugerem e de que modo catalisaram um medo coletivo do outro. Apesar de 0 termo bruxa aplicar-se tanto para 0 homem como para a mulher, a grande maioria das bruxas processadas pertencia ao sexo femini- no. Na maior parte das regides da Europa em que se deu a perseguicio, a percentagem de bruxas mulheres teria excedido a 75%, o que levou alguns estudiosos a interpretar a caca as bruxas como uma forma de genocidio. A caca as bruxas e todo o seu aparato juridico construiram simbolica- mente 0 que seriam as bruxas e seu universo, seus sortilégios e maleficios. Esses homens — magistrados, juristas, tedlogos, fildsofos e religiosos — acreditaram de tal forma na realidade que criaram, sentiram-se tio forte- mente ameacados, que viram-se na obrigaco de purgar o mundo do mal que 0 acometera. O tema da bruxaria surge, assim, de forma atraente e sedutora, por revelar aquela que, a meu ver, foi a representacado maxima — e, poder-se-ia dizer, extrema — ocidental da mulher como outro, com toda a ambigiiidade e perigo que esse outro representa. 1. A DIFiclL QUESTAO DA ALTERIDADE A perseguigio as bruxas insere-se no que Tzvetan Todorov identifica como tendéncia hist6rica ocidental 4 negacao da alteridade e & sua conse- qiiente assimilaco. Com efeito, intimeros episddios tragicos ocorridos a0 longo da hist6ria comprovam essa teoria. A sangrenta conquista da Amé- rica, 0 Holocausto da Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, 0 drama das disputas étnicas e territoriais que assolam violentamente na- gées como a lugoslavia, reptiblicas da antiga Unido Soviética, diversos paises africanos, entre outros, so exemplos amargos do que a intolerdn- cia a diversidade, ao diferente de si, pode causar. Todos esses massacres envolvem um grande niimero de vitimas e trazem, quase sempre, uma explicagao “racional” ou “cientifica” para a justificagao do exterminio. A 62 A bruxaria européia truculéncia de tais passagens poe em diivida a nocao de civilizacio que 0 homem branco curopeu costuma auto-atribuir-se ao comparar-se com seus contemporaneos ditos primitivos, e coloca a necessidade de se dis- cutir uma questdo cara a Antropologia e a cada um de nds: a alteridade. A questao da alteridade envolve uma polaridade complementar. Con- siste, fundamentalmente, no relacionamento de um sujeito, que se coloca na posigao de eu, e de um objeto, que assume o lugar do outro. Essa dialética envolve uma ambigiiidade dificil de ser suportada, seja por um, pelo outro, pois contrapde, ao que é, a p dade de nao ser. No so especifico do Ocidente, a tendéncia parece ser a de resolver a ambi- gitidade por intermédio de sua negacao. Suprime-se, assim, uma das par- tes, dominando-a, assimilando-a ou simplesmente destruindo-a. Tal fendmeno pode ser claramente observado no processo europeu de caga 4s bruxas, a0 longo do qual a mulher, colocada na incémoda posi- ao de outro frente 4 sociedade a que pertencia, foi vista como ser ambi- guo e ameacador para o sistema organizacional sobre 0 qual esta estava apoiada, devendo, portanto, ser eliminada. Essa construgio do feminino evidencia a ambigiiidade e 0 temor que costuma povoar o imaginario que cerca 4 alteridade. A bruxa atemoriza por seu cardter ambiguo. £ a ambi- gitidade que traz em si a responsdvel por sua sentenga. Ambigiiidade essa, que ha muito tem desafiado as [6gicas: os imponderdveis da vida, 0 “duplo marginal de dois mundos”. 2. O CONCEITO CUMULATIVO DE BRUXARIA A “loucura antibruxas”, como a denominam alguns historiadores, teve lugar na Europa Ocidental e Central, particularmente na area compreen- dida pelo Sacro Império Romano, Suiga e diversos ducados e principados de lingua francesa, situados na fronteira com terras suigas e alemis. Com- paradas a essa 4rea, considerada 0 centro real da perseguigdo, uma vez que concentrou cerca de 75% dos julgamentos de bruxaria do periodo, todas as demais regides foram brandas no tratamento dispensado as bru- xas. O conceito de bruxaria sera analisado, no Ambito deste trabalho, em suas linhas mais gerais, ou seja, naquilo que apresentou de comum nas regides da Europa onde a perseguigao, sobretudo contra as mulheres, foi mais acirrada. 63 Adriana Dantas de Mariz Visto por alguns autores como cumulativo, 0 conceito de bruxaria que originou a caga teria se formado ao longo de varios séculos, sendo fruto tanto das elucubragées e dos escritos de tedlogos, de magistrados e de filésofos, quanto de antigas crengas e cultos pagios do periodo classico, disseminados largamente entre a populagio, por intermédio da tradigio oral. A essa imagem da bruxaria, construida pelos eruditos e reforgada pelas crencas populares, vieram somar-se os processos e, com eles, os numerosos exemplos de casos, muitas vezes famosos, que lhe atestaram a necessaria veracidade junto a sociedade. O conceito de bruxaria desenvolveu-se no 4mbito de um amplo debate entre duas alas da Igreja Catdlica: uma, representada pelo pensamento de Santo Agostinho, outra, pelo