Você está na página 1de 15
Anténio Barbosa* nto Sl so (6, 38, Pensar 0 morrer nos cuidados de satide A SOCIEDADE E 0 MORRER O sistema de cuidadas de saiide de uma formasaio social tem come cbjee- tivos findamentais garantir um nivel de saiide clevado de populayio ¢ 2 qualidade de vida no momento da morte. ‘Numa das reflexes mais significativas sobre as finalidades intemas. da pprética clinica nas sociedades contempordneas ocidentais (Cassell, p. 97) recor- ta-se a importincia promulgads « dimensées como a proteccdo da vida e alivio do softimenta, a promogio da satide do doente, o respeito pela dignidade da Pessoa ¢€ a razoabilidade na alocagio de recursos comunitérios. Derivadas de uum compromisso entre a continuidade da moralidade interna pripria das pro- fissdes do saiido c as roturas que a moralidade externa envolvente contempo- rénea introduziram (fundamentalmente pela dimensio técnico-cientifica e con- sequente problematizagia politica de justia distibutiva), estar este «teleot ‘sanitfriow em consonéncia com o que as sociedades contemporancas expressamn ‘como objectives para si préprias, nomeadamente no que se refere & forma como nelas ¢ encarada a morte e 0 processo de morrer? Através dit historia, o” ser humano sobreviveu ao traumatismo eausado pela conscincia de sua morte, inventando dispositivos adaptados a visio do mundo de cada época. Primero a magia © a bruxaria, dy io, hoje a técnica, que, simultaneamente, contém algo de magia ¢ de religido. ‘Apés 0 advento de uma técnica incipiente e timidamente auxiliar dos desempenhos humanos ¢ respeitadora da natureza nus perfodos eléssivo © teoerétc, assiste-se, do renascimento A modemidade, a sua evolucdo para uma teenclogia que, imitande a natureza, perfectabiliza e complements 0 * Faculdade de Medicina de Lisboa, Centro de Biodtica, Antonto Barbosa humano, dignificando-o pela sua auto-originalidade (Pico della Mirandolla, p. 87) e, hodiemamente, a um salto radical através da ilimitada optimizagio da natureza humana por um provesso tecnolégico de autocrisgo, em que tudo ¢ rotencialidade ¢ o progresso uma fitalidade inexordvel. Deseparecem as fronteiras entre natureza e téenice ¢ o corpo humano, assumido como uma convensde, ¢ agora local de intervensdo e transformayfo activas. Neste utopismo tecno-cientifico, qual 0 lugar para a morte, ao pormos os pés ne terra, ao recordarmos que temos necessidades ¢ que somos vulneraveis? © novo fenémeno, de universal e irreversivel «envelhecimento demo- mrificon das sociedades desenvolvidas (Nazareth, 1997), compulsado a partir da segunda metade do século xx, determinado pelos bsixos niveis de fecun- didade ¢ acompanhado por importantes modificagdes nos comportamentos senuais © nas atitudes face a vida, assim como pela redusdo da mortalidade em todas as idades, desmedindo desequilibrios entre as diferentes idades geragées © conduzindo a ums situaso de duplo envelhesimento demografi ©, que gravitaydes desencadeia no proceso de morrer? Importa stentar no enorme potencial que representam as pesscas pertencen- tes as goropdes nascidas antes da segunda guerra mundial e nos grandes prin+ cipios defendides pelas Nayoes Unidas para essas pessoas: viver com digni- dade as suas condigles de existéncia, de seguranca e de justisa; viver com autonomnia, garaatindo o rendimento adequado a satisfee0 das necessidades Disicas, 0 acesso & formacio, aos cuidados de satide, a0 apcio da familia e comunidade; viver desenvol vendo-se pessoal ¢ espiritualmente, favorecendo a sua ecucagdo, culture, tempos livres e de participagao activa na sociedade, A serem satisfeitos estes desideratos que modulagio produzirio na. coreo- grafia do morrer