de Santo Tomdas de Aquino. A principal diver- géncia entre as duas residia em sua interpretacao dos textos biblicos e canénicos. Na concepgio de Santo Agostinho, as alusdes contidas nos textos sagrados aos danos causados por bruxas e por diabos eram meta- foricas, nao tendo o Diabo poder para efetud-los, de forma que esses nio passavam de ilusdes provocadas por ele. Assim, no entender dos agostinianos 0 Diabo utiliza de sua malicia, com a permissao de Deus, para incitar determinadas pessoas a tomarem como real aquilo que, de fato, apenas sofrem em imaginacio e em decorréncia de sua prépria culpa. Santo Tomas de Aquino, por sua vez, acreditava que 0 Diabo obtém seus poderes com a permissdo de Deus e que os males que inflige aos homens e aos animais s4o reais, e nZo imaginarios ou ilusérios, como que- riam os agostinianos. Em suas pregacoes, defendia a tese de que os dem6- nios so capazes de fazer o mal e de impedir 0 ato carnal. Se, até entao, eram considerados hereges os que acreditavam na realidade das praticas magicas, com o pensamento de Santo Tomas a situacdo inverteu-se, pas- sando a ser hereges aqueles que nao acreditavam em sua realidade. Conforme salienta Julio Caro Baroja, em seu livro As bruxas e o seu mundo, os dois critérios — realidade e nao-realidade — dominaram a Europa durante séculos. No periodo moderno, contudo, a autoridade de Santo Tomas de Aquino substituiria a de Santo Agostinho, permitindo edi- ficar 0 sistema que daria sustentacdo 4 caca e que afirmava serem as mulheres, em sua grande maioria, bruxas. 0 termo bruxaria, conforme empregado na Europa no inicio da Idade 64 A brusaria européia Moderna,' denotava dois tipos de atividades diferentes, mas relacionadas entre si: 0 maleficio e 0 diabolismo. Embora a presenga de uma quase sempre implicasse a presenca da outra, como observa Baroja, dependen- do da situacZo, a palavra bruxaria podia referir-se a apenas uma dessas duas praticas. 0 maleficio compreendia a pratica de magia negra ou maléfica eno envolvia necessariamente 0 uso de técnicas ou substancias especifi- cas, embora dependesse essencialmente do poder da bruxa de provocar o mal, por intermédio de um saber e de um poder extraordindrios ou sobrenaturais. Por sua vez, a pratica do diabolismo caracterizava-se pela adoracao e pelo pacto com o Diabo e, ainda, pela participagio nos sabis. Duas outras atividades faziam parte do universo semintico da bruxari: a invocagdo ¢ a magia branca. £ por meio da invocacio que a bruxa solicita ao Diabo ou a um dos demGnios menores auxilio e orientacgio para seus atos magicos. Jé a magia branca, nao envolve a pratica do maleficio ¢ pode ser dividida em duas categorias principais: a baixa ma- gia branca — caracterizada pelas formas rudimentares de adivinhagao e pela pratica do curandeirismo; e a alta magia branca — fundamental- mente a alquimia e a adivinhacio. 0 conceito de bruxaria, portanto, consistia na crenga de que o Diabo, com a devida permissio de Deus, podia causar — sozinho ou por inter- médio das bruxas — intimeros males a homens e a mulheres para puni- ¢io do pecado ¢ teste da fé. Desse modo, toda pratica magica, mesmo a da magia branca, implicava em pacto ticito ou explicito entre seu praticante e 0 Diabo, pois, de acordo com os tedlogos, somente mediante 0 pacto podiam as bruxas obter seu conhecimento e os poderes magicos sobre os homens e os anima aidéia de pacto que dard a justificagio para que 0 mago ou a bruxa sejam acusados de hereges e apéstatas. Conforme observa Brian Levack, em seu livro A caga ds bruxas na Europa moderna, a negociacio do pacto envolvia, de modo geral, uma operacdo “conduzida por dois iguais, cada um deles procurando so- 1 Apesar de nao haver, entre os historiadores, acordo sobre os critérios de periodizacio, acredito que as datas aproximadas adotadas aqui correspondem Aquelas utilizadas pela maioria dos estudiosos que se dedicaram ao perfodo. Para uma discussio mais aprofundada, cf. Jacques Le Goff, Reflexdes sobre a Historia, Lisboa, Edigdes 70, 1982 65 Adriana Dantas de Mariz brepujar o outro e induzi-lo a dar mais do que receber.”* Todavia, na medida em que gradualmente o mago foi transformando-se em bruxo no imagindrio da época, as acusagdes de bruxaria passaram a ser dirigidas a camponeses € a outros membros das camadas menos favorecidas da so- ciedade, e 0 sexo dos acusados mudou de masculino para feminino. No lugar do mago, mesire do Diabo, surgiu a bruxa servil, e 0 pacto, entéo, deixou de ser visto como negociacao entre iguais. Aidéia de hierarquia que regia a organizacao social do periodo parece estar embutida na definigio da bruxa servil, uma vez que 0 pacto sé era visto como negociagdo entre iguais quando envolvia a alta magia, pratica- da pelas classes cultas e abastadas. Os pobres e desfavorecidos nao po- diam colocar-se em pé de igualdade nem mesmo com 0 Diabo, pois isso poderia significar a intengdo ou a possibilidade de fazé-lo também frente Aqueles que Ihes eram superiores na escala hierarquica social. 0 mesmo ocorria com as mulheres, identificadas pelos inquisidores como bruxas servis. Consideradas fisica e moralmente inferiores aos homens, por parte da Igreja e da sociedade, as mulheres nao era permitido manter uma relagao de igual com homem algum, nem sequer com 0 Diabo. Essa re- presentacio é significativa, portanto, da proibicio que recafa sobre cam- poneses, mulheres ¢ trabalhadores de almejarem o poder. 0 conceito de bruxaria envolvia, ainda, a crenga na adoragao coletiva ao Diabo, realizada em encontros noturnos conhecidos como sabds, nos quais ocorria toda sorte de ritos blasfemos, amorais e obscenos. A crenca nos sabds acarretava em outra: a do y6o noturno empreendido pelas bruxas com 0 auxilio do Diabo. Tendo em vista que os sabds aconteciam em lugares ermos, distantes do local onde as bruxas habitavam, era necess4- rio que essas tivessem obtido do Diabo o poder de voar para que conseguis- sem transportar-se para l4 com a rapidez descrita pelos seus delatores. A cren¢a nos sabis serviu para justificar 0 processo de acusagées em cadeia, no qual as bruxas denunciadas eram obrigadas, por sua vez, a delatar seus supostos ctimplices, parceiros na adoragaio coletiva € nos rituais sabaticos. Em linhas gerais, 0 conceito de bruxaria reunia trés idéias basi- cas, que consistiam na crenca em pactos efetuados entre as bruxas e 0 Diabo, na adoracio coletiva que ocorria nos sabas e no v6o noturno. 2B. Levack, A caga as bruxas na Europa moderna, op. cit., p. 36. 66 A brusaria européia 3. QUEM ERAM AS BRUXAS As acusadas de bruxaria pertenciam, em sua maioria, as camadas infe- riores da sociedade e eram, de modo geral, associadas a atividades que lidam, direta ou indiretamente, com a vida ¢ a morte — parteiras, cozi- nheiras, curandeiras, 0 que as tornava alvo facil d: speitas de bruxaria. Quase todas sao descritas, tanto pelos inquisidores, como pelos magistra- dos, como mulheres de saber, no sentido de que eram detentoras de um conhecimento préprio a respeito das ervas com as quais elaboravam po- des e ungiientos magicos ou venenosos. De fato, as fungdes exercidas por essas mulheres pressupunham um certo conhecimento, um certo saber. Em uma sociedade baseada no principio da autoridade masculina ena idéia de direito marital e paterno, no qual as mulheres nao deveriam — pelo menos teoricamente — trabalhar ou instruir-se, qualquer tipo de ocupagao, sobretudo aquelas que requeriam determinado conhecimen- to, ainda que rudimentar, era vista com desconfianga. Conforme observa Elisabeth Badinter,> até 0 século XVIII a medicina esteve, em parte, nas maos das mulheres, uma vez que, até entao, os médi- cos dedicavam-se sobretudo a etiologia das doengas, relegando a pratica da medicina as curandeiras e a arte da obstetricia 4s parteiras. Dadas as condigdes precdrias da época, nao era raro que um doente morresse a0 longo do tratamento, ficando a curandeira, ou a parteira, no caso de um natimorto, automaticamente suspeita de bruxaria. Os autores do Malleus maleficarum, um dos mais conhecidos e difun- didos manuais da Inquisigao, acreditavam que as maiores hereges eram as parteiras, capazes de cometer infanticidio e de oferecer criangas a0 Diabo. Citam, como exemplo, 0 caso de uma bruxa que foi queimada e “confessou que matou mais de 40 criangas, espetando uma agulha no alto de suas cabecas até o cérebro, assim que sairam do Utero.” A bruxa era comumente associada a idéia de mulher velha e feia, movi- da pelo desejo sexual. Tal imagem é amplamente descrita nos textos da 3 Cf. Elisabeth Badinter, Unt amor conquistado: O mito do amor materno, Sio Paulo, Circulo do Livro, 1985. 4 J. Sprenger & K. Heinrick (ed.), Malleus maleficarum (edigio resumida), Sio Paulo, Editora Trés, 1976, p. 108 67 Adriana Dantas de Mariz época, como mostra 0 relato de Robert Burton, escrito em 1621, a respei- to de determinada bruxa, no qual cle afirmava que esta, “apesar de ser uma velha encarquilhada, [...] mia de noite e deve ter um garanhao, um campeio, ela precisa ¢ vai casar novamente, unindo-se a algum homem jovem.”* De acordo com os dados do periodo, a grande maioria das acusadas de bruxaria contava mais de 50 anos, idade que no inicio da Idade Moderna era considerada muito mais avancada do que 0 é hoje. Alguns historiadores véem na demora dos processos de julgamento a explicagdo para o fato de a maior parte das bruxas possuir idade avanga- da. Segundo eles, quando chegavam a ser julgadas, a suspeita sobre elas ja durava muitos anos. Nao obstante, o esteredtipo da bruxa velha e movida pelo desejo sexual parece indicar que as mulheres sexualmente maduras € experientes eram vistas com certa repugnancia, principalmente quando, nao estando mais em idade de procriar, nio demonstravam pudor em revelar o proprio desejo. Nao tera sido decerto por acaso que a maioria das acusagdes de maleficio praticado pelas bruxas fosse de impoténcia sexual, 0 que levou os inquisidores a afirmar, debilmente: Eo que se deve pensar das bruxas que coletam, dessa forma, drgios masculinos em grande ntimero, como 20 ou 30 membros juntos e os colocam num ninho de passaros ou fecham-nos numa caixa onde se movem como membros vivos e comem aveia e milho, conforme foi visto por muitos e é assunto de relatos populares.