contemporéneo? Esta questio tomna-se mais pertinente quando atentamos na topicalizacio da morte na conscigncia historiogrifica, sociolégica cu antropolégica, que engendram uma presung2o generalizada de que as sociedades actuais promo- vern essencialmente a negagio da morte. Na sequencia;io simbilica dos regimes tanatologicos proposios por Ariés (1977 e 1982), a representacéo epocal contemmporinea da morte reenvia para uma represeniagio recaleada da morte, para uma «morte tabu» que no acontscer quo- tidiano se assume como «morte solitiran, isolada (Elias, 1985), medicalizade (Burgess, 1993), instimcionslizada, escamoteads (Prior, 1989), interdita mama sconspirasaio de siléncion (Gores, 1965), em contraposigio com a morte secralizada, solidiria, familiar, «domesticadan, solene, partlhada, natural, da alta ade Média, com a morte «individual/propria» ligada a biografia individual ¢ 20 reforgo da ideia de juizo final na baixe Idade Média, mas também em contraposicio com a «norte do outron, amore pessoalizada do pés-barrece, nessa maior familiaridade com a morte aimbada de una nova iniolerincia & separaedo, que di expresso & pena ¢ um novo culto do luto, nomeadamente na morte Fensar © morrer nos cuidados de satide romintica, com toda a sua expressdo escultbrica e arquitecténica cimentade num desejo comum de culto da meméria (Catroga, 2002). Na sintese das principais eriticas dirigidas & morte no mundo ocidental contemporineo, Martins (1985) prope quatro temaétices essenciais. A hospita- lizago ¢ medical:zagio da morte desloca, radicalmente, o processo de morrer na familia e ra comunidade para os profissionais de sate © os hospitzis. Assim, 70%-90% das moztes produzem-se, actualmente, em instituigdes de saiide (Com, 94; Field, 93), a que acresce a intreducdo de novos ccitérios de marte (morte cerebral) e consequente reforco da suborcinagio da morte & autoridade téenico- -cieatifica (Ilich, 1975), apesar dos «verdes» protestos de reduzido impacto sobre a definigo de morte. A desritualizacdio da morte consubstancia-se na rarefaccio generalizada do culto da morte, expressa-se em indicadores como aumento de percenta- get de incineragBes, diminuigdo dos rituais funerérios e da arte mortuéria A decadéncia da linguagem, ou discurso, sobre a morte, evidenciavel na redugdo clare da representagao expressiva de morte na arte ¢ literatura, con- trasta com as ars moriendi do passado, que funcionavam como uma veferencia sélida © generalizada da expresso cultvral ¢ espiritual da morte. ‘Uma quarta temética reenvia para a auséncia do sentido da morte na épova conteraporinea tal como & jf expressa por Weber na conferéncia de 1919, «A ciéncia como vocagzon, a0 descrever o processo de desencanto ¢ desmagicalizagdo em que «nenhuma forca incalculével e misteriosa [...] assume qualquer papel, mas onde, pelo contririo, se pode em principio dominar qualquer coisa através do célculo [..] &, porque a morte no tem sentido, a vida civilizada é, e'a propria, desprovida de sentido. O proprio «progressismo» (infinito «rogress») da vida civilizada concede 4 morte a marca da auséncia de sentido». ‘Até cue ponto as sociedades ocidentzis, produtivistas e prometaicas, enre- dadas no circulo infemal da producio-consumo, convertidas axiologicamente 20 éxito, sucesso, produtividade, eficécia, rentabilidade, progresso e riqueza, hhipotecando a liberdade & légica superficial e banal do hipermercado, num glotal império do vazio 2 do efémero (Lipovetsky, 1987, 1988), podem Suportar a improdutividadé, a ineficacia e o «fracesson/«desperdicion da mor- te? Podem integrar a mort> na sua légica desenvolvimental? Quando ndo ha solugio, ké que ignorer, ocultar € reprimir a morte Igncrar insolentemente algo ce escandaloso ¢ insuportivel. Ocultar com pudor © cuidado algo de sujo ou vergonhoso. Reprimir protectoramente, como se nela s6 se visse 0 horror, o absurdo, o sofrimento imitil = penoso. Descrevendo a imagem da morte na medicina moderna, Callahen (1993) alerta para que se transformou a mortalidade mum falhango, plasmando-< para nossa responsabilidade, desnaturalizando-a « [...] a morte no é construica como um desenvolvimento biolégico inevitivel, mas como um Antonio Barbosa fallango médico. A morte foi deslocaia da natureza para ¢ realidade da responsabilidade humana.» A medida que a crenca na imortalidade da alma se debilita, emerge 0 mito compensador da sobrevivéncia biolbgica. A ima: gem: da morte absndona a ordem moral (0 pecado) para se instalar no terreno natural e sua transgressfo (a doenga). © conceito de doensa outorga & medicina ubjectividade, operaividade técnica € legitimizaco normativa. Aplicado o conceito de doenca & ideia de morte, esta toma-se contranatura, propriedade e responsabilidade humanas. A medicalizagio da morte rouba a esta naturalidade, cutemicidade e digridade do ponto de vista moral. Atente-se na palavra «aessustitacéo» (de uso tio generalizado na giria infoamal dos profissionais de saide), strazer a vida a um morton na sua definigao dicionarica. Na pritica clinica sabemes que se rfere, por exemplo, & recuperagao ou teactivaga cantiaca on pulmonar, mat o simples facto ée se utiiear aquela palavra traduz porventura o sentimento (talvez inconsciente) de omnipoténcis que adjudicamos ou nos adjudicam os profissionais de saide, ‘Na sociedade contemperdnea do conkecimento, assente na rlo-linearidade do saber, nas vertiginosas transformagdes dos comportamentos e dis percep- ‘es, os graus de subordinacio do projecto humano aumentam consideravel- mente. Os sistemas de produgio ¢ a série infindivel de detenminagder teenolégicas 2 de subordinago especializada ampliam as feixas de isolamenta fe de dependéncia, a que acrescem as estratégias de controlo disciplinar dox corpos (Foucault, 1998; Arendt, 1993; Agamben, 1990), e reenviam o homem para varias exclusses ¢ dissociagées da sua natureza ¢ da produsio de sentida , portanto, de si proprio. Rejeiter a morte é simplesmente exacerbar ¢ ‘raumatisme, invisivel, oculto, mas sempre presente, da morte. ser humano sabe, no fundo, que nenhum substituio tecnol6gico the permitira escapar ao seu fim natural, & sua condigtio mortal, Apesar do seu desejo dz sobreviver & morte ¢ de ceder a esse sonho desmesurado, nio se deixa enganar pelo atractor da imortalidade e sabe que nfo encontrar4, nem no progresso cientifico nem na tcenificagdo da more, resposta para a sua desilusdo e angiistia. Neste contexto, uma sociedade que rarefaz a reflex sobre a morte reenvia, preocupantemente, para novas vulnerabitidades as barbavies cuentes da violencia 6u fiias do pensamento parcelar da tecno-ciéncia burvcretizaéa, porque nada tem 2 dizer sobre a existéacia autenticamente humana. O projecto antropolégico, eduzido a instantes que se devoram na desidentificacds/desontologizacao € né decorrente sclidio e desamparo, pode atingir um paroxismo intolerével de desumanizasio ¢ alienagio, apesar de novas © miscigenizadas formas de reinvestimento no Sagrado, auma elaborada economia do simbélico e do virtual ‘Até cue fonto a heterogeneidade das realidades familiares, a fragilidade dos factores de coesdo social, a0 lado de poderosas forgas de fragmentago, a0 secundarizarem os valores éticos em favor da tirania sub-repticia ds indiferenga e do vazio de conviegdes — insensibilidade ¢ anomia [geradora

Você também pode gostar