° Uma enorme parcela das acusadas era composta de mulheres nio casadas, sendo vitivas as mais numerosas. Tal fato deye-se, provavelmente, 4 desconfianga que mulheres nao casadas despertavam na comunidade do periodo, pois esperava-se que todas fossem esposas ou futuras espo- sas. Se nfo casavam, ou se porventura ficavam vitivas, deixavam de ter um papel social definido, dando margem a uma ambigiiidade que representa- va uma séria ameaga ao sistema sécio-econdmico e politico. Muitas dessas mulheres eram demasiado pobres, chegando, as vezes, a ser mendican- tes, 0 que constitufa um grave problema social e econdmico. Ja as mulhe- res casadas cram acusadas de bruxaria em decorréncia de conflitos entre 5 Robert Burton apud B. Levack, caca as bruxas na Europa modema, op. cit, p. 135. 6 J. Sprenger & K. Heinrick (ed), Mallens maleficarum, op. cit, p. 73. 68 A bruxaria européia elas e os maridos ou entre elas e os filhos e, ainda, de disputas relaciona- das 4 heranga e propricdade Foram essas pobres mulheres velhas, aparentemente despojadas de tudo o que de mais digno era compartilhado por seus contemporaneos, que puseram 4 nu as contradigdes da sociedade de seu tempo. Nao por acaso, a Inquisi¢io concentrou todas as suas forgas contra elas; contra resmungos e diatribes de mulheres rabugentas e histéricas. Ao que pare- Ce, as possessoes coletivas ocorridas principalmente nos centros urbanos — em hospitais e em conventos — simultaneamente aos maleficios e praticas magicas das bruxas campesinas tiveram uma forga histérica ¢ politica incalculavel, pois colocaram em xeque todas as velhas crengas a respeito de moralidade, sexualidade, divindade e familia. 4. O ESCOLHER COMO HERESIA A palavra beresia — associada posteriormente as bruxas devido a seus atos de apostasia e injaria da fé — vem do grego hairesis, hairein, que significa escotber.’ Dai a palavra hairetikis, do grego, significar 0 que escolhe. Damesma forma, 0 termo Diabo, em sua traducao grega Diabolos, significa “aquele que leva a juizo”. Tanto a bruxa como o Diabo representam a quintesséncia da heresia. Licifer, nome pelo qual este costumava ser designado antes da queda, era um arcanjo dos mais belos. Filho da aurora e associado a estrela Vénus, foi expulso do Paraiso e viu-se transformado em “principe das trevz deménio, porque ousou realizar uma escolha, rebelar-se contra 0 pai, 0 criador. Tal como Licifer, as bruxas também fizeram uma escolha: entre 0 mundo de Deus, representado pelo pecado original e pela negagao da carne, e 0 do Diabo, no qual a redengdo passa pela entrega aos prazeres carnais, optaram por este tltimo, obtendo, com isso, poder e conheci- mento. Essa construgio imagindria que faz da escolha de um caminho proibido fonte de conhecimento e, concomitantemente, do mal, pode ser observada em diversos relatos miticos. A prépria Eva provou do fruto proibido da arvore do conhecimento, dando origem, com esse ato, a uma série de episddios e desdobramentos nefastos. 7 N. Falbel, Heresias medievais, Paulo, Perspectiva, 1976, p. 32 69 Adriana Dantas de Mariz No caso das bruxas, vistas como rebeldes capazes de abandonar a companhia dos seus e de renunciar a Deus para seguir ao Diabo, essa op¢io significava, aos olhos da sociedade da época, uma ameaca a seu sistema organizacional, baseado na autoridade masculina, no qual a mu- lher desempenhava o papel de esposa e de mie, de substancia da moral e sustentéculo da familia, e onde todas as escolhas eram feitas para ela e nio por ela. A caga as bruxas ocorreu em um periodo marcado por grandes rebe- lides populares. Nesse sentido, a heresia das bruxas representou, simbo- licamente, a expressdo de desejos, de aspiragdes que ameagavam a estru- tura da hierarquia social — a autoridade de Deus, do rei, do pai e do marido. A construgao simbélica das bruxas e 0 temor 4 bruxaria espelharam anseios mais amplos que estavam na base dos movimentos politicos e sociais do seu tempo. 5. A BRUXARIA E SUAS PRATICAS De acordo com os autores do Malleus Maleficarum, existiriam trés tipos de bru ‘aquelas que lesam, mas no podem curar; aquelas que curam, mas que, por meio de algum estranho pacto com 0 Diabo no podem lesar e aquelas que tanto lesam quanto curam.”* Entre as bruxas que le- sam, uma classe em particular destaca-se, segundo a descrigao do Malleus, por seu poder de efetuar todo tipo de bruxarias e de encantamentos: [...] essa classe é composta daquelas que, contra todos os instintos da natureza humana ou animal, t@m 0 habito de comer e devorar criangas de sua propria amais poderosa classe de bruxas.? espécie. E essa é Essa poderosa classe de bruxas devoradoras de criancinhas 6 capaz de infligir um grande mimero de males 4 humanidade e aos animais, por intermédio de pacto implicito ou explicito com 0 Diabo, como, por exem- plo, causar impoténcia e esterilidade, provocar doencas graves e morte, transformar homens em animais, provocar 0 aborto, praticar infanticidio e canibalismo, devorar os proprios filhos, copular com diabos incubos e 8 J. Sprenger & K. Heinrick (ed.), Malleus maleficarum, op. cit., p. 36. 9 Idem, p. 37. 70 A bruxaria ewropéia sticubos, perturbar com amor ou édio desenfreados a mente dos ho- mens, silenciar a si mesmas e aos outros que estio sob tortura para que nada revelem, transtornar magistrados, juizes, funciondrios ¢ todos aque- les que as queiram atingir, transportar-se pelo ar tanto em corpo quanto em imaginagio, mostrar coisas ocultas ¢ eventos futuros por meio da informagio dos diabos e, ainda, dedicar seus préprios filhos ao deménio. Para alcancar o pleno dominio de seus poderes, é necessario, além do pacto com 0 Diabo, o qual implica na rentincia total ou parcial a Deus, que a bruxa obedeca a um método de profissio. Tal método, baseado no pacto com o Diabo, consiste na homenagem e na confissdo. A homenagem é uma ceriménia solene, na qual a bruxa presta um voto e faz a promessa de dedic: nio. Ocorre nas assembléias noturnas ou sabas e possui um cardter cole- tivo. O ritual da homenagem reforca o sentido de unidade de identidade do grupo e possui, para os nedfitos, a importincia e o significado de um ritual de iniciagao, jd que € nele que se transmite 0 conhecimento das praticas magicas. J4 a confissdo é privada e pode ser feita em um momen- to solitario. Compde-se de pequenos atos de negagao da fé, como, por exemplo, fazer o sinal-da-cruz com a mao esquerda ou jurar em nome do Diabo, os quais constituem uma série de praticas que invertem os ritos e ceriménias catélicos. Ambas as praticas implicam na rentincia a Deus. Em troca, as bruxas recebem os poderes de que o Diabo dispoe. Algumas bruxas eram acusadas de copular com animais — especial- mente 0 bode, uma das mais freqiientes representagdes do deménio —, com outros seres demonfacos — tais como os incubos e os sticubos — ou ainda com 0 préprio Diabo. AcusagGes de infanticidio e de canibalis- mo eram comuns e havia, como vimos, as bruxas consideradas mais po- derosas. Seu enorme poder advinha precisamente do fato de serem capa- zes de devorar os prdprios filhos. 6. O CONTEXTO DA BRUXARIA sistema familiar e politico da Europa, no periodo em questao, estava baseado na autoridade masculina — divina, real, paterna e marital. Nele, a mulher nZo possuia direito algum como pessoa. Se era solteira, perma- necia sob a tutela do pai; se casada, a tutela pertencia ao marido. Caso no 71 Adriana Dantas de Mariz casasse, era, em geral, confinada em algum convento. Nesse contexto, a mulher era vista como propriedade do homem e mera reprodutora, mae de seus filhos. Elisabeth Badinter fala do principio da autoridade que norteava tal istema, com base em trés discursos interligados: 0 primeiro, tomado de empréstimo a Aristoteles, demonstrava ser a autoridade natural; 0 segun- do, defendido pelos tedlogos, pregava a origem divina da autoridade; e, por fim, o terceiro, apregoado pelos politicos, afirmava ser a autoridade ao mesmo tempo divina ¢ natural. Fundados sobre o principio da desi- gualdade natural existente entre seres humanos, mais exatamente entre homens e mulheres, os trés discursos serviram para justificar e legitimar a autoridade masculina. S40 Paulo, por exemplo, chegou ao ponto de advo- gar a existéncia de “uma hierarquia na igualdade”."* A nocio de hierarquia e autoridade masculina baseava-se em uma concep¢ao da mulher como ser inferior ou, como diria Songe de Verger, “um animal que nao é firme, nem estayel, odioso, que alimenta a malda- de... fonte de todas as discussées, querelas ¢ injustigas.”"' Vista como ser naturalmente inclinado 4 maldade e 3 traigao, a mulher, fraca, cederia mais facilmente as tentagdes da carne e da curiosidade. Considerada inferior a0 homem, a atitude que se esperava dela, socialmente, era de modéstia e de siléncio. 0 recato e a humildade eram considerados qualidades femininas essenciais, sendo vedado as mulheres vaguear os olhos e o pensamento. 0 simples fato de executar determinada agio ou tarefa reservada aos ho- mens era sindnimo de negagao da feminilidade e motivo de suspeita. Com 0 objetivo tacito de manter sélidas as bases sobre as quais assen- tavam-se 0 principios da hierarquia e da autoridade masculina, os casa- mentos eram arranjados e nao levavam em consideragdo aspectos entio considerados irrelevantes, tais como beleza, amor ou atracao fisica. A efemeridade desses sentimentos ¢ atributos fazia com que fossem social- mente desvalorizados, uma vez que era impossivel construir uma uniio duradoura sobre bases tao frageis. Assim, 0 que determinava os casamen- 10 CEE sabeth Badinter, Um amor conguistado: 0 mito do amor materno, op. Cit 11 Songe de Verger apud Elisabeth Badinter, Um amor conquistado: O mito do amor materno, op. cit., p. 26. 72 A bruxaria européia tos era o principio da homogamia, ou seja, a escolha de alguém perten- cente ao mesmo nivel social. As mulheres nao deviam entregar-se aos prazeres do amor e do sexo nem com 0 préprio marido, pois 0 sexo sé era admitido como mal menor no casamento se praticado sem prazer ¢ com 0 intuito exclusivo de gerar filhos. Isso sugere que 0 amor, encarado como fonte de prazer, podia ser revolucionario, na medida em que dava margem ao surgimento da nogio de equivaléncia entre os amantes, colocando em risco o principio da autoridade masculina e da reveréncia feminina. Nesse contexto, cabe in- dagar que imagem tio terrivel era apresentada 4 sociedade européia pelo espelho das bruxas, a ponto de levar os inquisidores a acender as foguei- ras onde fariam queimar os fantasmas das perigosas e ameagadoras dife- rengas. 7. 0 ESPELHO DAS BRUXAS Como cada imagem e cada idéia associada 4 figura das mulheres-bru- s fornece dados riquissimos para o estudo de questdes como a natura- lizagdo da maternidade, a sexualidade e a magia, entre muitas outras, € considerando ainda que seria impossivel no ambito deste trabalho estabe- lecer as ligagdes simbélicas ¢ fatuais necessirias para a compreensio do fendmeno da caga as bruxas em sua totalidade, gostaria de reter apenas um de seus aspectos e, ainda assim, de maneira resumida: aquele que se relaciona de maneira mais clara e objetiva com o nosso tema, ou seja, a construgao da mulher como outro. A construgao simbdlica da mulher-bruxa — como discurso — revela a disputa entre forcas opostas pelo poder, representadas por Deus e pelo Diabo, pela Igreja Catélica — que sofreu profundas crises e rupturas nesse periodo — ¢ suas concorrentes magicas ou religiosas. Todavia, ao contrario do que versa a teologia crista, que prega a existéncia de uma hierarquia natural, inerente as diferencas, as mulheres-bruxas mostram que a hierarquia entre as diferencas resulta, na verdade, de um erro de julgamento humano ou de um: mal praticada, que daria margem ao surgimento da dominag4o ou supremacia de uma das partes sobre a outra. De todas as revelacdes contidas no espelho das bruxas, a m importante é, justamente, aquela da equiyaléncia entre diferentes. Nesse xa 73 Adriana Dantas de Mariz pequeno trecho de um relato retirado dos arquivos da Inquisigao de Toulouse, sobre o depoimento de Ana Maria de Georgel, mulher acusada e processada por “crime” de bruxaria, a idéia de que a hierarquia é meramente circunstancial, ndo sendo, em absoluto, natural, fica evidente: Interrogada sobre o simbolo dos apéstolos e a crenga que todo fiel deve 4 nossa santa religido, respondeu, como verdadeira filha de Satands, que a igualdade era total entre Deus e 0 Diabo, que o primero era rei dos Céus, e 0 segundo rei da Terra e que todas as almas que este tltimo conseguia seduzir ficavam perdidas para o Altissimo, que viviam eternamente na Terra ou nos ares e que iam todas. as noites visitar as suas antigas habitagdes para inspirar aos seus filhos ou paren- tes 0 desejo de servir o Deménio em vez de Deus. Disse ainda que o combate entre Deus e 0 Diabo existe desde toda a eterni- dade e nao tera fim; que a vit6ria ora eradeum ora de outro, eque na horaatual as coisas estavam tais que o triunfo de Satands lhe parecia assegurado. Presa por dentincia de pessoas respeitaveis que tinham motivo para se queixar dos seus maleficios, comegou por negar o seu pacto execravel e por resistir 4s nossas insistentes solicitagdes. Mas quando, por medidas severas, se viu obrigada a explicar-se, acabou por confessar uma série de crimes dignos do mais horrendo castigo, Confessou o seu arrependimento, pediu para se reconciliar com a Igreja, 0 que lhe foi concedido, sem que tenha podido, contudo, evitar de ser entregue ao poder secular que decidird das penas a infligir-Ihe.”” Esse relato permite observar o aspecto de rebeldia que cerca a figura da mulher-bruxa, concebida como militante das forgas inimigas do reino da Igreja, capaz de abandonar a companhia dos seus e de renunciar a Deus para seguir ao Diabo. Ana Maria de Georgel, como vimos, nao aceita a supremacia “natural” de Deus sobre o Diabo, imposta na época pela Igreja Catdlica. Vé na supremacia de uma das partes um aspecto mera- mente circunstancial, podendo essa pertencer, ora a um, ora. a outro lado. Entre Deus e 0 Diabo, ela escolhe o tiltimo. Ao igualar forcas diferentes, Ana Maria de Georgel coloca em questio o principio que justifica a hierar- quia, princfpio fundado na firme convicgao de que tal hierarquia emana de toda e qualquer diferenga. Ao questionar tal principio, evoca a nocao, inaceitavel para 0 status quo, de equivaléncia entre coisas que sao dife- rentes. Ao sugerir que a hierarquia da dominagao é apenas circunstanci- 12. J.C Baroja, As bruxas e 0 seu mundo, Lisboa, Vozes, 1971, p. 122 74 A bruxaria européia al, e nao divina ou natural, vai de encontro 4 autoridade do rei, baseada na hierarquizagao da diferenga, naturalizada e divinizada, 0 que a torna uma herege, traidora de Deus e do poder monarquico. Poder-se-ia dizer que a heresia principal das bruxas consiste, precisa- mente, na escolha que efetuam, pois, ao fazé-la, deixam de ser objeto passivo e passam a ser sujeito da hist6ria. Ana Maria de Georgel, ao mostrar, com sua fala, que a hierarquia das diferengas nao é algo dado naturalmente, mas sim, fruto das circunstan- cias, antecipa um debate que iria se travar a partir da segunda metade do século XIX, e que diz respeito justamente 4 nogio de hierarquia entre as culturas, baseada na idéia de evolugao e de progresso. 8. A CIENCIA E IMAGINARIO A construgao simbélica da mulher-bruxa — bem como os relatos que narram suas praticas e crimes — coloca um sério problema para 0 pes- quisador, uma vez que realidade e fantasia nao se dissociam. E impossivel discernir, em um processo cujas delagdes, depoimentos e acusagdes de bruxaria ocorreram, muitas vezes, sob o efeito degradante da tortura, 0 real do imaginario. A Inquisicao ea caca as bruxas na Europa sio fendme- nos plenos de elementos miticos e simbélicos, que fazem com que, ao examinar as narrativas do periodo, deparemo-nos com elementos que escapam a rigida compartimentalizacao tedrica e académica com a qual estamos habituados a trabalhar. Com efeito, as divisées conceituais geralmente utilizadas para viabilizar 0 estudo das diferentes manifestacies da vida social representam, nao raro, uma camisa de forca para o pesquisador que deseja cruzar frontei- ras. Exemplos disso so aquelas que separam o real do imagindrio ea razio da imaginagdo, pois, no que respeita aos fatos sécio-culturais, esses fendmenos nao sao de todo separaveis: contaminam-se entre si. A supervalorizacio da razio — imposta pelo pi ismo — e 0 conse- qiiente desprezo pelas manifestagdes do imagindrio fizeram com que os fendmenos envolvendo 0 fantastico — ou o simbélico — fossem durante muito tempo relegados a um papel secundério na teoria do conhecimento. No caso dos acontecimentos histéricos que trazem em seu bojo aspec- tos ligados ao fantastico, a tendéncia sempre foi a de analisé-los de forma 75 Adriana Dantas de Mariz a privilegiar um dos aspectos: ou 0 sécio-econdmico, propriamente dito, ou 0 fantastico, perdendo-se, assim, toda a tecitura imagindria e simbélica que liga um ao outro. Tecitura essa que a histéria das mentalidades e do imagindrio viria a resgatar. A caca as bruxas na Europa da Idade Moderna foi vista, durante muito tempo, como processo de histeria coletiva ou de barbarie, atribuida a um “tempo de trevas” e de obscurantismo. Entretanto, sabe-se hoje, esse foi um dos perfodos mais fecundos da hist6ria ocidental, seja no que diz respeito A ciéncia, seja no que se refere as artes. A caga as bruxas representou muito mais do que simples proces- so de histeria coletiva, conforme 0 demonstra 0 enorme volume de obras dedicadas ao fendmeno, escritas por cientistas das mais diversas dreas. Tal como ocorreu com a Antropologia, também a Histéria foi obrigada a re- pensar e a rever nao apenas seus métodos, mas também os objetos de sua andlise, o que possibilitou o surgimento de importantes ramificagées, tais como a histéria das mentalidades, do cotidiano e do imagindrio, que pas- saram a dedicar-se ao estudo das representagdes coletivas que estéo na base dos fatos sociais e dos acontecimentos histéricos. Fontes que ante- riormente no eram consideradas confidveis devido a seu teor ficcional ou mitolégico passaram a ser vistas como textos, narrativas que informam sobre 0 imagindrio de uma época e de um povo. £ assim que muitos dos principais trabalhos cientificos da atualidade tratam de temas que, hd pou- co mais de 100 anos, dificilmente seriam levados em consideracao. Croni- cas de viagens, textos literarios e dramaticos, mitos, narrativas orais, cren- dices e cancdes populares revelaram-se verdadeiros mapas semanticos, que permitem identificar as matrizes do imagindrio que se encontram na base da organizagao social; a fonte na qual yém beber as instituigdes sociais e, de resto, todo tipo de manifestagdo humana. Castoriadis, em seu brilhante estudo “A instituicdo imagindria da socie- dade”, caminha na mesma direc&o ao afirmar que as instituigdes sio redes simbdlicas socialmente sancionadas, “onde se combinam em pro- porgées e em relacdes varidveis um componente funcional e um compo- nente imaginario.”"5 Segundo 0 autor, apesar de nao se esgotar no simbé- idis, “A instituiggo e o imagindrio: Primeira abordagem” in A instituigao imagindria da sociedade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 159. 76 A bruxaria earopéia lico, tudo aquilo que se apresenta no mundo sécio-histérico estaria entre- lagado, de forma indissocivel, com ele. Sendo assim, em sua concepcao, apesar de ndo serem necessariamente simbolos, os atos individuais ou coletivos e os produtos materiais dos quais dependem as sociedades se- riam invidveis se n@o pertencessem a uma rede simbélica. Bachelard, por sua vez, foi um dos principais responsaveis, na filosofia, pela revalorizacao do imagindrio e da imaginagao como objeto digno de estudo. Preocupado em restabelecer a legitimidade da imaginacao, resga- tando-a do papel secundario ao qual foi relegada pelos estudos tradicionais, que a viam como simples alegoria ou c6pia da realidade, Bachelard diria: A imaginacZo nfo 6, como o sugere actimologia, a faculdade de formar imagens darealidade; ela 6a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. f uma faculdade de sobre-humanidade."* A supervalorizagio da razio, em detrimento do simbélico, imposta pelo positivismo, fez com que muitas narrativas, orais ou escritas, fossem condenadas a um papel secundario no horizonte da teoria do conheci- mento, relegadas 4 categoria do “fantdstico”, do imagindrio, no sentido do ficticio, do fantasioso, do irreal. Recentemente, porém, como bem obser- vou Eliade, as pequenas pepitas flamejantes da imaginagio, seus significa- dos, seu contetido simbélico ¢ sua estreita ligagio com os sistemas de representaces responsaveis pela tecitura da vida social comecaram a ser reunidas e lapidadas, revelando-se verdadeiras jias para o conhecimen- to cientifico. A ciéncia e 0 imagindrio est&o de tal forma entrelacados que é initil persistir na idéia e no erro de se acreditar que existam categorias puras, e que a ciéncia escape da trama simbélica de que é feita a complexa malha que envolve a organizagao social e as demais manifestagoes humanas. A ciéncia, durante muito tempo, tem se colocado na posicio de sujeito em relagio ao imagindrio, reduzido 4 categoria de objeto. E hora, no entanto, de se estabelecer a tao cara equivaléncia que buscamos resgatar nas dife- rencas e empreender uma dialogia proficua entre 0 eu e 0 outro, a cién- cia e 0 imagindrio, de modo a tornar possivel a travessia. acy achelard apud J. A. Pessanha, “Bachelard: As asas da imaginago”, in O direito de sonbar, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1994, p. svi 77 Adriana Dantas de Mariz 9. ConcLusio O tema da bruxaria, com seus personagens bizarros, encantos e sorti- légios, fascina tanto aos estudiosos como aos leigos e povoa 0 imaginario de diversas sociedades. Estruturalmente ambigua, uma vez que reine va- tios niveis da experiéncia, possui em determinados contextos desdobra- mentos dramaticos, como no caso da caga as bruxas européias. 0 enfrentamento com 0 outro, com o diferente de si mesmo — que 0 processo da caga as bruxas representou — é tema de muitas mitologias e habita 0 imagindrio de praticamente todas as culturas. A forma como cada uma lida com essa realidade é que difere. A questio da alteridade diz respeito nfo apenas ao Ocidente, mas 4 humanidade, ¢ tem estado na origem de numerosos e sangrentos conflitos. A construcao simbélica da mulher-bruxa fala da relacao entre homem e mulher, entre Deus e Diabo; revela a disputa entre forgas opostas pelo poder; desvela o discurso que pretende fixar uma hierarquia na igualdade e que, fatalmente, requerera que uma das partes seja suprimida ou assimi- lada pela outra. Questdes como a naturalizacio da maternidade, imanéncia e natureza feminina, entre outras caracteristicas comumente atribufdas 4 mulher, parecem estar subjacentes ao tema da bruxaria. Na concepgao dos auto- res do Malleus, ao devorarem criangas de sua propria espécie as bruxas contrariavam “todos os instintos da natureza humana ou animal”. A que instintos estariam eles se referindo? £ quase certo que se referissem, em parte, ao instinto materno, o qual estaria presente nas fémeas de todas as espécies, mesmo naquelas mais ferozes. Nesse caso, se as bruxas nio possufam tal instinto, em que esfera estariam situadas? Por outro lado, questionar a auséncia de instinto materno na bruxa nao seria questionar sua existéncia nas outras fémeas? Nao estariam as bruxas mostrando, com sua excego, que 0 amor materno esté longe de ser inerente ao ato biolé- gico da maternidade, e que, a0 contrario, é fruto de um longo e complexo processo de aprendizado, de socializacio? Essa discussio coloca em evidéncia 0 caréter de ambigiiidade que cerca a figura da bruxa, situada a meio caminho entre 0 humano e 0 animal, e revela uma construcao do género feminino que reflete as contra- digdes e disputas de sua época. Vista como outro do homem, a mulher- 78 A brucaria europea bruxa parece contrapor a0 modelo social existente a possibilidade de sua negacio e de escolha de outros valores. Em nivel de representagio, tal possibilidade surge como ameaga de caos, de inviabilizagdo da sociedade tal como estabelecida. 0 temor de que a reprodugiio do modelo social vigente fosse interrompida parece simbolicamente condizente com 0 mais temido dos maleficios provocados pelas mulheres-bruxas: a impoténcia sexual. 79

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